O Direito ao Promotor Natural no Processo Penal: a Predeterminação Legal do Acusador Como Limite ao Poder Punitivo Estatal

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o direito Ao ProMotor nAturAl no ProCesso PenAl: A PredeterMinAçÃo leGAl do ACusAdor CoMo liMite Ao Poder Punitivo estAtAl tHe riGHt to nAturAl ProseCutor in CriMinAl ProCedure: tHe leGAl PredeterMinAtion oF tHe ProseCutor As liMit to tHe stAte Punitive PoWer

V inicius G oMes de V asconceLLos * M ariana M adera n unes **

RESUMO: Este artigo realizará análise do direito ao promotor natural no processo penal brasileiro. Embora os seus contornos básicos e a sua imposição constitucional se mostrem, até certo ponto, pacíficos na doutrina, a definição de seu conteúdo e de suas consequências é amplamente discutida, inexistindo precisão em sua delimitação. Isso acarreta a perda da capacidade de crítica científica do instituto, inutilizando sua construção em termos processuais penais. Em seu primeiro tópico, analisar-se-ão as discussões sobre o conceito do promotor natural e de seu conteúdo no processo penal, questionando-se as visões que o fundamentam em uma inviável imparcialidade do acusador criminal ou que o limitam exclusivamente à proteção das prerrogativas da independência funcional e da inamovibilidade do membro do Ministério Público. Em seguida, no segundo item, desenvolver-se-á a tese de que há um direito do acusado ao promotor natural, com conteúdo autônomo e essencialmente fundamentado na limitação do poder punitivo estatal. Ademais, apresentar-

*

**

Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), com período de sanduíche na Universidad Complutense de Madrid (bolsa PDSE/Capes), Mestre em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (2014 - Bolsista integral Capes), Pós-Graduado em Justiça Penal pela Universidade Castilla-La Mancha (UCLM – Espanha) (2013), Bacharel em Direito pela PUCRS (2012), Bolsista de Iniciação Científica CNPq/PIBIC (2009/2012), Professor de Direito Penal e Processo Penal nas Faculdades Integradas Campos Salles (SP). E-mail: [email protected]. Mestranda em Direito Processual Penal na Universidade de São Paulo (USP), Pós-Graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito (2015), Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2013), Assessora de Ministro no STF. E-mail: mariana_ [email protected]. 89

-se-á a análise de cada uma de suas consequências propostas, além do estudo de questões problemáticas, como a formação de equipes especializadas e a designação de promotor para atuação conjunta ao titular. Por fim, no terceiro tópico, abordar-se-á o embasamento constitucional do referido direito e a problematização da postura do Supremo Tribunal Federal acerca da temática, o qual, embora reconheça a sua existência em teoria, na prática acaba por esvaziar por completo seu conteúdo de um modo que deve ser criticado. PALAVRAS-CHAVE: Promotor natural; promotor ad hoc; atribuição; acusação; processo penal. ABSTRACT: This article analyzes the right to natural prosecutor in the Brazilian criminal procedure. Though its basic contours and constitutional imposition appear, in some extent, to be in harmony on the doctrine, the definition of its content and its consequences is widely discussed, which reveals the nonexistence of precision in its delimitation. This leads to the loss of scientific capacity to criticize the institute, immobilizing its construction in criminal procedure footings. In the first topic, this paper will analyze the discussions on the concept of the natural prosecutor and its contents, questioning the visions that are based on an unworkable impartiality of criminal accuser, or are limited solely to the protection of the functional independence and immovability prerogatives of the prosecutor member. Then the second item will exposes the thesis that there is an accused’s right to the natural prosecutor with autonomous content, essentially based on the limitation of state punitive power. Moreover, it will present the analysis of each of its proposed consequences and the study of problematic issues, such as the formation of specialized teams and prosecutor designation for joint action with the original one. Finally, the third topic will address the constitutional foundation of that right and the critical study of the position of the Brazilian Supreme Court about the theme, which, although assents its theoretical existence, in reality turns out to completely blank its content. KEYWORDS: Natural prosecutor; ad hoc prosecutor; accusation; criminal procedure. SUMÁRIO: Introdução; 1 Discussões sobre o conceito do promotor natural e seu conteúdo no processo penal; 2 O conteúdo autônomo do direito ao promotor natural e sua concretização como instrumento de limitação do poder punitivo; 3 Fundamento constitucional do direito ao promotor natural e a inconsistência jurisprudencial sobre o tema; Considerações finais; Referências. 90

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introduçÃo A necessidade de problematizar a utilização dos chamados “promotores de encomenda”1, aqueles designados pela Procuradoria-Geral para atuarem em uma causa determinada, invoca a imperiosa afirmação do promotor natural como direito fundamental do acusado no processo penal. A legislação institucional do Ministério Público possibilita a designação de representante para atuar em conjunto com o promotor titular do feito criminal apenas para realização de algum ato processual isolado. Assim, a autorização legal dá margem para que se procedam manobras políticas e ideológicas que conduzem à concentração de esforços da acusação em relação a casos específicos, de maneira completamente arbitrária e desarrazoada. Importante definir, preliminarmente, algumas questões terminológicas. A doutrina costuma utilizar o termo “princípio” de modo generalizado, e muitas vezes indiscriminado, ao abordar a temática do promotor natural. Neste artigo, como se sustentará posteriormente, será ressaltado o caráter de direito subjetivo do acusado, tido como essência do conteúdo do promotor natural, em atenção à sua instrumentalização como limitação do poder punitivo estatal. Contudo, nos trechos em que se mencione “princípio”, este trabalho o fará em remissão à posição majoritária em estudo2. Além disso, em rigor, a expressão “promotor natural” exclui de sua abrangência inúmeros integrantes do Ministério Público, como procuradores da República ou de Justiça estaduais. Pensa-se que o ideal seria “acusador natural”. Contudo, aqui a denominação “promotor” será empregada em sentido amplo, abarcando os membros do Parquet do Ministério Público Federal, do Ministério Público Militar, do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e dos Ministérios Públicos dos Estados3. O processo penal, na medida em que é instrumento de limitação do poder de punir do Estado, não pode fundamentar a acusação no eficientismo penal, de modo a permitir que a pretensão acusatória seja exercida em desrespeito aos direitos constitucionalmente assegurados do indivíduo. Com 1

MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 202.

2

Sobre as questões terminológicas referentes ao “juiz natural”, ver: BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 96-101.

3

Acerca de tal problemática, ver: BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 227; HAMILTON, Sérgio Demoro. Reflexos da falta de atribuição na instância penal. Justitia, São Paulo, v. 41, n. 107, p. 141-149, out./dez. 1979. p. 141. 91

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efeito, almeja-se problematizar a possibilidade de serem feitas designações casuísticas dentro do órgão de acusação estatal, à luz do modelo processual acusatório instituído pela Constituição Federal, da qual também deriva o espectro de direitos e garantias fundamentais em favor do acusado, responsáveis por extirpar do ordenamento a figura do acusador de exceção. A partir de tais premissas, neste trabalho, abordar-se-ão, por meio de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, as consequências decorrentes dos danos causados pela livre modificação de atribuição dos promotores por ato da Procuradoria-Geral. Nesse ínterim, o presente artigo tem como objetivo destrinchar as especificidades do conteúdo do direito ao promotor natural em sua conceituação e evolução histórica, destacando o panorama jurisprudencial de adoção dos seus preceitos e as consequências da sua não observância, para, em essência, afirmar a existência do direito fundamental do acusado ao promotor natural. Embora os contornos básicos e a imposição constitucional do promotor natural se mostrem, até certo ponto, pacíficas na doutrina, a definição de seu conteúdo e de suas consequências é amplamente discutida, inexistindo precisão em sua delimitação. Isso acarreta a perda da capacidade de crítica científica do instituto, inutilizando sua construção em termos processuais penais. Assim, alguns pontos problemáticos precisam ser estudados com atenção, de modo que se questiona: 1) O que é o “promotor natural” e qual é o seu conteúdo essencial?; 2) Qual a essência fundamentadora de tal preceito?; e, por fim, 3) O “promotor natural” tem conteúdo autônomo e legitimidade para constituir parte da teoria do direito processual penal? Diante disso, este trabalho fundamentará a tese de que o promotor natural (ou acusador legal) é direito subjetivo do acusado, que, em sua essência, deve necessariamente ser concebido como instrumento de limitação do poder punitivo estatal (visão que engloba o processo penal de um modo geral). Assim, sustentar-se-á que o direito ao promotor natural possui conteúdo autônomo, o qual se desenhará em três premissas: 1) vedação de promotor ad hoc; 2) definição prévia e abstrata em lei das atribuições de cada órgão de execução titularizável; e 3) direito do acusado de saber previamente (de modo abstrato) qual é seu acusador (órgão que possui atribuição), o que se configura como condição de exercício da ampla defesa. Em seu primeiro tópico, analisar-se-ão as discussões sobre o conceito do promotor natural e de seu conteúdo no processo penal, questionando-se as visões que o fundamentam em uma inviável imparcialidade do acusador criminal ou que o limitam exclusivamente à proteção das prerrogativas da 92

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independência funcional e da inamovibilidade do membro do Ministério Público. Em seguida, no segundo item, desenvolver-se-á a tese de que há um direito do acusado ao promotor natural, com conteúdo autônomo e essencialmente fundamentado na limitação do poder punitivo estatal. Ademais, apresentar-se-á a análise de cada uma de suas consequências propostas, além do estudo de questões problemáticas, como a formação de equipes especializadas e a designação de promotor para atuação conjunta ao titular. Por fim, no terceiro tópico, abordar-se-á o embasamento constitucional do referido direito e a problematização da postura do Supremo Tribunal Federal acerca da temática, o qual, embora reconheça a sua existência em teoria, na prática acaba por esvaziar por completo seu conteúdo de um modo que deve ser criticado.

influências estranhas, apto a dar a cada um o que é seu”7. De modo semelhante, Carneiro afirma a existência de “garantia de toda e qualquer pessoa física, jurídica ou formal que figure em determinado processo que reclame a intervenção do Ministério Público, em ter um órgão específico do Parquet atuando livremente com atribuição predeterminada em lei e, portanto, o direito subjetivo do cidadão ao promotor legalmente constituído para o processo”8. E, também nesse sentido, Mazzilli sustenta que “existe o princípio implícito do promotor natural, segundo o qual a lei deve assegurar a existência de órgão independente do Ministério Público, que possa exercer as atribuições que a lei conferiu à instituição, escolhido sempre por prévios critérios legais e não casuisticamente para o caso concreto”9.

