O Direito ao Recurso

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O DIREITO AO RECURSO ou O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO COMO IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL E AS GARANTIAS DE DEFESA DOS ARGUIDOS NO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS

Paulo Jorge Saragoça da Matta

Relatório Apresentado no âmbito do Seminário de Processo Penal Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais

Lisboa - 1995

A necessidade de atingir a Justiça não se coaduna com atalhos A.Cokhrane Advogado de Defensor de O.J.Simpson USA - 28.Setº.1995

...o duplo grau de jurisdição, garantia preciosa de Justiça do julgado Prof.José Alberto dos Reis Código de Processo Civil Anotado Vol.V, p. 375.

o direito ao recurso (...) constitui, no processo penal, uma importante garantia de defesa . Acórdão nº 219/89 do Tribunal Constitucional

Aquilo a que se chama recursos, vão-me permitir, é uma macaqueação de recurso, perfeitamente inconstitucional, não é recurso nenhum, não é a reapreciação da causa, é um travesti. Prof. Figueiredo Dias em Retrospectiva, Tribuna da Justiça nº 6, Junho de 1985.

DIREITO-AO-RECURSO

A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE 1987

SUMÁRIO

§1.

Considerações de Teoria Geral. A genética e a estrutura do processo penal. 1 - O Direito Penal , o Direito Processual Penal e a Constituição. A. Direito Penal e Direito Processual Penal; B. Direito Processual Penal e Constituição. 2 - A estrutura "partificada" do processo penal e a paridade de armas entre as respectivas partes.

§2.

Delimitação do objecto do relatório e justificação da sua relevância científica.

§3.

Uma aproximação sumária ao significado, função e limites do Artigo 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

§4.

O Instituto jurídico dos Recursos.

§5.

O "Direito-ao-Recurso" na Jurisprudência Constitucional Portuguesa.

§6.

O Direito ao Recurso como integrador do mais lato Direito de Defesa garantido aos arguidos em processo penal e a qualquer indivíduo sujeito a processos de natureza cominatória.

§7.

Conclusão e apontamento de vias de investigação.

ABREVIATURAS Ac. BJC BMJ Bol. FDUC BverfGE CEDH CJ CP CPC CPP/29 CPP/87 CRP DUDH Giur. Cost. MºPº Nov.Dig.It. PIDCP Rev. FDUL Rev. Sc.Crim. Rev.Sc.Crim. RIDPP RMP RPCC RTDH STJ StpO TC TC ZpO

Acórdão Boletín de Jurisprudencia Constitucional Boletim do Ministério da Justiça Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Decisões do Tribunal constitucional Federal Alemão (citadas por tomo e página) (Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts). Convenção Europeia dos Direitos do Homem Colectânea de Jurisprudência Código Penal Código de Processo Civil Código de Processo Penal de 1929 Código de Processo Penal de 1987 Constituição da República Portuguesa Declaração Universal dos Direitos do Homem Giurisprudenza Costituzionale Ministério Público Novíssimo Digesto Italiano (citado por volume, entrada e página) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Revue de Science Criminelle Revue de Science Criminelle et de droit pénal comparé (citado por nº, meses e ano). Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale Revista do Ministério Públio Revista Portuguesa de Ciência Criminal Revue Trimestrielle des Droits de l'Homme Supremo Tribunal de Justiça Strafprozeßordnung Tribunal Constitucional Tribunal Constitucional Zivilprozeßordnung

PROÉMIO Este trabalho assume um carácter especial, na medida em que tem por fim servir de Relatório do Seminário de Processo Penal do Curso de Mestrado em Ciências JurídicoCriminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no Ano Lectivo de 1994-1995. Sendo um trabalho final de um ano de investigações e pesquisas, sofre de uma série de falhas, derivadas umas da falta de experiência, outras de alguma dispersão ou "deslumbramento" face à riqueza dos universos a explorar, e sempre, o que

não é

despiciendo, da falta de tempo para aprofundar alguns temas. Mas sendo um trabalho que se quer "final", é necessariamente também um trabalho em devir, incompleto, mero afloramento de uma dissertação que se seguirá. Em particular sofreu a investigação de várias inflexões do seu tema e sentido ao longo dos trabalhos. Começou por ser meu projecto tratar das Garantias de Defesa dos Arguidos em Processo Penal; depois centrou-se no Direito à Prova que assistirá (?) aos arguidos em processo penal; por fim veio a enveredar pela questão do Direito ao Recurso como direito integrado no amplo e complexo Direito de Defesa. Devem-se tais mudanças do cerne da investigação, em grande parte, ao confronto com a avultadíssima bibliografia e incomensurável jurisprudência nacional e estrangeira que descobri ao longo da pesquisa, à exiguidade de tempo e à falta de outras condições que permitissem meter ombros ao projecto inicialmente ambicionado. Daí que tenha deixado o projecto inicial para ser desenvolvido em sede de Dissertação de Mestrado, ficando-me agora pela análise o mais exaustiva possível de uma das valências daquele que julgo ser o complexo (e colossal) tema do Direito de Defesa. Passou-se assim do Geral para o particular. Ganhou-se em intensidade, mas perdeuse necessariamente em amplitude. Aumentou-se a profundidade, mas diminuiu-se o âmbito. Muitas das afirmações poderão assim parecer pouco fundadas, ou pelo menos não cabalmente demonstradas. Mas não poderiam, contudo, deixar de se fazer, sob pena de a questão do Direito ao Recurso aparecer desligada do seu enquadramento geral, que é o Direito de Defesa na sua totalidade. Assim que se comece por fazer considerações de carácter geral, para cujo tratamento algo sumário se pede compreensão. São feitas mais em jeito de enquadramento da questão particular a desenvolver, do que de tratamento final da "teoria geral" do direito de defesa. Como disse, tal teoria geral será objecto de trabalho subsequente, no qual se encastrará, como um dos capítulos, este que agora se apresenta do Direito ao Recurso.

Esse trabalho final compreenderá necessariamente outras valências (todas se possível) do Direito de Defesa. Aí se recuperarão os ensinamentos e conclusões recolhidos ao longo deste ano de investigação e que neste Relatório não são espelhados. Desde já porém um compromisso: o Direito de Defesa é uma realidade mal compreendida e com contornos ainda não fixados. Com este Relatório tão só resultarão tais contornos esboçados. Crê-se porém que será o suficiente para enquadrar o concreto Direito ao Recurso que me propûs por agora tratar. A compreensão total do Direito de Defesa, a sua delimitação final, densificação e potenciação plenas, obter-se-ão a final, num trabalho mais amplo que se pretende seja uma análise do Direito de Defesa do Arguido. Direito de Defesa este que se analisará nas suas valências garantidoras do Direito ao Processo, do Direito a um tratamento digno por parte das instâncias criminais, do Direito à prova, do Direito à informação, do Direito ao "estatuto defensivo", do Direito à motivação das decisões e ao recurso, do Direito ao controle da Execção da Pena, o Direito a beneficiar das demais garantias Constitucionalmente estabelecidas, etc, etc...

§1.

CONSIDERAÇÕES DE TEORIA GERAL; A GENÉTICA E A ESTRUTURA DO PROCESSO PENAL.

1.

O Direito Penal , o Direito Processual Penal e a Constituição.

A.

O Direito Penal e o Direito Processual Penal. Considero que o Direito Penal, tal como é entendido pelo espírito liberal, deve traduzir

com alguma acuidade a consciência ética de uma sociedade. Com efeito, pelo menos esse fundo mínimo de ethos considerado basilar para a vivência num grupo social, é normalmente objecto de protecção Penal1. Todavia, nos nossos tempos, essa reprovação que indirectamente nos assegura serem os valores subjacentes considerados primários e indispensáveis para o ordenamento jurídico que se considere, tem vindo a estender-se a outros comportamentos e situações cuja dignidade em termos de tutela penal se apresenta discutível2. Assistimos assim a uma tentativa das instâncias formais de controlo de assegurar o cumprimento de novas normas decorrente de uma evolutiva realidade, através de uma atemorização. A inscrição de um número cada vez maior de comportamentos no Livro Negro de cada ordenamento jurídico, tem pois sido uma constante. Mas ainda maior é o movimento no sentido de "penalizar" sem codificar. Penso que estamos face a um fenómeno que bem se poderia chamar de "efeito esponja" do direito penal. Para o âmbito da sua tutela absorve este ramo de direito situações cada vez mais desprovidas de sentido ético, e, portanto, cada vez mais remotamente dignas de censura penal, para a concepção de Feuerbach. E tal tendência não se circunscreve às pequenas fronteiras do nosso país... ao invés é um movimento quase universal, que resulta já também das pressões dos grandes grupos económicos e geo-estratégicos, como é o caso da União Europeia. Para tanto não terá sido indiferente o próprio esvaziamento progressivo do conceito de bem jurídico, que começou a ser identificado

1

Sobre o conceito de crime como ofensa a bens jurídicos, confira-se Emílio Dolcini e Giorgio Marinucci, Constituição e Escolha de Bens Jurídicos, in RPCC, Ano 4, fasc. 2º, Aequitas, Ed.Notícias, 1994, pp. 151 e ss; Karl Prelhaz Natscheradetz, O Direito Penal Sexual: conteúdo e limites, Almedina, Coimbra, 1985, pp. 89 e ss. Em especial sobre o Direito do Ambiente, mas com considerações relevantes em termos da justificação da tutela penal através da autonomização do bem jurídico ambiente em relação ao bem jurídico saúde, Maria Fernanda Palma, Direito Penal do Ambiente - uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, Instituto Nacional de Administração, 1994, pp 431 e ss, em especial pp.433-434 e 438; igualmente relevante José Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1992, pp. 179 e ss. 2 Repare-se na evolução que se deu em termos de consciência de merecimento de tutela penal. Inicialmente a tutela penal cingia-se à protecção dos direitos fundamentais, passando com o tempo a considerar-se objecto da tutela penal um certo bem jurídico, o qual também pressupõe um certo nível de consenso social. Exemplo desta evolução são as justificações de tutela penal de Feuerbach e Binding. Dando conta deste fenómeno, Maria Fernanda Palma, Direito Penal do Ambiente - uma primeira abordagem, cit., p. 432 e Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, pp. 42 e ss e 51 e ss.

com "ratio legis" 3. Esta tendência, que traduz do mesmo passo o facto de os grupos sociais serem cada vez menos sensíveis à compreensão do quadro axiológico subjacente ao sistema, consiste assim numa tentativa de promover a adesão à norma pela intimidação da pena e pelo controlo e perseguição das máquinas policial e judicial; enfim pelo terror que é conatural à definição dos crimes, à estatuição das penas e à respectiva execução. Mas não só. É que o próprio conceito de Estado, e a assumpção por este de cada vez mais funções, a par do desenvolvimento técnico e da mundialização crescente dos problemas do homem, potenciam o nascimento de novos problemas e questões, que os "poderes instituídos" sentem obrigação e necessidade de resolver4. Mas tal explosão do número das normas penais não é fenómeno exclusivo deste ramo do direito. Ao invés, o fenómeno de hipertrofia dos sistemas de normas, é algo que surge em todos os ramos do Direito, com as inerentes dificuldades de conhecimento por parte do intérprete de todas elas. E a dificuldade causada pela quantidade não é maior do que a dificuldade, diga-se qualitativa, do conhecimento, compreensão e aplicabilidade das normas, em razão do esforço inafastável que o intérprete tem de realizar de subsumir cada preceito no sistema de normas e princípios em que ontológica e gnoseologicamente se tem de inserir 5. Assim, e cingindo-nos ao domínio de que curamos, numa época em que o direito penal ameaça alargar-se a variadíssimos comportamentos que o homem-comum eticamente não reprova e não considera fundamentais de um ponto de vista axiológico, imperiosamente se traz para a ribalta da discussão pública a consideração do estatuto e posição de cada indivíduo do grupo social quando colocado na mira da legislação e da máquina penal. Ora, além da peculiaridade já referida de o direito penal se apresentar sempre com uma aura de terror e repulsa, existe uma outra característica que individualiza este ramo de 3

Sobre a evolução histórica do conceito de bem jurídico, indispensável é o trabalho de Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime - uma perspectiva da criminalização e da discriminalização, Universidade Católica Portuguesa - Editora, Porto, 1995, pp. 29 a 70. 4 Assim em domínios como o ambiente, o comércio internacional, os mercados financeiros e cambiais, a informática e o ciber-espaço, a genética, os diversos tipos de tráfico de bens e o concomitante branqueamento de capitais, e até os aproveitamentos ilegítimos dos fundos estruturais da união europeia. 5 Francesco Carnelutti, Três conferências - proferidas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Profilo dei rapporti tra diritto e processo, Lisboa, 1962, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XIV, página 18, escreve a este propósito:"Non è sempre um compito facile quello, ce il diritto impoone ai sudditi, di giudicare intorno alla conformità del fatto alla fattispecie; tanto meno facile quando l'ordinamento giuridico si viene complicando. Fino a un certo punto tale complicazione è inevitabile: cresce il numero delle norme in ragione del moltiplicarsi dei rapporti sociali e dei conflitti, ai quali danno luogo: il fenomeno è analogo al continuo moltiplicarsi degli strumenti, che servono all'uomo per soddisfare i suoi bisogni ...; certo vi è in ciò della patologia nel senso di un vero e proprio abuso del diritto o, quanto meno, di una esagerazione del suo impiego, comune purtroppo a tutti i regimi moderni. Si noti, ad ogni modo, che la maggior quantità delle norme giuridiche determina un inevitabile scadimento nelle loro qualità; e pure in ragione di ciò aumentano le difficoltà di quel giudizio, senza il quale le norme non potrebbero essere osservate.".

direito de entre os demais. A sua relação enquanto ramo de direito substantivo com o respectivo processo, mais do que necessária é fatal! "O direito é substância, o processo representa a forma. Somente pelo processo o direito passa do abstracto para o concreto; por isso a todo o direito corresponde o seu processo " 6. Esta realidade traduz uma "primeira questão de verdadeira metodologia, ela própria comprometida com a efectiva 'relação mútua de complementaridade funcional' que se estabelece entre direito penal e direito processual penal e que permite 'concebê-los como participantes de uma mesma unidade' " 7. Assim se compreende que sempre tenham andado reguladas nos mesmos diplomas as matérias substantivas e processuais, como sucedia nas nossas Ordenações do Reino, e no Projecto de Código Criminal de 1786 de Pascoal José de Mello Freire. Repare-se, contudo, que ainda hoje não se encontra totalmente operada a diferenciação entre o direito penal substantivo e adjectivo, como nos demonstram os artigos 117º e seguintes do Código Penal, por um lado, e os artigos 124º e seguintes do Código de Processo Penal, por outro. Mas mesmo que formalmente se separe na totalidade a regulamentação substancial e processual das matérias, no processo penal, mais do que em qualquer outro, a ligação ontológica, axiológica e gnoseológica com o direito penal não se consegue esconder. Nenhum outro "processo" está tão fortemente embuído de valorações substanciais, está tão carregado de intencionalidade ultra-processual e está tão dependente de considerações imanentes do direito substantivo, constante não só do Código Penal mas também da Constituição. Mas a relação entre Direito e Processo, e particularmente entre Direito Penal e Processo Penal, não se compreenderá com esta simples e empírica afirmação de proximidade. É imprescindível começar por entender o conceito de processo. Escreve Marques da Silva que "O processo é uma sequência de actos juridicamente pré-ordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e sua justa aplicação " 8. Por outro lado é certo que o Direito Substantivo tem por fim o atingir daquele fim último que é a ordem na sociedade, e que portanto apenas serve enquanto não há conflito

6

Abel de Andrade, "Três estudos de direito e processo penal", in Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol XXI, Lisboa 1968, pág. 37. 7 A.Laborinho Lúcio, Sujeitos de Processo Penal, Algumas considerações, in Jornadas de Direito Processual Penal- O novo Código de Processo Penal , Almedina, Coimbra, 1992, pág. 38, e citando Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol., página 28. 8 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 1ª Ed., Verbo, Lisboa, 1993, p. 13. Também Carnelutti, op. cit., p. 21, escreve: "Procedere, in termini semplici, vuol dire andare avanti. Il processo si risolve, pertanto, in uno svolgimento. Basta questa riflessione elementare per dover concludere che già la legge è il risultato di un processo. Vi è dunque un processo legislativo prima del processo giurisdizionale."

entre sujeitos (ou partes). Já o Direito Adjectivo surge como imperativa condição da realização desse mesmo fim quando entre esses mesmos sujeitos não existe uma convergência de interpretações dos direitos próprios ou alheios. Mas fincando-nos por aqui não se vislumbra que maior relação existirá entre o Direito Penal e o respectivo processo face aos demais conjuntos de direito substantivo-direito adjectivo. Salienta alguma doutrina o nexo de instrumentalidade necessária: não há hipótese de aplicação de qualquer reacção criminal, seja pena seja medida de segurança, sem ser através do processo penal, diz-nos o artigo 2º do CPP /879. Mas julgo que a diferença específica que faz do processo penal mais do que um auxiliar ou uma condição de realização do direito penal, há-de encontrar-se no plano axiológico-teleológico deste último, e bem assim no tipo de estatuições por ele cominadas. Penso que o Direito Penal não traduz só regras de conduta. Ou seja, o imperativo ético subjacente à norma penal, não se traduz apenas num comando ao indivíduo no sentido de fazer ou não fazer, omitir-se ou actuar. Ao invés as normas penais surgem também como um comando para as próprias instâncias formais de controlo, os guardiões da norma penal. Estes actuarão sempre que se verifiquem os factos susceptíveis de se enquadrarem na fatispécie do preceito penal. Mas para que actuem de molde a que o comportamento seja sancionado não pode deixar de existir a regra adjectiva, o preceito processual (ou procedimental) que permita que ao caso se aplique o Direito. E aqui se descobre essa primeira diferença específica do direito processual penal em relação ao processo civil. É que o direito substantivo civil está permanentemente a actuar pelo simples facto de vigir. Os homens na sua inter-relação diária aplicam por si próprios o direito substantivo, pelo facto de por essas normas pautarem as suas condutas. E apenas quando discordantes sobre o seu entendimento, ou sobre o valor dos comportamentos à luz de tais normas, recorrerão à jurisdição, para que esta, segundo as regras processuais próprias, diga o direito. Já não assim no Direito Penal, o qual nunca se pode aplicar sem a mediação do respectivo processo 10/11. 9

Semelhante a formulação do artigo 1º do CPP/29. Vejamos: se o indivíduo A trespassar o bem X da empresa de que é gerente para outra, e se esse bem tivesse sido penhorado à ordem de uma processo executivo, a sua conduta é penalmente irrelevante, até ao momento em que as ditas instâncias formais de controlo desencadeiem o processo penal competente para que tal comportamento venha a ser censurado de um prisma penal. Não há pois aplicação do direito penal sem essa mediação do respectivo processo. Ou seja, o Direito Penal tanto poderá existir como não enquanto não for actuável, e a sua actuação não é possível sem o Processo Penal. 11 Carnelutti, Três conferências - proferidas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Profilo dei rapporti tra diritto penale e diritto civile, Lisboa, 1962, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XIV, página 31, escreve: "Tutti gli effetti giuridici del contratto si spiegano indipendentemente dal processo mentre l' effetto più importante del delitto, che é la punizione, senza il processo non si può produrre. Il meno che se ne può concludere è che il legame tra diritto e processo é più intimo per il diritto penale che per il diritto civile .". 10

A outra diferença está na tal plano axiológico e teleológico a que atrás fiz referência, visto que o direito penal está intimamente funcionalizado ou ligado a bens constitucionalmente protegidos12, pelo que também o processo que o visa aplicar recebe necessariamente influxos do espírito da Constituição vigente. É essa ligação entre direito processual penal e Constituição que se passa a observar.

B.

O Direito Processual Penal e a Constituição. Movemo-nos, pois, em águas de proveniência diversa, num mar de regulamentação

que sendo formalmente processual, intimamente depende de outras fontes como a Constituição e o Código Penal imperantes no sistema que se considere. E compreende-se que assim seja! Escreve Pierre Bon, Toute Constitution démocratique doit, en matière de protection des droits fondamentaux, remplir une double fonction. Tout d'abord, elle doit proclamer les droits des hommes et des citoyens auxquels elle acorde valeur constitutionnelle. C'est dire qu'elle doit dresser la liste, le catalogue des droits et libertés.(...) La Constitution doit ensuite garantir les droits proclamés. Leur simple proclamation, leur simple reconnaissance, leur simple affirmation les laisse à l'état virtuel. Pour qu'il s'agisse de droits réels et effectifs et non pas droits formels et virtuels, il faut que la Constitution définisse un certain nombre de règles juridiques et mette sur pied un certain nombre de mécanismes destinés à en garantir le respect 13 . O Direito Constitucional além de determinar os critérios da organização judiciária e penitenciária, define ainda com rigor "regras de produção normativa" sobre direito penal, espartilhando assim a sua forma de nascer, vigorar e de desaparecer. Porém a maior relevância do Direito Constitucional surge na medida em que, consagrando os direitos fundamentais dos indivíduos, funciona como barreira à ânsia das instâncias formais de controle, que ele mesmo institui, de se orientarem exclusivamente com vista ao fim a que estão funcionalizadas, independentemente dos meios que tenham de utilizar para atingir esse fim. O princípio de que os fins não justificam os meios surge como tutelar do processo penal, como sabemos, no "nosso tempo", se tomarmos como referência a história da humanidade. Tal princípio resultou da particular relevância e dignidade reconhecida ou conferida ao ser humano, fruto de milénios de labor religioso, filosófico e intelectual, numa permanente 12

Assim Heike Jung, Droits de l'homme et sanctions pénales, in R.T.D.H., Ano 5º, nº 18, Nemesis-Bruylant, Bruxeles, pp. 163 e ss. Especialmente interessante é a sua abordagem da despenalização como sendo uma questão próxima da problemática dos direitos do homem, e bem assim do papel da jurisprudência na busca dos "standards" que devem presidir a uma constitucionalização do direito penal. 13 Pierre Bon, La protection Constitutionnelle des Droits Fondamnetaux:Aspects de Droit Comparé Europeen, in Rev.FDUL , Vol XXXI, 1990, pp. 9 e ss.

tensão contra o poder. Estão tais valores, princípios e limites à actuação do poder, consagrados nos textos constitucionais, de onde emanam para toda a ordem jurídica, cristalizando-se particularmente nas disposições processuais penais. As normas penais substantivas reflectem reflectem tais princípios constitucionais quer através da sua estrutura 14, quer através dos conceitos utilizados15, quer ainda através da pena16. No domínio de que curamos, a tutela de grande número desses valores constitucionais perder-se-ia em grande parte porém sem a correcta estruturação do direito processual penal, paradoxalmente o mero direito adjectivo! Julgo pois ser uma evidência a necessidade de um direito processual penal estruturado e informado pelos princípios e valores constitucionalmente previstos, sob pena de irremediavelmente se perder a possibilidade de atingir os fins visados. Conclusivamente se dirá que nenhum outro direito processual é tão profundamente "substantivo". Certo é que diferenças existem entre o direito penal e o respectivo processo... nem de outro modo poderia ser, mercê da funcionalidade e fim a que cada um deles está adstrito e da própria natureza de cada um.

14

Por exemplo a função de garantia da lei penal, a não retroactividade da lei incriminadora, o princípio "in dubio pro reo ". Repare-se que mesmo o tipo penal pode ser, e é, entendido como tipo-garantia. Sobre isto confira-se Teresa Beleza, Direito Penal 2º volume, AAFDL, 1994, p. 107 e Jescheck, Tratado de Derecho Penal, 4ª Ed., Traduzida por Manzanares Samaniego, Comares, Granada, 1993, p. 223. 15 Veja-se por exemplo a polémica em torno da admissibilidade da utilização de conceitos vagos ou indeterminados na elaboração dos tipos penais, dos tipos penais em branco e dos tipos penais abertos. Por todos vejam-se: Jescheck, Tratado de Derecho Penal, 4ª Ed., Traduzida por Manzanares Samaniego, Comares, Granada, 1993, pp. 98 e ss e 223 e ss; Antonio Garcia-Pablos, Derecho Penal, Introducción, servicio publicaciones facultad derecho Universidad Complutense Madrid, 1995, p. 175 e 253; Maurach-Zipf, Deutsches Strafrecht-All.T., p. 113; Oliveira Ascensão, Direito Penal de Autor, Lex, Lisboa, 1993; Francisco Muñoz-Conde e Mercedes García Arán, Derecho Penal-parte general, Tirant lo blanch libros, Valencia, 1993, pp.103, 227, 234 e 260; e o estudo especial de Jorge Miranda e Miguel Pedrosa Machado, Constitucionalidade da protecção penal dos direitos de autor e da propriedade industrial- norma penais em branco, tipos abertos, crimes formais e interpretação conforme à Constituição, in RPCC, Ano 4, fasc. 4º, Aequitas, Ed.Notícias, 1994, pp. 465 e ss. 16 Jescheck, Tratado de Derecho Penal, cit., § 4, fala a este propósito nos princípios da culpabilidade, do Estado de Direito e da humanidade, como princípios tutelares de política criminal. Jescheck esclarece que o principio da culpabilidade parte da constatação de que a pena criminal só pode ser imposta pessoalmente ao autor do facto, e que deve ser adequada à medida dessa culpabilidade, ou seja surge-nos aqui a concretização do princípio constitucional "nulla poena sine culpa " (op.cit., p. 19). Quanto ao princípio do Estado de Direito, diz Jescheck, que no seu sentido formal ele garante a segurança jurídica, através das regras constitucionais da reserva de lei, do princípio "nullum crimen nulla poena sine lege ", do princípio da tipicidade, da não previsão de penas excessivas ou cruéis, e por fim da exclusiva "reserva de Juiz". Já no seu sentido material tal princípio do Estado de Direito configura a realização de um Estado Justo, em que se busca a salvaguarda da dignidade humana, em que o Direito Penal se limita ao mínimo indispensável, vinculado objectivamente a política criminal aos valores supremos da comunidade, com respeito pela proporcionalidade e pela igualdade (op.cit., pp. 21 e s). Quanto ao princípio de Humanidade entende-o Jescheck no sentido de que o direito penal deve assentar em bases de solidariedade recíproca, de responsabilidade social pela reintegração dos deliquentes e pela atenção aos reincidentes. Daqui decorre necessariamente a abolição das penas e tratos cruéis, e uma política assistencial do Estado aos envolvidos no crime.

Definindo em abstracto os crimes e as penas, e prescrevendo quais as penas que cabem a cada crime, vemos o direito penal estabelecer o valor e os efeitos que devem ou podem atribuir-se às acções humanas; já o processo penal regula os procedimentos necessários e possíveis para que em concreto se averigue se a conduta reprovável penalmente foi ou não, por quem e em que circunstâncias, praticada, e qual a reacção concreta que tal conduta historicamente concretizada deve merecer. Mas o resultado do raciocínio exposto é o de que entre ambos existe mais do que uma afinidade. Temos uma verdadeira cadeia geneológica do processo penal relativamente a dois ramos do direito: - O direito penal cuja aplicação visa e possibilita; - E o direito constitucional, que simultaneamente aplica e que para si funciona como limite (ou, porque não dizê-lo, como instância de controle do próprio processo penal) 17. Daí que escreva Figueiredo Dias que o direito processual penal é direito constitucional aplicado 18; e que seja uma evidência que, como já dissémos, sem processo penal de pouco não seria aplicável o direito penal, e se hipoteticamente o fosse, frustrar-se-iam por certo muitos dos fins constitucionalmente previstos. É que a mera inserção nos textos constitucionais dos direitos dos cidadãos não garante qualquer efectividade desses mesmos Direitos 19 . A este propósito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: "Muitas vezes, no entanto, a lei ordinária intervém no quadro dos direitos, liberdades e garantias. As normas e princípios constitucionais têm necessariamente um certo grau de imprecisão ou fluidez e estão, por isso, com alguma frequência, demasiado longe da realidade para poderem garantir, na prática, a clareza e a segurança desejáveis nas relações da vida social. Invocando esse facto, o legislador emite continuamente normas ordinárias destinadas a regular a aplicação dos preceitos constitucionais, fixando melhor os contornos dos direitos (e deveres) dos cidadãos ... "20. E continuam, A intervenção do poder legislativo nesta matéria não é hoje, porém, nem uma evidência nem uma excepção. Não é um facto evidente ou necessário, porque, em face do valor jurídico (formal e material) dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias, o 17

Sobre a relação destas três realidades, Klaus Tiedemann, La constitutionnalisation de la 'matière pénale' em Allemagne, in Rev.Sc.Crim., nº 1, Janvier-Mars 1994, pp.1 e ss. 18 Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 74 e ss. 19 Pierre Bon, op.cit., p. 11, escreve a este propósito:Le credo constitutionnaliste, joint au dogme de l'infaillibilité de la loi, explique pour beaucoup cette attitude. La croyance dans les Constitutions est telle que l'on a le sentiment qu'il suffit qu'une règle de droit figure dans le texte suprême pour qu'elle s'impose à tous. Et si, d'aventure, tel n'est pas le cas, le législateur, protecteur naturel de la Constitution et des droits fondamentaux, ne manquera pas d'intervenir pour rétablir la norme fondamentale dans tout sa force. Bien évidemment, l'histoire montrera la dose d'idealisme que contiennent de telles analyses. Elle enseignera en effet qu'il y a plus de Constitutions bafouées que de Constitutions respectées et que le législateur peut tout autant être une menace pour les droits fondamentaux que le rempart des droits et libertés . 20 Gomes Canotilho e Vital Moreira, Os Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 1987, páginas 224 e ss.

legislador não pode dispor desses direitos, nem a sua intervenção é sequer suposto da aplicabilidade dos respectivos preceitos. Contrariamente ao que antes se pensava ... o legislador, apesar de continuar a ser o representante da vontade popular, é também o "inimigo"... das liberdades, que por isso necessitam de protecção contra ele 21/22. Porquanto fica dito se compreende o forte entrosamento radical que existe entre o Processo Penal e o Direito Constitucional, sendo este por aquele tão amplamente, e em domínios tão sensíveis, aplicado na tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos. Mas há que advertir que mesmo este Direito Processual Penal não deve deixar de ser de perto vigiado, sob pena de ser ele próprio violador dos princípios constitucionais que visa aplicar. Este relatório procurará ser também um acto desta atenção, tanto mais em face de um preceito constitucional que, como o 32º nº1 da CRP, é dotado de um especial laconismo e fluidez.

21

Gomes Canotilho e Vital Moreira, idem, ibidem. Sob a autoridade dos mesmos autores não deixe ainda de se citar, pela expressividade da frase utilizada, Madison, quando afirmava que "the great and essential rights of the people are secured against legislative as well as against executive ambition. They are secured, not by laws paramount to prerogative, but by Constitution paramount to laws ", Madison, in Report on the Virginia Resolutions , apud Freund e outros, Constitutional Law, citado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, op.cit., página 225, nota 18. 22

2.

A possível visualização do processo penal como tendo uma estrutura "partificada" ; a paridade de armas entre as respectivas "partes". Procurarei essencialmente aqui colocar a questão de saber se o processo penal é ou

não um processo de partes, respondendo não tanto pela apresentação de uma teoria inovadora, mas essencialmente pela apreciação dos argumentos em que se louva a doutrina tradicional para sustentar a resposta negativa. A questão resulta simplesmente do cotejo do processo penal com o processo civil 23, que como sabemos se apresenta como um pleito entre duas entidades, sujeitos de direito, que pretendem fazer valer pretensões diferentes. Ou são as versões dos factos que divergem ou as concepções de direito. Este duelo entre posições antagónicas é arbitrado ou conformado por um terceiro superior às partes, imparcial, que passivamente decide sobre os factos que "as partes" lhe apresentam, com liberdade para conhecer do Direito 24. Ora a questão que aqui se põe é a de saber se existe no Processo Penal igual situação, ou seja, duas partes em duelo, sob a autoridade de um terceiro imparcial e passivo quanto aos factos e respectiva prova, que decidirá a final. Por outras palavras a questão é a de saber qual o papel do Juíz e qual o papel do MºPº, uma vez que a do arguido é clara: defender a sua posição de inocência25, ou, quando culpado, fazer operar todos os factos e circunstâncias que lhe sejam favoráveis, de molde a reduzir a ilicitude dos factos ou a sua culpabilidade. Vejamos pois a posição e estatuto desses dois sujeitos processuais. I - O Ministério Público como parte do processo penal O MºPº tem a sua função e estatuto definidos na lei claramente. E a doutrina, observando tal definição legal de função e estatuto, conclui que o MºPº não é um órgão que pugne pela obtenção da condenação do arguido. Não o sendo, não parece poder dizer-se que tenha

23 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo, Lisboa, 1994, p. 96; Cavaleiro

de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, Editora Danúbio, Lisboa, 1986, pp. 145 e ss; Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal-O novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, Coimbra, 1992; em processo civil veja-se por todos Antunes Varela, J.Bezerra e S.Nora, Manual de Processo Civil, 2ªEd., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 38 e ss. 24 Nas formulações triangulares clássicas o juíz surgia como terceiro vértice do triângulo, relacionando-se em simultâneo com ambas as partes que também se degladiavam entre si. Outros dois modelos existiam: aquele que afirmava que as partes se relacionavam uma com a outra, estando o julgador de fora, como mero observador; e aquele que dizia que cada parte se relacionava com o julgador, mas não mantendo qualquer "relação" com a contraparte. 25 A Corte Costituzionale, em Itália, pelo Acórdão nº 175 de 14 de Julho de 1971, afirmou que o 24º, nº 2 da Lei fundamental Italiana tutela fundamentalmente o interesse do arguido "a obter o reconhecimento da completa inocência, por considerar o bem da vida como constituindo o último e verdadeiro objecto da defesa, em relação ao qual os outros comandos para um justo processo são meramente instrumentais " (in Giur.Cost., 1971, p. 2143).

um interesse contraposto ao do arguido. O MºPº surge como tendo a legitimidade para promover o processo penal, a ele lhe competindo colaborar com o Tribunal: na descoberta da verdade, seja ela qual fôr; e na realização do Direito, que tanto pode ser o desenvolver o processo ou arquivá-lo, atingir a condenação ou a absolvição. Ponderando ainda que no desenvolvimento de tais funções o MºPº está vinculado a critérios de estrita objectividade, a doutrina é peremptória em concluír que o MºPº não pode ser visto como parte do processo penal. Aliás, já o artigo 12º do DL 35.007 afirmava que ao MºPº competiam as diligências conducentes a provar a culpabilidade dos arguidos, mas também aquelas que possam concorrer para demonstrar a sua inocência e irresponsabilidade . A conclusão retirada de tais permissas resulta linear: o MºPº não tem propriamente uma pretensão própria que não seja a de objectivamente realizar a Justiça 26. Ou seja, não tem que ter necessariamente (em concreto) por fim um objectivo oposto ao do arguido. Claro está que essa oposição de interesses sempre se pode vir a demonstrar que existiu, após a comprovação da culpa do arguido com a condenação. Mas em abstracto, e sempre assim será até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, não tem o MºPº uma pretensão oposta à do arguido27. Tanto lhe interessa a condenação como a absolvição, desde que a decisão seja justa e conforme ao Direito. Pelo que teria de se concluír que o MºPº não surge como uma parte num duelo que se trava com o arguido28. O arguido luta sim com os factos que ele próprio praticou (ou não), e nas respectivas circunstâncias. Triunfará a verdade, espera-se, na busca da qual cooperam o Tribunal e o MºPº. Assim se compreenderia o facto de a este órgão caber um papel activo na condução do processo, papel muito diferente do de qualquer das partes num processo civil. Está aqui, face ao arguido e aos factos, como um terceiro, tal como o próprio Tribunal. Do mesmo passo assim se esclareceria o facto de o MºPº poder intervir no interesse exclusivo do arguido29. Ou seja, e segundo esta perspectiva, desde logo não se teria um processo de partes, pela tão-simples razão de que sempre faltaria uma delas!