1 disCussÕes sobre o ConCeito do ProMotor nAturAl e seu Conteúdo no ProCesso PenAl

Os contornos básicos da conceituação do objeto de estudo deste trabalho na doutrina são, até certo ponto, aceitos sem maiores distinções10, do mesmo modo que a sua imposição constitucional. Contudo, as consequências práticas de tal instituto se mostram nebulosas, especialmente a partir do estudo dos posicionamentos dos Tribunais Superiores brasileiros. Contudo, a fundamentação da existência do promotor natural, sua razão de ser, é o ponto que se mostra mais impreciso e discutido na doutrina. Nesse sentido, autores partem de diferentes premissas para sustentar tal preceito, ocasionando a distorção de seu conteúdo científico e, assim, esvaziando sua possibilidade de efetiva carga crítica. Diante desse cenário, duas posições devem ser expostas: 1) proteção da suposta imparcialidade do promotor; 2) efetivação das prerrogativas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros do MP.

O “princípio” do promotor natural começou a ser tratado, de forma ainda incipiente, quando a Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo4, Lei Complementar nº 304/1982, buscou trazer limitações para as designações promovidas pelo chefe da instituição, com a previsão de inamovibilidade dos membros “sempre que possível”, que poderia ser excepcionada, por exemplo, por exigência do interesse público5. Posteriormente, no VI Congresso Nacional do Ministério Público, em 1985, foi aprovada a tese do promotor natural, ficando estipulada a predeterminação legal dos cargos e das funções do órgão, impassíveis de livre alteração pelo procurador-geral. Em breve síntese, restou consignado que toda pessoa tem direito que a acusação seja promovida por representante independente e legalmente estabelecido e que o “princípio” do promotor natural deveria constar expressamente na Constituição Federal6. Na estruturação clássica do “princípio” do promotor natural, três autores são comumente citados. Conforme Penteado, “se acusada, toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de o ser publicamente e com justiça por promotor independente, titular do cargo criado pela lei, livre de 4

Arts. 32, I, nºs 17 e 18, e 123 da LC 304/1982.

5

MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 203.

6

Idem, p. 203-204. 93

7

PENTEADO, Jaques de Camargo. O princípio do promotor natural. Justitia, n. 60, p. 971-978, 1999. p. 975.

8

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 50.

9

MAZZILLI, Hugo Nigro. A natureza das funções do Ministério Público e sua posição no processo penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 805, p. 464-471, nov. 2002. p. 471.

10

Na doutrina contemporânea: “O princípio do promotor natural enuncia que os órgãos do Ministério Público devem atuar em atenção à atribuição prevista em lei de forma genérica antes da ocorrência de um fato que será objeto de sua atenção” (CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2013. p. 140). 94

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Inicialmente (1), parte dos autores fundamentam o promotor natural a partir da simples transposição da construção acerca do “juiz natural”11. Com base na ideia de que o Ministério Público em matéria penal mantém uma posição de imparcialidade, afirma-se que o “promotor natural” é instrumento que “assegura a todos os acusados a certeza da atuação de um promotor imparcial”12. Em relação à proteção do julgador, a essência do “juiz natural” se mostra adequadamente afirmada na efetivação de sua imparcialidade, pois a escolha de um magistrado específico a um processo gera uma presunção absoluta de parcialidade, ao passo que abre indevidas brechas para indicações arbitrárias e injustas13. Contudo, o regime jurídico do acusador no processo penal é necessariamente diverso daquele característico do julgador. É fundamental desvelar a inconsistência do mito da imparcialidade do Ministério Público na esfera penal14, pois a aceitação dessa ficção acarreta consequências violadoras ao direito de defesa e à presunção de inocência, visto que autoriza uma indevida crença na legitimidade e na licitude preconcebida dos atos do acusador15, o que caracteriza quase uma presunção judicial de veracidade das suas alega11

“[...] é indiscutível que, a par do princípio do juiz natural, convive o princípio do promotor natural, evitando que o cidadão seja acusado por alguém escolhido a dedo, por interesses escusos, em afronta a todos os princípios já postos, mas principalmente, ao da imparcialidade, primado maior na busca da justiça.” (MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2011. p. 213-214)

12

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 232. De modo semelhante: JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto. Direito processual penal. Estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 356.

13

BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 43. Conforme Badaró: “Assim, ainda que a garantia do juiz natural assegure ao juiz independência interna e externa, não tem na independência a sua razão de ser. O escopo ou a finalidade da garantia do juiz natural é assegurar a imparcialidade do julgador, ou melhor, o direito de todo e qualquer acusado ser julgado por um juiz imparcial. A garantia do juiz natural é teleologicamente voltada para assegurar a imparcialidade do julgador” (idem, p. 36).

14

CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 152-165.

15

“A crença na regularidade dos atos do poder, sobretudo do poder punitivo (potestas puniendi), define postura disforme dos sujeitos processuais, estabelecendo situação de crise através da ampliação da distância entre as práticas penais e a expectativa democrática da atividade jurisdicional. O reflexo concreto é violação explícita ou a inversão do sentido garantista de interpretação e de aplicação das normas de direito e de processo penal, revigorando práticas autoritárias.” (CARVALHO, Salo. Antimanual de criminologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 87) 95

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ções16. Assim, esclarece Montero Aroca que “deixando de lado a contraditio in terminis que implica qualificar uma parte de imparcial, ocorre que nem por razões que fundamentam a essência de sua função pode se caracterizar o Ministério Público como ‘parte imparcial’”17. Portanto, tal visão restringe a possibilidade de convencimento do julgador pela tese defensiva18, pois a contraposição às alegações supostamente percebidas como imparciais de um funcionário público acusador torna-se representante de um interesse inválido e ilegítimo, “uma atitude que inevitavelmente obstaculiza o processo de reconstrução da verdade organizado a partir da única perspectiva considerada legítima: a da autoridade estatal”19. Ou seja, na esfera penal o representante do Ministério Público adota uma postura acusatória, que é claramente manifestada no oferecimento da denúncia, expressão de uma pretensão processual com o interesse pela condenação do acusado. Eventual entendimento diverso, por exemplo, com um pedido absolutório em alegações finais ou de arquivamento do inquérito policial, não decorre de uma insustentável imparcialidade do acusador, mas de sua estrita submissão à legalidade20: requerer a condenação de alguém sem provas suficientes, além da dúvida razoável, para romper a presunção de inocência representa evidente abuso do poder de acusar, acarretando a inerente ilegalidade de tal conduta. 16

“A percepção dos atos do acusador como atos supostamente neutrais diminui as possibilidades de que o tribunal cumpra com suas funções de controlar estritamente a legalidade e, também, de proteger os direitos fundamentais do acusado. Quanto maior objetividade se atribua à tarefa persecutória, menor será a importância que se outorgará ao dever de controlar a legalidade dos atos do acusador.” (BOVINO, Alberto. Problemas del derecho procesal penal contemporáneo. Buenos Aires: Del Puerto, 1998. p. 40) (tradução livre)

17

MONTERO AROCA, Juan. Proceso penal y Libertad. Ensayo polémico sobre el nuevo proceso penal. Madrid: Thompson Civitas, 2008. p. 122 (tradução livre).

18

“Conceber o Ministério Público como parte imparcial significa inviabilizar a dialética de partes, ou, ao menos, tornar a contraposição entre tese e antítese algo artificial ou meramente formal. No processo acusatório, em que se acentua a relação dialética entre as partes, o Ministério Público dever ser uma parte verdadeira, isto é, uma parte parcial.” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 195)

19

BOVINO, Alberto. Problemas del derecho procesal penal contemporáneo. Buenos Aires: Del Puerto, 1998. p. 38 (tradução livre).

20

CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2013. p. 383; BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 225. 96

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É dizer, “ao Ministério Público somente pode satisfazer uma condenação em processo regular, em que tenham sido observadas todas as exigências legais”21. Assim, asseverar que o acusador tem interesse tanto na condenação do culpado como na absolvição do inocente acarreta inevitável aporia: crer em insustentável imparcialidade do promotor ou confundir as funções legítimas de julgador (Estado-juiz) e de membro do Ministério Público (Estado-acusador). Desse modo, resta inconcebível a justificação do promotor natural na proteção da imparcialidade do acusador no processo penal, pois o Ministério Público é parte e, portanto, parcial, na esfera criminal. Diante disso, Badaró aponta a inexistência do referido princípio, ao passo que “só há sentido de cogitar um princípio do promotor natural para aqueles que consideram que este órgão exerce uma função desinteressada no processo penal, isto é, seja um sujeito imparcial”22. Conforme exposto, concorda-se com o autor em relação à parcialidade do acusador, mas pensa-se que, em razão disso, não resta completamente esvaziado o promotor natural, visto que sua fundamentação decorre de premissas distintas, como se demonstrará posteriormente. Em outro sentido (2), corrente doutrinária justifica o “princípio” do promotor natural na proteção das prerrogativas da independência funcional e da inamovibilidade do representante do Ministério Público23. Como se expressará posteriormente, pensa-se que tais elementos são fundamentais na estruturação científica do objeto deste estudo, mas não sua essência exclusiva. Contudo, há autores que relacionam intimamente tais conceitos24, afirmando que a CF garante ao MP “a independência funcional e a inamovibilidade, prerrogativas incompatíveis com a avocação de causas e a designação 21

GUERRA, João Baptista Cordeiro. A arte de acusar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 80.

22

BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 228.

23

“A teoria do promotor natural ou legal, como anteriormente afirmado, decorre do princípio da independência, que é imanente à própria instituição.” (CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 50)

24

Gomes Filho afirma que a proteção do promotor natural “é deduzida das cláusulas que garantem a independência funcional e a inamovibilidade dos membros da instituição” (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Ministério Público e acusação penal no sistema brasileiro. Pena y Estado: Revista Latino-Americana de Política Criminal, v. 2, n. 2, p. 139-151, 1997. p. 143). 97

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de promotores com funções especiais, fora dos casos legais”25. Aqui surgem diversas divergências doutrinárias, em razão da aparente tensão entre os princípios institucionais do MP: por um lado, a unidade e a indivisibilidade, e, por outro, a independência funcional e a inamovibilidade. A partir de questionável leitura da unidade e indivisibilidade do órgão ministerial, sustenta-se que “todos os seus membros fazem parte de uma só corporação e podem ser indiferentemente substituídos um por outro em suas funções, sem que com isso haja alguma alteração subjetiva nos processos em que oficiam”26. Tal tese é amplamente criticada pela doutrina, visto que dissolve por completo o conteúdo das prerrogativas do MP e proporciona ilegítimos espaços para arbitrariedades a partir de abusiva discricionariedade27. Aponta-se que, na verdade, a unidade do Ministério Público deve caracterizar o fato de que “sendo um só organismo, os seus membros ‘presentam’ (não representam) a instituição sempre que atuarem, mas a legalidade de seus atos encontra limites no âmbito da divisão de atribuições e demais

25

CARVALHO, Luis Gustavo G. C. Processo penal e Constituição. Princípios constitucionais do processo penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 119.

26

CINTRA, Antonio C. A.; GRINOVER, Ada P.; DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 231. Tal posição foi adotada pela 2a turma do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 387.974, julgado em 14.10.2003, com relatoria da Ministra Ellen Gracie, o qual configura um dos poucos julgados em que o STF não reconhece o princípio do promotor natural. Em crítica a essa decisão, ver: TATAGIBA, Glauber. O Supremo Tribunal Federal e a revisão do princípio do promotor natural. De Jure, Belo Horizonte, n. 5, p. 437-354, 2002. p. 351-352.

27

“Assim, entre nós, não é correto dizer, de forma simplista, o Ministério Público é uno e indivisível, e constitua um só órgão, com uma só chefia, e seus membros integrem uma só instituição, na qual esses membros possam se substituir reciprocamente, sob livre designação do chefe da instituição; menos correto ainda é dizer, entre nós, que o princípio hierárquico ilumine a instituição ministerial. Ao contrário, no Ministério Público brasileiro sobreleva a independência funcional.” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A natureza das funções do Ministério Público e sua posição no processo penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 805, p. 464-471, nov. 2002). Assim também: CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 44; MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2011. p. 212; LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 162-163, jul./dez. 2008. 98

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princípios e garantias impostas pela lei”28. Já a indivisibilidade determina que os membros do MP podem ser substituídos, mas, obviamente, não de modo arbitrário, ou seja, desde que respeitando-se as regras previstas em lei29. Nesse sentido, de modo semelhante, pode-se afirmar que o Judiciário, no exercício abstrato da jurisdição, também se caracteriza pela unidade, a qual, contudo, é delimitada no caso concreto pelas regras de competência30. Assim, conclui-se que as prerrogativas independência funcional e inamovibilidade são fundamentais para a atuação da parte acusadora pública no processo penal, o que não se mostra incompatível com a unidade e a indivisibilidade do Ministério Público31, integrando, assim, o conteúdo do promotor natural. Contudo, Badaró se posiciona pela fragilidade de tal afirmação, pois, além de não ser sustentável a proteção da inviável imparcialidade da parte acusadora, as decorrências de tal preceito apontadas pela doutrina seriam suficientemente contidas nas prerrogativas da independência funcional e da inamovibilidade, não sendo, portanto, necessária a estruturação de mais um “princípio”32. Pensa-se, entretanto, que há relevância e conteúdo autônomos no promotor natural, como se demonstrará a seguir. 28

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 44.

29

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 155. Assim, também: CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2013. p. 380.

30

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 44.

31

DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Princípio do promotor natural. Salvador: Juspodivm, 2004. p. 56; MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 190; CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2013. p. 141.

32

“Para que não haja dúvida sobre a posição defendida, ressalta-se que não se nega a necessidade e a utilidade de que os órgãos do Ministério Público sejam estabelecidos por lei, e que os promotores atuantes sejam dotados de independência funcional, bem como sejam inamovíveis, considerando esta última garantia no sentido de ‘inamovibilidade no cargo e na função’. Até mesmo porque, tais garantias têm assento constitucional no art. 127, § 1º, e no art. 128, § 5º, I, b. Mas para tanto é desnecessário invocar ou criar um ‘novo princípio’, sem conteúdo próprio ou relevância autônoma, quando é possível obter as mesmas garantias a partir da independência funcional e de uma concepção de inamovibilidade em seu caráter substancial.” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 235-236) 99

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2 o Conteúdo AutônoMo do direito Ao ProMotor nAturAl e suA ConCretiZAçÃo CoMo instruMento de liMitAçÃo do Poder Punitivo A partir das considerações anteriormente expostas, percebeu-se que a doutrina processual penal não desenvolve adequadamente o conteúdo e a essência do promotor natural, o que finda por inviabilizar uma real carga crítica do instituto em estudo. Isso se dá em razão de uma inviável vinculação à já rebatida imparcialidade do acusador na seara criminal ou pela reducionista limitação à exclusiva proteção da independência e da inamovibilidade dos membros do MP. Assim, este trabalho almeja fundamentar a tese de que o promotor natural tem conteúdo autônomo e legítimo na estruturação científica do direito processual penal, concebendo sua essência a partir da premissa comum de que o processo penal é um instrumento de limitação do poder punitivo estatal33. Inicialmente, importante ressaltar que as prerrogativas da independência funcional e da inamovibilidade desempenham importante função na determinação do conteúdo do promotor natural, mas não exaurem por completo tal delimitação. Nesse sentido, fundamental perceber que o acusador natural não pode ser concebido como mecanismo de proteção essencialmente direcionado ao membro do Ministério Público e ao exercício de sua função no processo penal. Em sentido oposto, a definição de sua essência deve partir da proteção de direito e garantias do acusado, daquele que se posiciona no polo passivo diante da persecução punitiva estatal34. Conforme Carneiro,

33

Segundo Cunha Martins, “o marco constitucional se oferece doutrinariamente como limite às derivas processuais de fundo autoritário, impondo um sistema processual que possa considerar-se ele mesmo um aparelho limite ao poder punitivo” (MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. The brazilian lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 95). Também, nesse sentido, Melchior afirma que “o âmago da democraticidade para o processo penal reside nos elementos do sistema destinados a conter e restringir o exercício do poder punitivo, por ser o próprio exercício do poder o núcleo inquebrantável de qualquer preocupação democrática” (MELCHIOR, Antonio Pedro. O juiz e a prova: o sinthoma político do processo penal. Curitiba: Juruá, 2013. p. 146).

34

Em crítica a tal visão, Silva Jardim e Amorim afirmam que o processo penal não pode se pautar exclusivamente por interesses de uma “vetusta postura liberal-individualista”, de modo que o bem comum e a defesa social também são expressões de democracia (JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto. Direito processual penal. Estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 349-353). Tal visão, contudo, desfoca a necessária instrumentalização constitucional e convencional do processo penal como limitação ao poder punitivo, visto que a pretensão de eficácia repressiva visando à defesa social de modo 100

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“este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional, menos dos membros do parquet e mais da própria sociedade, do próprio cidadão [...]”35. Ou seja, a prerrogativa do promotor é reflexa e fundamentada exatamente na proteção dos direitos do acusado e na limitação do poder punitivo estatal36. Nesse diapasão, a apontada natureza de “dupla garantia”37 somente pode ser concebida em tais termos. E, assim, afasta-se a visão de que, em relação ao preceito em estudo, “sempre se tem em vista muito mais a proteção do promotor de justiça, em termos de independência interna”38, pois, exatamente em sentido oposto, a referida proteção do membro do MP concretiza, em essência, instrumento de limitação do poder punitivo estatal. Portanto, o promotor natural (acusador legal) é direito subjetivo do acusado39, preceito constitutivo do devido processo legal40, ou seja, elemenalgum pode se sobrepor ao respeito de direitos e garantias fundamentais. Sobre isso, ver: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. Introdução principiológica à teoria do ato processual irregular. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 23-49. 35

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 50.