Todavia, mesmo para esta

concepção, tal não exclui que sempre surja alguma tensão dialética entre o arguido e o MºPº, 26

Cfr. artigo 53º, nº 1 CPP/87. Em bom rigor, para quem não veja o MºPº como parte, ele nunca tem um interesse oposto ao do arguido. Ele tem é um interesse a seu cargo que é o interesse geral da Comunidade e do Estado de que se faça Justiça, castigando os criminosos e mantendo a paz jurídica dos inocentes. 28 Neste sentido, e fazendo eco do entendimento largamente maioritário, o Ac. nº 118/90 do TC. Curioso será porém reparar que no mesmo aresto o TC admite haver interesses contrapostos entre MºPº e arguido, quando afirma: "é consabido que a faculade de recorrer da condenação constitui peça dominante do quadro dialético em que se desnvolve o processo penal: é ela que permite ao arguido superar a antítese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento ". 29 Por exemplo, e no âmbito deste relatório, citem-se os artigos 53º, nº 2, al. d), 401º, nº 1 al. a), 409º e 415º do CPP/87. 27

e que em concreto, e amiúde, o MºPº se torne num verdadeiro acusador público, obstinado em obter condenações. Mas aí não estamos no plano do dever ser, mas sim no domínio do concreto, sempre de próximo influenciado por individuais e casuísticas questões pessoais. Em resumo, e para o entendimento unânime da doutrina, a interacção dos sujeitos do processo penal não pode ser considerada como a de um processo de partes. Ora não considero que assim seja tão claramente: ao invés parece-me visualizar-se uma "partificação" do processo no que concerne à dita tensão dialética entre Arguido e Ministério Público. Com efeito não me parece correcto concluír que o MºPº não é parte com base nos argumentos de que ele: a) tem um papel predominante no exercício da acção penal; b) não tem outra pretensão além da realização da Justiça sendo assim um órgão de aplicação da Justiça; c) que pauta a sua actividade por critérios de estrita objectividade. a) Atente-se no primeiro argumento: ter o MºPº um papel predominante no exercício da acção penal. Tal facto explica-se pela própria evolução do sistema de auto-tutela para o sistema de hetero-tutela dos direitos. Foi para assegurar a estabilidade e evolução das sociedades humanas que se estruturou o poder, assumindo este a seu cargo a obrigação de tutelar o direito no seu seio, provendo-se de regras, aparelhos e mecanismos de protecção da própria comunidade. Foi para evitar o estado de bellum omniu contra omnes que o próprio homem evoluiu no sistema de tutela dos direitos. E assim também no que à justiça penal concerne. O Estado assumiu como seu em exclusivo o poder de vigiar e sancionar as violações penais. Só que ao fazê-lo, e com a concreta experiência resultante da história, apercebeu-se que a função de vigilância não devia estar cometida aos mesmos órgãos que procediam ao sancionamento. E foi para evitar as inconveniências de tal "confusão funcional" que o Estado se auto-estruturou no sentido de criar um corpo de vigilância, que não só investigava a prática de eventuais crimes como se encarregava de os levar ao outro corpo estatal, aquele a quem incumbia a apreciação dos factos descobertos com a investigação à luz das leis 30. Em qualquer manual, seja de direito processual penal, seja de direito penal, seja até de ideias políticas ou de direito constitucional, resulta claro o que acabei de afirmar. Entrevêem-se nos "sujeitos" atrás referidos, por um lado o MºPº e os órgãos de polícia criminal, e por outro os julgadores. E ao MºPº foi historicamente cometida a função de exercer a acção penal, exercendo dessa forma uma função tutelar dos valores, interesses, projectos e ideias do todo colectivo. Não é porém o facto de exercer a acção penal que transforma tal entidade em algo desprovido de interesses próprios. Pelo contrário. O MºPº toma como seus os interesses da colectividade, exercendo um poder de autoridade que lhe advém da sua

30

Leis estas que por sua vez não emanavam de nenhum dos ditos corpos estatais, mas sim de outros, separados destes, e dotados de uma especial legitimidade soberana: o legislador.

integração no quadro da estrutura soberana do Estado 31. Mas daqui nada se pode inferir quanto à qualidade de parte, ou não-parte, do MºPº no exercício da acção penal. Negar a qualidade de parte ao MºPº com base neste argumento era o mesmo que recusar à administração pública a titularidade de interesses próprios, e contrapostos aos dos administrados, quando no exercício das suas funções. Pelo que, e como primeira conclusão, não se pode retirar a qualidade de parte ao MºPº pelo facto de este ser o responsável pelo exercício da acção penal. Ambas as conclusões podem ser, e ao que julgo são, verdadeiras simultaneamente. b) O segundo argumento também não prova bem. O facto de o MºPº ter como única pretensão a realização da Justiça32, sendo assim um seu órgão aplicador, também não depõe contra a atribuição da qualidade de parte ao MºPº no âmbito do processo penal. Qualquer privado em litígio com outro pensa, a menos que litigue de má-fé, que com a realização da sua pretensão estará a realizar a Justiça. E esse facto não lhe retira a qualidade de parte. Mais: se o arguido se considerar inocente não tem o estatuto de parte? Se vier a ser julgado inocente teremos de concluír que o procedimento concreto não teve "partes"? Não parece que esta seja a consideração essencial. É que se confunde a realização da Justiça com o exercício de uma função superior, qui ça soberana. E na realização da justiça colaboram todos, inclusivamente o arguido, quando pugna pelo reconhecimento da sua inocência verídica, ou quando confessa a infracção cometida. Ao fazê-lo está a realizar a Justiça! E tal não implica que não tenha interesses próprios, contrapostos aos encabeçados pela comunidade e representados pelo MºPº 33. É com efeito um dos órgãos de aplicação da 31

Assim, entre outros, Borges de Pinho, O novo Código de Processo Penal-sua estrutura e esquemas, 2ª Ed., Rei dos Livros, Lisboa, s.d., p. 7. 32 Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, Editora Danúbio, Lisboa, 1986, p. 147 escreve a este propósito que o MºPº não pode ser parte desde logo porque não tem um interesse directo em demandar e que da procedência da acusação não deriva para ele qualquer interesse. Ora, como resulta do que escrevi acima, não julgo que tenha razão Cavaleiro de Ferreira. Tem o MºPº interesse em demandar e interesse na condenação; interesse em demandar porque ao fazê-lo visa a realização da justiça, estando a cumprir deveres funcionais a seu cargo cometidos; interesse na acusação, porque estando convencido da responsabilidade do arguido, será necessária a sua condenaçãopara que se faça a justiça ao serviço da qual está ele próprio. Aliás, é impensável falar em parte imparcial, como diz Cavaleiro de Ferreira, não tanto por uma questão de raciocínio ou de contradição intrínseca, mas porque o MºPº não é imparcial. Ele toma um partido: o partido da acusação que desenvolve e de cuja justiça está convicto. Ademais, sendo o conceito de parte meramente instrumental, como acima deixei em nota, perde razão de ser toda a discussão. 33 Repare-se que Vital Moreira, em Declaração de Voto anexa ao Ac. nº 207/88, escreve: "Sublinhando que a garantia constitucional da motivação não constitui um valor em si mesma, o referido autor põe em relevo o carácter instrumental necessário daquela garantia em relação à actuação dos princípios fundamentais da legalidade das decisõesjudiciais, da independência dos juízes e da imparcialidade das suas decisões e do direito de defesa das partes (possibilidade de verificar a eficácia da defesa das partes sobre o convencimento do juiz); acentua ainda, de modo particular, que o direito de defesa -entendido como direito de influir sobre a decisão (direito à prova, direito a intervir sobre questões relevantes, direito ao contraditório)- só tem significado concreto quando seja possível verificar se e como o juiz teve em conta a defesa das partes ". Veja-se que embora referindose ao arguido, o raciocínio é plenamente aplicável ao convencimento do juiz sobre as alegações da acusação, que como parte tem mecanismos legalmente fixados para poder "convencer" o julgador do merecimento da sua

Justiça, mercê da sua própria origem histórica, mas isso não significa que tenha interesses opostos aos do arguido, e que os procure fazer valer em concreto no processo, precisamente "contra" os do acusado. c) O terceiro argumento ainda colhe menos que os anteriores34. É que o facto de pautar a sua actividade por critérios de estrita legalidade e objectividade 35 em nada retira ao MºPº a sua posição de parte processual. Quando um Ministério, uma empresa pública ou um órgão da administração actuam, estão necessariamente a actuar no âmbito das suas funções (sob pena de incompetência absoluta, como ensina o direito administrativo), e a sua actividade está credenciada pela lei. Mais: o interesse público é aqui tão "objectivo" como o do MºPº no exercício da acção penal. Tratar-se-á, no primeiro caso, de assegurar a realização do interesse colectivo através, por exemplo, da construção de uma barragem ou da expropriação de um terreno; e no segundo caso de obter o castigo daquele que violou a lei penal. Não se pode partir é do princípio que a administração pública em geral defende um interesse próprio que não seja o interesse público, e que o MºPº só esteja funcionalizado ao interesse público de atingir a justiça. A objectividade que pauta a actividade de qualquer destes entes é igual: actuar no âmbito da lei, procurando cumprir as funções que lhe foram cometidas. Daí que se possa vir a provar que uma certa decisão da administração era imprópria, e dá-se razão ao administrado, tal como se pode absolver o arguido por improceder a acusação. É que a objectividade por que se pauta o MºPº decorre do facto de ele pertencer à máquina administrativa do Estado, não se podendo aceitar que se guie na sua actuação por outros critérios que não os da legalidade e da objectividade. Em boa verdade, o que em regra a doutrina quer dizer ao se referir a esta "objectividade", é que o MºPº não pode querer violar as suas funções e estatutos, ou seja não pode querer que se condene um inocente ou que se absolva um culpado. E não o pode fazer porque não tem um interesse próprio (leia-se: desvinculado do fim para que foi criado) nem pode actuar contra a Lei. Em suma, esta objectividade obrigatória da actuação do MºPº mais não é do que a assumpção de que este não pode violar a Lei. Ora nenhum órgão público o pode fazer, o que não significa que em concreto não surjam violações. Mas isto também não prejudica a possibilidade de visualizar o MºPº como parte no processo penal. No âmbito deste processo, este órgão que exerce a acção penal, actua no posição. 34 Lê-se no Ac.nº 150/87 do TC a propósito da "reciprocidade dialética" arguido-acusador e dos critérios de objectividade e isenção do MºPº: "pese embora a roupagem de independência e isenção que lhe seja envergada, na dialética acusação/defesa, o Ministério Público acha-se desde logo influenciado pela circunstância de haver dinamizado a acção penal, o que, quer se queira quer não, lhe há-de conceder uma especial perspectiva da matéria em controvérsia, muitas vezes bem diversa daquela que é partilhada pela defesa "; considerando o mesmo argumento mas decidindo de modo inverso (ser constitucional o 664º do CPP/29) o Ac. nº 398/89 do TC. 35 Defendendo a posição maioritária e contrária à que perfilho no texto vejam-se os Acórdãos do TC nºs 398/89 e 350/91.

estrito cumprimento da legalidade, como toda a administração faz, em princípio, razão pela qual ao se convencer da inocência do arguido não pode prosseguir com a acusação. Razão pela qual também, constatando uma violação da lei ou um má aplicação desta, tenha obrigação, precisamente porque ente público, de denunciar o erro, v.g. recorrendo, mesmo que seja em benefício do arguido. Só que ao fazê-lo não quer dizer que no processo em concreto não tivesse tido, até esse momento, um interesse contraposto ao do arguido. E mais, que fosse um polo autónomo do contraditório processual. E mesmo quando actua em favor do arguido, não quer dizer que os interesses não permaneçam contrapostos quanto a outros aspectos do processo. É que são questões diferentes a discussão sobre o papel de parte do MºPº e a constatação de que ele não pode actuar senão no cumprimento da lei e na busca da justiça. Aliás, não se compreende a repulsa da doutrina tradicional em considerar o MºPº parte no preocesso penal. São, ao que julgo, reminiscências de uma mal superada fase de inquisitoriedade do processo penal. Como nos sistemas inquisitórios quem acusava era o julgador, e este tinha um estatuto claramente superior face ao arguido, essa aura foi herdada pelo acusador no sistema dispositivo. Serão pois ideias medievais e algumas do iluminismo, as que impelem considerações avessas à consideração do MºPº como uma parte no processo36. Porém em nada resultará diminuído o MºPº, nem nas suas funções nem na consideração que merece à sociedade por quem vela, do facto de ser visto como parte. Nenhum estigma acompanha o estatuto de parte em processo penal 37. Ademais, não se compreende sequer que se afirme a contraditoriedade 38 do processo se se entender que há apenas uma parte no processo. É que o que é objecto de contradição, ou de contestação, são as alegações (da acusação pelo arguido, e do arguido pelo acusador), são os meios de prova; são as conclusões mútuas39. E são até as decisões do Tribunal, pois se com elas não satisfeitos, podem tanto o MºPº como o arguido recorrer. Dirão então: mas enquanto o arguido pode recorrer mesmo que a sentença tenha sido justa e correcta, o MºPº

36 Escreve

Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, Editora Danúbio, Lisboa, 1986, p. 146, em relação à tradicional concepção do processo penal como sendo um processo sem partes, o seguinte: "O princípio do contraditório, por um lado, e o reconhecimento da posição do arguido, por outro, como titular de uma actividade processual de defesa, não redutível à condição de objecto da jurisdição e de meio de prova, deveriam suscitar uma diferente visão do problema ". Porém Cavaleiro de Ferreira aceita apenas que seja parte o Arguido, já não a acusação, pelo menos aquela do MºPº. 37 Como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo, Lisboa, 1994, p. 96, "o conceito de parte é puramente formal, nada tem que ver com as situações jurídicas emergentes do direito substantivo resultantes da prática de um crime, é um conceito puramente instrumental para a operacionalidade do processo ". No mesmo sentido Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 244. 38 Antonio Pagliaro e Giovanni Tranchina, Istituzioni di Diritto e Procedura Penale , 2ª Ed., 1988, p. 210 afirmam que "O processo de partes é um pressuposto do direito ao contraditório ". 39 Neste sentido os Acórdãos do TC nºs 495/89 e 496/89.

só recorrerá se tiver havido ilegalidade. Ao que se responde que tal não decorre da não qualidade de parte do MºPº, mas do seu carácter de órgão público, que enquanto tal não pode deixar de cumprir a lei. Como já acima afirmei, são questões diferentes, que não devem prejudicar a visualização do processo penal como um processo em que o MºPº é tanto parte como o arguido. E se isto é assim no plano da discussão teórica, já no campo prático do foro a situação se afigura ainda mais clara. Quantas vezes terá havido recurso por parte do MºPº, e sem ser no interesse do arguido, e o tribunal superior veio a confirmar o decidido? E tal em nada prejudica a função, nem a essência do MºPº. Por fim julgo que há uma outra razão para não se ver o MºPº como parte: é que ele surge como uma estrutura burocrática, um complexo do próprio Estado, o que leva a considerar que não possa ser parte. Mas atente-se, em vista do exposto, que tal não impede que entre o MºPº e o arguido se desenvolva um processo plenamente contraditório, tendo interesses diversos (se não contrapostos) 40, e visando objectivos distintos. Por fim não pode deixar de se considerar que o MºPº, no cumprimento da lei, não pode proceder sem estar convencido da responsabilidade penal do arguido. Se o fizesse estaria a violar, ele próprio, a lei. Então se está convencido de tal responsabilidade penal, pede ao julgador a aplicação de uma determinada sanção criminal. Ora, quer seja o arguido efectivamente responsável quer não, sempre haverá diferença entre os interesses do MºPº e os do arguido, sempre haverá contraposição de posturas, sempre se visarão objectivos diversos. E como até ao fim do processo não há certeza de qual das "versões" é a verdadeira, a controvérsia mantém-se, e os dois polos do processo continuarão a procurar realizar os seus propósitos: seja a justiça da condenação, para o MºPº, seja a justiça da absolvição, para o arguido. Porém, a eventual descoberta por parte do MºPº de que o arguido não é responsável, leva-o a por exemplo a promover o arquivamento dos autos, o que não significa que no processo não tivesse posição de parte, mas antes que no exercício das suas funções não pode desrespeitar a lei. A consideração do MºPº e do Arguido como partes não briga com a estrutura nem com os princípios informadores do processo penal 41, tendo a vantagem de potenciar uma efectiva 40

A Corte Costituzionale Italiana pelo Ac. nº 53 de 3 de Junho de 1966 (Giur.Cost., 1966, p. 896) assumiu aliás claramente que o MºPº e o Arguido são normalmente portadores de interesses contrapostos no processo. 41 Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, 5ª Ed., 1991, p. 769, escreve: "Outro importante princípio em matéria de exercício da função jurisdicional é o chamado princípio da revisão ou reapreciação total ou parcial dos actos jurisdicionais por parte de outros juízes. Este princípio impõe, em alguns casos, uma verdadeira 'revisão de sentenças' (cf. o artigo 29º, nº 6, em matéria criminal) e, de uma forma geral, a possibilidade de recurso para tribunais superiores (cf. o artigo 215º). Precisamente por isto, defendem alguns autores a dignidade constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, segundo o qual uma causa deve ser reapreciada (em qualquer dos seus aspectos) por um juiz de 2ª instância, quando seja interposto recurso da decisão do juiz de 1ª

compreensão e alargamento do contraditório, assegurando a democraticidade do processo e da administração da justiça, e permitindo uma verdadeira parificação de armas usadas por ambos. Daí que não me repugne falar em processo de partes. Porém, e mercê das considerações que seguem, julgo que se pode ao menos falar do processo penal como um processo com estrutura partificada42/43. II - O papel do Julgador na "partificação" do processo penal Cabe analisar o papel do julgador. No processo penal este não nos surge como um terceiro imparcial, livre quanto ao direito, mas passivo no que concerne aos factos, sua descoberta e comprovação. Foi a própria Lei de autorização legislativa nº 43/86 no seu artigo 2º nº 4 que o estipulou. O juíz tem poderes de investigação, uma vez que não deve decidir satisfazendo-se com as versões apresentadas pelo arguido e pela acusação, mas sim recorrendo à sua própria investigação para descobrir isso a que se chama em processo penal de verdade material. Tal como ao Ministério Público cabe-lhe um dever de intervenção estritamente objectiva, em virtude da sua própria qualidade de órgão ou agente do Estado. Tem o poder, pois, de intervir na própria factualidade, investigá-la, trazendo ao conhecimento do Tribunal todos os dados necessários a uma justa decisão, e não ficar passivo, como é imperioso para o julgador civil. Logo, por aqui não temos um verdadeiro processo de partes no entendimento rigorosamente definido pela doutrina processualística cível, pois faltaria o terceiro vértice do triângulo processual, ou seja o terceiro passivo que fiscalizaria o "duelo" desempenhado pelas partes em conflito44. Daí que não tenha nunca afirmado que o processo penal é um processo de partes, não fosse confundir-se a posição que defendo com qualquer decalque feito sobre tal conceito do processo civil para o processo penal. O que existe sim, é uma partificação do processo, um duelo entre partes, mas em que o vértice julgador não é passivo. Mas já quanto às demais características do julgador todas elas se mantêm, a saber: a independência; a imparcialidade; a estrita objectividade, etc... instância. O princípio, em toda a sua latitude, não está expressamente constitucionalizado, embora se aponte para uma tendencial generalidade de controlo dos actos jurisdicionais, quer assegurando às partes os meios de impugnação adequados, quer impondo ao Ministério Público o dever de recorrer ex officio de certos actos judiciais. Repare-se que não repugna ler o texto como aplicável também ao MºPº, o qual para poder recorrer, o que às vezes fará por imperativo legal, beneficiará da motivação a que o autor se refere. 42 Só para que não haja confusão com o significado dado a processo de partes pela processualística civil. 43 Será curioso salientar que na Jurisprudência do TC utilizada como base deste relatório, sempre que se fala em dever de fundamentação ou em direito de impugnação, se fala em "partes" e não em "parte", o que bem demonstra a íntima convicção de que há 2 polos em confronto. Julgo que não faria sentido usar o plural, se só o Arguido fosse parte. Assim por exemplo os Acórdãos nºs 132/92 265/94 do TC. 44 Knut Amelung, Constitution et procès pénal en Allemagne, in Rev.Sc.Crim., nº 3, Juillet-Septembre 1994, pp. 459 e ss, considera como "partes" no processo penal: o arguido, o defensor e a testemunha.

Não se usa pois a expressão processo de partes para se evitar qualquer violação ao rigor conceptual, que no Direito é imperioso. Mas tal consideração não deverá fazer esquecer, como atrás procurei demonstrar, que entre acusação e defesa há um verdadeiro duelo, há uma, pelo menos geral e abstracta, contraposição de interesses, que se não pode camuflar atrás de artificiosas construções sobre deveres funcionais e obrigações legais do Ministério Público. Em resumo, só não há rigorosamente um processo de partes mercê da actividade oficiosa do julgador, pois no que à posição do Ministério Público em face do Arguido concerne, nada distingue45 estes sujeitos de verdadeiras partes, com interesses próprios, divergentes ou pelo menos não inteiramente coincidentes. Como atrás disse, uma visão "partificada" do processo penal permitirá uma melhor compreensão do princípio do Contraditório, o qual está consagrado no artigo 32º nº 5 da CRP. Há quem lhe chame princípio da isonomia processual, ou de igualdade de oportunidades 46. Quer-se com isto significar que o processo deve estar estruturado em moldes que permitam que quer a acusação quer a defesa tenham possibilidades semelhantes de intervir no processo e de perante o Tribunal comprovarem a bondade ou veracidade das suas versões factuais e construções jurídicas. Como é fácil de adivinhar, este é um princípio que só tendencialmente se pode considerar respeitado. É que é difícil num sistema como o nosso traduzir na prática uma paridade de poderes de investigação que nem sequer legalmente é permitido. Logo de início é proibida a investigação privada, ao contrário de grande parte dos outros países; além disso, mesmo que a investigação privada fosse possível, sempre teria o MºPº do seu lado toda a máquina policial e aparelhos de coacção que lhe permitem facilmente intrometer-se na vida privada de quem quer, não existindo vias para que o arguido actue nesse sentido. Repare-se que o particular, seja arguido ou acusador, não pode na verdade investigar, pelo que por essa via a paridade de armas fica desde logo prejudicada. Também só tendencial e formalmente existe a paridade de armas nas fases jurisdicionais e nos incidentes que tenham esse carácter. Todavia, tal posição de necessária isonomia, sendo decorrência dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da CRP, deve ser por todas as vias possíveis potenciada. Em jeito de conclusão pode pois dizer-se que se bem que num plano de rigor conceptual o Processo Penal não seja um "processo de partes", é todavia um processo partificado, em que "há partes" em conflito47. E se assim julgo ser de entender teoricamente, já no plano 45

A não ser a obrigatória e excrupulosa legalidade da actuação do MºPº enquanto integrador do aparelho Estatal. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo, Lisboa, 1994. 47 Penso que assim se iria um passo mais longe do que quando se afirma de modo algo enigmático que existe uma "tensão dialéctica". 46

concreto tal partidarização do processo ocorre indesmentivelmente 48.

48 E o que é gravoso é que com habitualidade toda a máquina penal, quer administrativa quer judicial, se posiciona

no campo oposto ao do arguido, numa ânsia pela cega punição, com o desespero de "mostrar obra feita", talvez procurando nos casos detectados expiar os pecados das insuficiências reais no controlo da restante criminalidade.

§2.

DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO DO RELATÓRIO; JUSTIFICAÇÃO DA RELEVÂNCIA CIENTÍFICA DO TEMA; A EXPRESSÃO "DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO".

A.

A Delimitação do âmbito do Relatório e a sua relevância científica. I - As indagações deste relatório podem parecer numa primeira abordagem algo re-

dundantes. É que a relevância constitucional do Direito ao Recurso mais não é do que uma indagação sobre a vigência no nosso ordenamento jurídico de um princípio de duplo grau de jurisdição, e este tema parece estar já cristalizado profundamente nas reflexões da doutrina e nos pressupostos da jurisprudência dos ordenamentos jurídicos de raíz RomanoGermânica. Uma das orientações a que se acedeu ao longo da investigação vai no sentido de que o princípio do duplo grau de jurisdição é muitas vezes considerado estranho ao sistema de garantias processuais descrito nas Constituições. É assim por exemplo em Itália, onde se entende maioritariamente que este princípio não está coberto pela garantia constitucional. Todavia acaba por se aceitar que esta regra existe tradicionalmente na estrutura do processo jurisdicional, com poucas excepções, mas contudo não é uma exigência Constitucional. Ou seja: não é que se não reconheça que tal princípio do duplo grau de jurisdição tenha protecção através da legislação processual. Tem-na com efeito. E parece mesmo que a este instrumento está o legislador vinculado, como se de um instituto irrenunciável no esquema das garantias e da esturação do juízo se tratasse. Porém, em Itália entende-se que não goza tal princípio de protecção constitucional. Mas é precisamente a afeição tradicional dos legisladores ordinários a este princípio, que assim estruturam em regra os regimes de recursos, e as experiências anteriores conhecidas, que levam a por a dúvida sobre se é este um simples instrumento técnico que permite um mais eficaz funcionamento da máquina processual, ou antes um verdadeiro e próprio valor, um "orientamento di fondo presente nel patrimonio etico-politico e nella cultura di una determinata società " 49. Se esta última fôr a afirmação verdadeira, temos então descoberto um princípio dominante na colectividade, sobre o qual se deverá modelar qualquer disciplina processual, independentemente das ideologias e políticas subjacentes à concreta e mutável disciplina, ao longo do devir histórico. Se estas razões não bastassem para justificar o relatório outra surgia: a constante invocação de inconstitucionalidade de decisões de mérito em sede de recurso, com a normal 49 A.A.Cervati, Le garanzie costituzionali nel pensiero di Costantino Mortati,

, a cura di M.Galizia e P.Grossi, Milano, 1990, pág. 451.

in Il pensiero di Costantino Mortati

invocação de um duplo grau de juízo, qual expressão do direito de defesa constitucionalmente garantido, com invocação do Artº 32º, nº 1 da CRP 50. Acresce por fim a disparidade de tratamento entre entendimentos que reconhecem o direito a esse duplo grau de jurisdição e construções afins que o excluem... A mesma conclusão se retira da jurisprudência do TC, que apesar de em alguns arestos acabar por dar escasso relevo constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição51, noutros o consagra latamente 52. Por outro lado parece noutros casos chegar o TC a resultados parcialmente contraditórios na área de confluência do processo penal com o domínio do processo administrativo. Mas sobretudo, parece ter, por vezes, o TC confundido o tema de fundo à volta do qual gira o problema da eventual relevância constitucional: o tema da recondutibilidade deste princípio às garantias de um "processo justo" 53; preocupando-se antes com situações contingentes de realizabilidade ou não de uma reforma nos procedimentos e equipamentos técnicos dos Tribunais54. A ausência de uma directa e específica relação literal entre a norma do 32º, nº 1 e o princípio do duplo grau, fez com que este tema permanecesse substancialmente afastado da reconstrução daquela dimensão constitucional do processo que caractrizou a obra de "concretização" do Artº 32º da Constituição por parte do TC. Diga-se abertamente: o TC ao afrontar este problema, preocupou-se essencialmente com as consequências que o reconhecimento de tal princípio causaria sobre o processo e sobre as estruturas orgânicas ou patrimoniais do Ministério da Justiça 55. É que mercê de tais considerações pode muito bem ter-se sacrificado o esclarecimento deste concreto Direito de Defesa, isto sim que seria útil para definir o modelo constitucional do processo. Não pode porém deixar de se referir que um dos Projectos de Revisão Constitucional 50

E se argumentos de autoridade fossem necessários sempre se poderia citar Cunha Rodrigues, que ao se referir ao regime de recursos no novo CPP afirma que o livro dos Recursos "...se trata, porventura, da parte do Código mais sujeita a polémica e exposta a contingências extra-jurídicas ", Recursos, in Jornadas de Processo Penal O novo código de processo penal , Almedina, Coimbra, 1992, p. 384. 51 Cfr. entre outros o Ac. nº 61/88 do TC, não tanto pelo que afirma explicitamente, mas mais pelo que tem subjacente. 52 Cfr. entre outros o Ac. nº 401/94 do TC. 53 Alguma doutrina Italiana diz que o direito ao duplo grau de jurisdição está compreendido no direito de "defesa em todo o estado e grau do procedimento" solenemente sancionado no 24º, 2 da Constituição Italiana. 54 Falava o TC no Ac. nº 61/88 e 124/90, entre outros, em razões de "praticabilidade", que adiante serão objecto de comentário cuidado. 55 Ser ou não suportável a audição ou leitura da prova no tribunal de recurso se ela tivesse sido documentada; impossibilidade de prover meios estenográficos e estenotípicos aos Tribunais para que haja documentação da prova; não ser possível repetir a produção de prova no tribunal superior por tal fazer com que "a prova se perdesse como prova" com o concomitante esquecimento de que há já meios audio-visuais que permitiriam que não se perdesse a imediação da prova; esquecimento também, por exemplo, de que nos tribunais americanos, mesmo no Grand Juri , há recolha estenotípica de toda a produção de prova, e que os juízes americanos do tribunal ad quem "suportam" a leitura integral em sede de recurso; etc, etc...

apresentado em 1994 na Assembleia da República fazia consagrar, precisamente no artigo 32º, nº 1 da Constituição, o Direito ao Recurso, nos seguintes moldes: O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o direito de recurso de sentença condenatória 56.