36

De modo semelhante, Castanho de Carvalho afirma: “O princípio não visa conceder prerrogativas para o membro do Ministério Público. Trata-se de proteger a sociedade e os réus da atuação de promotores de exceção, de caso pensado, para adotarem determinada postura institucional recomendada pela chefia” (CARVALHO, Luis Gustavo G. C. Processo penal e Constituição. Princípios constitucionais do processo penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 120).

37

LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 168, jul./dez. 2008.

38

BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 229.

39

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 40; CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 50.

40

CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2013. p. 142; LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 166, jul./dez. 2008; JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto. Direito processual penal. Estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 363. Nesse sentido, importante definir: “O ‘devido processo (penal)’, tomado em ‘sentido estrito’, pressupõe uma direta e imediata relação com o estabelecimento e a realização do processo penal, conforme sua regulação legal e constitucional; e, além disso, atuando segundo as circunstâncias processuais nela prevista. Dito de modo mais simples: a relação se dá, nesse sentido, com o processo penal, regular e legal, diretamente. Em uma ‘visão ampla’, o ‘devido processo (penal)’ é equivalente ao caminho total que o Estado ‘deve’ percorrer até a efetiva aplicação de uma 101

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to indispensável para a legitimidade da imposição de uma sanção penal no Estado Democrático de Direito. Por outras palavras, que “o jurisdicionado não verá um promotor escolhido especificamente para sua causa atuando no processo, e que o pronunciamento do Ministério Público será livre e independente”41. O reconhecimento de que isso também visa a evitar uma “atuação caótica do Ministério Público”42 e à “limitação do poder do Procurador Geral de Justiça”43 não fragiliza tal tese, mas somente ressalta a importância da atuação do acusador no respeito à legalidade para a imposição de uma sanção penal, ou seja, enfatiza a necessidade de proteção integral das regras do devido processo, consolidando a essência do processo penal como instrumento de limitação do poder punitivo estatal. Assim, sustenta-se que o direito ao promotor natural possui conteúdo autônomo, o qual se desenha em três premissas: 1) vedação de promotor ad hoc; 2) definição prévia e abstrata em lei das atribuições de cada órgão de execução titularizável; e 3) direito do acusado de saber previamente (de modo abstrato) qual é seu acusador (órgão que possui atribuição), o que se configura como condição de exercício da ampla defesa. Nesse sentido, adota-se parcialmente a visão de Carneiro, que sustenta quatro exigências à proteção do promotor natural: “Pessoa investida no cargo de promotor; existência de órgão de execução; lotação por titularidade e inamovibilidade do promotor do órgão de execução, ressalvadas as hipóteses legais de substituição e remoção; definição em lei das atribuições do órgão”44. Primeiramente (1), o direito objeto deste estudo acarreta a vedação de nomeação temporária de acusadores que não integrem os quadros do Ministério Púsanção penal (ou a absolvição dela), entendida como a privação de um bem (vida, liberdade, propriedade)” (BERTOLINO, Pedro. El debido proceso penal. 2. ed. La Plata: Platense, 2011. p. 155) (tradução livre). 41

STASIAK, Vladimir. O princípio do promotor natural e sua relevância na administração da justiça. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 771, p. 484, jan. 2000.

42

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 231; HAMILTON, Sérgio Demoro. Reflexos da falta de atribuição na instância penal. Justitia, São Paulo, v. 41, n. 107, p. 141-149, out./dez. 1979. p. 142.

43

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 62; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Ministério Público e acusação penal no sistema brasileiro. Pena y Estado: Revista Latino-Americana de Política Criminal, v. 2, n. 2, p. 139-151, 1997. p. 143.

44

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 86-87. 102

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blico. Conforme Carneiro, “a garantia primeira da teoria do promotor natural pressupõe prévia investidura do agente no cargo e, portanto, no seu órgão de atuação, na forma prevista na Constituição”45. Trata-se de possibilidade anteriormente prevista no Código de Processo Penal brasileiro, excluída com a reforma de 2008, que autorizava o juiz a nomear qualquer advogado para atuar em processo específico (de iniciativa pública incondicionada) como acusador, quando o representante do Ministério Público não comparecer ao julgamento46. Tal situação foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal em dois julgados de 2003, em que se declarou a inconstitucionalidade de provimentos das Corregedorias-Gerais de Justiça de Goiás e Santa Catarina, que permitiam a nomeação de bacharéis de Direito como promotores ad hoc em casos de urgência47. Resta evidente que nessa situação caracteriza-se violação ao art. 129, inciso I e §§ 2º e 3º, da Constituição de 1988, que determina a legitimidade exclusiva do Ministério Público para promover a ação penal de iniciativa pública48. Em segundo lugar (2), o direito ao promotor natural impõe a definição prévia das atribuições de cada órgão de execução do Ministério Público, titularizáveis, de modo abstrato e em lei. Trata-se de posição muitas vezes rechaçada pela doutrina, o que acarreta total esvaziamento das prerrogativas da independência funcional e da inamovibilidade. Questiona-se: De que adianta garantir ao membro do MP sua inamovibilidade e sua independência funcional (em teoria) se não existir regra que defina anteriormente quais casos serão de sua atribuição? Se houver a possibilidade de distribuição discricionária dos 45

Idem, p. 51.

46

“Art. 448. Se, por motivo de força maior, não comparecer o órgão do Ministério Público, o presidente adiará o julgamento para o primeiro dia desimpedido, da mesma sessão periódica. Continuando o órgão do Ministério Público impossibilitado de comparecer, funcionará o substituto legal, se houver, ou promotor ad-hoc. Parágrafo único. Se o órgão do Ministério Público deixar de comparecer sem escusa legítima, será igualmente adiado o julgamento para o primeiro dia desimpedido, nomeando-se, porém, desde logo, promotor ad-hoc, caso não haja substituto legal, comunicado o fato ao procurador-geral.” (Texto original do Decreto-Lei nº 3.689, de 1941 – Código de Processo Penal)

47

STF, ADIn 2.874/GO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, J. 28.08.2003; MC-ADIn 2.958/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, J. 28.08.2003.

48

Inclusive antes da CF de 1988, Demoro Hamilton já afirmava a inadmissibilidade de tal situação: HAMILTON, Sérgio Demoro. Reflexos da falta de atribuição na instância penal. Justitia, São Paulo, v. 41, n. 107, p. 141-149, out./dez. 1979. p. 147-148. Também nesse sentido: GOMES, João Batista Ferreira. Promotor ad hoc. Jus: Revista Jurídica do Ministério Público, v. 23, n. 14, p. 41-48, 1992. p. 47. 103

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processos aos acusadores, restará profundamente diluída a prerrogativa do promotor de decidir de modo independente, pois analisará somente os casos que a ele forem direcionados, sem qualquer critério justificável. Diante de tal problemática, a doutrina costuma sustentar a necessidade de ampliação das consequências da inamovibilidade, afirmando que, além de não poder ser deslocado para outro órgão de execução sem consentimento, ao promotor também se garantiria a fixação de suas atribuições49. Segundo Mazzilli, “a verdadeira inamovibilidade dos membros do Ministério Público não teria o menor sentido se dissesse respeito apenas à impossibilidade de se remover o promotor do cargo: é mister agregar-lhes as respectivas funções”50. Diante disso, Badaró afirma que inexiste conteúdo autônomo ao princípio do promotor natural, o qual seria plenamente abarcado pela inamovibilidade em sua dupla expressão51. Contudo, como aqui sustentado, o direito ao promotor natural não se resume a tal manifestação, além de que se torna letra morta a inamovibilidade das funções do órgão de execução do MP se for autorizada a designação pelo Procurador-Geral de promotores a casos específicos. Portanto, duas das distinções entre o “juiz natural” e o “promotor natural” apontadas por Badaró52 são exatamente a patologia prática deste último: o cenário de desrespeito prático ao promotor natural não impede o reconhecimento teórico da sua necessidade para a realização de um processo penal democrático. É justamente a possibilidade de que sejam feitas atribuições desordenadas e arbitrárias, ainda que autorizadas pela Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que se quer combater com a afirmação do direito ao promotor natural. Assim, no sentido que o “juiz natural” é instrumento de proteção da imparcialidade do julgador, o “promotor natural” visa a assegurar a independência do representante do Ministério Público, embora não se reduza somente a isso. Conforme Carneiro, a inamovibilidade “decorre necessariamente, ou melhor, existe na medida em que deve existir um promotor natural para 49

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 35-36; LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 165, jul./dez. 2008; CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 86.

50

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 167.

51

BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 236.