Assim, algumas pacíficas conclusões pela irrelevância constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição devem-se pelos vistos à escassa elaboração do tema por parte da doutrina e por parte da jurisprudência, quer constitucional, quer processual. Por razões diversas foi o problema considerado como marginal, uma questão menor de fronteira entre direito constitucional e direito processual penal, com escassa importância para qualificar ou integrar o sistema das garantias processuais na Constituição. Sistema de garantias este, que além de por vezes utilizar formas demasiado lacónicas de expressão, fica naturalmente com os limites condicionados pelas posições tomadas pelo TC 57. II - Mas o escasso aprofundamento desta questão pode surgir ainda como reflexo de alguns entendimentos, comuns, sobre a relação existente entre constituição e processo. Ou seja: na focalização desta questão reflectem-se certas concepções de desconsideração do relacionamento entre direito constitucional e direito processual. Vezzio Crisafulli58 pôs em evidência a necessidade de um estudo constitucionalístico de processo já na reforma do CPC Italiano de 1942. Baseava-se este autor na estreita correlação que existe entre sistema político e estrutura do processo. Crisafulli recordava então o esquecimento a que se havia votado a relação e interferência entre esses dois ramos de direito, em que a discusão se havia limitado à questão da substituição do princípio dispositivo pelo princípio inquisitório. "De todo faltava qualquer esclarecimento sobre a relevância constitucional de certos aspectos processuais, estando longe do interesse dos estudiosos a influência directa que os princípios e institutos constitucionais exercem sobre os seus homólogos processuais ". A relação entre estudos processuais e constitucionais encontrou resposta ampla nos 56 Projecto de Revisão Constitucional nº 1/VI, apresentado pelo Partido Socialista,

in Separata nº 24/VI do Diário da Assembleia da República, de 7 de Novembro de 1994, pp. 3 e ss. Neste projecto pode ler-se na exposição de motivos o seguinte: "8- Alterações propostas pelo PS com o objectivo de reforçar a garanti de direitos já constantes da Constituição e consagrar novos direitos dos Cidadãos.- Visa-se designadamente (...) explicitar que entre as garantias asseguradas pelo processo penal está também o direito de recurso de sentença condenatória (artigo 32º, nº1) ". Curioso também o facto de o preceito deixar de estar formulado no futuro (assegurará) para passar a estar formulado no presente do indicativo (assegura). 57 É curioso notar por exemplo que em Itália, em que apesar de tudo a apelação é o modelo base da estrutura do duplo grau, se acaba por criticar tal sistema, alegando-se que dessa forma se desvaloriza o juízo de 1º grau, havendo consequentemente imputações de falta idoneidade do sistema para realizar um só grau de juízo, que pelos vistos seria "desejável" . Parece ser esta também a linha de pensamento de Cunha Rodrigues, op.cit., quando louva a superior garantia adveniente da colegialidade do T.Colectivo de primeira instância. 58 Vezzio Crisafulli, Profili costituzionali del diritto processuale, in Stato e Diritto , 1941, pp. 41 e ss.

estudos de Piero Calamandrei 59, mas em sentido quase oposto à perspectiva em que se havia posto Crisafulli. Mercê da sua proveniência processualística, o objectivo era voltar o direito processual para o direito constitucional encontrando os nexos e analogia entre ordenamento democrático e interpretação/aplicação da norma processual. Calamandrei defende 60 uma dimensão constitucional do processo 61. Mas mesmo na obra em que Calamandrei havia dedicado atenção ao sistema das impugnações, o problema da articulação do processo em vários graus de juízo ficará substancialmente alheio à conexão com os novos princípios constitucionais. Mas esta aparente indiferença da doutrina sobre a questão não significa falta de interesse da questão do recurso (de mérito) nos processos jurisdicionais. É que mesmo para quem não aborde a questão na perspectiva agora adoptada, a realização de tal princípio de duplo grau de jurisdição constitui um reflexo do adequamento da estrutura processual aos princípios constitucionais. O duplo grau aparece como ideia radicada na organização do processo, na qual as legislações futuras naturalmente se inspiram 62.

É assim que

Calamandrei entende a questão dos meios de impugnação, sublinhando o facto de a regulamentação do recurso de apelação, nunca posta em dúvida nos sucessivos projectos legislativos de reforma do processo civil, ter uma longa vigência futura, mercê da sua já consolidada função equilibradora do sistema processual. Outra questão interessantíssima neste domínio é a da relação entre a obrigação constitucional de motivação das decisões jurisdicionais e o Direito ao Recurso63. A motivação obrigatória das decisões jurisdicionais foi pelo mesmo Calamandrei vista como "il segno più importante e tipico della 'razionalizzazione' della funzione giurisdizionale " 64. São questões que merecem tratamento paralelo mercê da constatação de que, onde não se prescreve a primeira, a segunda não é sequer de admitir 65. Por fim outra consideração: os mecanismos impugnatórios são necessária consequência dos princípios democráticos informadores do sistema jurídico e do Estado de Direito.

59 Piero Calamandrei, La dialettica del processo, in Processo e democrazia , in Opere giuridiche , I, Napoli, 1965,

p. 681, citado por G.Serges, op.cit., p. 6, nota 8. 60 Giovanni Serges, Il principio del "doppio grado di giurisdizione" nel sistema costituzionale Italiano, Giuffrè, Milano, 1993, p.5. 61 Eu julgaria mais acertado, por uma questão de hierarquia entre fontes de direito, falar em "dimensão processual da Constituição". 62 Assim Calamandrei, Appello civile, in Opere Giuridiche , Vol VIII, Napoli, 1979, p. 443. 63 Questão a que voltarei adiante. 64 Calamandrei, La crisi della motivazione, in Processo e democrazia , in Opere giuridiche , Vol I, Napoli, 1965, p.681. 65 Sabe-se contudo que este entendimento não é homogeneamente aceite pelo Tribunal Constitucional, como teremos oportunidade adiante de explicitar.

Também Liebman sublinhou a indispensável ponderação das relações entre direito constitucional e direito processual, afirmando que o estudo do processo adquire o seu autêntico significado e "se enriquece de motivos importantes quando entendido como o estudo do indispensável aparato de garantias e de modalidades do seu exercício, estabelecido para defesa dos fundamentais direitos do homem " 66. Assim que se considere que os institutos processuais devam ser entendidos não na estreita perspectiva do processo, mas numa consideração global e unitária de todo o ordenamento. Assim também que se deva interpretar o direito processual à luz dos princípios constitucionais. Mais não é o que faz o TC, concretizando os princípios do justo processo... assim bem se demonstram os nexos entre disciplina do processo e valores constitucionais 67. O próprio Liebman, em 1979, orientou-se no sentido de reconhecer uma protecção constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição, reconsiderando unitariamente as disposições constitucionais, elas próprias interpretadas à luz das garantias internacionais de um processo justo68. Com tais considerações acabou por influenciar a própria jurisprudência do Tribunal Constitucional Italiano. Não pode porém deixar de se reconhecer que a posição da doutrina, maxime da processual-civilística, é a de relativa indiferença aos reflexos do direito constitucional nos concretos institutos e conceitos processuais. O reconhecimento geral da influência não vai ao ponto de aceitar influências concretas de tais princípios constitucionais nas ditas "garantias processuais"... e tal alheamento da doutrina potencia e é potenciada por um rígido dogmatismo da jurisprudência no que a este tema concerne 69. Posição bem ilustrativa deste posicionamento é, em Itália, a de Provinciali, que não se coibiu de abrir uma frontal polémica com os paladinos da perspectivação constitucionalística dos estudos processuais, de índole cível e criminal. Afirmava este autor que não se podia por a questão em termos de interferência entre os dois ramos de direito público, constitucional e processual... Provinciali afirmou mesmo que as normas têm natureza íntima própria, e pertencem a um ou outro desses ramos do direito, mantendo a individualidade e autonomia, mesmo face àqueles princípios consagrados na constituição 70. A questão punhase mais ou menos nos seguintes termos: a existência de normas de direito processual era 66

Liebman, Diritto costituzionale e processo civile, in Rivista Dir. Proc., 1952, p.327 e ss. Este mesmo autor apresentou um estudo bem demonstrativo dos nexos entre direito processual e constituição, sobre o título Il giudizio d'appello e la Costituzione, in Riv.Dir.Proc., 1980, p.401 e ss. 67 Cfr. supra § 5. 68 Liebman , Garanzie internazionali dell'equo' processo civile, in Riv.Dir.Proc. , 1979, p. 329 e ss. 69 Não é por acaso que a Jurisprudência Portuguesa era uniforme em afirmar que a fundamentação da resposta aos quesitos em processo penal não era obrigatória ou era até proibida durante a vigência do CPP/29, mesmo depois de toda a doutrina autorizada afirmar que com a entrada em vigor do CPC/61 se devia ter por obrigatória tal fundamentação.Assim, e por todos, cfr. Acórdãos do TC nºs 61/88 e 207/88. 70 Provinciali, Le norme di diritto processuale nella Costituzione, Milano, 1954.

considerada de carácter tão fundamental, que elas deviam ser vistas como imediata e necessariamente recebidas na estrutura constitucional do Estado. Sendo o processo um facto histórico e jurídico a se , ele não sofre qualquer influência daquilo que mutavelmente se estabelece no plano político-constitucional. Daí que os princípios que regulam o processo "non sono una invenzione del costituente ", limitando-se este "a repertarli, rivestendoli della forma costituzionale ed aggiungendovi la forza peculiare relativa " 71. Com esta postura era impossível não só tentar verificar a potencialidade ínsita nas normas constitucionais sobre garantias jurisdicionais, mas também analisar diversidades nas disposições legais que permitisse explicar uma qualquer influência no modo de entender os princípios e institutos do processo. Não se conseguiria, por exemplo, conectar a obrigação de motivação das sentenças e acórdãos com a afirmação de um controle democrático da administração da justiça, nem com o reconhecimento de uma eficaz e plena intervenção na decisão do juiz decidente pelo juiz de recurso. Tal obrigatoriedade de fundamentação, em vez de princípio ou valor primeiro do ordenamento, não ultrapassava a função de declaração expressa de opções do legislador antes enumeradas em diversas disposições. A posição de Provinciali exclui também a possibiliddae de atribuir às normas constitucionais o papel de princípios-guia de um sistema de garantias processuais dos cidadãos, sujeito à interpretação e integração por parte do legislador e dos aplicadores do Direito, maxime do TC. O papel dos princípios e garantias processuais elaboradas pelo Constituinte mais não era do que a reprodução Constitucional das normas de direito processual historicamente desenhadas. Este modo de encarar os problemas é em grande parte responsável pela "desertificação" que se viveu durante décadas na fronteira entre direito constitucional e direito processual, especialmente, e no que nos interessa, direito processual penal. Esqueceu-se amiúde a influência dos valores constitucionais na estrutura processual. A reconstrução sistemática dos institutos via-se assim privada do confronto com as potencialidades inovadoras dos princípios constitucionais, que a custo tinham ao longo dos séculos vindo a ser forçadamente "extorquidas" aos poderes. Não deixe porém de se dizer que tal perspectiva se justifica em grande parte pelo enquadramento histórico em que Provinciali escreveu. Porém, quase meio século volvido, diversa terá de ser a postura do investigador. Dificilmente hoje se encontraria uma posição tão peremptória em sentido negativo

71

Provinciali, op.cit., pp. 38 e 39.

como a de Provinciali nesse "longínquo" ano de 1954. Porém, não se mantendo tal posicionamento tão abertamente contrário às necessárias influências entre Constituição e Processo, não se vê com frequência na doutrina e na jurisprudência ordinária a concretização das posições opostas. Tudo o que se expôs justifica que o tema do direito ao recurso das decisões jurisdicionais não tenha interessado os processualistas, e que a custo se vislumbrassem relações entre tal "direito" e "garantias constitucionais do processo". Tal princípio, recebido como "mercê" dada pelo Poder aos cidadãos, ficava-se com essa angustiosa perspectiva intra-processual. A perspectivação constitucional de tais questões não parecia sequer poder hipotetizar-se. Mas tal "atrito" da doutrina às emanações constitucionais de garantias processuais não era exclusiva dos processualistas. Também a doutrina Constitucionalista se interessou, durante anos, bem pouco por tais questões. Reconhecia esta o papel garantístico do duplo grau de jurisdição, mas só recentemente se questionou da relevância constitucional desse direito ao recurso e do concomitante interesse de tal relevância. Os constitucionalistas do final do século XIX e início do século XX ou de todo se abstinham de referir tal questão, ou então viam-na como "garantia jurisdicional", meramente reflectida a nível ordinário 72. Ainda no final da década de setenta do nosso século, surge um trabalho de Pizzorusso em que se "trazem à luz" os eventuais riscos de violação da independência interna da magistratura mercê do re-exame que possa ser efectuado por um juiz superior, sendo trabalho importante, no dizer de Giovanni Serges por trazer apontamento das primeiras conclusões da Jurisprudência Constitucional 73. Pena é que a maior parte da doutrina assuma uma posição acrítica face às posições do juiz constitucional. Porém o labor do TC acaba por potenciar necessariamente uma recolocação do problema, sugerindo aos investigadores uma consideração mais atenta da questão do inter-relacionamento entre garantias constitucionais e regimes processuais. Julgo que a relevância constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição deve ser investigada de molde a ponderar todos os múltiplos aspectos da questão, reconstruindose o problema desde a sua base, numa perspectiva unitária e não fragmentária. Ponderemse as decisões jurisprudenciais não só do TC mas dos tribunais em geral, confrontem-se com os entendimentos doutrinais sobre a matéria, e, tudo sintetizado, edifique-se a construção 72

A.Brunialti, Il diritto costituzionale e la politica, Torino, 1896, p. 385, citado por Giovanni Serges, Il principio del "doppio grado di giurisdizione" nel sistema costituzionale Italiano, Giuffrè, Milano, 1993, p.11, nota 20. 73 A. Pizzorusso, Doppio grado di giurisdizione e principi costituzionali, in Riv. Dir. Proc., 1978, pp.33 e ss, citado por G.Serges, op.cit., p. 11.

final, sempre tendo em vista os valores subjacentes às concretas tutelas instituídas, e, acima de tudo, buscando a máxima realização do dever ser. Retirar este problema da estreita dimensão a que tem estado reduzido, significa antes de mais desenvolver uma investigação sobre a incidência dos valores constitucionais no sistema processual, em direcção àquilo que Andolina e Vignera chamaram de "jurisdicionalidade constitucionalmente derivada" 74 do processo, construída na perspectiva do dever ser de todos os processos face à Constituição. Acresce que a fragmentaridade da juriprudência constitucional sobre o tema, e a sua frequente contraditoriedade, oferece pistas de reflexão de muita valia, a que até hoje pouca importância se tem reconhecido. Em Itália tem-se posto em questão os contornos da relação entre duplo grau e garantia constitucional do recurso de cassação, bem como se tem discutido o papel da norma contida no Pacto Interncacional sobre Direitos Civis e Políticos, o que demonstra bem que a investigação pode virar-se para a exploração de contornos que têm sido até hoje completamente estranhos à temática em questão 75. Porém, novos contornos e valências deste tema surgem é na perspectiva da sistematização dogmática dos dados normativos e no seu confronto com o complexo entendimento do TC em matéria de garantias jurisdicionais. Afirma G.Serges: "è sufficiente, su questo punto, richiamare talune recenti conclusioni, proprio nella materia del sistema delle impugnazioni, con l'opera di di istituti presenti nella legislazione ordinaria, per comprendere come la giurisprudenza costituzionale offra chiavi di lettura delle garanzie processuali diverse da quelle tradizionali, e sicuramente più avanzate di quelle che hanno caratterizzato il costante ... indirizzo giurisprudenziale in materia di doppio grado " 76. Uma tal investigação encontra a sua primeira motivação na exigência de definição de mais precisos contorno para as "técnicas de garantia" que constituem, em simultâneo, expressão da função jurisdicional 77 e instrumento de realização dos valores constitucionais no processo, e como se insere no mais amplo problema das garantias constitucionais. De relembrar é que a jurisdição representa o mecanismo mais aperfeiçoado de protecção das garantias constitucionais 78. III - Não despiciendo também é abordar a questão numa perspectiva histórica pois só 74

I.Andolina e G. Vignera, Il modello costituzionale del processo civile italiano, Torino, 1990, pp. 11 e ss. Giovanni Serges, op.cit., p. 12. 76 Giovanni Serges, Idem, p. 13. 77 O problema da garantia dos direitos é um problema de técnica, não limitado a um particular sector do ordenamento ou a particulares orgãos, e a utilização de tais técnicas, se bem que constitucionalmente imposta, realiza-se mais facilmente na efectivação da função jurisdicional. É o que observa A. Pace, in Problematica delle libertà costituzionali , Padova, 1984, p. 69. 78 A.A.Cervati, Le garanzie costituzionali nel pensiero di Costantino Mortati, in Il pensiero di Costantino Mortati , a cura di M.Galizia e P.Grossi, Milano, 1990, pp. 462 e ss. 75

em devir se compreende a evolução dos sistemas e dos princípios, e nos apercebemos do significado que assumiram ao longo dos tempos. Por fim não se deve excluír a perspectiva jus-comparatística, observando considerações que sobre o tema se vão expendendo nos sistemas próximos do nosso, como o Espanhol, o Francês, o Italiano e o Alemão. Por vezes, e a título meramente ilustrativo, se fará uma rápida alusão a princípios Anglo-saxónicos, sistema este com tão longa tradição na afirmação das garantias individuais 79. Aliás, a importância de visões comparatísticas é particularmente sentida nesta matéria dos recursos, uma vez que na maioria dos sistemas referidos se encontram disposições garantísticas a nível do exercício do poder judicial, e que são sistemas cujos ordenamentos processuais são modelados sob as linhas gerais do duplo grau de jurisdição.

79

Será desde já curioso observar que enquanto nos sistemas Europeus Continentais só no final do Século XVIII se tomou consciência desses mesmos direitos individuais dos cidadãos, na Inglaterra já no dealbar do Século XVII se faziam declarações de direitos de tanto relevo como a Magna Charta, outorgada por João Sem Terra. Porém, não menos importante será de referir que nos sistemas de common law a ideia de duplo grau de jurisdição é algo estranha, uma vez que estando os tribunais vinculados à regra do precedente, a impugnação (leia-se: recurso) reveste carácter excepcional, tendo essencialmente por fim o assegurar a correcta aplicação do direito!

B.

A Expressão "Duplo Grau de Jurisdição". Tal expressão resultou historicamente de uma elaboração conceptual da doutrina

processualística civil, que encontrou de modo mais ou menos coerente afirmações normativas positivas onde se realizava a tramitação do recurso de apelação 80. Abstratactamente "duplo grau de juízo" significa que qualquer controversia sujeita ao exame de um juiz pode, sucessivamente, ser inteiramente avaliada por um outro juiz, cuja decisão se destina a prevalecer sobre a primeira. Mas desde já é de sublinhar que quer a elaboração doutrinal, quer a disciplina normativa que modelaram o processo sob o esquema estrutural de um duplo exame da questão, não acolheram nunca integralmente o abstracto conceito de duplo grau, antes acolhendo um entendimento segundo o qual "o sistema" se pode bem contentar não com um duplo grau "real" mas com uma mera "aparência" de duplo grau completo de juizo 81. Num plano lógico evidente se torna que a realização do "duplo grau de jurisdição" devia de facto comportar uma intergral renovação do juízo efectuado por um juiz por outro juiz diverso, de modo, pois, a que se efectuasse um duplo juízo. Ao segundo juiz devia pois ser oferecido o mesmo "material" que havia sido entregue ao primeiro, apenas se acrescentando como dado à nova ponderação a decisão do primeiro julgador. Ou seja, o juiz de reapreciação era chamado a verificar e, eventualmente, a reformar, a decisão anterior, tendo por base os mesmos elementos processuais de que o primeiro se havia servido. Exprimindo ainda uma exigência lógica da articulação processual em dois graus, surge um segundo aspecto deste princípio, que é aquele de impor ao legislador que se conforme com ele, de disciplinar o dito instrumento necessário à actuação de duas linhas orientadoras 82, a saber: a) o duplo grau implica não só que a decisão do segundo juiz prevaleça sobre a do primeiro, mas que esta última seja dotada de uma certa estabilidade, de molde a que não seja turbada por um novo juízo de grau ainda superior. Ou seja, o duplo grau exclui que haja um terceiro grau com a mesma função. Ele pode surgir mas sempre e só com termos e finalidade diversas dos dois graus anteriores 83. 80

Sobre esta noção é útil a consulta de E. Ricci, Doppio grado di giurisdizione, (principio del), in Encic.Giur., vol XII, Roma, 1990; idem, Il doppio grado di giurisdizione nel processo civile, in Riv.Dir.Proc., 1978, pp. 68 e ss; Serges cita ainda M.Bellavitis, Sui limiti del concetto di doppio grado di giurisdizione, in Riv.Dir.Proc., 1931, II, pp. 3 e ss. 81 Assim G. Chiovenda, Principii di diritto processuale civile, Napoli, 1928, p. 980, citado por Giovanni Serges, op.cit., p. 14, n. 25. 82 Ricci, op.cit., fala em componente positiva e negativa do modelo em questão. 83 Assim o sistema de recursos cíveis no direito processual civil português.

b) implica ainda tal princípio que a lei processual preveja os instrumentos específicos para consentir a devolução da causa no seu todo ao juiz de segundo grau, que permita pois aos sujeitos vencidos no primeiro round

a possibilidade efectiva de obter a remoção da

decisão que lhes fora desfavorável, oferecendo ao segundo juiz os mesmos elementos oferecidos antes ao juiz de primeira instância. Sendo estes os contornos lógica e necessariamente implicados pela regra do duplo grau de jurisdição abstractamente considerada, deve porém reconhecer-se que a aplicação de tal regra teve na prática alguns desvios. Isto porque tal aplicação encontra na realidade instrumentos que nem sempre, ou não necessariamente, consentem ou prevêem uma completa duplicação de juízos, porque contrários a uma dupla apreciação da relação controvertida por dois juízes diversos. O modelo abstracto do duplo grau entra logo em crise no que concerne à possibilidade de as partes formularem novas questões ou excepções directamente ao juiz de 2º grau, pois que quanto a estas será ele, em grau único de apreciação, a decidi-las! O juiz de segundo grau é a primeira e a última instância para tais questões, sendo impossível novo grau de juízo. Igualmente se encontra um "rombo" no modelo abstracto no que respeita ao pedido das partes de que o juiz de recurso avalie uma omissão na conduta do juiz de primeira instância. Sobre tal omissão a posição do juiz de segundo grau será sempre uma primeira avaliação, e insusceptível de reapreciação. Ao rigor lógico da absracta configuração do modelo, contrapõe-se, no plano histórico, a sua concreta realização no direito positivo -sistemas de civil law em especial- nos quais a introdução do princípio se manifesta por consequência da sua afirmação nos textos fundamentais do período revolucionário Francês, segundo esquemas que revelam mais ou menos idoneidade para realizar na íntegra o princípio do duplo grau de jurisdição. Pode pois conclusivamente constatar-se que, em todos os sistemas em que se acolhe o princípio do duplo grau de jurisdição, e em que este anima as estruturas processuais, ele se manifesta em primeiro lugar na tendência a estender o mais possivel a aplicação do esquema do duplo grau, circunscrevendo a poucas e escassamente significativas as excepções as hipóteses de impugnabilidade junto do juiz de segundo grau; mas sobretudo, emergem na disciplina concreta mecanismos visando, ora a preferir um exame completo da controvérsia em primeiro grau, ora a admitir a introdução de novas provas e novas excepções no juízo de segundo grau, ora a admitir a intervenção de terceiros estranhos ao juízo em primeira instância, permitindo até por vezes que o juíz de recurso reenvie ao primeiro juiz a causa, face a questões que careceriam de solução da parte deste último.

Assim se esclarecem dois aspectos de grande relevo na individualização dos elementos que caracterizam a problemática em questão: - a individualização de um modelo histórico de duplo grau, que se destaca do modelo abstracto e que se concretiza no adequamento do princípio aos diversos modos em que os ordenamentos concretos forjam o sistema processual (e também a impugnação); - a constatação de que, uma vez acolhido o princípio, cada ordenamento tende a estender a aplicação do mesmo o mais possível, limitando as "limitações" ao mesmo, transformando-o em princípio cardeal do ordenamento processual. Para definir os contornos do conceito de duplo grau de jurisdição pode também recorrer-se a uma definição proveniente da jurisprudência constitucional Italiana, que numa feliz síntese dos entendimentos doutrinais, e numa das primeiras decisões sobre tal questão, recebe o próprio conceito histórico-positivo de duplo grau, recordando como este "não quer ser entendido no sentido de que todas as questões de um processo devam ser decididas por dois juízes de diversos graus, mas no sentido que deve ser dado à possibilidade de submeter tais questões a dois juízes de instâncias diversas, ainda que o primeiro não tivesse de tudo tomado conhecimento " 84. Como E.Allorio pode acrescentar-se como complemento de tal definição, que se o duplo grau pode considerar-se respeitado ainda quando o primeiro juíz não havia decidido todas as questões, analogamente não há necessidade que aquelas questões venham todas repostas e recolocadas ao juiz de segunda instância 85. Parece poder concluir-se que a exigência de fundo que preside a uma concretização do processo desenvolvido através dos dois graus de juízo, seja, não tanto aquela de obter dois juízos diversos que exauram a cognição da questão sub judice , mas antes aquela de conceder às partes a possibilidade de a dois juízes diversos se submeter, total ou parcialmente, a causa.

84

Acórdão da Corte Costituzionale de 31 de Maio de 1965, número 41, in Giurisprudenza Costituzionale , 1965, tomo I, p. 626. 85 E.Allorio, Sul doppio grado del processo civile, in Riv. Dir. Civ. , 1982, p. 336.

§3.

UMA APROXIMAÇÃO SUMÁRIA AO SIGNIFICADO, FUNÇÃO E LIMITES DO ARTIGO 32º Nº 1 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Normalmente se afirma, quando há referências ao Direito de Defesa, que tal direito é

um direito fundamental. Efectivamente assim é. Cabe então ver que direito fundamental é este, dentro das tradicionais classificações elaboradas pela doutrina para sistematizar e compreender os direitos fundamentais em geral. Os direitos fundamentais são titulados sempr por pessoas, mas podem depender de uma consideração individual destas, ou de uma consideração delas numa perspectiva institucional. Isto mercê do simples facto de o Homens terem necessariamente uma individualidade e uma existência integrada num grupo societário. Em qualquer dos casos tais direitos fundamentais inerem à pessoa humana servindo para a protecção, promoção e realização desta; alguns dos valores são intrínsecos à pessoa, outros, porém, só são salvaguardáveis no âmbito das instituições em que se encontram86 . O direito de defesa claramente que é um direito dos Homens individualmente considerados. Os direitos fundamentais podem por outro lado ser comuns ou particulares. Aqueles são direitos universais dos cidadãos, de todos os membros da comunidade política mercê dessa qualidade; estes são direitos próprios de cada cidadão, ou de certos grupos, mercê de qualidades, categorias ou situações em que se integrem. O escopo é sempre a realização da pessoa. Também aqui dúvida não surge: o direito de defesa deve ser visto como um direito fundamental comum. Os Direitos fundamentais são ainda susceptíveis de ser classificados segundo uma partição tradicional entre Direitos do Homem e do Cidadão. Ali temos direitos de "todos" os Homens... mas os Homens não são entes abstractos, são indivíduos concretos, em particulares posições face a um qualquer ente soberano. Há pois direitos que contemplam o homem na sua qualidade absoluta de pessoa e outros que o perspectivam na qualidade relativa de cidadão. O direito de defesa, ao que julgo, deve ser entendido, até pela projecção da sua protecção em textos internacionais, como um direito do Homem em geral, independentemente dos vínculos de cada homem com um particular centro de poder. Jellinek partindo da noção de direito fundamental como direito subjectivo público, delineou uma partição que distinguia sucessivos estatutos jurídico-públicos dos indivíduos. Tinhamos assim: Status libertatis (direitos de liberdade com função de proteger a esfera do indivíduo face ao Estado); status civitatis (os direitos cívicos que traduzem a relação de as-

86

Vieira de Andrade, em Direitos Fundamentais, p. 88, entende, ao invés, que os direitos fundamentais são posições jurídicas subjectivas individuais. Quando muito serão direitos individuais colectivizados.

sistência do Estado face aos súbditos); e status activae civitatis (direitos políticos de participação dos indivíduos) 87. Também aqui o Direito de Defesa integra o primeiro termo da classificação: estamos face a um direito integrador do Status libertatis do Homem88. Com Jorge Miranda poderia dizer-se: "que os direitos pessoais se ligam à autonomia, à liberdade e à segurança da pessoa; que os direitos sociais decorrem da sociabilidade humana e têm em vista objectivos de promoção, de comunicação e de cultura; e que os direitos políticos se ajustam à ideia de participação " 89. Os Direitos fundamentais podem ainda ser vistos como direitos gerais ou como direitos especiais : aqui a distinção funda-se no facto de os direitos fundamentais serem conferidos mercê de situações gerais ou de situações especiais. São claramente direitos especiais na nossa CRP o direito ao habeas corpus do 31º, nº 1, e as garantias do processo criminal (32º). Logo também o Direito de Defesa. Porém aqui cumpre fazer uma análise: é que o 32º, nº 1 fala em "garantias" do processo criminal. Ora uma das partições cardeais feita pelos constitucionalistas é a que distingue entre direitos propriamente ditos (direitos e liberdades) e garantias. Aqui o critério é a estrutura, natureza e função da realidade em causa 90. Temos assim os DIREITOS que representam certos bens, são principais, permitindo a realização das pessoas, pelo que integram a esfera jurídica de todos os Homem91. Já as GARANTIAS se destinam instrumentalmente a permitir o gozo daqueles bens; ou seja são acessórias, projectando-se nas esferas jurídicas dos titulares pelo nexo que mantêm com os direitos 92. Ora, no que aos direitos de liberdade concerne, vê-se que estes inerem à pessoa independentemente do Estado, enquanto que as garantias surgem precisamente na relação da pessoa com o Estado93. 87

Temos assim um qudro que acompanha a evolução da pessoa ao longo da história: 1º os homens adquirem a liberdade, sendo sujeitos de direitos, deixando de ser objectos do poder; 2º adquirem posição positiva perante o Estado, de quem recebem bens e serviços; 3º obtêm participação activa dentro do Estado, sendo sujeitos do próprio poder político. 88 Os constitucionalistas distinguem ainda os Direitos Fundamentais em pessoais, sociais e políticos: aqui atendese aos diversos círculos de desenvolvimento das pessoas e aos valores constitucionais que eles reflectem. Há direitos em que se trata de proteger directa e essencialmente a pessoa enquanto tal, o indivíduo moral e físico; há direitos da pessoa situada na sociedade; por fim há direitos de participação na vida pública. Nesta classificação o direito de defesa surge necessariamente como um direito pessoal. 89 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV-Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 1988, p. 87. 90 Cfr. Garantias Constitucionais, in Verbo , IX, 173-174. 91 Por isso os direitos são objecto de "declaração" nos textos constitucionais e internacionais. Apud Jorge Miranda, op.cit., p. 89. 92 Assim que se diga que as garantias se "estabeleçam". Apud Jorge Miranda, op.cit., p. 89. 93 Neste sentido Jorge Miranda, op. cit., p. 89, acrescentando ainda que as liberdades são formas de as pessoas agirem, valendo por aquilo que vale a Pessoa, enquanto que as garantias são modos de organização e actuação do Estado, tendo valor instrumental e derivado.

Assim, diz em regra a doutrina que ao Direito à liberdade e à segurança (27º, nº 1 CRP) correspondem importantíssimas garantias de direito e de processo penais. Tais garantias são entendidas como resultando do "esforço de civilização jurídica" 94 da Humanidade. Exemplos de escola são a garantia de não retroactividade da lei incriminadora do (29º, nº 1 CRP) e as garantias do arguido do (32º CRP). A questão é pois saber se estamos no caso do Direito de Defesa face a um direito autónomo ou face a uma garantia95. É compreensível que há garantias constantes da Constituição que não são direitos, "tão distantes ficam de qualquer possibilidade de invocação autónoma dos cidadãos em juízo ou face à administração ", na expressão de Jorge Miranda. Porém, como diz o mesmo autor, garantias há "em que ocorre a atribuição ou projecção subjectiva ", mesmo que indirecta, na esfera jurídica dos indivíduos. Nestes casos tudo se passa como se "houvesse o desdobramento de certo direito num elemento ou momento primário -o direito propriamente dito- e num elemento ou momento secundário -a garantia " 96. Ora, nestes casos as garantias integram o desenho constitucional dos próprios direitos. De tudo o que ficou exposto sou levado a concluír que se pode falar de um verdadeiro Direito de Defesa. Com efeito o 32º, nº 1 diz que "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa". Mas tais garantias de defesa são o tal momento secundário de que fala Jorge Miranda, estando ao preceito constitucional subjacente, e como elemento primário da garantia, o verdadeiro Direito de Defesa, subjectivamente projectado na esfera dos seus titulares. Por outro lado é necessário compreender em quê que se traduz o nº 1 do artigo 32º. Diz a doutrina que se está face a "uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa " 97. Mas a potência intrínseca da norma não se queda por esta função compreensiva. Englobar-se-ão nesse nº 1 do artigo 32º "todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação " 98.

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Jorge Miranda, idem , ibidem . Jorge Miranda, idem , ibidem , faz menção do quão é controversa a questão da qualificação das garantias como direitos ou como direitos fundamentais. Há quem diga que as garantias não merecem sequer tal qualificação, pois quase sempre falta ou é remota a ligação aos sujeitos. Além disso é motivo ponderoso nesta questão o facto de que não convém transformar a organização constitucional (ou legal) em interesse próprio dos cidadãos... tal seria afirmar uma espécie de direito material à constitucionalidade ou à legalidade. 96 Jorge Miranda, op. cit., pp. 90 e 91. Este mesmo autor refere o Acórdão nº 51/87 do TC, o qual distingue entre direitos principais e direitos acessórios ou subordinados 97 Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, cit., pp. 202 e ss. 98 Assim o Ac. nº 474/94 do TC. 95

No entanto, nem todos os entendimentos desta norma, e do Direito de Defesa que lhe é subjacente, são tão amplos e generosos. Assim que o Ac. nº 61/88 do TC afirme sobre o 32º, nº 1: "Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho 'reassuntivo' e 'residual' relativamente às concretizações que recebe nos números seguintes ... e na sua 'abertura' acaba por revestir-se ... de um carácter acentuadamente 'programático'. Mas na medida em que se proclama aí o próprio pº da defesa, e portanto inevitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter 'um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária' " 99. Pode também dizer-se que o 32º, nº 1 significa que o processo criminal há-de configurar-se como um "due process of law " 100/101, devendo considerar-se ilegítimas quer normas processuais quer procedimentos aplicativos delas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido102. Porém com tal expressão pouco se esclarece. Não creio contudo que o 32º, nº 1 seja ou tenha qualquer sentido programático 103. A diferença entre normas preceptivas e normas programáticas é "de estrutura e de projecção de cada norma no ordenamento " 104. Não deixam de ser normas jurídicas plenamente vinculantes. Só que "as normas programáticas são de aplicação diferida e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras explicitam comandos valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial -embora não único- o legislador, a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos (...) as invoquem já, pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam (...) têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos 99

Ac. nº 61/88 do TC, citando por fim Figueiredo Dias, A revisão constitucional, o processo penal e os tribunais, p. 51. No mesmo sentido o Ac. nº 164 da Comissão Constitucional, ap. ao DR de 31-12-79. 100 Em 1215 os Barões de Runnymede obrigam João Sem Terra a outorgar a Magna Charta. Nesse texto consignava-se que ninguém seria preso sem um julgamento legal pelos seus pares e segundo a "law of the land". Assim se lançaram as bases de uma evolução fulgurante na estruturação do processo penal, tendo este texto influenciado a totalidade das declarações que daí em diante se fizeram. As expressões "Judgement of his peers " e "law of the land " foram posteriormente sintetizadas na fórmula "due process of law ", vindo a ser consagrada na 5ª Emenda à Constituição Americana através da fórmula: "No person shall (...) be deprived of life, liberty or property, without due process of law ". 101 Diz Sanford H. Kadish que esta expressão "encastrada na constituição implicou na sua exegése centenas de decisões, bibliotecas de comentários e controvérsia infindável...até hoje " (Procedural Due Process of Law, Criminal , in Encyclopedia of the American Constitution , de Leonard Levy, Kenneth Karth e Dennis Mahoney, MacMillan Publishing Company, New York-London, 1986. 102 Assim Ac. nº 337/86 TC 103 No sentido agora criticado vai também o Ac. nº 40/84 do TC. 104 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II-Introdução à teoria da Constituição, 2ª Ed.rev.(reimp.), Coimbra Editora, Coimbra, 1988, p. 217.

indeterminados ou parcialmente indeterminados " 105. Aliás, como é bem sabido, estas normas têm o seu domínio de eleição nos Direitos Sociais, ou seja naquele núcleo de direitos que o Estado Social se incumbe de afirmar em favor dos seus cidadãos. Ora não se crê que no 32º, nº 1 se esteja num caso destes. Lê-se no Preâmbulo da CRP que "A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português (...) de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático ...". Com declaração desta ordem nem sequer se pode compreender que a afirmação do 32º, nº 1 tivesse mero carácter programático. Com efeito, que domínio existe em que mais se joguem os direitos fundamentais, a democracia e o Estado de Direito do que o domínio do processo penal? Não fariam de certo os constituintes uma bela declaração preambular, para depois no domínio do processo penal criarem uma total liberdade ao legislador para jogar com os direitos fundamentais de acordo com a oportunidade que surgisse. Não tem a norma qualquer conceito indeterminado; não estão os cidadãos privados de exigirem aos Tribunais que cumpram o artigo 32º, nº 1; não é um mero valor, mas um comando preceptivo. Claro que os "instrumentos" de concretização ficam dependentes do legislador, pois o processo penal é não só garantia dos cidadãos, mas também regulamentação do funcionamento da máquina penal do Estado. Mas ficar "dependente" não significa ficar no livre "arbítrio" do poder. Razões pelas quais julgo ter sido o 32º, nº 1 mal definido pelo aresto 62/88 do TC atrás citado. É isso sim, uma cláusula aberta. Aberta no sentido de que não se limita, como atrás disse, a compreender a enumeração dos restantes números do artigo 32º106, mas antes, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, servir como cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da necessária protecção global e completa dos direitos dos arguidos107. Em suma "todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para que o arguido defenda a sua posição e contrarie a acusação ". Daí que, no dizer dos mesmos autores, tal preceito possa ser fonte autónoma de garantias de defesa. Como tive oportunidade de escrever em parágrafo anterior deste relatório, o processo penal serve para garantir a realidade e efectividade de muitos direitos fundamentais 108. Assim que se possa 105

Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II-Introdução à teoria da Constituição, 2ª Ed.rev.(reimp.), Coimbra Editora, Coimbra, 1988, pp. 218 e s. 106 Neste sentido expressamente o Ac. nº 40/84 "O princípio da defesa do arguido é desenvolvido ao longo dos nºs 2 a 7 do artigo 32º, mas não se esgota nessa elencação. O núcleo essencial do prinípio ultrapassa a enumeração, é muito mais rico do que ela, abarca uma zona exterior à sua concretização constitucional e impõese em toda a sua plenitude a partir do momento em que é admitida no processo penal a possibilidade de aplicação de uma norma incriminadora a alguém que adquire o estatuto de arguido ". 107 Muito mais expressivo é o teor do 24º, nº 2 da Constituição Italiana, quando estende a qualquer situação e grau do processo a vigência do princípio da defesa. Aliás, o Ac. nº 40/84, ao analisar este preceito da lei fundamental italiana, conclui que também no 32º, nº 1 compreende uma série de garantias vigentes "in ogni stato e grado del procedimento ". 108 Como já alguém disse, o Direito Penal é o direito dos criminosos, enquanto que o Processo Penal é o direito dos inocentes.

ver a Constituição a ser aplicada através do processo penal 109, e que aquela funcione como instância de contrôle deste. Sendo o Direito de Defesa uma realidade per se , tem necessariamente que ser o artigo 32º nº 1 portador de um conceito aberto, que não se esgota em enumerações resultantes da lei constitucional. Recebe desenvolvimentos e enriquecimentos quer da lei ordinária, quer de textos internacionais, quer do labor jurisprudencial, quer mesmo dos avanços doutrinais. Um primeiro argumento que se pode carrear neste sentido é o próprio teor do número 1 do artigo 32º da CRP, o qual dispõe que O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa 110. Pode pois, e deve, tal conceito ser densificado. Há que analisar exaustivamente as vertentes ou valências desse direito de defesa que resultam directamente da enumeração constitucional, e depois partir para uma busca da ratio e alcance do próprio nº 1. Ou seja, há que buscar os contornos, substância e alcance do que seja o Direito de Defesa 111. Deve pois reter-se a ideia de que o 32º da CRP é a base da constituição processual penal portuguesa. Aqui encontramos os pilares do processo penal. Assim se compreende a afirmação de Gomes Canotilho e Vital Moreira segundo os quais, o direito processual penal é o verdadeiro "sismógrafo" de uma lei fundamental: "a cada nova ordem constitucional, um novo direito processual penal" 112 . Assim sendo, como julgo ser, o aumento do número de "direitos" consagrados constitucionalmente, terá reflexos imediatos e necessários ao nível da legislação processual penal ordinária. Um alargamento quantitativo do direito processual penal com assento constitucional implica por si só uma maior exigência de conformidade da legislação ordinária e dos diplomas regulamentares aos novos preceitos constitucionais. É, pois, legítimo afirmar que a história do constitucionalismo seja também a história do processo penal, e assim, dos direitos dos arguidos nesse mesmo processo. Esta a linear explicação para o crescente número de direitos e garantias reconhecidas aos arguidos 113. É o que querem afirmar Gomes Canotilho e Vital Moreira quando escrevem: Em termos práticos, isso traduz-se no alargamento do direito constitucional processual penal, implicando um maior número de "questões de inconstitucionalidade" referentes a normas criminais

109

Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 74 e ss Ou seja, o elemento literal parece ser favorável ao juízo que sustento. 111 Curioso será desde já salientar, que quer na doutrina e jurisprudência extrangeiras, quer na jurisprudência constitucional Portuguesa, se fala até às vezes em Princípio Geral de Defesa, o que leva a hipostasiar a realidade que se busca subjacente ao 32º, nº 1 não já a nível de "direito", mas mais "acima", no campo dos "princípios". 112 Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, cit. , p. 202 em nota B-I. 113 Assim o Ac. nº 401/91 do TC. 110

adjectivas, com a consequente ampliação da competência dos tribunais (e em particular do Tribunal Constitucional) para conhecer delas

114.

Sendo o artigo 32º, nº 1 portador de uma fórmula aberta, é susceptível de ser densificado muito para além da enumeração constante dos demais números do artigo 32º, podendo lá ser "encastrado" tudo o que decorra do Direito de Defesa que lhe subjaz, e que a consciência humana vá historicamente descobrindo115. Tem assim o artigo 32º, nº 1 da nossa Constituição uma potencia verdadeiramente "jus-constitucionalizadora" de todo o Princípio Geral de Defesa que lhe subjaz 116. É essa potencialidade dinâmica própria do artigo 32º nº 1 da CRP, verdadeiramente jurígena, que há que buscar. Lendo nessa norma tudo o que lhe subjaz, obter-se-á, não se duvida, um franco alargamento da listagem constante nos demais números, descobrindo-se também dados imprescindíveis para guiarem o legislador e os intérpretes-aplicadores do processo penal. Com carácter meramente enunciativo, deve considerar-se que do Direito de Defesa consagrado no artigo 32º, nº 1 da CRP, decorrem direitos vários, quais sejam, entre outros, o direito a defensor117, o direito a um tratamento digno do arguido por parte das instâncias penais e até inclusivamente por parte de quaisquer outros sujeitos que com ele se relacionem; o direito à prova118; o direito à informação; o direito ao recurso; o direito ao contrôle da execução da pena; etc...119 114

Gomes Canotilho e Vital Moreira, Idem, ibidem. Este aliás o sentido geral da jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol, como resulta por exemplo da Sentencia 64/1995 de 03/04, Sala 2ª, sobre o recurso de amparo nº 761/1994, in BJC , nº 168, Cortes Generales, Abril 1995, pp. 24 e ss. O artigo 24º, nº 2 da Constituição Espanhola, apesar do seu carácter algo lacónico ("Igualmente, todos têm direito (...) a defenderem-se...") é interpretado como repositório das garantias constitucionais do processo penal, o que conjugado com a proibição do 24º, nº 1 de se atingirem "resultados materiais de indefensão", tem permitido à jurisprudência constitucional estender muito o conceito de Direito de Defesa. 116 Costa Pimenta, Introdução ao processo penal, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 165 e ss, afirma: "O princípio da defesa traduz-se num complexo de direito e faculdades atribuídas ao arguido que integram a sua defesa material e técnica. Assim (...) relativamente ao arguido, o direito de defesa material desdobra-se, por sua vez noutros singulares direitos (...): a) Direito de conhecimento imediato da existência do processo (...);b) direito de presenciar todos os actos processuais que directamente lhe digam respeito; c) direito ao silêncio (...); d) direito à constituição e assistência de defensor. (...) e) direito de audiência. (...); f) Direito de intervenção na busca e recolha de provas (...), g) direito a ser informado (...); h) direito de contestação (...); No princípio da defesa enquadra-se ainda a denominada defesa técnica ou formal (...). Sob o aspecto sistemático, o direito de defesa é um direito subjectivo público (...) dele faz igualmente parte o princípio da imparcialidade da entidade que decide ". Em especial sobre o Direito ao silêncio é relevante a consulta da Decisão da Commission européene des droits de l'homme de 13/10/1992, sobre o artigo 6º da CEDH, in R.T.D.H. , Ano 5º, nº 18, Nemesis-Bruylant, Bruxeles, pp. 243 e ss. 117 Sobre o papel e a função do defensor, Figueiredo Dias e Costa Andrade, Limites do Direito de Defesa-o direito de defesa em processo penal, in ROA, 1992, I, pp. 273 e ss. 118 Sobre o Direito de "exame" dos meios de defesa é interessante a Decisão da Cour Européenne des droits de l'homme de 19/04/1993, in R.T.D.H. , Ano 5º, nº 18, Nemesis-Bruylant, Bruxeles, pp. 223 e ss, e bem assim Giuseppe Sabatini, Diritto Processuale penale e Diritto Processuale penale militare, in Nov.Dig.It. , Vol. XIV, Prova, pp. 300 e ss. 119 Repare-se que da simples leitura de algum do acervo jurisprudencial do TC se podia tentar fazer um rol de 115

Este o entendimento do direito de defesa em que assento, resultante da investigação até agora efectuada. Nem todas as vertentes agora enunciadas serão tratadas neste relatório, como ficou expresso no parágrafo anterior, cingido-me agora à análise do Direito-ao-Recurso.

direitos dos arguidos. Assim, por exemplo: direito a ser julgado por um órgão competente (Ac T.C. nº 13/83); que o órgão julgador seja um Tribunal (AcT.C.nº29/84-DecVoto); e que o Tribunal de julgamento seja imparcial (Ac T.C. nº 219/89, §8º); direito a que Imparcialidade se tome no sentido de que "o Tribunal em causa deve respeitar as normas jurídicas aplicáveis e deve decidir as questões nos limites da discricionariedade da sua acção, com procedimentos plenamente justificáveis, segundo critérios e valores próprios de um magistrado honesto" (Ac T.C. nº 219/89); direito a que não existam Tribunais especiais com competência para julgar certo tipo de crimes (Ac T.C. nº 11/83); A intervir no processo de graduação da pena, na apreciação da gravidade do facto e da culpa, à demonstração da sua situação económica e aos caracteres da sua personalidade (Ac T.C. nº 29/84); A procurar por todos os meios obter a absolvição (Ac T.C. nº 29/84); A obter e fruir de assistência técnica de defensor, materialmente, ou seja, com defensor que não se desleixe, não se despreocupe, antes acompanhe o processo (Ac T.C. nº 40/84); A não ser deixado à sua sorte, antes podendo contactar e livremente conversar com o defensor, ser por ele esclarecido, e a discutir com ele para decidir a estratégia da sua defesa (Ac T.C. nº 40/84); Por outro lado tem o arguido direito a que sejam fundamentadas as decisões que o afectem (Ac T.C. nº 219/89); A que seja fundamentada a resposta aos quesitos (Decl. de Voto de Vital Moreira anexa ao Ac TC nº 219/89); A que exista materialmente um duplo grau de jurisdição de mérito (Ac T.C. nº 219/89); A não ser privado de qualquer elemento, instrumento ou via de defesa por insuficiência económica. Não dependência do pagamento de taxas nem multas para exercer a defesa (Ac T.C. nº 220/89); A que a prova seja valorada segundo o princípio do in dubio pro reo , que seja respeitado o seu silêncio (343º, nº 1 CPP), que conheça do que se passa na sua ausência (332º, nº 7 CPP), que não sejam lidas as suas declarações, com uma extensão da proibição muito além da que protege outros sujeitos processuais (357º CPP)-(Ac T.C. nº 398/89); A ter a última palavra no processo (Acs T.C. nºs 398/89 e 496/89); A pronunciar-se sempre que, e após, a acusação profira qualquer despacho ou dê algum parecer. (Ac T.C. nº 398/89); a Recorrer, quer no sentido de poder apresentar recurso, quer no de dispor do tempo necessário a reflectir. Abrange ainda o direito a ser informado das vias, efeitos e meios de recurso, e, logicamente, do conteúdo dos autos. É um direito à ponderação e escolha entre recorrer ou não e com que âmbito (Acs T.C. nºs 40/84 e 219/89, § 26).

§4.

O INSTITUTO JURÍDICO DOS RECURSOS. Castro Mendes escreveu um dia: "Pois que todo o ser humano é imperfeito, as decisões

judiciais (formuladas em despachos ou sentenças) podem conter (e quantas vezes, efectivamente, contêm) imperfeições. Tais vícios podem afectar a formulação do esquema lógicoformal do pensamento do juiz -error in procedendoraciocínio judicial -error in judicando

ou as conclusões lógico-jurídicas do

" 120. Com tão clara afirmação patente se torna, se

argumentos de autoridade fossem para tanto necessários, que a correcção da imperfeição é algo conatural a todas as actividades humanas. E, do mesmo passo, se tem de concluír pela naturalidade e necessidade do instituto dos recursos, decorrência da constatação da imperfeição do labor humano no campo do exercício do poder soberano de aplicar o Direito. Claro está que as decisões, as dos Tribunais como as de qualquer outro entidade ou indivíduo, tendem naturalmente para a imutabilidade, para a estabilidade. Mas tal é apenas, como se disse, uma "tendência". Há com efeito uma presunção de acerto da actuação dos órgãos de soberania, mas presunção essa necessariamente ilidível, pois a segurança da imodificabilidade não poderá ser cega à justiça do decidido. Sendo os Tribunais Órgãos de Soberania, razões há de prestígio e de certeza da vida jurídica, que fortemente acentuam a tal tendência para a imodificabilidade. Daí que proferida a decisão se esgote do mesmo passo o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria julgada... não fosse o juiz repensar a questão, ou sofrer pressões externas, e alterar o decidido. "Todavia, também se compreende que a regra da imutabilidade não seja absoluta e se ofereça às partes (e até a terceiros) a faculdade de arguir vícios em ordem a obter a sua correcção " 121. Estes vícios são precisamente decorrentes da dita imperfeição conatural ao Homem, e é para permitir a sua correcção que o Homem, em todas as circunstâncias da vida social, procura criar expedientes que permitam alterar o previamente decidido. No domínio das decisões jurídicas também assim é. Pode, por vezes, tal via ser a propositura de uma nova acção com vista à destruição da decisão anterior 122. Noutros casos há expedientes como os Embargos, que visam anular uma actividade ilícita e lesiva dos direitos de alguém, ou o protesto imediato contra uma penhora decretada sobre bens que não pertencem ao executado 123. Mas a propositura de novas acções não é uma boa via de remediar todos os "defeitos" de uma decisão judicial. Assim que desde logo seja admissível a correcção

120

Castro Mendes, Recurso (Direito Processual Civil), in POLIS-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. V, Verbo, Lisboa, 1987, cols. 78 e ss. 121 Castro Medes, idem, ibidem. 122 Assim é no caso de partilhas judiciais confirmadas por sentença transitada em julgado quando se tiver preterido algum co-herdeiro, ou quando a sua falta de intervenção se deva a qualquer manobra dolosa, e não haja hipótese nem de acordo amigável entre os interessados nem de interposição de recursos extraordinário. 123 Assim o artigo 832º do C. P. Civil.

de alguns erros pelo próprio juiz que julgou a causa 124. Mas a via de que nos ocupamos neste relatório para obter a correcção das imperfeições das decisões judiciais não é nenhuma destas. É a via mais complexa e nobre: a do instituto dos Recursos. Afirmou José Alberto dos Reis que de modo elementar e simples o Recurso é "um meio específico de impgunação de decisões judiciais " 125. Ensina também Marques da Silva que "Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais, que consistem em se procurar a eliminação dos defeitos da decisão ilegal ...." 126.

Os recursos operam através da submissão da dita decisão a uma reapreciação por parte

de outro órgão jurisdicional127. Porém, no processo penal nem todas as decisões judiciais são susceptíveis de impugnação através do instrumento do recurso, existindo outros meios impugnatórios, v.g., a reclamação e o habeas corpus 128. Em abstracto, pois, duas são, as possíveis finalidades do recurso, o que implica diferenças na sua estrutura e tramitação. Podemos pois ter recursos que visem corrigir um erro do tribunal e recursos que têm por escopo controlar a decisão de um órgão por outro, em regra de nível hierárquico superior. Assim era no sistema processual instituído com o Código de Processo Penal de 1929. O Código de Processo Penal de 1987, por seu lado, atribui aos recursos apenas a finalidade de correcção da ilegalidade da decisão do Tribunal a quo . Mesmo os recursos do Ministério Público interposto no interesse do arguido têm de ter por base um vício da decisão impugnanda 129. Tomando como boa a definição de recurso como sendo um pedido de reponderação 124 Assim o

artigo 380º do C. P. Penal. Trata-se aqui de erros meramente formais, de carácter técnico e que sejam manifestos. Claro que este poder de correcção não permitirá ao juiz alterar a decisão da causa, ou seja a decisão de mérito. 125 José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 5, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 211 126 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, p. 301, Verbo, Lisboa, 1994. 127 Castro Mendes, op. cit., col. 79 escreve: "Em todos os casos em que a pretensão do recorrente vise a modificação do conteúdo decisório da solução dada pelo juiz ao conflito de interesses sub judice ... a outro órgão judicial, formado por juízes mais antigos, mais experientes e, pois, menos susceptíveis de errar, se comete o reexame da decisão arguida de vício ". 128 Exemplos de susceptibilidade de alteração da decisão em processo penal por parte do próprio órgão que a proferiu, não assumindo aí a impugnação carácter de recurso, sucede com a apreciação do requerimento de alteração de medida de coacção ou de garantia patrimonial. 129 Daí a diferença entre este recurso do MºPº em favor do arguido e o recurso obrigatório do CPP de 1929, em que o MºPº era obrigado a recorrer de decisões condenatórias que impusessem penas graves. Assim o 473º, § únº desse diploma. Também tradicional em Portugal, na vigência das Ordenações, era o chamado recurso "por parte da justiça", que era interposto pelo próprio juiz sempre que proferisse decisão final condenatória em processo penal. A sentença, aliás, não transitava em julgado sem haver o tal controlo pelo órgão jurisdicional hierarquicamente superior (Ordenações, Livro V, Título CXXII). Aqui havia talvez a ponderação referida por Castro Mendes de que juízes mais experientes errariam menos.

feito pelo vencido da decisão anteriormente obtida, há ainda que esclarecer qual seja o objecto do recurso. Afirmam uns que esse objecto é a questão sobre que recaíu a decisão recorrida. Para outros, e aqui se contam a doutrina e a jurisprudência maioritárias em Portugal, o objecto do recurso é a decisão recorrida em si mesma. Isto justifica, o que depois nos interessará para fase mais adiantada deste trabalho, o entendimento segundo o qual, em sede de recurso, se visa modificar decisões e não conhecer de matéria nova. Uma outra consideração há ainda a fazer: é que o Estado, ao assumir o papel de definidor do direito objectivo e ao substituir-se aos privados na sua tutela, tem o propósito de que aquilo que definiu seja objectivamente cumprido. Predispõe para tanto de um aparelho orgânico para tutelar o "seu" Direito, e de regras destinadas a regular o respectivo funcionamento. Mas fim supremo do Estado neste processo é precisamente a realização da Justiça, ou seja, e em concreto, que os resultados a que chegam os seus órgãos de administração da Justiça sejam resultados justos. Pode pois firmemente concluír-se que a obtenção de uma decisão justa é não só uma legítima aspiração de quem com o Estado se relaciona, mas também, e primeiramente, uma condição de conservação e progresso da comunidade social e do ordenamento jurídico. Em cada causa que se decide, em cada juízo penal que se emite, não se jogam pois apenas interesses dos privados, mas o superior interesse do Estado, e da comunidade que lhe subjaz, de que a solução seja justa. Ora para atingir tal fim não basta a disciplina substantiva das relações humanas, mas também a regulamentação dos procedimentos que condicionam a dita solução justa. As normas processuais são nesta perspectiva uma auto-organização do ordenamento que se quer operante e efectivo. E tal auto-organização passa também pela estruturação dos meios necessários à correcção das injustiças eventualmente cometidas pela própria máquina de administração da justiça130. Neste sentido fala Giovanni Tranchina em "remedi contro la possibile difformità del giudizio rispetto al diritto " 131. Assim que não possa deixar de ver-se a figura da Impugnação, e do Recurso em especial, como um mecanismo dirigido a satisfazer a exigência de uma explicação o mais perfeita possível da actividade jurisdicional 132. Assim, também, nos surgem os Recursos como uma componente indispensável da estrutura geral do ordenamento, uma realidade conatural ao exercício humano de qualquer actividade, maxime de uma actividade soberana 130

Interessante é desde já citar aqui o Acórdão 401/91 do Tribunal Constitucional, onde são citados Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando escrevem: "Pela sua própria natureza, a protecção contra actos jurisdicionais assume lugar autónomo e relevo especial, visto que estão em causa os próprios juízes e tribunais, isto é, os órgãos constitucionalmente habilitados a defender e a garantir os direitos e interesses legítimos dos cidadãos. A defesa contra eles só pode estar noutro tribunal, com poder de revogar a decisão ofensiva dos direitos -e daí que o direito de recurso para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes garantias constitucionais " (CRP Anotada, 2ª ed., 1º vol., 1984, p. 181). 131 Giovanni Tranchina, Impugnazione (dir.proc.pen.) in Enciclopedia del Diritto , vol. XX, p. 700 e ss. 132 G.Tranchina, idem, ibidem, acentua também este carácter "explicativo" com que se deve entender a Impugnação.

e primeira como o é a da aplicação do Direito 133. Ou seja, e antecipando desde já o pensamento que me move, tão certo é existir um direito de acção (um direito de recurso à tutela jurisdicional), como um direito ao recurso 134, cujos contornos, substância e alcance não se enunciarão agora. Mas a conclusão parece linear: se há um direito a pedir a aplicação do direito, não pode deixar de haver um direito a pedir um contrôle sobre se tal aplicação foi ou não correctamente efectuada. Afirmar o primeiro dos direitos e negar o segundo, e tomando como certa a possibilidade de erro de qualquer comportamento, juízo ou decisão humana,

seria na verdade negar indirectamente

também o primeiro. E repare-se que esta possibilidade de "impugnação" não se circunscreve ao domínio dos actos jurisdicionais. Impugnam-se actos administrativos, actos emanados da liberdade contratual dos privados, declarações negociais, juízos científicos, declarações políticas, etc. Daí que a regra da impugnabilidade dos actos jurisdicionais não seja uma excepção mas uma regra135, regra tanto mais prezável quanto é certo que aí se jogam interesses primeiros da vida dos indivíduos, e é seguro que a magistratura não está isenta de errar. Daí também que se tenha tradicionamente chamado aos recursos "remédios jurídicos" 136, remédios que permitissem o atingir de uma decisão justa que, real ou supostamente, não se tinha atingido 133

Área pois onde se jogam interesses fundamentais e inalienáveis da pessoa humana e sua inerente dignidade. Assim também se compreende a estreita conexão, a que retornaremos, entre o direito ao recurso e princípios como o do Estado de Direito Democrático. Neste sentido, e a propósito da ligação do princípio de Estado de Direito Democrático ao Direito a um Processo Justo (ein faires Verfahren) Wofgang Heyde escreve: "Eine dieser Konkretisierungen ist das Recht auf ein faires Verfahren, das (...) zu den wesentlichen Grundsätzen eines rectsstaatlichen Verfahrens uberhaupt, insbesondere aber des Strafverfahrens mit seinen möglichen einschneidenden Auswirkungen für den Beschuldigten zählt. Die Wurzel dieses allgemeinen Prozeßgrundrechts findet sich in den in einem materiell verstandenen Rechtsstaatsprinzip verbürgten Grundrechten und Grundfreiheiten des Menschen, insbesondere in dem durch ein Strafverfahren bedrohten Recht auf Freiheit der Person (Art. 2 Abs. 2 Satz 2 GG), dessen freiheitssichernde Funktion auch im Verfahrensrecht Beachtung erfordert. Es hat seinen Grund ferner in der Würde der Person, die es verbietet, den Menschen zum bloßen Objekt eines staatlichen Verfahrens herabzuwürdigen, und von daher einen Mindestbestand an aktiven verfahrensrechtlichen Befugnissen des Angeklagten voraussetzt ". Em nota Heyde sustenta-se em Jurisprudência coincidente do Tribunal Constitucional Alemão (Rechtsprechung, in Handbuch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland , da responsabilidade de Ernst Benda, Werner Maihofer, Hans-Jochen Vogel e com colaboração de Konrad Hesse e Wolfgang Heyde, 2ª Ed. revista e ampliada, Walter de Gruyter, Berlin, 1994, p. 1608, nº à margem 61). A nível da jurisprudência constitucional Alemã sobre tais considerações confira-se BverfGE 52, 131 (144); 57, 250 (275f); 46, 202 (210); 26, 66 (71) e 9,89 (95). 134 Exactamente no sentido ora defendido confira-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 353/91 onde se pode ler "A garantia da via judiciária traduz-se, prima facie , no 'direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante' (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., vol. cit., p. 187). Todavia deve incluir-se ainda na garantia da via judiciária a protecção contra actos jurisdicionais, que assume 'lugar autómo e relvo especial' (op.cit., ibidem) ". Aliás, já no Acórdão no 287/90 o Tribunal Constitucional afirmara: "o direito de acção incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais, o qual, obviamente, só é exercível mediante o recurso para (outros) tribunais ". 135 Talvez essa a razão de ser da afirmação de princípio do artigo 399º do CPP, que aliás tinha equivalente no artigo 645º do CPP de 1929. 136 Por vezes, porém, usa-se desta expressão com o fim pernicioso de dela retirar menos consequências, limitando o recurso a um papel secundário, qual ultima ratio , ou figura excepcional do ordenamento jurídico. A esta questão se voltará.

na anterior apreciação da questão. Por fim, neste escurso sobre a razão de ser e finalidade dos recursos, uma nota sobre o tipo de "vícios" que podem inquinar uma decisão jurisdicional. Ensina tradicionalmente a doutrina, e como já atrás referimos sob a autoridade do Prof. Castro Mendes, que a injustiça de uma decisão pode decorrer de violações de normas processuais (error in procedendo ) e de violações de normas substantivas (error in judicando ). Estes errores in judiando , por seu turno, podem resultar de um vício respeitante à determinação dos factos (error facti ) ou respeitante à subsumpção dos factos nos padrões normativos (error iuris ). Ora é precisamente para fiscalizar se qualquer dos vícios inquinou a justiça da decisão que o bom-senso e a razão humanas criaram as vias de Impugnação em geral e o instituto dos recursos em especial. Assim seria levado a concluír, se bem que ainda timidamente, que todo e qualquer recurso, assente em questões processuais ou substantivas, de facto ou de direito, visa na verdade uma reapreciação da justiça da decisão137, e do mesmo passo, a uma decisão sobre o "mérito" da causa. Não que defenda que todo o recurso tem necessariamente que conhecer de novo de toda a questão anterior, mas que ao conhecer daquilo que se lhe peça, o tribunal de recurso decide da justiça ou injustiça do decidido, porque todo o error in judicando é error in procedendo

e todo o error in procedendo

é error in judicando 138. Isto afigura-se tanto

mais claro quando se pondera que por "meras questões processuais" se pode dar lugar a um procedimento perfeitamente disfuncional, e a uma decisão completamente injusta. Igualmente certo é que difícil, senão impossível, será por vezes, admitir que se pode apreciar da justiça do decidido sem entrar na apreciação dos factos a que o direito foi aplicado. Na verdade, esta distinção tão corrente e firmada na estrutura mental dos juristas do mundo inteiro, traz, na matéria de que agora me ocupo, grandes dissabores, dando lugar a não poucas injustiças, como veremos. Demonstrada que ficou, ao que julgo, a essencialidade do Recurso à própria ideia de ordenamento jurídico, será necessário ver agora o quadro de recursos existente actualmente

137

Neste mesmo sentido Tranchina, idem, ibidem, e citando ampla doutrina que critica a distinção formal entre error in procedendo e error in judicando, especialmente, Beling, Revision wegen 'Verletzung einer Rechtsnorm uber das Verfahren' im Strafprozess, in Festschrift Fur Binding, II, Leipzig, 1911. 138 Satta, Le impugnazioni, II, Milano, 1964.

no Direito Processual Penal Português139/ 140. Temos assim: - Recursos Ordinários e Recursos Extraordinários. Os recursos extraordinários são o recurso para fixação de jurisprudência (artigos 437º a 448º) e o recurso de revisão (artigos 449º a 466º). Por seu turno, surgem-nos os chamados recursos ordinários (399º a 436º). Embora no plural, na verdade os recursos ordinários seguem uma tramitação unitária (410º a 426º), havendo depois especificidades nos desenhos dos recursos perante as Relações (427º a 431º) e perante o Supremo Tribunal de Justiça (432º a 436º). Assim se prescindiu de um modelo que repartisse os Recursos em recursos de apelação e de cassação141. Ao invés, os recursos seguem uma tramitação única, distinguindo-se apenas segundo um critério que pondera qual a natureza do tribunal recorrido e qual o tribunal ad quem . Pode afirmar-se que o novo CPP representa um esforço no sentido de "conferir ao sistema de recursos uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil. Salvo pormenores de regulamentação que devem procurar-se, por via analógica, no código de processo civil (artigo 4º do código), os recursos penais passam a obedecer a princípios próprios, possuem uma estrutura normativa autónoma e desenvolvem-se segundo critérios a que não é alheia uma opção muito clara sobre a necessidade de valorizar uma atitude prudencial do juiz " 142. Assim tentou-se um "compromisso em benefício do factível ", em questões como "a interacção entre a documentação da prova e o julgamento dos recursos ", os "limites da uniformidade da tramitação

139

", "a regulamentação da renovação da prova, a organização e o

Antes da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1929, existia em processo penal uma multidão de tipos de recursos. Havia assim recursos de revista e de apelação, os agravos de petição e instrumento, os embargos ao processo de ausentes, os protestos nos processos contravencional e sumário, e ainda recursos inominados. Com a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1929 instituiu-se um sistema de maior homogeneidade, segundo os recursos penais o regime dos Agravos em matéria cível. Para tal mudança radical contribuiu a consideração de que não havia razões substanciais que exigissem diferenças entre os recursos cíveis e os recursos penais, e também a constatação do caos em que se havia caído na legislação anterior. Mercê deste novo regime grande parte das considerações relativas aos recursos penais começaram a depender da elaboração da processualística cível. A entrada em vigor da Constituição de 1976, estranhamento no meu ponto de vista, não trouxe abalos ao sistema instituído. 140 Cunha Rodrigues afirma, em relação ao trabalho da Comissão Revisora do CPP, o seguinte: "Não podia a Comissão subestimar as dificuldades que sempre aparecem quando um sistema reclama alterações estruturais nos meios e na mentalidade dos agentes. Mas a Comissão nãopodia igualmente exonerar-se de examinar a medida em que o processo penal poderia deixar de repercutir, em matéria de recursos, o que hoje são aquisições do Direito Criminal, da Criminologia e da própria teoria dos Direitos Fundamentais ", Recursos, in Jornadas de Processo Penal - O novo código de processo penal , Almedina, Coimbra, 1992, p. 382. 141 Escreve Cunha Rodrigues, op. cit., p. 383: "A distinção entre recurso de apelação e recurso de cassação, que caracteriza os sistemas da Europa continental ou subsidiários destes, entrou em crise; a possibilidade de recurso directo de cassação bloqueou muitos dos Tribunais Supremos; a questão da renovação do julgamento vai-se esvaziando de conteúdo; o próprio problema da documentação da prova parece complicar-se na exacta medida em que se simplificam os instrumentos técnicos que pareciam capazes de o resolver ". Estas, ao que julgo, algumas das ponderações responsáveis pelo actual sistema de recursos em processo penal Português. Também interessantes são as considerações expendidas por Cunha Rodrigues no que concerne às funções dos tribunais superiores, exemplificando com a evolução dos procedimentos na Câmara dos Lordes Britânica e no Tribunal de Cassação Francês, naquilo a que chama "auto-correcção produzida pelos sistemas " (idem, ibidem). 142 Cunha Rodrigues, op.cit., p. 384.

funcionamento do Tribunal, e o próprio modelo de audiência " 143. Especificamente em relação ao desenho legal dos Recursos ordinários diz-nos Cunha Rodrigues144 que se foi utilizado um "critério de verdade " e um critério de "lealdade processual " , visando que "os recursos não sejam um modo de entorpecimento da justiça, um monólogo com vários intérpretes ou um jogo de sorte e azar ". Mas indubitavelmente que a maior novidade do Código de 1987 é a já referida tramitação unitária. Resulta, com efeito, patente que uma tramitação unitária apontaria, pelo menos em princípio para uma igualdade nos poderes cognitivos dos tribunais de recurso, ou seja, poderes iguais para a Relação e para o Supremo. Todavia assim não foi, como resulta da simples leitura dos artigos 428º, nº 1 e 433º. Diz Cunha Rodrigues que "A solução preconizada corresponde a um equilíbrio a que não é estranha uma consciente desmitificação do relevo da dicotomia facto-direito nomeadamente no tratamento das questões de culpa e de personalidade " 145. Em suma "um Código de rigor mas, sobretudo, um Código de compromisso " 146, em que ainda há a salientar que cria um ónus de estrita motivação para o recorrente147, e em que não se perdeu nunca de vista a necessária celeridade processual, valor este de nível Constitucional e resultante também de Textos de Direito Internacional. Objectivo deste trabalho será, aliás, ver até que ponto os "compromissos" do legislador não perturbaram o "rigor" da obra, e se o "critério de verdade" não resultou algo perturbado pelo modo como os preceitos foram desenhados. É que nunca os compromissos com o "factível" se devem sobrepor à Justiça das soluções legalmente consagradas. No dizer de Cunha Rodrigues "O código assume claramente os recursos como remédio jurídico ", na linha, aliás, de doutrina autorizada como Manzini, Giovanni Leone, Dinacci e muitos outros. Com o correr dos séculos perdeu-se, segundo o autor citado, a verdadeira compreensão da função dos recursos, usando-se antes como meio de "refinamento jurisprudencial".