52

Idem, p. 230-231. 104

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cada processo”, de modo a questionar: “Caso o princípio do promotor natural não existisse, qual seria a razão de ser da garantia da inamovibilidade?”53. Ou seja, a inamovibilidade é requisito necessário da independência funcional, a qual é assegurada pelo direito ao promotor natural, em suas três manifestações de conteúdo essenciais aqui propostas. E a independência funcional aqui ressaltada não impõe o reconhecimento (inviável) de imparcialidade do acusador no processo penal. Como dito, o membro do MP tem sua decisão vinculada à legalidade54, o que impõe, por exemplo, a obrigação do pedido de arquivamento do inquérito policial se inexistente crime ou elementos suficientes para a justa causa, já que a lei somente autoriza a sanção penal a pessoas condenadas com trânsito em julgado e respeito integral às regras do devido processo legal55. Contudo, embora sua vontade se submeta à lei, sempre existirão espaços de valoração, que, embora controláveis judicialmente, não deixam de ser espaços interpretativos que são influenciados pelas posturas ideológicas do promotor. Assim, o acusado tem direito a ser acusado por membro do MP que tenha independência para analisar seu caso, com respeito à legalidade. Ademais, impõe-se que as atribuições dos órgãos de execução do Ministério Público sejam determinadas de modo abstrato e prévio pela lei56. Assim, conforme Paulo Rangel, “as atribuições devem ser fixadas por lei e não por resolução, como normalmente se faz”57. Em regra, tal definição se dá em correspondência com a competência prevista em lei para os órgãos judiciais, mas nada impede que um órgão de execução do MP tenha atribuição para atender mais de uma vara judicial58. Além disso, deveriam haver regras previstas em lei para

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os casos de substituição do promotor59. Conforme Silva Jardim e Amorim, “a lei deverá dispor sobre a substituição automática dos promotores e procuradores nas hipóteses de impedimento, suspeição, incompatibilidade, remoção, promoção, férias, licenças, etc.”60. Ademais, nas situações em que o Ministério Público se manifestar em inquérito policial ainda não distribuído, pensa-se que também a lei deveria prever critérios para a definição do órgão de execução do MP que atuaria até a distribuição concreta61. Portanto, é possível que se faça um paralelo com o juiz natural, ao passo em que se exige predeterminação dos critérios de fixação de atribuição para exercício da função dos promotores. Ademais, é imperioso que tais critérios sejam norteados a partir de parâmetros objetivos e abstratos, assegurando a atuação do promotor natural do caso específico. Nesse sentido, conforme Demoro Hamilton: “Há sim, um ‘promotor legal’ para cada processo penal: é o promotor com atribuição para oficiar no feito. Em outras palavras: somente o órgão do Ministério Público investido de atribuição é que tem capacidade processual para atuar em determinado procedimento”62. A partir de tais premissas, deve-se questionar a constitucionalidade das previsões legais que autorizam designações e avocações pelo Procurador-Geral63. Em relação às primeiras situações, por exemplo, conforme o inexistência de correspondência exata entre os órgãos de execução do MP e os Judiciários, afirmando que “não se está a exigir uma perfeita simetria, mas a grande diversidade de regime mostra ser de duvidosa utilidade o emprego de uma denominação paralela ou equivalente” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: RT, 2014. p. 230-231). Pensa-se que não é necessária uma simetria perfeita, ou seja, que exista um órgão do MP para cada vara judicial, mas o fator determinante é que a atribuição do órgão do MP seja prévia e abstratamente definida em lei.

53

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 61.

59

54

CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2013. p. 383; BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 225.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 168.

60

JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto. Direito processual penal. Estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 364.

55

CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 152-165.

61

56

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 48; MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2011. p. 214; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Ministério Público e acusação penal no sistema brasileiro. Pena y Estado: Revista Latino-Americana de Política Criminal, v. 2, n. 2, p. 139-151, 1997. p. 143.

Idem, ibidem. Atualmente, conforme a Lei Orgânica do MP (Lei nº 8.625/1993), é função da PGJ designar membros do MP para “e) acompanhar inquérito policial ou diligência investigatória, devendo recair a escolha sobre o membro do Ministério Público com atribuição para, em tese, oficiar no feito, segundo as regras ordinárias de distribuição de serviços” (art. 10, IX, e).

62

57

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 40.

HAMILTON, Sérgio Demoro. Reflexos da falta de atribuição na instância penal. Justitia, São Paulo, v. 41, n. 107, p. 141-149, out./dez. 1979. p. 142.

58

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 57. Badaró utiliza o exemplo da

63

“Tais princípios administrativos – devolução, avocação, designação, delegação e remoção – chocam-se frontalmente com o princípio maior que informa a instituição: o da

105

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art. 10, IX, f, da Lei nº 8.625/1993, o PGJ poderá designar membros do MP para “assegurar a continuidade dos serviços, em caso de vacância, afastamento temporário, ausência, impedimento ou suspeição de titular de cargo, ou com consentimento deste”. Como visto, trata-se de espaço de discricionariedade ilegítimo, que viola o direito ao promotor natural, ao passo que tais regras deveriam ser previstas em lei para substituições automáticas. Além disso, as situações de avocação de atribuição são claramente abusivas, as quais se dariam quando “uma autoridade chamar a si determinadas atribuições que caberiam, originariamente, a um subordinado”64. Conforme Silva Jardim e Amorim, isso é claramente ilegal, pois o PGJ não tem originariamente a atribuição do membro do MP e o poder de avocar somente se realizaria em relação a funções meramente administrativas65. Diversa é a situação, por exemplo, do caso regulado pelo art. 28 do Código de Processo Penal. Conforme Carneiro, na hipótese de não concordância do PGJ com o pedido de arquivamento do inquérito policial realizado pelo promotor, o PGJ não realiza designação, mas delegação de atribuição que é sua66. Pensa-se que, em um cenário ideal, deveria haver regras previstas em lei para determinar tal hipótese. Em crítica mais ampla, cumpre, contudo, apontar que a sistemática adotada pelo CPP atual é inadmissível, pois violadora do sistema acusatório, de modo que na hipótese de pedido de arquivamento de inquérito policial seria mais adequado um controle interno no órgão acusador, nos termos propostos, por exemplo, no texto original do PLS 156/200967. Em tal situação, se houver decisão colegiada de órgão independência funcional.” (CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 47) 64

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 70.

65

JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto. Direito processual penal. Estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 364. De modo semelhante: CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 71.

66

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 64.

67

Conforme o § 1º do art. 38 do projeto original do PLS 156/2009, “se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica” (Disponível em: . Acesso em: 13 dez 2015). 107

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superior do MP no sentido do oferecimento da denúncia e manutenção da postura pelo arquivamento do promotor titular, pensa-se que seria legítima a possibilidade de designação de promotor para exercer a ação penal no caso concreto, sob pena de desautorização da decisão em sede de grau de revisão. Importante perceber que a independência funcional do membro do MP não veda a possibilidade da revisão interna de sua decisão, do mesmo modo que deliberação dos juízes é controlada pelos Tribunais68. Portanto, sustenta-se que em momentos importantes da persecução penal, como pedido de arquivamento ou absolvição, e não interposição de recurso, por exemplo, poderia haver algum tipo de mecanismo de controle interno no MP, posterior à decisão do promotor no caso concreto. Ainda no aprofundamento da segunda vertente do conteúdo do promotor natural, a prática comum de criação de grupos ou equipes especializadas ressalta a necessidade da titularidade do membro do Ministério Público ao respectivo órgão69. Aponta-se que há violação quando a equipe é estruturada sem o respeito às prerrogativas aqui estudadas, por exemplo, com a “criação de uma função para o exercício da atividade processual sem a existência do cargo correspondente”70, ou seja, quando o membro do MP não se tornar titular das atribuições determinadas, de modo a não haver inamovibilidade e, portanto, tampouco independência funcional71. Assim, se for necessária a estruturação de grupos para análise de matérias específicas, em razão de sua complexidade, isso deve se dar por meio da criação (por lei anterior e de modo abstrato) de cargos aos quais os membros do MP possam se titularizar72 e, assim, se respeite as premissas sustentadas neste trabalho73.

68

DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Princípio do promotor natural. Salvador: Juspodivm, 2004. p. 57; CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 84.

69

Sobre isso, ver: PENTEADO, Jaques de Camargo; UZEDA, Clovis Almir V. O princípio do promotor natural. As “equipes especializadas” à luz do princípio do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 47, n. 131, p. 146-154, set. 1985. p. 152-154.

70

CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 66.

71

LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 171, jul./dez. 2008.

72

MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 161.

73

De modo semelhante: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 236. Ver também: FONTENELES, Claudio Lemos. Reflexões 108

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Por oportuno, há que se estabelecer uma correlação com o juiz natural, em que, estando vedada a criação de tribunais especiais, não significa que não poderão ser instituídas cortes de julgamento especializadas, como foro penal econômico ou tribunais de infância e juventude. A proibição compreende a impossibilidade de se utilizarem critérios discriminatórios, em afronta ao princípio constitucional do tratamento igualitário, a exemplo de fundamentos políticos, raciais ou religiosos74. Trata-se de temática complexa, que envolve questões relativas às regras de competência no processo penal, e que, portanto, foge às pretensões e possibilidades deste trabalho. Os critérios de determinação da competência/atribuição, apesar de questão secundária à exigência de sua pré-constituição legal, devem ser puramente formais, de modo a permitir a distribuição automática, como sorteio, ordem alfabética e sucessão cronológica de causas, abarcando também os órgãos do Ministério Público. No que tange ao objeto do juízo, os critérios de determinação poderão ser por matéria ou território, possuindo este último maior carga de objetividade. Isso porque, apesar de ser inevitável a diferenciação pela disciplina – civil, penal, comercial, falimentar, etc. –, corre-se o risco de serem criadas hierarquias impróprias entre os órgãos judiciários, como no caso em que poderão ser aumentadas ou atenuadas as imputações em razão da diferenciação pela gravidade do delito75. Por fim (3), a terceira expressão do conteúdo do promotor natural se caracteriza pelo direito do acusado de saber previamente (de modo abstrato) qual é seu acusador (órgão que possui atribuição), o que se configura como condição de exercício da ampla defesa. Não há como negar que a preparação das teses defensivas leva em conta o perfil e os posicionamentos do acusador definido para o caso, de modo que uma alteração injustificada do promotor acarreta inevitável fragilização da reação defensiva. Ademais, em tal situação caracterizar-se-ia ilegítima adulteração das regras e expectativas definidas no jogo processual76. Conforme Silva Jardim e Amorim, “um promotor escolhi-

em torno do princípio do promotor natural. Revista da Procuradoria-Geral da República, São Paulo, n. 6, p. 83-91, 1994.