143

Tudo expressões usadas por Cunha Rodrigues na p. 385 do texto a que nos temos vindo a reportar. Cunha Rodrigues, idem, ibidem. 145 Cunha Rodrigues, op.cit., p. 386. Quanto à desmitificação de tal dicotomia confira-se o que já atrás escrevemos ao iniciar o § 4. deste relatório. 146 Cunha Rodrigues, idem, p. 384. 147 Cunha Rodrigues escreve a este propósito: "O recorrente tem de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação do recurso consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzirão em error in procedendo ou error in judicando . A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material " (op.c.it., p 387). Desde já se diga, porém, que se não consegue compreender o alcance da última afirmação transcrita do Procurador Geral da República. É que não parece que esteja a querer distinguir entre direito material e direito formal, ou seja entre direito substantivo e processual, muito menos depois de falar em error in procedendo ... 144

E é precisamente desta concepção do recurso como remédio jurídico (portanto do modelo dispositivo no que aos recursos concerne) que decorrem a proibição da reformatio in pejus , a possibilidde de renúncia148 ao recurso e ainda a faculdade de desistência do mesmo. Ainda de salientar como grande inovação do novo CPP é a abolição do duplo grau de recurso, ou seja a instituição de um sistema de grau único de recurso, em que nunca existe uma 3ª instância para recursos. Como resumo final do pensamento inspirador da legislação processual penal de 1987 quanto aos Recursos não pode, por fim, deixar de se transcrever a seguinte afirmação: "Como remedios jurídicos, os recursos (...) não podem ser utilizados como o único objectivo de uma 'melhor justiça'. " 149. Temos assim o seguinte quadro no domínio dos recursos ordinários: - das decisões do Tribunal Singular (Primeira Instância), sejam elas decisões finais ou interlocutórias, recorre-se para o Tribunal da Relação (427º CPP/87), salvo no caso excepcional de recurso directo para o Supremo; - das decisões do Tribunal Colectivo ou do Júri (Primeira Instância), recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça, tratando-se de acórdãos finais ou de decisões interlocutórias cujo recurso deva subir a final; se os recursos das decisões interlocutórias não deverem subir com o acórdão final mas logo imediatamente, competente para julgar o recurso será o Tribunal da Relação (427º e 432º, al. d) CPP/87) 150. Ou seja: na primeira instância temos a divisão entre tribunais sigulares, colectivos e de júri. Assim se deu cumprimento à busca de "garantia efectiva de dupla jurisdição 151 logo na primeira instância" de que fala o preâmbulo do CPP/87. Quanto aos poderes cognitivos dos Tribunais de Recurso ficamo-nos agora pela mera constatação de que os Tribunais de Relação conhecem de facto e de direito (428º, nº 1) e o Supremo Tribunal de Justiça conhece só de direito (433º), reservando as considerações que tais preceitos nos merecem para o capítulo seguinte deste relatório. A natureza do recurso interposto do Tribunal Singular para os Tribunais de Relação,

148

À questão da renúncia ao recurso se voltará expressamente no próximo capítulo. Cunha Rodrigues, op. cit., p. 387. 150 Nos termos dos artigos 11º e 12º do CPP o STJ e as Relações têm ainda competência para julgar recursos de decisões proferidas por esses tribunais superiores em primeira instância. 151 Atente-se que a utilização da expressão dupla jurisdição é aqui feita num sentido equívoco, uma vez que não se refere ao princípio do duplo grau de jurisdição, mas à repartição entre tribunais singulares e colegiais logo na primeira instância. 149

diz Cunha Rodrigues, "justifica a conveniência de que o recurso seja apreciado segundo as regras clássicas da apelação, por um tribunal colegial

" 152. Já o recurso dos Tribunais

Colectivo e de Júri para o Supremo Tribunal de Justiça, dadas as enormes garantias advenientes da sua estrutura e regras de funcionamento, segundo Cunha Rodrigues, aconselham a que seja um mero recurso de revista alargada. Como últimas referências153 ao sistema de recursos instituído pelo CPP/87 salientese, sob a autoridade de José Gonçalves da Costa154, o incremento de economia processual numa óptica de celeridde e eficiência (nº 8 do Preâmbulo do CPP/87), o facto de se "emprestar efectividade" à garantia de um duplo grau de jurisdição autêntico, a possibilidade de rejeição liminar de todo o recurso por manifesta falta de fundamento 155, a separação (física) entre juízes dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, a estrutura acusatória dos recursos e o alargamento da competência do Júri à matéria de direito. Resta, pois, saber se a nova regulamentação processual penal dos recursos, indirectamente esvazia, ou não, a garantia do duplo grau de jurisdição. É o que passamos a indagar no parágrafo seguinte, com o auxílio da importantíssima Jurisprudência Constitucional Portuguesa, não esquecendo que alguma dessa jurisprudência se reporta ao Código de Processo Penal de 1929.

152

Cunha Rodrigues, op. cit., p. 394. sumaríssimo concerne há a referir o artigo 400º, nº 1 a. c) que estipula a irrecorribilidade das decisões tomadas neste tipo de processo (todavia sempre terá de ser necessariamente sindicável a violação por parte do Tribunal de qualquer das regras imperativas que disciplinam o processo sumaríssimo; a dificuldade estará talvez em encontrar Tribunal que admita um eventual recurso de decisão em processo sumaríssimo face ao carácter peremptório da disposição legal citada). Quanto ao processo sumário, diz-nos o 391º CPP que só é admissível recurso da decisão que puser termo ao processo (também aqui cabem as observações atrás feitas sobre a irrecorribilidade no processo sumaríssimo). 154 José Gonçalves da Costa, Recursos, in Jornadas de Processo Penal - O novo código de processo penal , Almedina, Coimbra, 1992, pp. 403 e ss. Importante é reter a seguinte afirmação de Gonçalves da Costa, sobre o regime unitário de recursos instituído com o novo CPP: "Recurso unitário, em princípio idêntico para a Relação e para o Supremo. Abarcando, na medida do possível e conveniente, tanto a questão de direito como a questão de facto ", op. cit., pp. 405-406 (meu sublinhado). 155 A este respeito é fundamental a inspiração do legislador na posição do Professor Figueiredo Dias quando salientava a necessidade de se desmotivar um uso abusivo ou imoderado dos recursos (Para uma reforma global do Processo Penal Português, in Para uma nova justiça penal , ppp. 189 e ss). Este mesmo Professor havia defendido a abolição do duplo grau de recurso da mesma questão de direito e a necessidade de uma efectiva realização do duplo grau de jurisdição de mérito, através de uma jurisdição de apelação penal, uma autêntica segunda instância de facto, com repetição da audiência de julgamento perante o tribunal de recurso. 153 No que ao processo

§5.

O

"DIREITO-AO-RECURSO"

NA

JURISPRUDÊNCIA

CONSTITUCIONAL

PORTUGUESA . A.

Introdução Para poder obter um quadro fidedigno da valia efectiva e do estado de elaboração de

um princípio de relevância constitucional do duplo grau de jurisdição (ou seja, do Direito ao Recurso), nada melhor do que recorrer à jurisprudência do órgão por excelência de tutela da Constitucionalidade. Mas outra razão me impele nessa direcção: é que o trabalho doutrinal nacional sobre o tema do Direito ao Recurso é muito escasso, ao que acresce o facto de raras vezes terem sido aceites pela Jurisprudência as construções doutrinárias sobre tal tema156. Na verdade a Jurisprudência mostra-se no domínio dos recursos muito avessa ao "progressismo" da doutrina, permanecendo as mais das vezes, com um atavismo incompreensível, na defesa de posições claramente apodadas de inconstitucionais pelo meio Académico. Ademais, a Jurisprudência é necessariamente o terreno último em que se joga a evolução das doutrinas e a sua, pelo menos pragmática, valia. Ora, de entre toda a Jurisprudência, aquela do Tribunal Constitucional é indubitavelmente a que permite recolher mais e melhores elementos para a resposta à questão da relevância Constitucional de um Direito-ao-Recurso. Traz ainda a vantagem de ponderar a questão sempre no quadro geral das garantias processuais constitucionalizadas e dos direitos fundamentais do Homem. Assim, e em bom rigor, é tal jurisprudência o único ponto sólido de referência, mau grado os factos de ser esporádica, ser em regra resultante de processos de fiscalização concreta e não possuir uniformidade, antes oscilando entre vários entendimentos possíveis da questão. Precisamente para suprir os dois últimos defeitos apontados é que se procurou sistematizar o acervo jurisprudencial existente (e relevante) no presente relatório, por forma a ficarmos não só com um entendimento claro sobre as posições do TC, mas também com um quadro crítico sobre os argumentos que normalmente se degladiam na discussão deste problema. No que ao direito-ao-recurso concerne, há uma já longa e complexa jurisprudência do Tribunal Constitucional, jurisprudência essa que tem vindo a ser proferida desde a data de criação do Tribunal157, com notáveis oscilações, como se disse, mas de grande interesse na perspectivação do tema em foco. Para uma pequena ideia do acervo jurisprudencial sobre a questão, passo a apresentar alguns dos mais significativos acórdãos recolhidos quanto ao tema do direito-ao-recurso em processo penal, não sendo despiciendo referir que muitos outros não se listam aqui por serem meras repetições de jurisprudência nestes constante, ou por dizerem respeito aos processos cível, administrativo, fiscal, contraordenacional, militar,

156 157

Pelo menos no período e tema a que se reporta este relatório. E outra ainda do período da Comissão Constitucional.

etc... 158. Temos assim os seguintes Acórdãos do Tribunal Constitucional que tomei como referência na análise que apresento neste parágrafo do meu trabalho: A) Do Ano de 1984 o Ac. nº 40; B) Do Ano de 1985 os Ac.s nº s 55; 137; 150; 156. C) Do Ano de 1986 os Ac.s nºs 17; 104; 123; 135; 187; 199; 202; 210 D) Do Ano de 1987 os Ac.s nºs 5; 7; 8; 31; 150; 219 E) Do Ano de 1988 os Ac.s nºs 30; 61; 90; 207; 304 F) Do Ano de 1989 os Ac.s nºs 120; 219; 220; 398; 495; 496 G) Do Ano de 1990 os Ac.s nºs 118; 124; 209; 287; 340 H) Do Ano de 1991 os Ac.s nºs 332; 350; 353; 401 I) Do Ano de 1992 os Ac.s nºs 132;173; 250; 253; 338 J) Do Ano de 1993 os Ac.s nºs 234; 321; 322 K) Do Ano de 1994 os Ac.s nºs 265 e 474 A acrescentar a esta listagem há ainda uma série de outros Acórdãos que considerando outras áreas do direito de defesa dos arguidos fazem referências laterais à questão do Direito-ao-Recurso, ou que, esclarecendo o significado do artigo 32º da Constituição, contribuem para vislumbrar o conteúdo, alcance e limites do Direito-ao -Recurso e de outras garantias integrantes do Princípio Geral do Direito à Defesa em Processo Penal, como por exemplo o Direito à Prova, o Direito ao Contraditório, o Direito à informação, o Direito à motivação (quando não tratado na perspectiva do direito ao recurso) e muitos outros 159. Por fim duas notas: a quase totalidade da jurisprudência encontrada sobre o direito 158

Claro que alguns dos que apresento em seguida tratam do direito ao recurso nestas áreas referidas por último, mas esses foram escolhidos por serem consubstanciadores da orientação constante e firme do Tribunal nesses domínios. 159 Acórdãos também relevantes para o estudo do direito de defesa dos arguidos em processo penal são, entre muitos outros, os seguintes, que se apresentam com prévia indicação do ano seguida do número do acórdão: Ac.nº 83/11; Ac.nº 83/13; Ac.nº 84/29; Ac.nº 85/63; Ac.nº 85/201; Ac.nº 86/38; Ac.nº 86/49; Ac.nº 86/77; Ac.nº 86/85; Ac.nº 86/147; Ac.nº 86/177; Ac.nº 86/325; Ac.nº 86/337; Ac.nº 87/7; Ac.nº 87/54; Ac.nº 87/87; Ac.nº 87/103; Ac.nº 87/136; Ac.nº 87/200; Ac.nº 87/259; Ac.nº 87/344; Ac.nº 87/434; Ac.nº 87/439; Ac.nº 87/448; Ac.nº 88/69; Ac.nº 88/127; Ac.nº 88/135; Ac.nº 88/155; Ac.nº 88/219; Ac.nº 88/228; Ac.nº 88/259; Ac.nº 89/178; Ac.nº 89/416; Ac.nº 89/455; Ac.nº 90/41; Ac.nº 90/198; Ac.nº 93/120; Ac.nº 94/309.

ao recurso surge em sede de apreciação de normas de direito processual penal; e, em regra, tal direito ao recurso é escorado na cláusula geral do artigo 32º, nº 1 da Constituição ou nos princípios do acesso à Justiça e aos Tribunais, da igualdade (e da paridade de armas no processo penal), do Estado de Direito Democrático, da presunção de inocência ou da estrutura contraditória do processo penal.

B.

Entendimentos do Tribunal Constitucional sobre o Direito ao Recurso. Na abordagem dos entendimentos da Jurisprudência Constitucional sobre o Direito-

ao-Recurso, começarei por averiguar se a Constituição da República impõe ou não a existência de um duplo grau de jurisdição, e, caso o imponha, qual o seu sigificado, âmbito e natureza. Far-se-ão também considerações sobre o regime de tal direito ao recurso durante a vigência do CPP/29, pois que parte da jurisprudência foi lavrada sobre esse diploma, e depois apreciar-se-á criticamente o regime de recursos vigente, e atrás descrito no § 4 deste relatório, à luz do que se julga ser o complexo de argumentos a ponderar na resolução do problema. I - Sobre a imposição Constitucional de um duplo grau de jurisdição em matéria penal. "A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas e garantias a existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies. É certo que a Constituição garante a todos 'o acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' (artigo 20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' (artigo 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal " pode lêr-se no Ac. nº 265/94 do TC. Orientação já menos "negativista" se encontra no Ac. nº 209/90 onde o TC conclui que a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, mesmo no processo penal, onde, admitindo-se genericamente o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do princípio de defesa, todavia se tem de admitir que tal garantia de recurso não alcance todos os actos do processo e que seja restringida em certas fases do mesmo. Em posição intermédia se encontram também vários outros Acórdãos, como por exemplo os nºs 55/85, 7/87 e 61/88. Neste último pode lêr-se: "terá de reconhecer-se que este direito (o direito a um duplo grau de jurisdição) é decerto, no domínio processual penal, ao menos em geral, (...) uma exigência da constituição, decorrente do princípio da defesa do arguido " 160.

160

Este Acórdão nº 61/88, recusa a declaração de inconstitucionalidade do artigo 469º do CPP de 1929 por violação dos artigos 32º e 210º da CRP. Foi votado favoravelmente por quatro juízes Conselheiros, tendo três deles sido vencidos pelos motivos constantes da declaração de voto anexa do Dr.Nunes de Almeida. Jurisprudência aliás seguida posteriormente nos seguintes Acórdãos: -Ac. nº 207/88, ao qual consta como anexo uma declaração de voto do Juiz Conselheiro Vital Moreira, o qual considerava inconstitucional o dito artigo 469º; e -Ac. nº 304/88.

Do Ac. nº 401/91161 resulta por seu turno uma das afirmações sistematicamente feitas pelo Tribunal Constitucional: "No plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da solução que haja sido dada à questão de direito " 162. Já o Ac. nº 340/90 163 havia sido peremptório em declarar que nas garantias de defesa que o processo penal deve assegurar (32º, nº 1) se inclui o direito de recurso das decisões do tribunal colectivo em matéria de facto. Também o Ac. nº 118/90 afirmava que a Jurisprudência uniforme do TC tem entendido que o artigo 32º, nº 1 assegura em processo penal o princípio do duplo grau de jurisdição à decisão condenatória, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito. Aliás, não pode deixar de se transcrever o dito Acórdão quando diz: "é consabido que a faculdade de recorrer da condenação constitui peça dominante do quadro dialético em que se desenvolve o processo penal: é ela que permite ao arguido superar a antítese entre interesse público à condenação e o seu interesse de defesa e de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento ". Afirmações bem expressas, e especificadas, sobre o Direito ao Recurso, se encontram também no Ac. nº 8/87 164, onde se pode ler: "Importa desde já afirmar que a faculdade de 161

Este Acórdão declarava a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 665º do CPP de 1929 na interpretação dada pelo Assento do STJ de 29 de Junho de 1934, e que determinava que as Relações "nos recursos das decisões condenatórias dos tribunais criminais colectivos, ao conhecerem da matéria de facto, haverão de basear-se exclusivamente nos documentos, resposta aos quesitos e outros elementos constantes dos autos, a ponto de só lhes ser lícito alterar, a esse nível, aquelas decisões em face de elementos do processo que não tiverem podido ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que houvesse determinado as respostas aos quesitos ", Ac. 401/91 (votado favoravelmente por oito juízes conselheiros e com voto de vencido dos Juízes Conselheiros Dr.Bravo Serra, Dr.Fernando Alves Correia, Dr.Messias Bento, Dr.Vítor Nunes de Almeida e Dr. José Manuel Cardoso da Costa). 162 Igual afirmação se encontra v.g. nos Acórdãos nºs 219/89, 118/90 e 234/93 163 Este Acórdão declarava a inconstitucionalidade do artigo 665º do CPP de 1929 na interpretação dada pelo Assento do STJ de 29 de Junho de 1934, pois esse preceito não constituia "garantia suficiente para os efeitos do citado preceito constitucional ", ou seja do artigo 32º, nº 1 da CRP. Pondera o Acórdão que nem a CRP, nem a DUDH, nem a CEDH consagram expressamente o duplo grau de jurisdição entre as garantias de defesa. Só o PIDCP claramente afirma no seu artigo 14º, nº 5 que "qualquer pessoa declarada culpada de crime terá direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei ". Segue o Acórdão a que nos referimos afirmando: "Mas esse direito tem sido afirmado, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, podendo considerar-se assente que ele cabe nas garantias de defesa asseguradas pelo citado artigo 32º da Constituição, se não mesmo no 'acesso aos tribunais' , garantido pelo nº 2 do artigo 20º ". Este Acórdão foi favoravelmente votado por oito juízes conselheiros, sendo desaprovado pelos Juízes Conselheiros Dr.Alves Correia, Dr.Messias Bento, Dr.Nunes de Almeida, Dr.Bravo Serra e Dr. Cardoso da Costa. 164 Este Acórdão declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante dos artigos 561º e 651º, § único do CPP de 1929 e artigo 20º do Decreto-Lei nº 605/75 de 3 de Outubro e do Assento do STJ nº 4/79 de 28 de Junho, segundo a qual, em processo sumário, o recurso restrito à matéria de direito tinha de ser intreposto logo depois da leitura da sentença. Votou vencido o Juiz Conselheiro Dr. Vital Moreira, por entender que a declaração de inconstitucionalidade devia ter sido apenas parcial, ou seja na parte em que as normas se referem ao arguido, visto não serem inconstitucionais quando se reportam aos recursos do Ministério Público. Parece ter razão o Dr.Vital Moreira, uma vez que o TC inconstitucionalizou a dita norma com base no artigo 32º,

recorrer em processo penal traduz uma expressão do direito de defesa. Esta faculdade constitui uma peça dominante no quadro dialéctico em que se desenvolve o processo penal; (...) Mas ao arguido é reconhecida constitucionalmente não só a faculdade de recorrer, como também a possibilidade de escolher entre a interposição e a não interposição de recurso, o que consequencia a concessão de um período de tempo mínimo de informação e reflexão (...). É que não basta garantir ao acusado, no plano puramente formal, a faculdade de recorrer; os seus direitos têm de ser materialmente assegurados, sob pena de aquela garantia se revelar despojada de sentido e alcance concreto " 165. Com este sumário bosquejo sobre alguns Acórdãos do Tribunal Constitucional, podese constatar que a orientação deste supremo tribunal não é uniforme, ou pelo menos não é constante. Não se encontrou porém nenhum Acórdão em que expressamente se afirme a irrelevância constitucional absoluta do direito de recurso 166. Porém, afirmando-se mais ou menos categoricamente a relevância do princípio do duplo grau de jurisdição, vai a Jurisprudência Constitucional no sentido de cavar no seio do princípio algumas relevantes excepções. E é as excepções que vamos passar a conhecer, pois de nada vale a afirmação da regra geral para compreender o efectivo alcance e significado de qualquer princípio. O resíduo efectivo da garantia, o núcleo essencial do direito estará precisamente na área da regra que não fôr infirmada pela excepção. Logo será interessante analisar em que casos julgou o TC não estar violado o direito ao duplo grau de jurisdição (ou ao recurso) e no entanto existirem limitações ao concreto exercício do direito. a) As decisões interlocutórias: Despacho de marcação de audiência e Despachos de Pronúncia/não-pronúncia: Socorremo-nos aqui uma vez mais do Ac. nº 118/90, no qual, depois de se afirmar que o artigo 32º, nº 1 da CRP assegura o princípio do duplo grau de jurisdição167, se vem dizer que no entanto nada impõe na Constituição que ao "despacho o qual só tem sentido em relação ao arguido e não face ao Ministério Público. Será que o TC entendeu que o MºPº também tem um direito ao recurso? É que não se vê que a Constituição se preocupe em garantir os direitos da "acusação", e o direito ao recurso só tem lógica na perspectiva da defesa. 165 Assim se fazia operar, repare-se, o consagrado no artigo 6º, nº 3 al. b) da CEDH. 166 Já na Itália a primeira decisão concernente ao direito ao recurso é a Sentenza nº 110 de 1963, e nela a Corte Costituzionale sublinha o facto de a supressão da garantia do duplo grau não contradizer a norma Constitucional. Tal decisão encontra-se publicada em Giurisprudenza Costituzionale , 1963, vol. I, pp. 870 e ss. Tal decisão teve porém o mérito de dar a medida das gravidades resultantes de uma interpretação incorrecta do 24º nº 2 da Constituição Italiana. Igual posição se encontra em Giovanni Serges, Il principio del "doppio grado di giurisdizione" nel sistema costituzionale Italiano, Giuffrè, Milano, 1993, p. 99. Outra decisão da Corte Costituzionale, esta de 1965, afirma que o princípio do duplo grau de jurisdição "não encontra uma formulação precisa e absoluta ", Sentenza nº 41 de 1965, in Giurisprudenza Costituzionale , 1965, Vol. I, pp 626 e ss. 167 Não pode deixar de se salientar a posição do Juiz Conselheiro Cardoso da Costa, que não votando vencido no entanto afirma "reserva (...) quanto à abordagem, sem quaisquer restrições, feita no acórdão, do problema do direito ao recurso como garantia constitucional - em consonância com o modo como a questão foi tratada no Acórdão nº 61/88, de que fui relator ".

que designa dia para julgamento" haja de se garantir sindicância por outra instância. Há-de, ao invés, admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo, e que face a certos actos jurisdicionais possa mesmo ser de todo negada, desde que desse modo se não atinja o "conteúdo essencial" do direito de defesa do arguido. Neste acórdão estava em questão a alegada inconstitucionalidade do artigo 390º do CPP/29, o qual estipulava a irrecorribilidade do despacho judicial que designasse dia para julgamento em processo correccional quando o Ministério Público tivesse deduzido acusação. Ora invocavam os recorrentes que tal despacho devia, mercê do direito ao recurso constitucionalmente consagrado, ser recorrível. Isto mercê do facto de "ser inquestionável que o Direito Processual Penal Português sempre admitiu o agravo de injusta pronúncia como garantia de defesa contra a agressão ao bom nome e reputação que sempre será a submissão de um inocente a um julgamento de natureza criminal ... ". E acrescentavam que havia sido necessária a reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 377/77 "para que ao arguido fosse proibido o mais elementar meio de defesa (...) quando mais dele necessita, i.e., quando se tratar de crime doloso e a acusação tiver sido deduzida pelo Ministério Público ". O TC, afirmando que a faculdade de recorrer é peça dominante do direito de defesa, conclui porém: "simplesmente se as coisas assim se passam no plano da decisão condenatória, nada impõe no texto constitucional, no acervo do seu quadro normativo e dos seus princípios cogentes, que ao despacho que designa dia para julgamento independentemente da estrutura e das vicissitudes processuais em que foi proferido haja de ser garantida a sindicância por um tribunal superior. Na verdade, pode dizer-se, acompanhando o Acórdão nº 31/87 (...) que se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada ... ". Diz ainda o TC que tal preceito não viola também o princípio da igualdade quando se distingue a recorribilidade do despacho de pronúncia da do despacho de não pronúncia. É que o princípio da igualdade consiste na proibição da discriminação e do arbítrio, mas também na obrigação de distinguir o que é diferente. E tais actos (pronúncia/não-pronúncia) são actos materialmente distintos na natureza e nas consequências. É que o acto de pronúncia é "momento intermédio do processo ", enquanto que a não-pronúncia é "a morte ou arquivamento dos autos ". Não são pois tais situações o verso e o reverso da mesma realidade, razão pela qual não choca o diferente regime de recorribilidade. Por outro lado também não se viola o princípio da presunção de inocência, pois o facto de ser sujeito a julgamento não prejudica nem o bom-nome nem a

reputação do arguido168 / 169. Concluia assim o TC pela não violação do núcleo essencial da defesa, uma vez que se não quebra na verdade a reciprocidade dialéctica arguido-acusador nem se viola a presunção de inocência. Evoca ainda o TC, como argumento em abono da decisão proferida, o facto de o CPP/87 ter norma semelhante no seu artigo 313º nº 3170. Como resulta patente, a discussão sobre a recorribilidade do despacho de não-pronúncia e a irrecorribilidade do despacho de pronúncia, mantém a sua plena valia actualmente, em face do artigo 310º do CPP/87 171. Na verdade este preceito mantém a irrecorribilidade do despacho de pronúncia, o que tem originado alguns comentários da parte da Doutrina 172. Há inclusivamente quem sustente a inconstitucionalidade orgânica de tal preceito173, uma vez que a Lei nº 43/86 de 26 de Setembro (autorização legislativa), no seu artigo 2º, nº 53 estabelecia a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciasse o arguido pelos factos constantes "da acusação", e o preceito vem a impor tal irrecorribilidade falando em "acusação do Ministério Público" 174. 168

Exactamente sobre a mesma questão se pronunciou o TC no acórdão nº 332/91, que em referência ao artigo 390º, nº 2 do CPP/29, e sobre esta questão do bom-nome e reputação do arguido afirmou: "É que a constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma complexa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32º é que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, pelo que o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir só por si (...) um atentado ao bom nome e reputação ". E segue o TC dizendo que os recorrentes "partem do pressuposto de que a Lei Fundamental tutela em todo e qualquer caso o direito a não se ser trazido a julgamento perante o juiz penal, garantindo-se a existência de um duplo grau de jurisdição. Ora, a interpretação do 32º, nº 1, não impõe tal garantia, como resulta afirmado no acórdão nº 31/87 ". 169 No mesmo sentido o Acórdão nº 338/92, no qual também se afirma que, sendo o direito ao recurso manifestação do direito de defesa e do direito de acesso aos tribunais, todavia não é pela CRP exigido que todas as decisões estejam submetidos a tal duplo grau de jurisdição, bastando para a legitimidade da restrição que "se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade... ". Em sentido algo oposto à jurisprudência referida pode citar-se o Acórdão nº 219/89, § 11, onde se lê: "O ministério público tem (...) de considerar que já a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação (...) ou quando esta seja mais provável do que a absolvição ". 170 Deve porém este argumento do TC ser entendido cum grano salis , uma vez que o teor do 313º, nº 3 CPP/87 não é igual ao do 390º do CPP/29. 171 Norma equivalente se encontra no § 210 da Strafprozeßordnung Alemã. 172 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 1ª Ed., Verbo, Lisboa, 1993, p. 39, afirma: "Ora, a pronúncia é desde logo um gravame para o arguido, podendo acarretar, como muitas vezes sucede, limites à sua liberdade, para além do vexame de obrigar a sentar no banco dos réus quem for inocente. Com alguma razão, embora talvez com algum exagero também, se proclama no Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 1873 que 'a pronúncia é o acto judicial mais sério e importante da vida do juiz ". Segue em nota nº 1 o mesmo autor: "Por isso que nos custe a aceitar a irrecorribilidade do despacho de pronúncia quando em conformidade com a acusação do Ministério Público ". 173 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1ª Ed., Verbo, Lisboa, 1994, p. 203, nota 2. Aliás, este Professor, de quem fui aluno no curso de licenciatura em Direito na Universidade Católica, sustentou em aula do curso de processo penal de 1992-1993 que a regra do 310º, nº 1 violava o princípio da paridade de armas, tanto mais que o arguido não tem na prática, como se sabe, possibilidade de controlar as provas durante as fases do inquérito e instrução, e que verdadeiro contraditório no processo até esta fase só surge nas declarações para memória futura (271º e 294º CPP) e no debate instrutório (297º). A tal argumento responde o Tribunal Constitucional com a posição atrás referida do Ac. nº 118/90 de diferença entre pronúncia e não-pronúncia quer na natureza quer nas consequências. 174 Compreendendo o raciocínio não pode deixar de se referir que aqui o CPP ainda beneficiou o arguido em