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do a dedo para atuar em um inquérito ou processo, quando já esteja fixada a atribuição de outro membro do Parquet, equivale, no mínimo, a alteração das ‘regras do jogo’, após este já ter sido iniciado”77. Já, segundo Penteado, “está claro que o mesmo texto que assegura ampla defesa contém o princípio da acusação constitucionalmente adequada, isto é, por órgão próprio, criado pela Constituição, estável, independente, designado para o cargo e não para o encargo determinado, para as funções e não para ato específico”78. Não restam dúvidas de que o acusado tem sua defesa restringida quando, por exemplo, um promotor para quem os autos não foram distribuídos é designado, pela chefia da instituição, para atuar em alguma das fases processuais, tendo em vista que o imputado não se vê em condições de enfrentar o aparelhamento do Estado em seu desfavor, cujos órgãos tanto de julgamento quanto de acusação exigem legalidade na atuação. Assim, da mesma forma que o “juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para a sua própria existência”79, o direito ao acusador natural se insere na dogmática processual penal, conferindo legitimidade à acusação penal, vez que compreende o direito do cidadão de saber por quem irá ser processado caso pratique uma conduta tida por delituosa. Nesse sentido, resta inadmissível a possibilidade de designação de promotor para atuar conjuntamente com o acusador natural, pois, além de ocasionar inevitável fragilização à paridade de armas80 ao fortalecer indevidamente a parte acusadora, que já possui todo o aparato punitivo estatal em sua vantagem81, há violação do direito do imputado de conhecer e se preparar à acusação. Contudo, a posição majoritária se posiciona para possibilidade de indicação de outro representante do MP para atuar conjuntamente com o titular, desde que haja anuência deste82. Pensa-se que somente seria viável a 77

JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto. Direito processual penal. Estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 363.

78

PENTEADO, Jaques de Camargo. O princípio do promotor natural. Justitia, n. 60, p. 971-978, 1999. p. 976.

79

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 158.

74

BINDER, Alberto M. Introdução ao direito processual penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 104.

80

Sobre os contornos da paridade de armas no processo penal, ver: VIEIRA, Renato Stanziola. Paridade de armas no processo penal. Brasília: Gazeta, 2014. p. 230-236.

75

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 546.

81

ROBERTO, Welton. Paridade de armas no processo penal. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 102-114.

76

Sobre a visão do processo penal a partir da teoria dos jogos, ver: ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo pena conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 15-46.

82

CARVALHO, Luis Gustavo G. C. Processo penal e Constituição. Princípios constitucionais do processo penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 120; FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 235; MARCON, Adelino.

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indicação de grupo de apoio ao acusador titular83, mas ainda em tal situação todos os atos da persecução penal devem ser praticados pelo promotor natural, cuja atribuição fora definida previamente em lei. Nesse sentido, no julgamento pelo STF do RHC 48.728, ainda em 1971, o Ministro Antônio Neder já defendia que a figura do acusador de exceção estaria vedada com a proibição constitucional dos tribunais de exceção, “pois não se compreende que um funcionário, por mais categorizado que seja, tenha o privilégio de, ele próprio, escolher, discriminadamente, fora dos casos legais, um, dois ou três acusadores para determinado caso”84. Ademais, como já afirmado, a observância do princípio da isonomia entre as partes exige que a atuação do membro do Ministério Público no feito criminal esteja lastreada em previsão legal anterior ao fato, com suas atribuições regularmente delimitadas, “evitando o chamado promotor ‘escolhido’ e assegurando a presença daquele natural, legal, normal”85. Sendo assim, a autorização legal, prevista no art. 24 da Lei nº 8.625/1993, de que o Procurador-Geral de Justiça poderá, com a concordância do Promotor de Justiça titular, designar outro promotor para funcionar em feito determinado, de atribuição daquele, viola frontalmente, em ambos aspectos, o devido processo legal. Por conseguinte, são desconsideradas as garantias da ampla defesa e da paridade de armas, tendo em vista que o acusado é surpreendido, durante o andamento do processo criminal, com o municiamento do órgão de acusação estatal em seu desabono, não fundamentado por critérios legítimos, como em uma espécie de “vale-tudo”, impondo pronta reação deO princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2011. p. 217; LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 169-170, jul./dez. 2008. 83

84

85

“É preciso haver uma conscientização de base que evite o sacrifício do princípio unicamente por causa de uma possível melhor performance de outro membro, mais capaz, mais experiente. O caminho a trilhar, segura, está no incentivo e na criação de grupos de apoio (Centro de Apoio Operacional – art. 33, da Lei Orgânica), justamente para contemplar, se necessário, bem como suprir eventuais deficiências do órgão de execução, ao mesmo tempo que uma maior fiscalização das atividades dos membros do parquet se impõe.” (CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 84) STF, RHC 48.728, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luis Gallotti, J. 26.05.1971. Sobre esse caso, ver: DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Princípio do promotor natural. Salvador: Juspodivm, 2004. p. 13-15. CARNEIRO, Paulo Cezar P. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 53. 111

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fensiva, porém sem que possa contar o acusado com o mesmo respaldo do aparato estatal. Assim, conforme Giacomolli, “no devido processo penal não se admite a supremacia de uma das partes, em qualquer plano: legislativo, no processo ou pelo processo”86. Portanto, o atendimento ao devido processo, contemplando a impossibilidade de que sejam feitas designações desvinculadas de justo motivo relativamente à atuação dos promotores nos processos criminais, promove a dialética processual e permite o controle da atuação do Estado na restrição ao alcance dos direitos fundamentais do indivíduo. 3 FundAMento ConstituCionAl do direito Ao ProMotor nAturAl e A inConsistÊnCiA JurisPrudenCiAl sobre o teMA A autonomia e a independência do órgão de acusação estão estritamente relacionadas com a inamovibilidade dos seus membros, tanto no que diz respeito à impossibilidade de remoção do cargo quanto no que tange à proibição das livres designações por parte do procurador-geral, como forma de combater a hierarquia funcional e defender as prerrogativas da instituição e dos próprios promotores87. A teoria do promotor natural originou-se inicialmente na prerrogativa da independência funcional, que corresponde ao direito que tem o representante do Ministério Público de exercer a função com base apenas em suas convicções, livres de qualquer tipo de subordinação, orientação ou recomendação88, submetendo-se sua vontade exclusivamente à legalidade. A independência funcional do órgão ministerial e de seus agentes está respaldada na Constituição Federal, em seu art. 127, § 1º89. De igual modo, porém em sede de legislação infraconstitucional, a Lei Complementar nº 75/1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o Estatuto do Ministério Público, contempla o princípio da independência nos seus art. 4º;

86

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 384.

87

MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 202-203.

88

CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural, atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 46.

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“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis: § 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.” 112

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parágrafo único do art. 41; art. 62, I; art. 136, inciso I; e art. 171, inciso I90. Por fim, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público91, art. 1º, parágrafo único, e art. 41, inciso V, da Lei nº 8.615/1993, ressalvam a atuação independente dos seus integrantes. Ademais, imprescindível que se reconheça a matriz constitucional do direito ao promotor natural, ao passo que ele tem como finalidade abolir do ordenamento jurídico a figura do promotor de exceção, “pois que o art. 5º, em seus incisos XXXVII e LIII estabelece: XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”92. De um modo abrangente, conforme Lauria Tucci, infere-se tal preceito “da necessária conjunção dos enunciados dos incisos

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“Art. 4º São princípios institucionais do Ministério Público da União a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.” “Art. 41. Em cada Estado e no Distrito Federal será designado, na forma do art. 49, III, órgão do Ministério Público Federal para exercer as funções do ofício de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão. Parágrafo único. O Procurador Federal dos Direitos do Cidadão expedirá instruções para o exercício das funções dos ofícios de Procurador dos Direitos do Cidadão, respeitado o princípio da independência funcional.” “Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão: I – promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados ao setor de sua competência, observado o princípio da independência funcional.” “Art. 136. Compete à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar: I – promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais do Ministério Público Militar, observado o princípio da independência funcional.” “Art. 171. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão: I – promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados à sua atividade setorial, observado o princípio da independência funcional.” “Art. 1º O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Parágrafo único. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.” “Art. 41. Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, além de outras previstas na Lei Orgânica: V - gozar de inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional.” FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Princípio do promotor natural. In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes; MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (Coord.). Ministério público II: democracia. São Paulo: Atlas, 1999. p. 142. 113

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LIII e LIV e do § 2º do art. 5º, com os arts. 127, caput, e § 1º, 128, § 5º, I, b, e 129, §§ 2º e 3º, da CF”93. Nesse sentido, sustenta-se que o texto constitucional, ao afirmar “processado nem sentenciado”, inclui também a figura do promotor natural94. De outra banda, também encontra guarida no art. 5º da Constituição Federal, agora no inciso XXXVII, o reconhecimento do direito subjetivo do cidadão ao promotor legalmente legitimado para o processo. Isso porque, ao vedar a criação dos juízos ou tribunais de exceção, não resta dúvida de que a proibição abarca também o impedimento às designações arbitrárias pelo procurador-geral, uma vez que, no processo penal, o membro do Ministério Público com atribuição em uma vara tem a atuação legalmente predeterminada, sendo inconcebível que outro promotor seja designado para, casuisticamente, oferecer a denúncia ou atuar no processo fora dos casos previstos em lei95. Assim, não encontra suporte constitucional a designação casuística de um componente do Ministério Público para atuação em específica ação penal (com fins de, por exemplo, oferecer denúncia ou participar da Tribuna do Júri), quando há promotor com atribuição para o mesmo processo. A possibilidade de que um promotor estabelecido por lei seja substituído, por ato do procurador-geral, para que outro possa participar da instrução criminal, por exemplo, caracteriza um acusador de exceção. Isso porque a garantia da inamovibilidade que protege os membros do MP (art. 128, § 5º, I, b, da CF)96 deve ser interpretada como salvaguarda da própria sociedade (limitação do poder

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TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 122. No mesmo sentido: MACHADO, Fábio Guedes de Paula. O princípio do promotor natural e sua nulidade. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 26, n. 1, p. 73-87, 1997. p. 73.

94

“Isso decorre do fato que a Constituição Federal garantir ao acusado o direito de ser processado e julgado por autoridade competente (art. 5º, LIII). Vê-se, aí, a afirmação de preceito garantidor segundo o qual não pode o acusado ser processado senão por aquela autoridade que, antes do fato, tinha atribuições para acusá-lo.” (FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 232)

95

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 259.

96

“Art. 128. O Ministério Público abrange: [...] § 5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: I – as seguintes garantias: [...] b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa.” 114

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punitivo) contra os atos arbitrários de modificação das atribuições dos seus componentes, conforme o interesse no julgamento de casos determinados97.

do promotor legal era concebido como extensão do juiz natural, tendo por fundamento constitucional o devido processo legal100.

Portanto, com base no reconhecimento da importância e do assento constitucional do direito ao promotor natural é que também deve ser enfrentado o argumento de que a sua “exacerbação” traria para o Ministério Público o risco de ter a sua atividade engessada e burocratizada, constituindo em entrave para o exercício da função de forma dinâmica98. Por se tratar de um órgão de acusação estatal, naturalmente, o Ministério Público já conta com o aparato do Estado para auxiliar no desempenho das funções de persecução penal, gerando, inclusive, um desafio para a manutenção da paridade de armas. Neste ponto, não há como negar que o órgão acusador, titular exclusivo da ação penal de iniciativa pública, reúne melhores condições de exercer a sua atividade do que o titular da ação de iniciativa privada, em benefício de quem, apenas para citar um exemplo, não é permitido requisitar informações pessoais diretamente às instituições financeiras com vistas a lastrear a acusação. E, nesse diapasão, ainda maior é o seu empoderamento quando comparado com a parte que apresenta a defesa e a resistência à pretensão acusatória. Por certo, afirmar que a necessária obediência às regras predeterminadas de atribuição, de forma a legitimar a atuação dos membros do Ministério Público, trará dificuldades para o desempenho da atividade ministerial significa valorizar a busca pela eficiência da persecução penal a qualquer custo, em detrimento de garantias individuais que condicionam a própria existência do poder de punir no Estado Democrático de Direito.

Entretanto, somente em 1992 foi que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento paradigmático do Habeas Corpus nº 67.759-2/RJ, analisou expressamente a existência do “princípio do promotor natural” no ordenamento brasileiro:

Em relação ao posicionamento dos Tribunais, um fundamental precedente jurisprudencial de referência ao postulado do promotor natural remete ao julgamento do RHC 48.728/SP99, antes mesmo da vigência da Constituição Federal de 1998, cuja conclusão pelo impedimento de se estabelecer o acusador de exceção encontrou guarida na impossibilidade de a Constituição de 1967/1969, ao mesmo tempo, estabelecer uma garantia, ao proibir o juízo de exceção, e subtraí-la, concebendo o promotor por encomenda. À época, é possível depreender do debate consignado no julgamento que o “princípio”

97

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 259.

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FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 235-236.

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STF, RHC 48728, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luis Gallotti, J. 26.05.1971. 115

HABEAS CORPUS – MINISTÉRIO PÚBLICO – SUA DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL – PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS – A QUESTÃO DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE DENUNCIAR – INOCORRÊNCIA – CONSTRANGIMENTO INJUSTO NÃO CARACTERIZADO – PEDIDO INDEFERIDO – O postulado do promotor natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do promotor natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos Ministros Celso de Mello (Relator), Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso. Divergência, apenas, quanto a aplicabilidade imediata do princípio do promotor natural: necessidade da interpositio legislatoris para efeito de atuação do princípio (Ministro Celso de Mello); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso). Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro Sydney Sanches). Posição de expressa rejeição a existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros Paulo Brossard, Octavio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira Alves.

Contudo, a profunda divergência doutrinária e jurisprudencial se expressa de modo claro na análise desse julgado. Parte dos autores afirma que nele o STF reconheceu expressamente a existência e a matriz constitucional 100 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Princípio do promotor natural. Salvador: Jus Podivm, 2004. p. 13. 116

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do promotor natural101. Por outro lado, outros contestam tal fato, sustentando que somente três ministros o fizeram imediatamente, enquanto dois afirmaram que seria necessária regulamentação infraconstitucional (ainda que reconhecendo o preceito em abstrato) e quatro o rechaçaram; o que consolida seis votos pela não aplicação do promotor natural102. Com efeito, pode-se apontar que, após tal decisão, já foram editadas a Lei Complementar nº 75/1993, Lei Orgânica do Ministério Público da União, e a Lei nº 8.625/1993, Lei Orgânica dos Ministérios Públicos Estaduais, não havendo mais com que se falar em regulamentação do promotor natural por meio de norma infraconstitucional, pois parte consolidada da doutrina o reconhece (ainda que em parte) nos referidos diplomas103. Assim, restaria reconhecido o direito ao promotor natural no referido julgado. Em tal julgamento, o Ministro Celso de Mello concebeu o “princípio do promotor natural” como garantia do indivíduo, preceituando a inafastabilidade dos membros do Parquet fora das hipóteses de impedimento, suspeição, férias, licenças ou afastamento: O princípio do promotor natural, tendo presente a nova disciplina constitucional do Ministério Público, ganha especial significação no que se refere ao objetivo último decorrente de sua formulação doutrinária: trata-se de garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei.104 101 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 163; MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2011. p. 216; DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Princípio do promotor natural. Salvador: Juspodivm, 2004. p. 59; TATAGIBA, Glauber. O Supremo Tribunal Federal e a revisão do princípio do promotor natural. De Jure, Belo Horizonte, n. 5, p. 437-354, 2002. p. 347; LOUBEH, Sílvio de Cillo Leite. O princípio constitucional do promotor natural. Justitia, São Paulo, v. 65, n. 199, p. 173, jul./dez. 2008. 102 CARVALHO, Luis Gustavo G. C. Processo penal e Constituição. Princípios constitucionais do processo penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 120; FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 233. 103 FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Princípio do promotor natural. In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes; MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (Coord.). Ministério Público II: democracia. São Paulo: Atlas, 1999, p. 143. 104 STF, HC 67759, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, J. 06.08.1992. 117

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Assim, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é hesitante, o que será exposto na pesquisa exemplificativa a seguir. Embora reconhecida a existência e a legitimidade do “promotor natural” nos julgados citados, entre os anos 2005 e 2008 houve decisões no sentido de sua completa refutação. No HC 85.424, de 2005105, afirmou-se que se rejeita o referido preceito, o que, inclusive, nos termos da decisão, teria sido assentado no julgado paradigmático de 1993. Já, em 2008, no HC 90.277, adotou-se a visão minoritária na doutrina que, a partir da unidade e da indivisibilidade, afirma que os membros do MP podem ser substituídos indiscriminadamente, o que sustentou a rejeição ao “promotor natural”106. Contudo, em outras decisões, há o reconhecimento teórico do “princípio” do promotor natural, mas na grande maioria dos casos não se reconhece sua violação. Por exemplo, no RHC 93.237, também de 2008, afirmou-se sua existência, mas limitou-se sua incidência “à persecução penal, não alcançando inquérito”107. Já, no HC 92.885, afirmou-se que a sistemática do art. 28 do CPP não viola o “princípio” do promotor natural, o qual seria “uma das garantias que advém do devido processo legal”, “direito titularizado pelo cidadão para impedir que o Estado exorbite de suas atribuições em benefício ou detrimento de alguém”, mas que, respeitada a sistemática prevista em lei, a designação de promotor para oferecer a denúncia pelo PGJ é admissível108. Ademais, no HC 96.700, de 2009, afirmou-se que o aditamento à denúncia, subscrito por membro do MP diverso daquele que ofereceu a inicial acusatória, que ainda estava em exercício, não violaria o “princípio” do promotor natural109. Já, no HC 95.447, de 2010, afirmou-se que “a violação ao princípio do promotor natural visa a impedir que haja designação de promotor ad hoc ou de exceção com a finalidade de processar uma pessoa ou caso específico, o que não ocorreu na espécie”. Tratava-se de caso em que um promotor havia pedido arquivamento do caso, mas houve declaração da incompetência do juízo, sendo o processo remetido para outra vara. O novo promotor ofereceu a denúncia sem encaminhamento ao PGJ, o que, conforme a defesa, acarretaria violação à indivisibilidade e ao promotor natural. Tal tese foi afastada, 105 STF, HC 85.424, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, J. 23.08.2005. 106 STF, HC 90.277, 2ª Turma, Relª Min. Ellen Gracie, J. 17.06.2008. 107 STF, RHC 93.247, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, J. 18.03.2008. 108 STF, HC 92.885, 1ª Turma, Relª Min. Cármen Lúcia, J. 29.04.2008. 109 STF, HC 96.700, 2ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, J. 17.03.2009. 118