Sobre a constitucionalidade deste artigo 310º, nº 1 do CPP/87 se pronunciou expressamente o TC no Ac. nº 265/94. Alegava o recorrente a inconstitucionalidade de tal preceito, por violação do artigo 32º, nº 1 da CRP em conjugação com os artigos 1º, 2º, 8º, 13º e 16º também da lei fundamental175, pois era inadmissível que tal norma permitisse recurso pelo Ministério Público do despacho de não-pronúncia e vedasse a recorribilidade quando a decisão fosse conforme à acusação pública. Entendia ser assim violado o princípio da paridade de armas, o princípio da igualdade e o direito ao recurso. O TC vem julgar a norma conforme à Constituição, uma vez que, e remetendo para jurisprudência anterior, "se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada a certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir ....". Diz ainda o TC que tal é conforme até com o artigo14º, nº 5 do PIDCP, pois este artigo não impõe "que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz " 176. Também neste acórdão se reafirma que a submissão a julgamento dos arguidos pronunciados não afecta de "forma intolerável " o direito ao bom-nome e à paz jurídica, tanto que permanece o princípio da presunção de inocência. Quanto à alegação de violação do princípio da paridade de armas o TC, na linha do Ac. nº 118/90 vem dizer que a visão de tal princípio não pode assentar numa simetria formal177, e esgrime com os argumentos de diferença de natureza e consequências entre os despachos de pronúncia e de não-pronúncia. Diz mesmo o TC que não podendo o arguido impugnar o juízo indiciário constante da pronúncia, sempre poderá contradizer o ulterior juízo de certeza emergente de eventual sentença condenatória. Ademais, não pode deixar de se ponderar, diz o TC, que a irrecorribilidade aqui decorre também de um esforço de realização do valor constitucional da celeridade processual. Assim também não se podia ter por violado o princípio da igualdade 178. Ou seja: como primeira limitação do direito ao recurso surge-nos o facto de se

comparação quer com o Projecto quer com a Lei de autorização legislativa, pois mercê da regra do 399º será recorrível o despacho de pronúncia pelos factos constantes da acusação particular. 175 Nas alegações de recurso do arguido alegava-se também a inconstitucionalidade material dos artigos 406º, 407º e 408º do CPP/87. 176 Aliás, diz o TC, nenhuma convenção internacional impõe o princípio do "duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões interlocutórias em processo penal ". Assim também Corte Costituzionale Italiana, Ac. nº 62/1981, in Giur.Cost., 1981, I, 351. Porém a inversão na orientação é completa no Ac. nº8/1982, in Giur.Cost., 1982, I, 42, que reconhece o direito ao recurso em processo administrativo, ex vi artº 125º, nº 2 da Lei fundamental Italiana. A esta solução "pouco coerente" (diz G.Serges), ficou preso o Tribunal até hoje. Apenas no Ac. 110/1986 (in Giur.Cost., 1986, 616) houve reconhecimento de direito ao recurso em processo penal, ganhando relevo no âmbito da esfera de defesa do arguido, mas apenas para garantir "paridade de armas". 177 Assim também o Acórdão nº 132/92 do TC. 178 Quanto a isto escreveu-se no Acórdão nº 189/92 do TC: "são dissemelhantes as condições que caracterizam a não recorribilidade do despacho de pronúncia pelo arguido e a recorribilidade do despacho de não pronúncia pelo Ministério Público.1) O despacho de pronúncia representa um momento intermédio do processo, através da qual a acusação é sancionada garantisticamente pelo juiz em ordem a possibilitar a sujeitação do arguido a julgamento; 2) O despacho de não pronúncia, ao contrário, traduz a rejeição da acusação e consequencia o arquivamento do processo ".

tratar de uma decisão meramente interlocutória, face à qual o arguido terá possibilidade de se defender na fase subsequente, a do julgamento. Justificação de tal limitação encontrase na celeridade do processo, também ela um valor constitucional, segundo resulta da jurisprudência do TC e do 32º, nº 2 da CRP. b) O duplo grau de recurso e o valor ou importância da questão: Outra das excepções que se encontra ao Direito-ao-Recurso na Jurisprudência Constitucional surgenos no Ac. nº 209/90 179. Aí o TC afirma quanto às restrições ao dito Direito: "Ponto é que com tal restrição não se atinja o conteúdo essencial de tal faculdade de recurso, ou seja, o direito de defesa do arguido, cuja dimensão essencial consiste em ver o seu caso reexaminado em via de recurso, mas não abrange o direito de novo reexame de questão já examinada em via de recurso ". Temos assim uma limitação do Direito-ao-Recurso a apenas um grau: ou seja, não tem senão que estar previsto um grau de recurso (não há direito a um triplo grau de jurisdição). Mas este mesmo Acórdão traz ainda outra limitação: é que o legislador pode fixar um valor limite da condenação abaixo do qual o recurso não é admissível, assim se evitando que as instâncias superiores sejam avassaladas com recursos sobre questões de diminuta repercussão 180. c) Decisões sobre liberdade condicional: Outra limitação ao princípio do Direitoao-Recurso é patenteada no Ac. nº 321/93 181, o qual conclui que não é inconstitucional à 179

Julgou-se neste Acórdão não ser inconstitucional a norma do artigo 646º nº 6 do CPP/29 na parte em que só admitia recurso dos acórdãos das Relações proferidos sobre recursos interpostos em processos sumários se a multa aplicada for superior a 200 contos. Do mesmo passo não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 189º, nº 1 e 192º, nº 2 do Código das Custas Judiciais quando condicionam o seguimento dos recursos interpostos dos acórdãos das Relações ao depósito das quantias que o recorrente deva garantir. 180 E que aliás já tinham sido apreciadas em duas instâncias, visto no CPP de 1929 ser possível o recurso da primeira instância para a Relação e desta para o STJ. Diz neste acórdão o TC que a força da materialidade factual implicada no flagrante delito, e que constitui razão da peculiaridade do processo sumário, é fundamento bastante para que se verifique um regime de recursos diverso do estabelecido para o processo correccional, onde se julgam questões similares nos efeitos mas diversas no enquandramento face à circunstância do flagrante delito. É que, diz o TC, não há igualdade situacional essencial entre realidades tratadas numa e noutra forma de processo, pelo que não há restrição inadmissível nem desproporcionada do direito ao recurso na limitação em processo sumário da recorribilidade a multas superiores a duzentos contos. 181 Este Acórdão debruçava-se sobre a questão da inconstitucionalidade do artigo 127º do Decreto-Lei nº 783/76 quando estabelece a irrecorribilidade das decisões que neguem ou concedam a liberdade condicional. Teve no entanto o mérito de demonstrar, pois tal é pressuposto de todo o raciocínio desenvolvido ao longo da fundamentação, que o artigo 32º nº 1 se aplica à fase da execução das penas, ou seja, quando em rigor já não existe arguido nem "processo criminal" hoc sensu , pois após a condenação o arguido passa a condenado, neste caso até "recluso", e a relação deste com o Estado já não é "processual" mas uma relação administrativa de sujeição. Sobre a pena de prisão podem consultar-se Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português-as consequências jurídicas do crime, pp. 98 e ss; e Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal - parte geral II / penas e medidas de segurança, pp. 45 e ss. Indispensável quanto à questão da tutela dos direitos fundamentais nos estabelecimentos prisionais é o estudo de Jean-Paul Céré, Le nécessaire contrôle du pouvoir disciplinaire dans les prisons françaises, in Revue de Science Criminelle , 1994, nº 3 (Juill.-Sept), pp. 597 e ss. De notar que Céré faz uma afirmação relevante sobre o direito ao recurso dos "reclusos" sobre as práticas disciplinares de que são alvo, assim se pode ler na conclusão do seu artigo: "Il nous paraît pour autant impérieux d'instaurer un véritable contrôle, par des

face do 32º, nº 1, a disposição normativa que exclui o recurso de decisões que neguem a liberdade condicional facultativa182. Isto porque no caso da liberdade condicional facultativa, não existe qualquer exigência constitucional no sentido de que seja de admitir recurso do despacho de indeferimento. Também aqui o TC fundamenta a sua decisão no princípio de que o princípio do duplo grau não é absoluto, nem mesmo em matéria penal 183. A contrario , terá necessaria e consequentemente que se considerar abrangido pelo Direito-ao-Recurso o poder de impugnar decisões referentes à liberdade condicional obrigatória184/185. d) O regime de subida diferida dos recursos: Por fim surge uma limitação de carácter discutível no Ac. nº 474/94 186, quando considera constitucional a norma que permite a subida diferida do recurso interposto de despacho que indefere a realização das diligências instrutórias requeridas pelo arguido. Diz o TC que tal norma não só não viola as garantias de defesa, como é mesmo imposta em virtude da necessária celeridade processual 187. De igual modo esclarece o TC que tal regime de subida também não viola o princípio da presunção de inocência, pois não altera em nada o estatuto do arguido, antes lhe permitindo que celeremente se passe ao julgamento, onde se poderá determinar a sua posição face aos factos que lhe são imputados. Por fim, neste aresto o TC considera que tal preceito não viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP, nem o princípio do contraditório, pois que este significa tão-só inadmissibilidade de prova sobre a qual não tenha sido dada à parte uma ampla e efectiva possibilidade de discutir e contestar, em actos instrutórios e na audiência de julgamento. Ou seja, e em resumo, não é ilegal a subida diferida se não se perder em absoluto a utilidade processual do recurso. Esta orientação parece-me assaz criticável. Com efeito diz o TC que "No caso em apreço, o direito de recurso está garantido, na medida em que o recurso foi admitido. Toda a magistrats, des pratiques disciplinaires...". 182 Artigos 61º, nºs 1 e 3 e 62º e ss do CP, e Artigos 479º a 484º do CPP/87. 183 Sobre esta específica posição também os Acórdãos nºs 7/87, 31/87 e 259/88 do TC entre outros. Também a Corte Costituzionale partilha desta ideia de não absolutividade do direito ao recurso, como se vê nos seus acórdãos nº 5, de 19 de Fevereiro de 1965 (Giur.Cost., 1965, p. 43); nº 55, de 22 de Março de 1971 (Giur.Cost., 1971, p. 577); nº 126, de 9 de Junho de 1971 (Giur.Cost., 1971, p.1212). 184 Artigos 61º, nºs 2 e 3 e 62º e ss do CP, e Artigos 479º a 484º do CPP/87. 185 Sobre a liberdade condicional, veja-se Manuel Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Portugês, II, pp. 487 e ss; A.M.Almeida Costa, Passado, presente e futuro da liberdade condicional, in Bol.FDUC, nº 65, 1989, pp. 401 e ss; e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, Lisboa, 1994, pp. 383 e ss. 186 Neste recurso questionava-se da constitucionalidade do artigo 407º, nº 2 do CPP/87 na interpretação segundo a qual tal norma não abrange os recursos de despachos que indefiram a realização de diligências probatórias na fase da instrução. Dizia um dos recorrentes que tal norma, assim entendida, violaria o artigo 32º, nºs 1, 2, 4 e 5 da CRP, alegando os restantes que as normas da Constituição violadas eram os artigos 1º, 2º, 13º, 16º, 20º e 32º da Lei fundamental. 187 Isto paralelamente à afirmação de que "em matéria de direito penal, a Constituição garante (...) todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação ", e de ser expressamente aceite que "Um dos meios ou uma das expressões do direito de defesa é o direito de recorrer ".

questão resulta, porém, do facto de que, admitido embora o recurso, como o não foi para subir imediatamente não suspende o andamento do processo, que continuará os seus termos normais, já que o recurso apenas será apreciado quando subir e for apreciado o recurso que vier a ser interposto da decisão final ". E conclui que assim sendo, como é, não se viola de modo "inadmissível " as garantias de defesa do arguido! Firma-se além disso o TC no facto de que o juiz de instrução não pode ficar obrigado a realizar todas as diligências que lhe forem requeridas, porque logo tal seria utilizado como manobra dilatória pelo arguido. Além de que tendo o recurso sido admitido, sempre verá o arguido a sua posição ser reconhecida jurisdicionalmente caso recorra da decisão final condenatória. Como último argumento escora-se o TC no facto de a instrução ser até uma fase facultativa, razão pela qual se deve reconhecer ao legislador ordinário ampla liberdade de conformação do respectivo regime. Porém, e ressalvado o devido respeito, decidiu mal o TC, talvez até mercê de uma máescolha dos recorrentes na estratégia subjacente ao recurso. É que a inconstitucionalidade da norma que, interpretada como foi, permite o diferimento da subida do recurso, reside sim na violação do 32º, nº 1, mas por via do desrespeito do direito à prova que também assiste ao arguido 188 / 189.

188

Não aprofundarei muito a justificação, natureza e âmbito deste direito à prova uma vez que este tema será objecto de estudo aprofundado em sede de dissertação, como aliás já tinha acautelado na introdução deste relatório. 189 Escreve Giuliano Vassalli (Il diritto alla prova nel processo penale, in Studi in onore di Antonio Segni , vol. IV, pubblicazioni della facoltà di giurisprudenza dell'università di Roma, Giuffré, Milano, 1967, pp. 707 a 710) sobre a falta de discussão doutrinal do direito à prova, o seguinte: "Não assumiu ainda, no glorioso desabrochar dos debates em torno da prova, grande consideração o tema do direito das partes à prova. Discutem-se as ligações entre a lógica e o método probatório, permitindo um aprofundar do conceito de prova, discutem-se questões como as dos princípios que hão-de presidir à recolha, admisssão e valoração da prova, e também a análise do juízo na aquisição e valoração da mesma. Também se aprofunda a questão da liberdade dos meios de prova e dos seus limites objectivos e subjectivos, e o problema da avaliação das fontes de prova. Modernamente assume particular relevo a questão das provas ilícitas, quer no que concerne à sua recolha, quer no domínio da sua eficácia jurídica. A doutrina não deixou também de se preocupar com o próprio rito de introdução e assunção da prova. Mas quanto ao tema do direito das partes à aquisição e admissão da prova não houve senão acenos longínquos, sendo todavia questão que mereceria ser desenvolvida. A jurisprudência debruça-se quase em exclusivo sobre a admissibilidade da prova, sobre a violação das regras probatórias processuais e sobre os vícios de motivação na valoração da prova. Claro que algumas sentenças referentes aos poderes do juiz na aquisição e admissão da prova acabam por referir este tema do direito das partes à prova. Tais sentenças merecem aferição da compatibilidade da sua doutrina com as transformações operadas na lei e com os novos princípios. O mais absoluto silêncio legislativo justificará para alguns a omissão doutrinal. E é de referir que mesmo nos projectos de reforma não aparece qualquer referência, nem genérica, a esse direito das partes à prova. Nem sequer quando se fazem referências às convenções internacionais que autonomizam esse mesmo direito, como veremos. Os novos projectos de lei referem-se em regra à necessidade de assegurar os caracteres próprios do sistema acusatório, o qual é indubitavelmente caracterizado pela paridade de direitos e poderes entre acusador e arguido, mesmo no campo da produção da prova. O projecto italiano de 1965 refere mesmo entre os critérios orientadores da reforma, o da participação da defesa em paridade com a acusação em todos os graus e estados do processo. E entre os critérios específicos das fases de discussão figura o direito ao exame directo do arguido, dos testemunhos, dos peritos pelo MºPº e pelo defensor do arguido, garantindo-se a idoneidade e lealdade do exame e a genuinidade das respostas, sob a direcção e vigilância do presidente da audiência. Também isto é situação relevante para o tema de que ora se trata, pois é susceptível de eliminar um dos obstáculos que hoje normalmente impede a plena utilização dos meios de prova por iniciativa das partes ".

Muito sumariamente limito-me aqui a justificar a razão de ser da posição agora expendida: É que apesar de não se poder reconhecer um verdadeiro poder dispositivo das partes sobre a prova, não pode deixar de se lhes reconhecer um direito à prova 190. Uma das partes tem o direito à prova porque esta é um instrumento imprescindível para o exercício de uma função legal e constitucionalmente cometida (o Ministério Público). A outra, porque tal direito é instrumental em ordem à DEFESA da sua posição no Processo 191. Ademais, a inquisitoriedade do juiz serve antes de mais para suprir a insuficiência da actividade das partes, e só num segundo nível surge como uma liberdade de levar a cabo todas as diligências que o Tribunal considere necessárias para a descoberta da verdade. Ou seja: não se pode ver na liberdade do juiz mais do que um poder-dever, funcionalizado, ou seja, uma obrigação para com a visada descoberta da verdade, e naturalmente para com a Justiça. Precisamente devido ao facto de a verdade dever imperar, é que tal "poder do juiz" não pode significar que o juiz seja árbitro no sentido de poder excluír, mesmo que de modo alegadamente fundamentado, a eficácia da iniciativa das partes. Quando e onde o juiz não actue, deve reconhecer-se às partes um direito não só a requerer mas a conseguir que se proceda probatoriamente. Ao que acresce que apreciar quais os actos "convenientes para o apuramento da verdade " nem por sombras é uma actividade simples e indiscutível. Pode, com efeito, o juiz instrutor considerar o requerimento de produção de prova irrelevante, e vir tal meio a ser considerado fulcral, basta que no momento anterior à sua produção o juiz não esteja a compreender o alcance do raciocínio do arguido. Por outro lado, e considerando, como julgo, que no processo penal existem partes contrapostas (parte civil e ministério público de um lado, arguido e demandado civil do outro), regularmente o juiz penal será chamado a um juízo sobre os direitos de uma parte em relação com os da outra, para assegurar a tal paridade de posições processuais. Ora, o domínio probatório é uma das áreas de eleição para o degladiar-se das partes, e por isso é imprescindível assegurar a máxima paridade possível entre elas. Precisamente a busca da justiça e da equidade não podem deixar de surgir naquele espaço do processo que às partes é deixado em ordem à busca, introdução e admissão das provas. Ou seja, e conclusivamente, devia a dita interpretação do 407º, nº 2 do CPP/87 ter

190 Por outras palavras, um direito a conseguir a demonstração da realidade dos factos, para usar a clara expressão

do artigo 341º do CC. Aliás, forte argumento no sentido de que as partes têm um direito à prova é o facto de a própria palavra prova em si, sendo plurívoca, poder querer significar a actividade das partes. Neste sentido, Antunes Varela, J.Bezerra e S.Nora, Manual de Processo Civil, 2ªEd., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp.434 e ss e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume II, Verbo, Lisboa, 1994, pp. 77 e ss. 191 Só assim, aliás, tem sentido a afirmação do próprio Acórdão nº 474/94 do TC segundo o qual "...a Constituição garante aos arguidos que o processo penal lhes assegura 'todas as garantias de defesa', ou seja, todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contraria a acusação ".

sido declarada inconstitucional, não tanto porque viole o direito ao recurso, mas essencialmente porque viola o direito à prova192/193 do arguido, direito esse cujo exercício nos termos , prazos e fases processuais em que está previsto, não pode ser violado por mecanismos processuais ínvios. ===== X ===== Temos assim, e em jeito de balanço, a consagração de uma posição geral de aceitação do relevo constitucional do Direito-ao-Recurso, o qual é suscpetível de limitações. Pode escolher-se como paradigma de tal conclusão o Ac. nº 353/91, na parte em que afirma que o artigo 20º, nº 2 da CRP consagra um direito de acesso aos tribunais; essa garantia de via judiciária traduz-se prima facie no direito de petição a um tribunal para dele obter decisão jurídica sobre questão relevante, mas também compreende, necessariamente, a protecção contra actos jurisdicionais. Ou seja: o direito de acção incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais, o qual só é exercível mediante o recurso para outros tribunais 194. Do mesmo passo tal direito ao recurso se integra nas garantias de defesa asseguradas pela CRP para o processo criminal195.

192

Metelo Scaparone, Il II comma dell'art. 24, Il diritto di difesa nel processo penale, in Commentario della Costituzione a cura di G.Branca (Art. 24º a 26º), Zanichelli Editore, Bologna, Il Foro Italiano, Roma, 1981, escreve que os expedientes instrumentais em relação ao princípio da defesa abrangem o direito ao contraditório, o direito a preparar e enunciar a tese defensiva, e de obter a assumpção das provas que a sustentam, entre outros. 193 A Corte Costituzionale Italiana, pelo Ac. nº 53 de 3 de Junho de 1966, afirmou que a disponibilidade da prova dos factos considerados idóneos a comprovar o bem fundado das razões adoptadas pela defesa, porque se se nega ou se limita à parte o poder processual de apresentar ao juiz a realidade dos factos favorável à defesa, se se lhe nega ou restringe o direito a exibir os meios representativos de tal realidade, se recusa e se limita a tutela do direito de defesa (Giur.Cost., 1966, p. 869). Posteriormente, pelo Ac. nº 41/1965, preferiu a Corte não discutir a existência ou não de uma garantia constitucional de duplo grau de jurisdição. 194 Traz este Acórdão ainda um outro argumento relevante: é que a favor da tese de que o direito de recurso de actos jurisdicionais tem dignidade constitucional, milita a explícita previsão Constitucional da existência de tribunais de primeira instância e de tribunais de recurso, constante do artigo 212º, nº 1, al. b) da CRP (hoje 211º, nº 1 al. a)). Aliás, escreveu Jorge Miranda, no seu Manual de Direito Constitucional, vol. IV, 1988, p. 261, que: "Relativamente aos actos jurisdicionais ofensivos de direitos das pessoas, a impugnação faz-se por recurso ou por reclamação, observadas as disposições processuais aplicáveis. Por certo, por o princípio se encontrar suficientemente acautelado na legislação ordinária, a constituição (a actual, como todas as anteriores) não sentiu necessidade de o consignar. ". 195 Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, III-Recursos, 1982, p. 126, salienta que "o legislador ordinário não pode suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos ".

II - A extensão e os limites do "duplo grau de jurisdição" em matéria penal. A aceitação de relevância constitucional do direito ao recurso pelo TC, e no que concerne ao âmbito operativo desse duplo grau, oscila, pois, entre as posições dos Acórdãos 340/90 e 401/91, por um lado, e 61/88 e124/90, por outro. Pelo que temos duas posições que reconhecem a vigência constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, mas julgando uma que tal direito se restringe no que respeita ao recurso da matéria de facto, e julgando outra que tão importante é reconhecer o direito ao recurso quanto a decisões de direito, como quanto a decisões de facto. Tudo se resume pois a entendimentos diferentes sobre a extensibilidade dos poderes cognitivos dos tribunais de recurso. Vejamos a evolução dessa Jurisprudência, dada a sua fulcralidade para este relatório, e os respectivos argumentos. No Ac. nº 61/88 afirma o TC que "terá de começar por reconhecer-se que este direito (o direito a um duplo grau de jurisdição) é decerto, no domínio processual penal, ao menos em geral, e seguramente no âmbito dos processos de querela, uma exigência da constituição, decorrente do princípio da defesa do arguido " , e remete para os Acórdãos nºs 7/87 e 55/85. Segue o TC: "Mas se isto é assim como princípio, terá também de reconhecer-se que, tratandose de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso ". Esgrime depois o TC com um argumento relevante: "É deste modo que, cabendo embora às Relações, segundo o art. 665º do antigo CPP, conhecer de facto e de direito nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos, 'baseando-se para isso (...) nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos', um tal poder de cognição -como veio esclarecer o Assento do STJ de 31/07/1934- 'tem de entender-se no sentido de que as mesmas Relações só podem alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos'.E (...) não será inoportuno salientar que também no novo CPP -não obstante a sua extrema preocupação de articular um processo correspondendo plenamente a todas as exigências do princípio constitucional de defesa- não deixam de se estabelecer limites ao recurso quanto à matéria de facto, e limites que em especial ocorrem quando em 1ª instância justamente intervém o tribunal colectivo (ou do júri): é o que decorre dos seus artigos 432º e 433º, que cumpre combinar com os artigos 410º, nº 2 e 436º ".

Aliás, e considerando que o direito ao recurso não tem que abranger a matéria de facto por imperativo constitucional, considera o Acórdão em análise que a não fundamentação da resposta aos quesitos não viola as garantias de defesa enunciadas no artigo 32º, nº 1 da CRP. Assim demonstra o TC a improcedência das alegações de inconstitucionalidade. No Ac. nº 124/90, e retomando-se a argumentação atrás apresentada, vem dizer-se essencialmente que entre as garantias de defesa se conta o direito de impugnar, mediante recurso, para a jurisdição superior, as sentenças penais condenatórias. Porém, tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e de imediação da prova que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito. Assim o TC neste acórdão entende que o 665º não é inconstitucional. Realmente o direito ao recurso é uma garantia de defesa196. Mas o reconhecimento de tal direito a um duplo grau de jurisdição surge apenas "como princípio ". E justifica o TC tal entendimento: com efeito a repetição integral da prova perante o tribunal de recurso, por sistema, seria absolutamente impraticável e revelar-se-ia de todo inconveniente . Quanto às razões da inconveniência diz o TC que "há cada vez mais razões para olhar com cepticismo os segundos julgamentos, necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral " 197. Quanto à impraticabilidade considera o TC o seguinte: "Não despiciendo é (...) o facto de a leitura ou a audição pelo tribunal de recurso da prova produzida perante o tribunal colectivo -para além de se tornar pouco menos que suportável- acabar por fazer com que a prova se perca como prova, justamente porque lhe falta a força da imediação. Ao que acresce que esse registo de prova, a ser feito por sistema, tornar-se-ia impraticável ". Por fim surge um último argumento: "é que os tribunais não dispõem de meios estenotípicos, estenográficos ou de registo de som, e nem se vê que deles venham a dispor de imediato ". Por isso, diz o TC, é que "o novo Código de Processo Penal só previu a documentação da prova prestada oralmente na audiência em dois casos, a saber: 'quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de registo de som, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral' das declarações e depoimentos (363º); ou tratando-se de prova produzida perante o tribunal singular, quando, 'até ao início das declarações do arguido ..., o Ministério 196 E o Tribunal nem nega a sua relevância

nos textos internacionais, ao contrario da Corte Costituzionale Italiana, sempre céptica, agnóstica ou fugidia a tal questão. Assim Ac. nºs 1/1970 (in Giur.Cost., 1971, 2852), 117/1973 (in Giur.Cost., 1973, 1275, que afirma que "o duplo grau de jurisdição de mérito não tem relevância constitucional e não inere, por necessária consequência, à garantia de defesa "). De 1974 em diante vem a Jurisprudência Constitucional Italiana a alternar entre decisões em que mantem a posição exposta e outras em que reconhece ao direito ao recurso um papel pelo menos parcialmente idóneo a integrar o conceito de Defesa. A posição expressa da Corte Costituzionale surge só com o Ac. 62/1981 (in Giur.Cost., 1981, I, 351). 197 Citando Cunha Rodrigues, op. cit. p. 393.

Público, o defensor ou o advogado do assistente declarem que não prescindem da documentação' (364º, nº 1) ". Tudo pois concorre, julga o TC, para que o recurso das decisões de facto do tribunal colectivo, enquanto nele se visa a reapreciação dos factos, não possa ter um desenho muito diferente do previsto na norma sub judicio . Segue depois o TC com a repetição de considerações já feitas no Ac. nº 61/88 e com a afirmação de Cunha Rodrigues, segundo o qual "são muitos os sistemas, mesmo na Europa a que pertencemos, que, e o que é mais significativo na criminalidade mais grave, se satisfazem com uma única instância quanto ao apuramento dos factos " 198. A estes argumentos, de sentido negativo em relação à instauração de um regime de recurso de efectiva Apelação, junta o TC um argumento positivo para o regime vigente: é que a maior garantia de acerto no julgamento da matéria de facto reside no tribunal colectivo e nas suas regras de funcionamento. O recurso das decisões dos tribunais colectivos gizado 199, representa uma "válvula de segurança" suficiente contra riscos, possíveis, de erro e injustiça na decisão de facto da questão penal 200. Conclui o TC negando provimento ao recurso, sempre dizendo que apesar de não ser sistema perfeito é quanto basta para servir as necessidades de defesa do processo de querela em termos de não haver de concluír pela inconstitucionalidade da norma do 665º, tal como interpretada pelo Assento de 29 de Junho de 1934 201. Cumpre agora analisar os Acórdãos nºs 340/90 e 401/91. O Ac. nº 340/90202 declara expressamente que nas garantias de defesa que o processo 198

Cunha Rodrigues, op.cit., p. 392. O TC reportava-se aí ao regime do artigo 665º do CPP/29 e Assento de 1934, mas Cunha Rodrigues utiliza exactamente a mesma panóplia de argumentos para louvar o regime trazido pelo CPP/87 (op. cit., pp. 392 e s). 200 O TC seguia a sua linha argumentativa do seguinte modo: Ao que acresce que as Relações podiam alterar as decisões do tribunal colectivo sobre matéria de facto quando do processo constassem todos os elementos de prova que lhes haviam servido de base, ou quando se tratasse de factos plenamente provados por documento autêntico. Podiam ainda as Relações anular tais decisões com base no facto de que as respostas aos quesitos eram deficientes, obscuras ou contraditórias, e podiam ainda formular novos quesitos quando indispensáveis para a boa decisão da causa (712º, nº 2 e 650º f), do CPC, ex vi do 1º § únº do CPP/29). Acresce ainda o facto de haver recurso da Relação para o STJ, o qual podia sempre mandar ampliar a matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão do direito, apesar de não poder exercer censura quanto ao modo como as instâncias chegaram às conclusões sobre os factos ( Sobre isto cfr. Acórdão do STJ de 17/07/68, in BMJ , nº179º, p. 106. Diz o TC: "Eis aqui, pois, um 'plus' de garantia, um remédio mais, contra uma decisão de um tribunal colectivo sobre a matéria de facto que acaso seja errada e susceptível, por isso, de levar a uma sentença injusta ".). 201 Este Acórdão foi aprovado com quatro votos favoráveis, contra três contra. Destes últimos dois apresentaram votos de vencido (os Juízes Conselheiros, Dr. Nunes de Almeida e Dr. Mário de Brito). 202 Este Acórdão foi tirado em plenário para se obter uniformidade de jurisprudência do próprio TC, isto porque: no Ac.219/89, da 1ª Secção, julgara-se inconstitucional o 665º do CPP/29. Com efeito tal norma, equacionada com o 466º do CPP/29 reduz a possibilidade de reapreciação pelas Relações da Matéria de facto de modo que infringe o princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal, deduzível para o arguido do 32º, nº 1 CRP, 199

penal deve assegurar (32º, 1) inclui-se o direito de recurso das decisões do tribunal colectivo em matéria de facto, pelo que é inconstitucional o 665º CPP/29 na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do STJ de 29/06/34. Isto na medida em que não"constitui garantia suficiente para os efeitos do citado preceito constitucional ". Aceita o TC neste aresto que nem a nossa CRP, nem a DUDH, nem a CEDH consagram expressamente, entre as garantias de defesa, o duplo grau de jurisdição, ou o direito ao recurso. Porém já o PIDCP reconhece no 14º, nº 5 claramente que "qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei ". Mas conclui o TC que "... esse direito tem sido afirmado, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, podendo considerar-se assente que ele cabe nas 'garantias de defesa' asseguradas pelo citado artigo 32º da constituição, se não mesmo no 'acesso aos tribunais, garantido pelo nº 2 do artigo 20º ". E segue: "Pela sua própria natureza, a protecção contra actos jurisdicionais assume lugar autónomo e relevo especial, visto que estão em causa os próprios juízes e tribunais, isto é, os órgãos constitucionalmente habilitados a defender e a garantir os direitos e interesses legítimos dos cidadãos. A defesa contra eles só pode estar noutro tribunal, com poder de revogar a decisão ofensiva dos direitos -e daí que o direito de recurso para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes garantias constitucionais "203. Sustenta-se depois o TC na opinião de Gomes Canotilho204, quando este afirma que "Outro importante princípio em matéria de exercício da função jurisdicional é o chamado princípio da revisão ou reapreciação total ou parcial dos actos jurisdicionais por parte de outros juízes. Este princípio impõe, em alguns casos, uma verdadeira 'revisão de sentenças' (cf. o artigo 29º, nº 6, em matéria criminal) e, de uma forma geral, a possibilidade de recurso para tribunais superiores (cf. o artigo 215º). Precisamente por isto, defendem alguns autores a dignidade constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, segundo o qual uma causa deve ser reapreciada (em qualquer dos seus aspectos) por um juiz de 2ª instância, quando seja interposto recurso da decisão do juiz de 1ª instância. O princípio, em toda a sua latitude, não está expressamente constitucionalizado, embora se aponte para uma tendencial generalidade de controlo dos actos jurisdicionais, quer assegurando às partes os meios de impugnação adequados, quer impondo ao Ministério Público o dever de recorrer ex officio de certos actos judiciais. " Refere também o TC o argumento de Jorge Miranda, segundo o qual o princípio do

sendo irremissivelmente inconstitucional; depois, no Ac. 124/90 a 2ªSecção não julgou inconstitucional o 665º CPP/29, o que levou o MºPº recorreu para o plenário para obter uniformidade de jurisprudência. 203 Aqui o Acórdão cita Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 2ª ed., 1º vol., 1984, p. 181. 204 Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª Ed., 1991, p. 769.

duplo grau de jurisdição só não está expresso na CRP mercê do facto de se encontrar o mesmo suficientemente assegurado pela legislação ordinária 205. Ademais, diz o TC, tem sido entendimento uniforme da jurisprudência constitucional que a CRP garante o duplo grau de jurisdição em sentenças condenatórias em matéria penal 206. Recorrendo a Jurisprudência anterior declara o TC: "Essa faculdade (de recorrer em processo penal) constitui uma peça dominante do quadro dialético em que se desenvolve o processo penal; é ela que permite ao arguido superar a antítese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento " 207. Porém, e concordando com o Ac. nº 219/89, aceita que o direito ao recurso não é um valor absoluto. Não sendo, porém, absoluto tal princípio, pergunta de seguida o TC se ainda se deverá considerar como imposição constitucional o direito ao recurso das decisões do colectivo em matéria de facto no processo penal. Ou seja, vai passar o TC a apreciar das razões de praticabilidade e conveniência constantes do Ac. nº 61/88. Para tanto o TC vai integrar o 665º do CPP/29 no seu contexto sistemático208. Pondera em seguida o TC que mesmo depois de o novo Código de Processo Civil vir dispor que o tribunal colectivo, deve, quanto aos factos que julga provados, especificar "os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ", tem sido entendimento uniforme da jurisprudência que não é necessária ou até é proibida a fundamentação da resposta aos quesitos em processo penal 209. E o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela não inconstitucionalidade dessa norma210. Porém o TC vem retomar um anterior argumento da Jurisprudência Constitucional, ao afirmar que"no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto 205

Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, 1988, p. 261. Assim Acórdãos nºs 358/86, 359/86, 8/87, 31/87 e 259/88. O TC, no acórdão que se está a comentar relembra também o projecto de CPP quando afirma que se tem em vista "dar expressão à garantia ínsita na existência de uma dupla jurisdição ". 207 Ac. nº 8/87 do TC. Na mesma linha o Acórdão nº 219/89 diz que "o direito ao recurso...constitui, no processo penal, uma importante garantia de defesa ", que se deve ter por incluída nas garantias de defesa de que fala o 32º, nº 1, e que "no domínio processual penal há, pois, que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição ". 208 Pondera o TC que a resposta só pode dar-se conjugando o 665º com os artigos 466º e 469º do CPP/29. O 466º rezava assim: "O interrogatório do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos ou outras pessoas, feitos na audiência, serão prestados oralmente, salvo quando a lei determinar o contrário ". E o 469º originariamente dispunha que "o tribunal colectivo julga de facto, definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito, com recurso para a respectiva Relação", vindo depois do Decreto nº 20.147 a ser o seguinte o seu teor: "o tribunal colectivo responderá especificadamente a cada um dos quesitos, assinando todos os vogais, sem qualquer declaração ". 209 Assim os Acs STJ de 29/02/84 e de 29/10/86, in BMJ nºs 334, p. 359 e 360, p. 494. 210 Acórdãos do TC nºs 55/85, 61/88, 207/88, 304/88, 219/89 e 124/90 (este sob recurso no momento em que se lavrava o Acórdão nº 340/90 que ora se analisa). 206

como da solução que haja sido dada à questão de direito " 211. E o TC vem a tomar este argumento como decisivo, pelo que conclui que num sistema como o instituído pelo CPP/29, o respectivo artigo 665º entendido como o faz o Assento de 1934, não constitui suficiente garantia para o arguido, e ofende o 32º, nº 1 CRP. Isto porque em tal sistema a prova produzida perante o Tribunal Colectivo não é reduzida a escrito (466º CPP/29) e as respostas aos quesitos não são fundamentadas (469º CPP/29). "Só excepcionalmente e em casos contados, constarão dos processos elementos susceptíveis de levar as relações a alterar a decisão do colectivo e, por outro lado, a faculdade de anulação dessa decisão, com base em vícios dos quesitos ou das respostas -ao abrigo do nº 2 do artº 712º do CPC- em bem pouco alargará no domínio fáctico o poder cognitivo das Relações " 212. Para finalizar, e quase com um mea culpa pelo enorme progresso que tal jurisprudência representava, afirmava o TC: "O que fica dito não poderá ser entendido como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência pública perante as Relações está em conflito com a Constituição. Entre o sistema em questão, que, na prática, e na grande maioria das situações, reduz a zero os poderes das Relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso outros há certamente -não compete a este Tribunal indicá-los- que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional " 213/214. Por fim resta apreciar o Ac. nº 401/91215. A valia deste Acórdão reside essencialmente em se tratar da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do 665º do CPP/29 na interpretação dada pelo Assento do STJ de 29 Junho de 1934, norma até aqui no centro da polémica que me tem ocupado. 211

Acórdão nº 219/89 do TC.

212 Sobre a valia actual da tese do TC aqui apresentada, e sob a similitude real que existe entre o regime do CPP/29

aqui apresentado e o regime resultante do CPP/87, veja-se o que escrevo no ponto III do § 5 deste Relatório. 213 Repare-se que este Acórdão é de 1990, e desde 1 de Janeiro de 1988 que estava em vigor o novo CPP, que, como demonstrarei, assumiu uma posição pelo menos estranha no que concerne ao conhecimento em sede de recurso da matéria de facto. Estranha porque é consagrado um princípio geral de recorribilidade quer quanto aos factos quer quanto ao direito, mas que depois é completamente esvaziado de sentido pela concreta regulamentação e entendimento de realidades como a documentação da prova, a fundamentação e as especialidades dos recursos para as Relações e para o Supremo Tribunal de Justiça. 214 Só como dado meramente informativo é de salientar que este Acórdão nº 340/90 foi votado favoravelmente por oito juízes, sendo votado negativamente por outros cinco, a saber: Dr.Alves Correia (pelas razões constantes do Ac. nº 124/90), Dr Messias Bento (com declaração de voto em anexo), Dr. Nunes de Almeida (pelas razões do Conselheiro Dr.Messias Bento), Dr. Bravo Serra (pelas razões constantes do Ac. nº 124/90) e Dr. Cardoso da Costa (pelas razões constantes do Ac. nº 124/90). 215 Na sequência do Ac. 340/90 em que a inconstitucionalidade do 665º CPP/29 foi declarada por maioria, tirou a 1ª Secção outros dois acórdãos no mesmo sentido, os nºs 23/91 e 48/91 sempre julgando inconstitucional a dita norma. A 2ª Secção seguiu a mesma orientação nos Acórdãos nºs 77/91; 187/91; 236/91; 335/91 e 350/91. Daí a procedibilidade do presente recurso para declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da dita norma.

Depois de algumas considerações preliminares, em que o TC explana a problemática subjacente à norma em apreciação, retoma-se neste Acórdão grande parte da fundamentação expendida no Ac. nº 350/90 216. Assim, e de novo sob os argumentos de autoridade de Gomes Canotilho, Vital Moreira, José Mourisca e Jorge Miranda vistos supra, o TC vem dar resposta afirmativa à questão de saber se deve haver ou não um direito ao recurso das decisões em matéria de facto do Tribunal Colectivo. Diz o TC compreender as razões de praticabilidade e conveniência enunciadas no Ac. nº 124/90, mas que uma visão global da questão tal como está regulamentada no CPP/29, impõe concluir como se fez no Ac. nº 219/89. Conclui seguidamente nos mesmos termos do Ac. nº 340/90. Claro que ao afirmar que são ponderosas as razões de praticabilidade e conveniência do Ac. nº 124/90, parece que o TC aqui não deixa de considerar tais argumentos como relevantes. Poderia até pensar-se que as conclusões de inconstitucionalidade se prendiam exclusivamente com o regime desenhado pelo CPP/29, pois são razões advenientes de tal regulamentação que o TC contrapõe às ditas razões de praticabilidade e conveniência na apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso. Veremos, porém, que as diferenças entre o antigo e o novo Códigos de Processo Penal não são tão acentuadas como à primeira vista se podia pensar. ===== X ===== Em jeito de conclusão da análise a toda a jurisprudência que se estudo, e atenta também em especial a superior valia deste último aresto apresentado, parece ser conclusivo que: a) a Constituição consagra um Direito-ao-Recurso, integrado no global Direito de Defesa (32º, nº 1)217, direito esse decorrente também do princípio do acesso à justiça e aos Tribunais (artº 20º CRP)218; b) que tal Direito-ao-Recurso se traduz no reconhecimento ao arguido do direito de recorrer da solução dada à questão de facto e da solução dada à questão de direito 219;

216

De referir em especial a consideração dos textos internacionais sobre os direitos fundamentais e o processo penal, considerando o TC que o cotejo de tais textos marca o sentido de uma evolução na óptica do direito de defesa. Salienta-se neste domínio a relevância do 14º, nº 5 do PIDCP. Conclui o TC daí que um entendimento mais exigente das garantias de defesa dos arguidos tem encontrado acolhimento na doutrina e na jurisprudência, "em termos tais que bem se pode ter por assente que o direito ao recurso tem cabimento no âmbito das 'garantias de defesa' consagradas no 32º da CRP, se não mesmo, e desde logo, por força do direito de acesso aos tribunais constante do artigo 20º da nossa lei fundamental ". 217 Assim os Acórdãos do TC nºs 40/84, 55/85, 7/87, 61/88, 219/89, 220/89, 118/90, 124/90, 209/90, 340/90, 332/91, 353/91, entre outros. 218 Assim expressamente Ac. nº 353/91 do TC e Declaração de Voto de vencido de Vital Moreira, anexa ao Ac. nº 207/88 TC. 219 Assim expressamente Acórdãos do TC nºs 219/89, 340/90, 401/91 e 234/93, entre outros.

c) que o Direito-ao-Recurso não é absoluto, podendo ser limitado em certos casos, desde que com tal restrição não se viole o núcleo essencial desse Direito, e dos subjacentes princípios da Defesa, do Acesso aos Tribunais e do Estado de Direito Democrático 220; d) que consequentemente, as restrições feitas pelo legislador ou resultantes da aplicação da lei, não podem ser no sentido de esvaziar de conteúdo a garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição221; e) que o que fica dito não poderá ser entendido como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência pública perante os Tribunais de Recurso está em conflito com a Constituição 222.

220

Assim expressamente Acórdãos do TC nºs 61/88 e 124/90, entre outros. De modo difuso pode encontrar-se afloramentos disto na Declaração de Voto de vencido de Vital Moreira, anexa ao Ac. nº 207/88. 222 Fugindo o TC, legitimamente, às agruras de encontrar esse outro sistema que compatibilizará o processo penal com o direito ao recurso. Aliás, esta cautela era imperiosa, sob pena de se ter que considerar inconstitucional o regime instituído pelo novo CPP (Cfr. Acórdãos nºs 340/90 e 401/91 do TC). 221

III - O regime dos recursos do Código de Processo Penal de 1987 à luz do princípio do duplo grau de jurisdição constitucionalmente consagrado. a) Como já tive oportunidade de salientar, o actual CPP dispõe no seu artigo 399º a regra geral de recorribilidade das decisões judiciais: "É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na Lei ". Por seu turno, o artigo 410º, nº 1 do mesmo diploma traz outra regra geral, a de que "Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida ". Temos assim que o sistema processual penal Português assume que, em princípio, todas as decisões judiciais são susceptíveis de recurso, e que nesse recurso o tribunal ad quem

tem poderes cognitivos gerais. Ou seja, e por outras palavras, o desenho legal dos

recursos no CPP/87 segue, como regra, o regime da apelação 223/224. Aliás, que esse foi o propósito confesso do legislador, decorre da leitura do preâmbulo do CPP/87 quando neste se afirma que "Inovador a muitos títulos é, em terceiro lugar, o regime de recursos previsto neste Código. Com as inovações introduzidas procurou obter-se um duplo efeito: potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência; e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico "225. E segue o legislador na apresentação do CPP/87 afirmando: "No que aos recursos especificamente respeita, estabelece o Código um regime aparentado com a ideia do recurso unitário, em princípio idêntico para a Relação e para o Supremo e abarcando, na medida do possível e conveniente, tanto a questão de direito como a questão de facto " 226. Porém, a confirmação destas declarações de intenções só se tem quando, em concreto, se confronta o regime geral com as especificidades do regime de recurso perante as Relações e perante o STJ.

223

Escreve José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, cit., pp. 375 e ss, sobre o recurso de Apelação o seguinte: "...é um recurso amplo que cabe de decisões de mérito da causa (...) proferidas em primeira instância.(...); a finalidade actual deste recurso define-se assim: meio de realizar o duplo grau de jurisdição, garantia preciosa de justiça do julgado. (...) O recurso de apelação destina-se precisamente a provocar o segundo exame da matéria da causa por parte do tribunal superior. ". 224 Escreve José João Baptista : "O recurso de apelação é o recurso por excelência. É nele que se encontra a função primordial dos recursos, de reparação dos erros e injustiças materiais. E estes vícios são, insofismavelmente, a causa de maior prejuízo para quem decaíu na demanda. Daí que a apelação tenha, como âmbito, a revisão total da sentença, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito. Discutiuse já, inclusivamente, se a finalidade da apelação devia ser a de efectuar um simples reexame da sentença ou se devia legitimar uma renovação do próprio processo. Isto é, se se devia pôr em causa apenas a decisão final ou todo o processo. " (Dos Recursos , 2ª Ed., rev.e act., Universidade Lusíada, 1993, p.63 e nota 65). 225 Preâmbulo do CPP, III, 7, c). 226 Preâmbulo do CPP, III, 7, c) in fine .

Assim, e começando pelo grau mais elevado de jurisdição, temos que o Supremo Tribunal de Justiça, que conhece dos recursos das decisões do Tribunal Colectivo ou do Júri, tratando-se de acórdãos finais ou de decisões interlocutórias cujo recurso deva subir a final, só conhece de matéria de direito, nos termos expressos do artigo 433º do CPP/87. Ou seja, a regra é a de que o STJ nunca pode conhecer de matéria fáctica, "sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3... "

segundo diz o próprio 433ºCPP/87. Logo a

regra é precisa e exactamente a inversa daquela que o legislador expressamente afirma no 399º. Ou seja, o STJ permanece exclusivamente como tribunal de revista227. Quanto ao alcance da ressalva do 433º, adiante será explicada. Passando às Relações, que conhecem das decisões do Tribunal Singular sejam elas decisões finais ou interlocutórias, diz-nos o 428º, nº 1 que estas "conhecem de facto e de direito ". Porém, não nos devemos iludir com esta conclusão, e antes de descansar a pena continuar a ler o artigo 428º. É que no seu nº 2 se diz que "a falta da declaração referida no artigo 364º, nºs 1 e 2, vale como renúncia ao recurso em matéria de facto ", isto uma vez mais "sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3... " . b) Há pois que ver em que consiste a tal "falta de declaração referida no artigo 364º, nºs 1 e 2 ", para depois se passar a analisar os nºs 2 e 3 do artigo 410º. Diz o artigo 364º nº 1 que "as declarações prestadas oralmente em audiência que decorrer perante o tribunal singular são documentadas na acta sempre que, até ao início das declarações do arguido previstas no artigo 343º, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declararem que não prescindem da documentação... " . Ou seja: o 364º trata da complexa questão da documentação da prova em audiência, e da leitura deste normativo resulta que a renúncia a tal documentação é TÁCITA! A regra é pois a de que a documentação não terá lugar, a menos que alguns dos sujeitos referidos a requeira expressamente, e no prazo aí assinado 228. Logo, quando por qualquer motivo229 não se faça a declaração aí prevista, não haverá documentação da audiência, e mercê do artigo 428º, nº 2 227

Cunha Rodrigues, op. cit., p. 393, fala em recurso de "revista alargada". Como tal "alargamento" decorre, nas próprias palavras desse autor, do mecanismo dos nºs 2 e 3 do 410º, e da "superior garantia que representam os tribunais colectivos", remeto para diante as considerações que tal expressão me merecem. 228 "Prazo" esse que é curto, pois como resulta do 341º do CPP, as declarações do arguido são o primeiro dos actos de produção de prova. Repare-se que a audiência, antes das declarações do arguido, apenas é constituída pela verificação da presença dos intervenientes processuais (artigos 329º-337º) e pelas exposições introdutórias (339º). 229 Esse motivo pode ser o simples esquecimento, descuido ou imperícia do defensor. Ora se se atender a que a maioria dos processos penais são feitos com recurso a defensores oficiosos, menos experientes, em razão da idade, e menos motivados para o exercício do patrocínio, em razão da praxe remuneratória do nosso foro, facilmente se compreenderá que na grande maioria dos processos não haja na realidade qualquer efectividade do direito ao

não haverá recurso em matéria de facto, nem sequer da primeira instância para as Relações230. Ora com semelhante quadro fica definitivamente desmitificada a regra geral do 410º, nº 1. A regra é a de que o STJ não conhece nunca de matéria de facto, e a Relação, embora teoricamente possa conhecer de facto e de direito, na prática conhecerá só de direito, mercê deste entranhado jogo de remissões legais criado pelo legislador na definição do regime dos Recursos. c) Por último falta analisar da ressalva constante dos artigos 428º, nº 2 e 433º. Vejamos, pois, sequencialmente o que diz o legislador quanto ao significado do inciso "sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3... ", e qual o significado que julgo ser de lhe atribuír. 1) A justificação do legislador. Afirma Cunha Rodrigues231 que "Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (...) o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova. Ainda naqueles casos, o recurso pode sempre ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada ". Esta pois a leitura linear do regime instituído no artigo 410º, nºs 2 e 3 232. recurso em matéria de facto. 230 Quanto à documentação da prova nos Tribunais Colectivos, a regra ainda é mais espantosa: diz-nos o artigo 363º do CPP de 1987 que "As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser ". Assim, de duas, uma: ou a lei não impõe tal documentação e aqui o registo de prova só existirá se o tribunal tiver disponíveis os meios referidos no 363º; ou a lei impõe expressamente a documentação, e o registo da prova efectuar-se-á ou através de meios técnicos (363º) ou através do meio especial previsto no 364º nº 3. Esta parece ser a única leitura útil dos artigos 363º e 364º. 231 Cunha Rodrigues, op.cit., pp. 393 e s. 232 Repare-se que Cunha Rodrigues vai mesmo ao ponto de, na página seguinte, afirmar que "Esta solução ganha redobrada coerência quando se recordar que as formas de processo estão organizadas segundo a natureza singular ou colegial do tribunal e que a própria definição de competência dos tribunais é, pela primeira vez, temperada com critérios que têm que ver com a maior ou menor complexidade de captação e valoração da prova (artigo 16º, nº 1 e alínea b). ". Desde já se diga que dificilmente compreensível é o fim visado por este autor com tal argumento. De todo o modo, através do exemplo que dá em nota 9 dessa mesma página 394, facilmente se compreende a petição de princípio de todo o raciocínio. Com efeito dá Cunha Rodrigues o exemplo do crime de emissão de cheque sem provisão, que pela sua simplicidade é sempre julgado pelo tribunal singular, seja qual fôr a pena aplicável. Ora bem se vê que o legislador se esqueceu do tempo em que vive. Um crime de emissão de cheque sem provisão pode implicar produção e análise de prova extremamente complicada. As relações comerciais transnacionais, as relações económicas motivadas por um mundo em devir ainda nem sequer pensado pela dogmática penalista, o carácter virtual de muitas das transacções (através da Internet, por exemplo), a complexidade na avaliação de muitos registos contabilísticos e orçamentais de entes públicos e privados, mostram

Ou seja: se às palavras em louvor do regime instituído apresentadas atrás, se juntarem as afirmações constantes do nº III.7.c) do Preâmbulo do CPP/87, ficamos com a ideia de que na perspectiva do legislador, não só a regra geral é a do conhecimento pelo tribunal de recurso da matéria de facto, como até nos casos em que o tribunal só pode conhecer de direito, se cria uma via que possibilita a entrada do tribunal ad quem na sindicância da matéria de facto apreciada na primeira instância. 2) O outro

entendimento de "sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e

3 ". Cabe agora ver da significância real deste conhecimento automático

pelos tribunais

de recurso de "matéria de facto" que nos é apresentado como caracterizando o sistema de recursos penais Portugueses. Antes de mais saliente-se, em conformidade com o atrás exposto, que "Mesmo nos casos " atrás referido por Cunha Rodrigues, significa na verdade "a maioria dos casos".

 - Assim repare-se que o corpo do número 2 do artigo 410º restringe a sindicabilidade do tribunal ad quem ao "texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada 233com as regras da experiência ". Ora quanto a isto nada melhor do que apreciar a vasta jurisprudência constitucional que se debruçou sobre a constitucionalidade do artigo 665º do CPP/29 na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do STJ de 29/06/1934. Na versão original do artigo 665º do CPP/29 as Relações conheciam, quanto aos recursos das decisões dos tribunais colectivos, apenas de direito; pela alteração introduzida pelo Decreto 20.147 de 1 de Agosto de 1931 passaram nesses casos a conhecer também dos factos, mas para tal só se podiam basear em documentos, respostas aos quesitos e quaisquer outros elementos constantes dos autos. Mercê de divergências doutrinais agudas sobre o efectivo significado desta alteração, surge o Assento do STJ de 1934 em que se afirma "as relações só poderem alterar as decisões dos tribunais colectivos de primeira instância em face à saciedade que um julgamento por crime de emissão de cheque sem provisão pode ser de dificílima realização. Mostram também que o nosso legislador do CPP ficou preso atavicamente a um sistema em que o crime de emissão cheque sem provisão é aquele em que um indivíduo passa um cheque não dispondo no respectivo depósito bancário da quantia necessária para o provisionar, esquecendo que o artigo 11º do Dec.Lei 454/91 traz outras formas de comissão do crime, bem evanescentes em concreto de serem apreciadas, e que podem implicar apreciação de prova colossalmente complexa e volumosa. Logo também por aqui não se compreende de que "redobrada coerência" nos fala o Procurador Geral da República. Ademais, não será inoportuno citar o Parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional (Edição oficial, vol. 16º, p. 156) quando afirmava: "os direitos do arguido devem em primeira linha ser defendidos pelo legislador e não deixados à possibilidade de aquele deparar ou não com um bom juiz. Como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, é inadmissível transferir para a responsabilidade do juiz aquilo que (...) só ao legislador deve competir ". 233 Claro que o legislador queria dizer "conjugado" uma vez que se refere ao texto da decisão, e não a qualquer sua manifestação imaterial.

de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos ". Foi clara então a intenção do STJ: restringir os poderes de cognição das Relações quanto à matéria de facto, em sede de recurso234. Face a isto surge viva oposição da doutrina, como, e entre outros, José Mourisca 235,

e Figueiredo Dias 236/237. A polémica foi duradoura, chegando até ao presente. Assim começou a discutir-se

uma eventual declaração de inconstitucionalidade da dita norma, isto porque o preceito acabava por determinar que as Relações, "nos recursos das decisões condenatórias dos tribunais criminais colectivos, ao conhecerem da matéria de facto, haverão de basear-se exclusivamente nos documentos, resposta aos quesitos e outros elementos constantes dos autos, a ponto de só lhes ser lícito alterar, a esse nível, aquelas decisões em face de elementos do processo que não tiverem podido ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que hovesse determinado as respostas aos quesitos " 238. Assim no Ac. nº 219/89239, da 1ª Secção, vem a julgar-se inconstitucional a dita norma. Isto na medida em que tal norma, equacionada com o 466º do CPP/29, reduzia de

234

Pelo vocábulo "só" resulta que a uniformização de jurisprudência então operada procedia a uma restrição da competência das Relações. 235 Escrevia José Mourisca em 1934 : "de que serve a lei conferir à relação o poder de alterar o que decidiu, em matéria de facto, o tribunal colectivo, se, em regra, os autos não a habilitam a formar o seu juízo com aquela ponderação que se impõe sempre e principalmente tratando-se de crime grave? A principal prova, quanto à descoberta dos agentes do crime, é a testemunhal. Mas se não ficam reduzidos a escrito os depoimentos das testemunhas no plenário, como há-de a Relação modificar a decisão do colectivo? Dar uma faculdade e não conceder os meios para a poder exercer o mesmo é que não a dar. Mesmo que conste dos autos a confissão do Réu, não basta, porque ela, só por si, não pode levar à condenação. Têm subido à relação muitos recursos, em processo de querela, em que os recorrentes gastam folhas e folhas de papel a dizer o que depuseram as testemunhas, para concluírem pela injustiça da decisão! Como se a Relação pudesse agir em face das suas alegações! Como se as Relações pudessem fazer obra apenas pelo que dizem as partes! " (in Ac. nº 401/91 do TC). 236 Escrevia Figueiredo Dias:O sistema português de recrsos penais é notoriamente, de uma parte, insuficiente pois que não possui qualquer recurso do facto minimamente digno de tal nome- , de outra, excessivo -por isso que submete a mesma questão de direito a dois graus de recurso... cria um duplo grau de recurso da mesma questão de direito, enquanto de igual passo, relativamente à questão de facto, viola sem remissão o princípio (em que, aqui sim, se tem visto uma espécie de garantia legal dos cidadãos) do duplo grau da jurisdição de mérito!. Digamos pois sem eufemismos: o nosso actual sistema de recursos de duplo grau, que começou por ser liberalmente cabido em princípio a toda e qualquer decisão judicial, mas onde as Relações e o Supremo acabam por exercer a mesma função e dispor praticamente das mesmas possibilidades de cognição, esse sistema é um logro e um rematado absurdo, que não serve os direitos das pessoas nem o interesse comunitário. " E segue afirmando, em 1985: "Aquilo a que se chama recursos, vão-me permitir, é uma macaqueação de recurso, perfeitamente inconstitucional, não é recurso nenhum, não é a reapreciação da causa, é um travesti. " (in Ac. nº 401/91 do TC). 237 Aliás, mesmo Cunha Rodrigues, em 1988, e sobre a polémica em causa afirmava: "E nem vale a pena ignorar, sob pena de fariseísmo, o que hoje se passa entre nós. Não só o recurso do tribunal de júri é interposto directamente para o STJ como do tribunal colectivo não há, em rigor, recurso da matéria de facto. O que existem são dois recursos de revista, mais alargada, é certo, relativamente ao Tribunal da Relação. 238 Acórdão nº 401/91 do TC, em que se declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma em apreciação. 239 Atrás desenvolvidamente apresentado.

tal modo a possibilidade de reapreciação pelas Relações da matéria de facto, que infringia o princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal, deduzível para o arguido do 32º, nº 1 CRP, sendo "irremissivelmente inconstitucional " 240. Mas a polémica a nível da jurisprudência constitucional estava ainda a começar. É que logo em seguida, no Ac. nº 124/90241, a 2ª Secção não julgou inconstitucional o 665º do CPP/29, o que levou o Ministério Público a recorrer para o plenário do TC para obter uniformidade de jurisprudência. Surgiu assim o Ac. nº 340/90242 em que tal inconstitucionalidade foi declarada por maioria. Já na sequência desta decisão tirou a 1ª Secção outros dois acórdãos no mesmo sentido, os Acórdãos nºs 23/91 e 48/91 sempre julgando inconstitucional a dita norma. A 2ª Secção seguiu a mesma orientação nos Acórdãos nºs 77/91, 187/91, 236/91, 335/91 e 350/91. O essencial motivo da declaração de inconstitucionalidade consta claramente do Ac. nº 401/91, em que se lê: "Assim sendo, forçoso é concluír que, num sistema complexo como o que costa do CPP/29, em que a prova não é reduzida a escrito (por força do 466º) 243e em que as respostas aos quesitos não são fundamentadas (em virtude do 469º) 244, então o 665º, entendido com o alcance do Assento em causa, ... não representa uma garantia suficiente para o arguido, e consequentemente viola o disposto no nº 1 do artigo 32º da CRP. " 245. A que acresce o facto de que "só excepcionalmente e em casos contados constarão dos processos 246elementos susceptíveis de levar as relações a alterar a decisão do colectivo, e, por outro lado, a faculdade de anulação dessa decisão, com base em vícios dos quesitos ou das respostas -ao abrigo do nº 2 do artigo 712º do CPCivil-, em bem pouco alargará, no domínio fáctico, o poder cognitivo das relações " 247. Em resumo, a norma do CPP/29 que restringia os poderes cognitivos das Relações em matéria de facto, foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral, pois ficavam muito limitados os poderes do tribunal ad quem que só podia na sua actividade "basear-se (...) nos documentos, resposta aos quesitos e outros elementos constantes dos autos, a ponto de só lhes ser lícito alterar, a esse nível, aquelas decisões em face de elementos do processo

240

Acórdão nº 401/91 do TC. Atrás desenvolvidamente apresentado. 242 Atrás desenvolvidamente apresentado. 243 O que, como vimos, continuará a funcionar como regra e não como excepção sob a vigência do CPP/87. 244 Na vigência do CPP/87, e apesar de a resposta aos quesitos ser obrigatoriamente fundamentada, continua a não valer tal de grande coisa para salvar o 410º (em comparação com o 665º do CPP/29), pois nos termos do 410º nº 2 só pode o tribunal de recurso socorrer-se do "texto da decisão recorrida" e não destes outros elementos do processo, como já tivémos oportunidade de analisar. 245 Acórdão nº 401/91 do TC. 246 Hoje tais elementos não têm de constar do processo, mas sim do texto da decisão. 247 Acórdãos nºs 219/89 e 340/90 do TC. 241

que não tiverem podido ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que hovesse determinado as respostas aos quesitos

". E repare-se que sob a vigência de tal normativo,

podia o tribunal de recurso lançar mão não só da decisão recorrida, mas dos documentos, resposta aos quesitos, e quaisquer outros elementos constantes dos autos. O que dizer então de um preceito, pretensamente alargador da competência das Relações em matéria de facto, que restringe o "material" sujeito ao contrôle do tribunal de recurso ao "texto da decisão recorrida " ? Como foi assumido pelo TC no excerto dos Acórdãos por último citados, "só excepcionalmente e em casos contados constarão dos processos elementos susceptíveis de levar as relações a alterar a decisão do colectivo, ". Mas se o objecto de trabalho do tribunal de recurso deixar de ser o processo para passar a ser o texto da decisão, ainda mais contados serão os casos de nesse texto descobrir elementos susceptíveis de alterar a decisão recorrida248. A análise do que quanto até aqui se disse permite pois desde já desmitificar as afirmações atrás expendidas por Cunha Rodrigues. Mesmo que fosse a via do 410º, nº 2 apta a permitir ao tribunal de recurso o entrar na sindicância da matéria de facto, desde logo tal propósito seria frustrado pela "estreiteza" do material dado ao tribunal ad quem para análise.

 - Mas não se quedam por aqui as incongruências do regime do 410º, nº 2 do CPP vigente. É que as hipóteses previstas nas suas alíneas são francamente excepcionais ou irrelevantes.

- Quanto à insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada249, cumpre apreciar que só muito dificilmente o julgador recorrido será tão imponderado, descuidado ou incompetente que decida sem se escorar numa factualidade de que "ele" se convenceu estar provada250. Além do mais, uma decisão judicial não é só um texto, é uma consubstanciação escrita de um raciocínio mental, que ao ser vertido para o papel necessariamente ganha um carácter argumentativo ou, pelo menos, justificativo. Qualquer juiz penal sabe que não pode condenar sem dar como provados os factos constitutivos do tipo. Sabe também, como jurista especializado que é, que não pode faltar a prova de nenhum dos elementos do tipo penal. Razão pela qual não deixará de racionalmente enumerar os

248 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, Verbo, Lisboa, 1994, p. 324, escreve: "Esta

é uma limitação muito importante. Desde logo fica vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos ". 249 Ensina Marques da Silva que para que este vício surja "É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito " (Curso de Processo Penal, Volume III, Verbo, Lisboa, 1994, p. 325). 250 Artigo 127º do CPP/87.

factos integrantes do tipo, dando-os como provados segundo a convicção que formou. Mas o que seria importante, que era a justificação do raciocínio pelo qual os factos foram dados como provados, isso já não é controlável pelo tribunal de Recurso, à uma porque em regra não constam do texto da decisão recorrida, mercê do entendimento praxístico do 374º, nº 2 do CPP/87, e à outra porque o juiz, como ser racional que é, não deixará, salvo casos patológicos, de enumerar os factos necessários, e a respectiva "prova", para poder proceder à condenação do arguido. Ou seja, a alína a) do nº 2 do artigo 410º não permite em concreto ao Tribunal de recurso aferir a prova, e ver se ela é ou não suficiente para que se condene. Quanto ao apelo às "regras da experiência comum ", é uma cláusula não só indeterminada como indeterminável, não se vislumbrando através de que regras de experiência poderá o tribunal ad quem descobrir se a prova que se produziu na primeira instância, e que ele não conhece nem pode conhecer em regra, é ou não insuficiente para suportar a condenação.

- Quanto à contradição insanável da fundamentação251/252, cabe aproveitar grande parte do que acabou de se escrever. Para saber quando há tal contradição temos de saber o que é fundamentação, o que nos é esclarecido pelo 374º, nº 2. Deste preceito decorre que a fundamentação é a enumeração dos factos provados e não provados, acrescida da exposição dos motivos (fácticos e jurídicos) que fundamentam a decisão e da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador. Logo, contradição na fundamentação surgirá quando, tomados os factos enumerados e a prova respectiva, haja uma desarticulação lógica entre o que foi dado e o que não foi dado como provado, ou entre a tal factualidade e a prova, ou ainda entre a factualidade considerada e as conclusões terminais. Escreveu Alberto dos Reis que "Quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão " 253. Mas o teor da alínea em análise é mais abrangente, pois que basta que

251

Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, Verbo, Lisboa, 1994, p. 325, escreve a propósito deste vício o seguinte: "A contradição insanável da fundamentação respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto (...). Assim, tanto constitui fundamento de recurso (...) a contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, pois pode existir contradição insanável não só entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto ". 252 Antunes Varela, J.Bezerra e S.Nora, Manual de Processo Civil, 2ªEd., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 690, afirmam quanto ao 668º, nº 1 c) do CPC que nesses casos "há um vício real do raciocínio do julgador...". Não sendo o preceito equivalente ao ora analisado, porém serve para esclarecer que tipo de contradição se está aqui a referir. No mesmo sentido o Ac. da Relação do Porto de 13/11/1974, in BMJ , nº 241º, p 334. 253 José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 5, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 141. Diz em seguida o ilustre Professor que "o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ".

haja contradição insanável entre quaisquer desses elementos componentes da "fundamentação", não tendo necessariamente que ser desarticulação entre os fundamentos e o decidido. Ora, além de se exigir que esta contradição seja insanável 254, não pode deixar de se constatar, pelos mesmos motivos atrás expostos, que não será fácil surgirem casos deste tipo. Será com efeito raro que o Tribunal dê como provado que o arguido estava no Porto no momento do crime, e que simultaneamente o condene pelo homicídio em causa; tão-pouco vulgar será que se dê como provado e não provado um mesmo facto; não é também comum encontrar um Acórdão ou uma Sentença que invoque uma mesma prova para suportar factos contraditórios. É que a fundamentação é um juízo complexo, vertido em texto. Como diz Francisco José Velozo, "A certeza moral que o juiz há-de ter, eis o que a lei processual, crente no valor da razão humana e do conhecimento, manda consignar, ao impor que se especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, os elementos em que se baseou, o raciocínio que seguiu, as razões que determinaram tal ou tal resposta. Trata-se (...) de consignar o princípio da razão suficiente. " 255. Ou seja: pedir uma contradição insanável da fundamentação (sendo esta o factor por excelência de uma reasoned justice ), é pedir uma fundamentação irrazoável, ou mais expressivamente, uma razão irracional. Será pois também esta via do 410º, nº 2 al. b) perfeitamente excepcional, tanto mais que a contradição terá de ser patente do texto da decisão recorrida, como vimos.