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afirmando-se que “o verdadeiro promotor natural da causa, optou por oferecer a denúncia e não ratificar o pedido anteriormente realizado”110. Questão também analisada pelo STF a partir da temática aqui estudada é a ocorrência de opiniões conflitantes em momentos sucessivos por membros do MP que atuem em um mesmo processo. No HC 102.147, de 2011, afirmou-se que a existência, em um mesmo processo, de opiniões ou pronunciamentos eventualmente conflitantes emanados de membros do Ministério Público que hajam oficiado, na causa, em momentos sucessivos não traduz, só por si, ofensa ao postulado do promotor natural, pois a possibilidade desse dissídio opinativo há de ser analisada e compreendida em face dos princípios, igualmente constitucionais (CF, art. 127, § 1º), da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público.111

Em julgado de 2014, RHC 99.768, afirmou-se que esta Corte já decidiu que a participação de um membro do Ministério Público, para auxiliar o titular da comarca, não é motivo bastante para a nulidade do julgamento, mormente quando não se demonstra de que maneira a designação do promotor assistente teria causado prejuízo para a defesa ou criado situação de desigualdade apta a caracterizar a figura do “acusador de exceção”.112

Trata-se de posição consolidada no STF em relação à atuação conjunta de outro promotor juntamente ao titular do caso, em que se afastou qualquer violação ao promotor natural nos julgados: HC 81.998, de 2002; HC 95.447, de 2010; e HC 103.038, de 2011113. Contudo, cumpre citar que, em postura excepcional (muito em razão de questões formais), no julgamento do AGR-RE 638.757, de 2013, o STF manteve a declaração da “nulidade posterior à decisão de pronúncia por quebra do princípio do promotor natural, que, no caso em exame, seria em virtude da atuação em plenário de julgamento de um Promotor de Justiça estranho à Comarca e ao feito, sem regular designação e estando o titular em pleno exercício de suas funções”114. 110 STF, HC 95.447, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, J. 19.10.2010. 111 STF, AgRg-HC 102.147, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, J. 01.03.2011. 112 STF, RHC 99.768, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, J. 14.10.2014. 113 STF, HC 103.038, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, J. 11.10.2011. 114 STF, AgRg-RExt 638.757, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, J. 09.04.2013. 119

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Diante dos casos expostos anteriormente, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal brasileiro reconhece amplamente a existência de um “princípio” do promotor natural, embora existam (raras) decisões afirmando sua rejeição no ordenamento pátrio. Contudo, tal posição se expressa em um sentido meramente teórico, pois, na enorme maioria dos casos, o tribunal dá a entender que existe tal “princípio”, mas sem violação no caso concreto em análise. Somente houve declaração de violação nas situações de promotores ad hoc quando advogados não integrantes dos quadros do MP foram nomeados por juízes para oferecer denúncia específicas. Ou seja, o STF reconhece a existência, a legitimidade e a importância do “promotor natural” no processo penal, mas somente em aparência, pois esvazia por completo seu conteúdo ao afastar praticamente qualquer hipótese concreta de violação. ConsiderAçÕes FinAis Diante do exposto neste artigo, retoma-se a problematização delimitada na introdução: 1) O que é o “promotor natural” e qual é o seu conteúdo essencial?; 2) Qual a essência fundamentadora de tal preceito?; e, por fim, 3) O “promotor natural” tem conteúdo autônomo e legitimidade para constituir parte da teoria do direito processual penal? Assim, conclui-se: 1. O promotor natural (acusador legal) é direito subjetivo do acusado, preceito constitutivo do devido processo legal, ou seja, elemento indispensável para a legitimidade da imposição de uma sanção penal no Estado Democrático de Direito, assegurando que o imputado deve ser acusado por membro do Ministério Público, titular de função (órgão de execução) com atribuições definidas em lei de modo prévio e abstrato. 1.1. Resta inconcebível a justificação do promotor natural na proteção da imparcialidade do acusador no processo penal, pois o Ministério Público é parte e, portanto, parcial, na esfera criminal, sob pena de ilegítima violação do sistema acusatório, da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório. 1.2. As prerrogativas independência funcional e inamovibilidade são fundamentais para a atuação da parte acusadora pública no processo penal, o que não se mostra incompatível com a unidade e a indivisibilidade do Ministério Público, integrando, assim, o conteúdo do promotor natural, mas não o exaurindo por completo. 1.3. Assim, sustenta-se que o direito ao promotor natural possui conteúdo autônomo, o qual se desenha em três premissas: a) vedação de promotor ad hoc; b) definição prévia e abstrata em lei das atribuições de cada órgão 120

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de execução titularizável; e c) direito do acusado de saber previamente (de modo abstrato) qual é seu acusador (órgão que possui atribuição), o que se configura como condição de exercício da ampla defesa. a) Veda-se a nomeação temporária de acusadores que não integrem os quadros do Ministério Público, ou seja, promotores ad hoc, pois a acusação em ações penais de iniciativa pública pressupõe a prévia investidura na forma prevista constitucionalmente; b) Impõe-se a definição prévia das atribuições de cada órgão de execução do Ministério Público, titularizáveis, de modo abstrato e em lei, inadmitindo-se a distribuição discricionária dos casos a promotores de encomenda, fragilizando-se a constitucionalidade das autorizações ao PGJ para designações e avocações e restringindo-se a possibilidade de criações de equipes especializadas. c) Há um direito do acusado de saber previamente (de modo abstrato) qual é seu acusador (órgão que possui atribuição), o que se configura como condição de exercício da ampla defesa, inviabilizando substituições ilegítimas e designações para atuação conjunta sem respeito à anterioridade. 1.4. O direito ao promotor natural tem amparo constitucional a partir de leitura conjunta dos incisos XXXVII (vedação de juízos e tribunais de exceção), LIII (proibição do processamento e julgamento por autoridade incompetente) e LV (ampla defesa e contraditório) do art. 5º, além das prerrogativas da independência funcional (art. 127, § 1º) e da inamovibilidade (art. 128, § 5º, I, b) do membro do Ministério Público.

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imputado que seu acusador terá possibilidade de tomada de decisão independente, o que não inviabiliza o controle dessa posição internamente pelo MP ou posteriormente pelo Judiciário. Contudo, nota-se que tais prerrogativas do promotor são reflexas e fundamentadas exatamente na proteção dos direitos do acusado e na limitação do poder punitivo estatal; 2.3. Partindo-se da premissa de que é inerente à persecução penal uma disparidade de armas entre acusação e defesa, visto que aquela tem ao seu dispor o abrangente poder estatal e a coerção inerente do processo penal, é patente que devem ser concretizados mecanismos que tentem equilibrar tais forças (ainda que impossível sua integral paridade). Assim, deve ser limitado o poder de acusar e fortalecidas as possibilidades defensivas, o que se expressa na temática aqui exposta como o direito do acusado de possibilidade de preparação da defesa do melhor e mais amplo modo possível, o que inclui, também, o conhecimento prévio de seu acusador, de suas posturas e premissas no desenvolvimento da acusação. 3. O direito ao acusador natural tem, como já exposto, conteúdo autônomo, relevante e legítimo como parte integrante da estruturação científica da teoria do direito processual penal. Resta claro que a inamovibilidade é requisito necessário da independência funcional, a qual é assegurada pelo direito ao promotor natural, em suas três manifestações de conteúdo essenciais aqui propostas.

2.1. O único legitimado a oferecer e manter a pretensão acusatória nas ações penais de iniciativa pública é o MP, pois submetido à legalidade e, portanto, ao respeito das regras do devido processo penal;

3.1. Portanto, o promotor natural se distingue da inamovibilidade no sentido de que esta assegura a manutenção do membro do MP em seu cargo e, se lida do modo amplo proposto por parte da doutrina, também protege as funções a ele atribuídas. Contudo, isso não garante a necessidade de determinação em lei, de modo abstrato, das atribuições de cada órgão de execução do MP, além de desconsiderar tal preceito em relação ao direito de defesa do acusado (de conhecer previamente seu acusador) e tampouco ressaltar a vedação de promotores ad hoc. Tudo isso, em verdade, é abarcado pelo promotor natural, expressando claramente sua autonomia e legitimidade como direito subjetivo do acusado, a partir da premissa que o delimita como instrumento de limitação do poder punitivo estatal.

2.2. A inamovibilidade e a independência funcional do membro do MP são prerrogativas que buscam concretizar a independência para a tomada de suas decisões, as quais são decisivas para a persecução penal, e, embora sua vontade esteja determinada e submetida à legalidade, inevitavelmente existem espaços valorativos/interpretativos. Portanto, deve-se assegurar ao

3.2. A posição firmada majoritariamente pelo Supremo Tribunal Federal em diversos julgados, embora aparentemente reconheça a existência do direito ao promotor natural (denominado de “princípio”), finda por afastar quase a totalidade de violações em casos concretos, o que esvazia por completo o seu conteúdo e, portanto, deve ser criticada.

2. Todas as consequências apontadas ao conteúdo fundamental do direito ao promotor natural são, em essência, reflexos da consolidação do processo penal como instrumento de limitação do poder punitivo (e, portanto, legitimação, dentro do possível e se houver esse espaço possível, da imposição de uma pena estatal somente com o respeito integral das regras do devido processo penal), pois:

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