- Quanto ao erro notório na apreciação da prova256 soe dizer que também se não encara com facilidade a hipótese de a decisão recorrida só por si ser suficiente para possibilitar a descoberta deste vício. É que apreciar a prova é valorizar o meio de prova produzido em audiência. Ora, não parece fácil admitir que técnicos do direito, com experiência, com formação especializada e longa, decidam com base em material probatório de modo tal que um homem de formação média, ou seja não jurista, facilmente se daria conta do erro. O que a lei aqui prevê é um erro grosseiro, ostensivo, gritante, mesmo para o homem-padrão. Como se há-de admitir que um ou três magistrados, com seis anos de formação superior, e com experiência forense de pelo menos dois anos, apreciem de modo tão flagrantemente errado a 254

Como fazem a doutrina e a jurisprudência na interpretação do 668º, nº 1, al. c) do CPC, o que leva ainda mais a aproximar as situações. 255 Francisco José Velozo, Fundamentação das respostas do colectivo, in Scientia Juridica , T. XI, 1962, pp. 292 e ss. 256 Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, Verbo, Lisboa, 1994, p. 325, escreve a propósito deste vício o seguinte: "Erro notório na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta ". Esta aliás a definição dada pelo Assento do STJ de 31/01/1990, in Colectânea de Jurisprudência, 1990, T. I, p. 24.

prova produzida? Não se pode sequer ver aqui uma válvula de segurança, mas uma situação perfeitamente académica. Mas mais: como terão deixado tais magistrados transparecer no texto da decisão tão grave erro, e não se terem eles mesmos dele dado conta aquando da sua ponderada votação, elaboração e publicação pública? E quer a audiência tenha ou não sido documentada, de nada valerá ao tribunal de recurso, pois o vício, por mais patente que seja, terá que estar patente no texto da decisão recorrida. Em resumo, temos aqui mais uma cláusula de diminutíssima relevância prática, que escassamente amplia (se ampliar) a competência dos tribunais de recurso no que à cognoscibilidade da matéria de facto concerne 257.

 - Por fim surge-nos a hipótese prevista no número 3 do artigo 410º. Quanto a isto apenas uma observação: é que a relevância prática desta eventual possibilidade de intervenção do tribunal de recurso na matéria de facto cingir-se-ia aos casos gritantes previstos no artigo 119º do CPP/87. Essas e apenas essas nulidades seriam susceptíveis de ainda não estarem sanadas no momento em que o tribunal de recurso está a apreciar a questão, mercê da regra do 120º nº 3. E tais casos de nulidade não serão também comuns no foro. Ademais, aqui não se está a controlar do mérito de uma decisão, mas sim do cumprimento de regras processuais, pelo que bem pouco se pode retirar deste preceito para os fins de afirmar que o regime de recursos instituído pelo CPP/87 consagra a regra do recurso abrangente da questão de facto. Em resumo: - O legislador pretende , nos números 2 e 3 do artigo 410º do CPP/87, fazer crer que essas são vias para os tribunais de recurso conhecerem de algo mais do que da matéria de direito, quando o recurso "excepcionalmente" não abranja a matéria de facto 258; mas... - Na verdade, tais vias são estéreis, dada a sua quase total irrelevância, ao que acresce o facto de não haver verdadeira regra de recurso global, mas antes a regra inversa: a de que o recurso penal é meramente um recurso de revista. ===== X ===== Pelo que não resta senão concluír pela total infirmação das declarações de intenções

257

Tomando como partida a afirmação do legislador que no código novo se emprestava efectividade à garantia do duplo grau de jurisdição, seria caso para citar Horácio (Arte Poética, 139) quando escreveu: Parturiunt montes: nascetur ridiculus mus! 258 Ou seja, tais normas seriam excepões na situação excepcional de não haver recurso global de facto e de direito.

feitas pelo legislador no preâmbulo do CPP/87, e pela total falta de sentido das loas cantadas em honra deste sistema pretensamente instituidor de um "duplo grau de jurisdição autêntico ". Temos assim as seguintes regras no regime de recursos penais em Portugal: a) O Supremo Tribunal de Justiça nunca conhece de qualquer matéria de facto; b) Os Tribunais de Relação conhecerão de matéria de facto apenas no caso de não haver Renúncia Tácita à documentação da audiência, ou seja, quando não faltar a declaração referida no artigo 364º, nºs 1 e 2.

§6.

O DIREITO AO RECURSO COMO INTEGRADOR DO MAIS LATO DIREITO DE

DEFESA GARANTIDA AOS ARGUIDOS EM PROCESSO PENAL

I - Do Ac. nº 474/94 do Tribunal Constitucional retira-se a conclusão de que o Direito de Defesa significa assegurar todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Conclui-se ainda que uma das vertentes da defesa é o direito a recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem direitos fundamentais seus. Por seu turno no Ac. nº 338/92 lê-se "...a faculdade de recorrer em processo penal traduz(a) uma expressão do direito de defesa ... "; Daqui decorre a conclusão de que o que anima a possibilidade dos recurso é a tutela das Garantias de Defesa do arguido. Estas impõem o direito a um duplo grau de jurisdição. Só assim se conseguirá evitar o Erro Judiciário, quer na consideração factual quer no enquadramento jurídico dado ao caso. II - No entanto não é unânime a aceitação de que o direito ao recurso tenha directa relação com o princípio da defesa. Com efeito Rizza259, em Itália, chega a afirmar que partindo das intenções do legislador constituinte ao discutir e aprovar as normas dos artigos 24º e 111º da Constituição Italiana, não se pode senão concluír pela irrelevância do princípio do duplo grau de jurisdição em face de tais disposições Constitucionais. Mais recentemente também V.Mele260 chega à mesma conclusão. Porém, no nosso ordenamento jurídico tal não parece ter sido objecto de dúvida. Tanto mais que a jurisprudência constitucional tem sido uniforme no sentido de afirmar tal relação entre Direito de Defesa e Direito-ao-Recurso261. Mas outras relações existem, estoutras entre o Direito-ao-Recurso e o Direito de acesso à Justiça e aos Tribunais262; ou entre aquele e o Princípio do Estado de Direito Democrático 263. 259

Rizza G., Diritto di difesa nel processo penale e doppio grado di giurisdizione, in Rass.dir.pubb. , 1965, pp. 153 e ss, citado por Giovanni Serges, op. cit., p. 100, nota 5. 260 V. Mele, Doppio grado di giurisdizione (principio del) - diritto processuale penale, in Enciclopedia Giuridica, vol. XII, Roma, 1990, pp. 5 e ss. 261 Assim os Acórdãos do TC nºs 40/84, 55/85, 17/86, 187/86, 7/87, 31/87, 61/88, 90/88, 207/88, 304/88, 219/89, 220/89, 118/90, 124/90, 209/90, 340/90, 332/91, 353/91, 401/91, 338/92, 234/93, 321/93, 265/94 e 474/94. 262 Por todos confira-se o Ac. nº 353/91 do TC. 263 Lê-se no Ac. nº 40/84 do TC que "...o princípio da defesa é, pura e simplesmente, uma directa consequência do pensamento do Estado de direito democrático ao nível do processo judicial sancionatório e das garantias formais de que ele deve revestir-se para assegurar a dignidade e liberdade dos arguidos. O princípio da defesa é, noutros termos, não mais, que a explicitação concretizada, ao nível do processo judicial sancionatório, de uma componente necessária da 'dignidade da pessoa humana' em que, segundo o artigo 1º da Constituição, se baseia a República ".

Porém, a ligação do Direito-ao-Recurso às Garantias do Processo Criminal de que nos fala a Constituição no nº 1 do seu artigo 32º parece-me ser indubitavelmente a mais forte. É que essa ligação tem carácter mais ontológico do que qualquer das outras. E digo "mais ontológico", precisamente mercê de uma das conclusões a que cheguei no §3 deste relatório: é que aqui temos garantias projectadas na esfera jurídica dos indivíduos. Naturalmente, porém, que não são de repudiar as ligações do Direito ao Recurso com qualquer dos outros princípios fundamentais, que aliás até permitem melhor esclarecer o entendimento que se deve ter desta questão. III - Tenho pois como imperativo, que no seio do Direito de Defesa assegurado pela Constituição ao Arguido, está necessariamente o Direito-ao-Recurso. Não julgo sequer possível negar a relevância Constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição em Portugal, depois do labor da jurisprudência constitucional que tive oportunidade de estudar. Resta pois saber, e face às divergências jurisprudenciais apresentadas, se o Direito ao Recurso abrange também as decisões sobre matéria de facto, ou se, ao invés, as razões de impraticabilidade e inconveniência levantadas por alguns dos arestos aconselham a que o duplo grau se restrinja à questão de direito. Das críticas que lancei ao modo como o CPP/87 camufla a sua verdadeira regulamentação do regime dos recursos, logo resulta que perfilho a opinião mais ampla, aquela que, na linha dos Acórdãos nºs 219/89, 340/90, 401/91 e 234/93, entende que quer razões garantísticas, quer o rigor dos princípios, impõem se reconheça um direito a impugnar decisões para um segundo grau de juízo, sejam decisões sobre matéria fáctica, sejam decisões sobre questões de direito. Daqui surgem várias decorrências, como que direitos acessórios do direito ao recurso, se bem que também possam por vezes, pelo menos alguns, ser vistos como direitos autónomos. IV - Passo pois a analisar sumariamente alguns dos que julgo serem os mais importantes direitos acessórios ao direito ao recurso. a) Direito à informação necessária ao exercício do direito ao recurso. São abundantíssimas as referências jurisprudenciais à necessidade de ao arguido serem facultados os instrumentos necessários à efectivação do seu direito de defesa. Entre eles se encontram por exemplo a presunção de inocência do arguido, o princípio in dubio pro reo , o direito a tomar conhecimento do que se passa na audiência durante a sua ausência (aliás este direito está expressamente previsto no artigo 332º, nº 7 do CPP/87), o direito ao silêncio (o privilégio da não-incriminação), o direito à última palavra, etc. Vimos também que um dos

direitos que integra a Defesa é o Direito ao Recurso, tendo eu concluído que é um direito amplo a recurso em matéria de facto e de direito, embora admita que não seja absoluto, pois que em algumas decisões judiciais não se fere suficientemente o núcleo essencial dos direitos de defesa que justifiquem prejudicar a celeridade a favor do direito ao recurso. Porém, existe um direito autónomo à informação, que se concretiza muitas vezes noutros direitos, como o direito a obter informações sobre o estado dos autos , mas que outras vezes é pressuposto do exercício de outros direitos da defesa. Precisamente no caso do já esclarecido Direito ao Recurso, há necessariamente um direito à informação, que é pré-ordenado ao exercício daquele. É desse Direito à informação condicionador da possibilidade de recorrer que se fala quando se discute a obrigação de motivação das decisões jurisdicionais. Embora o acervo de Jurisprudência Constitucional seja muito volumoso no que concerne ao dever de motivação ou fundamentação, tomarei como principais arestos neste momento os Acórdãos do TC nºs 61/88, 207/88, 219/89, 124/90 e 340/90, que em benefício da clareza da exposição não serão comentados autonomamente, antes se alinhando os principais argumentos sobre a questão. Há assim que começar por ver qual o sentido da motivação dos actos jurisdicionais: O dever de motivação dos actos jurisdicionais surge em 1774 com um Decreto de Fernando IV de Bourbon aos juízes do reino de Nápoles. Há que sublinhar que tal "inovação" surge em pleno Iluminismo, paralelamente ao abandono do sistema da prova legal a favor do sistema da livre apreciação da prova. De certa forma foi tal exigência instituída como uma cautela que acompanhou a desvinculação do julgador das regras de prova legal 264. Razão pela qual não se pode senão considerar que a obrigação de motivação decorre de necessidades de racionalização e de controlo do poder judiciário. Neste sentido diz Teixeira de Sousa que "a racionalidade exigida na livre apreciação da prova impõe a existência de meios de fundamentação da convicção obtida pelo julgador "265. Em Portugal a primeira consagração legal do dever de fundamentar as decisões judiciais surge com as Ordenações Filipinas 266: consagrava-se então o dever de todos os julgadores fazerem constar especificadamente das suas sentenças as causas em que se fundaram para condenar, absolver, confirmar ou revogar. Já depois da revolução liberal, a Portaria de 31/03/1824 veio reforçar o dever de fundamentação das sentenças, impondo a declaração

264

Assim se compreende também o surgimento da obrigação de fundamentação das sentenças na legislação revolucionária em França como garantia política contra o exercício arbitrário do poder pelos juízes, garantia essa instrumental e intrinsecamente conexionada com o princípio da legalidade. 265 Miguel Teixeira de Sousa, A livre apreciação da prova em processo civil, in Scientia Iuridica T. XXXIII, 1984, p. 115 e ss 266 Livro III, Titulo LXVI, § 7, princípio.

circunstanciada e especificada das razões e fundamentos das mesmas, invocando o cumprimento das Ordenações e a conformidade ao espírito liberal, de molde a permitir às partes o conhecimento dos fundamentos das decisões, para melhor as acatarem ou encontrarem melhores bases para eventuais recursos. O passo seguinte significativo surge com a reforma do processo civil de 1961. Aqui o dever de fundamentação em matéria de facto é introduzido no nosso ordenamento através do artigo 653º, nº 2.

A jurisprudência dominantemente entendeu que tal dever de funda-

mentação em matéria de facto implicava a indicação dos meios de prova concretos, e a indicação das razões conducentes à convicção. À cautela, porém, a Jurisprudência declarava subtilmente que a falta de motivação não produzia consequências processuais. No campo oposto estava a doutrina, destacando a importância da referência nas decisões judiciais das razões determinantes da convicção do julgador. Foi um passo significativo no entrosamento do dever de fundamentação de facto e de direito das decisões judiciais com as regras probatórias da livre convicção do juiz em matéria probatória e com a imperiosa comunicação-diálogo entre o julgador, as partes e a sociedade267. A bondade da sentença não tinha que ser apenas compreendida pelo Tribunal, nem sequer só por um círculo iniciático, tinha de se comunicar em interactividade dialogante aos titulares do poder soberano: o povo. Chama a doutrina a atenção para o facto de a dimensão pública da motivação da sentença se ligar directamente a um dos princípios fundamentais da administração da justiça no Estado moderno. Por outras palavras a fundamentação assume a função de garantia do controlo democrático difuso pelo povo sobre o exercício do poder jurisdicional. Segundo Michele Taruffo268 há que distinguir na Motivação das Sentenças uma função endoprocessual, assegurada pelas normas dos códigos processuais europeus a partir do século XIX, como instrumento de racionalização técnica do processo e tendo como destinatários as partes e o juiz de impugnação; e uma função extraprocessual, posta em evidência apenas quando a obrigação de motivação é garantida por uma norma constitucional, e dirigida, sobretudo, a tornar possível um controlo externo e geral sobre os fundamentos factuais, lógicos e jurídicos da decisão; os destinatários são o povo em geral. 267

Havia escrito José Alberto dos Reis em anotação ao artigo 158º do CPC/1939: "A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacálas no recurso que interpuser. Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão, o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão, mas mal vai à força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que a decisão é conforme à justiça " (in Comentário ao CPC, vol II, Coimbra, 1945). 268 Michele Taruffo, Note sulle garanzia costituzionale della motivazione, in Bol.FDUC , vol. LV, 1979, pp. 29 e ss

"A garantia constitucional da motivação da sentença implica uma profunda transformação em sentido democrático da relação entre o povo e a administração da justiça e do papel do juiz no Estado moderno: através da garantia da motivação toma corpo a possibilidade de um controlo social, democrático e difuso, sobre a administração da justiça e sobre o modo como o juiz, de qualquer grau e hierarquia, exerce o poder atribuído pela Lei "269. Michele Taruffo porém entende que a garantia constitucional da motivação não constitui um valor em si. Tem um carácter instrumental, sendo necessariamente acessória dos princípios fundamentais da legalidade das decisões judiciais, da independência dos juízes e da imparcialidade das suas decisões. Reconhece também a próxima ligação entre a garantia da motivação e o direito de defesa das partes. Só através da motivação têm as partes possibilidade de verificar a eficácia da sua defesa sobre o juiz. Isto porque o convencimento do julgador só se torna patente através da exposição dos motivos da decisão. Michele Taruffo dá-nos também um útil contributo, ao definir o direito de defesa como direito de influir sobre a decisão270, afirmando que tal direito só tem significado concreto quando seja possível verificar se e como o juiz teve em conta a defesa das partes. Interpretando o pensamento de Taruffo diz Vital Moreira que "a garantia constitucional da obrigação de motivação ocupa um lugar central no sistema de valores em que deve inspirarse a administração da justiça no Estado democrático moderno, derivado quer do significado intrínseco a obrigação de motivação para a funcionalidade do processo e para o controlo democrático sobre a administração da justiça, quer do facto de a motivação da sentença constituir um instrumento indispensável para verificar a correcta actuação dos outros princípios fundamentais do ordenamento "271. Num mundo em rápida mutação, em que cada vez mais ao direito e aos seus aplicadores surgem novas questões, novos problemas e realidades, novidades estas que a própria dogmática não consegue digerir a tempo de cristalizar entendimentos firmes, os magistrados detêm um poder cada vez mais precioso e mais lato, mas também menos controlável e menos entendível pela colectividade272. Paralelamente aumentam as responsabilidades dos juízes, 269 Michele Taruffo, idem, ibidem. No mesmo sentido Vital Moreira, Declaração de voto de vencido anexa ao Ac.

nº 207/88 do TC, quando refere que a motivação ligada ao princípio da publicidade das decisões judiciais assegura um controle público e democrático dessas decisões. E domínio em que se não pode prescindir desse "controlo democrático da justiça " é sem dúvida o do direito penal. 270 Concretiza mesmo alguns dos direitos integrativos da Defesa, assim o direito à prova, direito a intervir sobre questões relevantes o direito ao contraditório, etc. 271 Vital Moreira, Declaração de Voto de vencido anexa ao Ac. nº 207/88 do TC. 272 Exemplos do novo poder dos juízes são as operações ciclópicas contra o crime organizado, contra o branqueamento de capitais e contra as fraudes nos mercados financeiro e cambial, contra a criminalidade informática, etc. Sobre os novos problemas que se põem ao Estado e às instâncias formais de contrôle, veja-se a Decisão da Cour Européenne des droits de l'homme de 25 de Fevereiro de 1993, sobre os poderes de investigação da administração face à delinquência económica, nos termos do artigo 8º da CEDH, in R.T.D.H., Ano 5º, nº 17,

razão pela qual estes não podem, sob pena de perda de legitimidade soberana, afrouxar na acuidade e clareza da motivação das decisões273/274. Isto é tanto mais verdade quanto se ponderar a hiper-mediatização da vida actual. O fenómeno da aldeia global de que falava profeticamente Alvin Toffler, e que hoje se concretiza a uma velocidade vertiginosa, torna cada vez mais públicas todas as decisões soberanas, criando uma dimensão universal de muitos dos julgamentos 275. Nestas circunstâncias a motivação adquire uma importância fulcral, sendo mais do que nunca exigível a independência e objectividade dos magistrados, e a racionalidade das apreciações livres do material probatório276 oferecido ao Tribunal, e todas estas se patenteiam na fundamentação das suas decisões. Assim que sejam totalmente incompreensíveis certas praxes do foro, como a de motivar as decisões jurisdicionais, e a coberto de uma interpretação subtil do artigo 374º, nº 2 do CPP/87, de modo lacónico e incompleto, mais conciso do que seria desejável e conveniente277. Ora é precisamente esta fundamentação que funciona como a tal informação a que acima fiz referência, informação esta de que o arguido tem que dispor, não só para apreciar do acerto e justiça da decisão, mas também para que possa ponderar da necessidade, utilidade e conveniência de recorrer aos mecanismos impugnatórios 278. Assim que se compreenda Nemesis-Bruylant, Bruxeles, pp. 116 e ss. 273 Bentham escreveu em Rational of Judicial Evidence "good decisions are such decisions for wich good reasons can be given " 274 Neste sentido Robert Legros, Considerations sur les motifs, in Motivation des décisions de justice, études publiées par Ch.Perelman et P.Foriers, Bruxelles, 1978, pp. 7 e ss. 275 Exemplo em curso é o julgamento de O.J.Simpson, destacado desportista Norte-Americano, que durante os meses de Fevereiro a Outubro de 1995 catalizou não só a opinião pública americana como foi acompanhado por muitos outros países do mundo. 276 Do Boletim da Faculdade de Direito, vol xxxvii, 1961, pp. 181 e ss consta um parecer da F.D.Univ.Coimbra em que se pode ler: "E esta (a justificação) parece estar, antes de tudo, ligada ao princípio da livre convicção do juiz em matéria probatória, entendida não como uma pura convicção 'íntima' e 'imotivada', mas antes como uma livre convicção 'motivada', 'lógica' e 'racional'. (...) É que importa ainda colocar o problema noutro plano: aquele em que o pôs Carl Schmitt (Gesetz und Urteil, pp. 71 e ss), ou seja, o dos destinatários da própria sentença, que, aliás, não são só as partes, mas a própria sociedade. (...) Só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, 'convencer' as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação de condenado por 'convencido' sugere. " 277 Manuel Júlio G.Salvador, Motivação, in BMJ , nº121, pp. 87 e 105, escreve a este propósito: "Dizer que a convicção do tribunal resultou da prova testemunhal, da prova documental, etc. tout court, afigura-se-nos que equivale a não dizer coisa alguma ...! Limitar nos casos apontados a motivação à indicação das testemunhas ou à transcrição do que elas disseram, na parte em que se entendeu aproveitar e justificar a resposta, nada esclarece sobre os raciocínios feitos, os juízos de valor do respectivo processo lógico, ou quanto às regras lógicas e de experiência ...". 278 Manuel Júlio G.Salvador, Várias Questões-3ª parte, in Revista dos Tribunais , ano 83º, 1965, p. 53 e 54 escrevendo sobre texto legal diverso daquele que referi, mas em moldes plenamente aplicáveis aqui, afirma que "...as expressões 'fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador' e 'meios concretos de prova' não podem significar a mesma coisa. Os fundamentos ou razões de convicção serão, naturalmente, as regras da lógica e outras que levaram à convicção e que, por isso, se deverão especificar é a demonstração (ainda que

ser a obrigação de motivação das sentenças um correlativo do direito à informação que integra o Direito de Defesa do arguido. E mais, esse direito à informação aparece aqui funcionalizado à possibilidade efectiva de exercer o direito ao recurso. Ora no processo penal a questão da motivação ganha relevância especialíssima, uma vez que sendo mais sensíveis os direitos perigados com a decisão, e mais profundas as consequências da decisão, nenhuma dúvida pode restar sobre a bondade da decisão. Precisamente sobre esta matéria foi chamado múltiplas vezes a pronunciar-se o TC, tendo como tarefa aferir da compatibilidade do regime instituído pelo artigo 469º do CPP/29 na redacção que lhe foi dada pelo Decreto nº 20.147 de 1931, com os artigos 32º e 218º (antigo 210º) da CRP. Entendia a jurisprudência, com rara unanimidade, que o 469º era portador de uma regra que ou pressupunha a dispensa da motivação da resposta aos quesitos em processo de querela, ou até proibia tal motivação. Em oposição alegava-se com regularidade a Inconstitucionalidade de tal preceito, pelo menos desde 1976 e face ao 32º CRP, uma vez que sendo o direito de recurso em matéria de facto uma elementar garantia de defesa, a não motivação da resposta aos quesitos radicalmente impossibilitava o tribunal de recurso de controlar as razões que haviam levado o tribunal recorrido a decidir num ou noutro sentido. A doutrina por seu turno existir uma lacuna na regulamentação da resposta aos quesitos em processo penal, pois que o 469º referia-se a declarações de voto dos julgadores, e não à fundamentação279/280. Razão pela qual preconizava a aplicação do artigo 653º CPC de 1961 para integrar a lacuna281. Assim do mesmo passo se sanava qualquer inconstitucionalidade superveniente daquele dispositivo do CPP/29. Porém a resposta da doutrina era sucinta e limitada) de como o juiz pesou 'com justo critério lógico o valor das provas produzidas'.Além das numerosas razões já expendidas no sentido de a motivação visar a exposição do processo lógico, pelo qual se dá às partes a persuasão, como diz Gluck, de que o litígio devia ser decidido como foi (...), tão-só desejamos salientar que a simples menção dos meios concretos de prova é uma atitude perigosa que se pode voltr contra o sistema em que se insere ". 279 Escreveu a este propósito José Mourisca que: "Em matéria de facto não é lícito aos juízes do colectivo fazer qualquer declaração. Se algum discordou, não pode manifestar a sua discordância. Fica amarrado à decisão. Se esta representar uma iniquidade, o vencido não pode exteriorizar a divergência. É-lhe proibido assinar vencido ". No Ac. nº 124/90 do TC, Mário de Brito vota vencido, usando na sua declaração de voto esta posição de José Mourisca para sustentar o seu entendimento sobre o artigo 469º do CPP/29. Também no mesmo sentido ensinava Alberto dos Reis que com tal tipo de preceito prevalecia o "princípio da autoridade da decisão" sobre o "princípio da liberdade de expressão do voto". Ou seja, nada tinha que ver com a fundamentação, mas com a liberdade de fazer declaração de voto de vencido. 280 Igual sentido é defendido por João Castro e Sousa que afirma que "o que a lei quis excluir nos artigos 469º e 471º, no que toca a matéria de facto, foi, tão-só, a declaração de voto de vencido, para que se não pense que a sentença é injusta. Coisa diversa é proibir-se a motivação da decisão pelo que a fundamentação da maioria (se não houver unanimidade) deverá constar do Acórdão " 281 Assim Castanheira Neves, Sumários de processo criminal, 1967-68, Coimbra, Almedina, 1968, p. 54, que escreve: "Quanto à exigência de motivação é expresso o Código de Processo Civil, artigo 653º, nº 2 - mas terá

também unânime: as respostas aos quesitos sobre matéria de facto dos colectivos têm de ser fundamentadas. Argumentava-se também que o 210º da CRP (hoje 208º) vai no mesmo sentido, além de que sempre devia funcionar o argumento de maioria de razão entre processo civil e processo penal282. Porém não faltavam vozes a afirmar que o princípio da fundamentação das decisões não tem eficácia imediata, pelo que não podem os particulares esgrimir com ele para obter a inconstitucionalização de quaisquer preceitos legais 283. OTC já decidiu esta questão no Ac. 55/85 tendo entendido que tal norma não violava a constituição, nem por via do artigo 32º, nem através do artigo 210º(actual 208º). Com esse aresto o TC confirmava a jurisprudência do STJ, do mesmo passo desconsiderando o ponto de vista expresso pela doutrina segundo a qual a CRP de 76, maxime após a revisão de 82, imporia uma reconsideração da solução a dar ao problema 284. Os argumentos do TC eram vários, pelo que se enunciam sumariamente. Entendia o TC não haver violação do 210º, nº 1 da CRP por vários motivos: a) em primeiro lugar este artigo não se aplicaria ao 469º do CPP/29, porque na resposta aos quesitos ainda se não está face a uma "decisão", mas tão-só perante um pressuposto da decisão, que chega com o acórdão final. Tal pressuposto aliás consiste no "apuramento e fixação dos 'fundamentos' de facto de uma tal decisão (...) Donde que ... não só não haveria lugar a invocar essa exigência no tocante às respostas aos quesitos, como, além disso, haveria de nestas respostas ver-se já, e justamente, o cumprimento parcial da mesma exigência em relação ao acórdão final. Nesta visão das coisas, reclamar ainda a 'motivação' das respostas aos quesitos significaria, pois, pretender afinal uma fundamentação de segundo grau (uma fundamentação da fundamentaçã) de uma decisão judicial -o que claramente ultrapassa o garantido pela Constituição, no art. 210º, nº 1 " 285. A este argumento do TC se podia responder que tal impostação do problema é meio sofístico de o entender. É que em toda e qualquer decisão vai pressuposta apreciação e julgamento de matéria de facto. Logo a resposta aos quesitos não seria fundamento da decisão essa norma aplicação em processo criminal? Não se vê por que não, já que se harmoniza ela seguramente com o processo criminal (cf.artigo 1º, § único); por outro lado os artigos 469º e 471º do Código de Processo Criminal apenas se opõem ao nº 3 do artigo 653º do Código de Processo Civil - e o que em processo criminal pode justificar esta divergência (o prestígio e a firmeza da decisão) já não justifica aqueles outros " 282 Assim expressamente Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., pp. 205 e 206. Também Eduardo Correia considerava "desejável" tal interpretação, como resulta do seu trabalho Les preuves en droit pénal portugais, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p. 31. 283 Neste sentido as alegações do MºPº no Ac. nº 61/88 do TC. 284 Assim Rodrigo Santiago, Sobre o dever de motivação das respostas aos quesitos em procº penal, ROA , ano 43, II, pp. 481 e ss. 285 Acórdãos nºs 61/88 e 304/88 do TC.

mas parte dela. Do acórdão final não depende a "decisão" mas a formalização dela. Tanto assim é que as respostas aos quesitos condicionam necessariamente a decisão final. Ao que acresce o facto de o 653º CPC ir neste sentido. A isto responde o TC dizendo que "mesmo posta assim a questão, e aceitando este entendimento, continua a não poder extrair-se dessa genérica exigência constitucional, sem mais, a necessidade da ... motivação das respostas em causa, com a consequência da inconstitucionalidade da norma legal que a exclui " 286. Isto mercê de outro argumento: b) É que, salienta o TC, o artigo 210º da CRP diz "nos casos e nos termos previstos na lei ". Assim a conclusão do TC resulta linear: "O princípio constitucional tem, pois, um alcance eminentemente 'programático', ficando devolvido ao legislador, em último termo, o seu 'preenchimento', isto é, a delimitação do seu âmbito e extensão " 287. E o raciocínio do juiz constitucional prossegue com o argumento histórico. Com efeito das actas da Assembleia da República resulta que o legislador da revisão constitucional teve dúvidas na consagração deste artigo 210º (actual 208º). Segundo o TC, "hesitações que tiveram precisamente a ver com o risco de vir a consagrar-se na Constituição uma exigência demasiado extensa, e por isso inapropriada e excessiva, do dever de fundamentar as decisões judiciais "288. Daí ter sido feita uma afirmação genérica do princípio, deixando-se à prudência do legislador ordinário a sua concreta disciplina e conformação. O TC no entanto não deixa de sabiamente aceitar que "o legislador não fique, todavia, com uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação " 289. Encontra assim o TC uma fórmula algo complexa de determinar os limites da liberdade do legislador: afirma neste sentido que o legislador fica com a obrigação de não dispensar a fundamentação em alguns casos. Todavia, segue o TC "os limites a tal liberdade constitutiva... hão-de ser muito largos e respeitar a um núcleo essencial mínimo de decisões judiciais ". A não ser assim resultaria subvertido propósito cautelar com que foi aprovado o dispositivo constitucional que estipula a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais. Como último argumento para não inconstitucionalizar o 469º afirma o TC que a solução preconizada resulta particularmente clara para "aquelas decisões cuja fundamentação se não achava legalmente prevista ao tempo da revisão constitucional ", que era precisamente o caso do preceito em análise.

286

Ac. nº 61/88 do TC. No mesmo sentido os Acórdãos nºs 337/86, 304/88 e 12/90 TC. Ac. nº 61/88 do TC. 288 Ac. nº 61/88 do TC. Em igual sentido o Ac. nº 124/90 do TC. 289 Ac. nº 61/88 do TC. Em igual sentido o Ac. nº 207/88 do TC. 287

Por outro lado concluia o TC que a exigência de fundamentação da resposta aos quesitos tão pouco decorreria do princípio do Estado de Direito Democrático, precisamente por não se estar face a uma decisão, mas diante de um seu pressuposto. Por outro lado o TC vai apreciar se a inconstitucionalidade do 469º podia resultar do seu confronto com o artigo 32º, nº 1 da CRP. A resposta dada pelo TC é também aqui negativa. Afirma o TC a este propósito que "Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho 'reassuntivo' e 'residual' relativamente às concretizações que recebe nos números seguintes ... e na sua 'abertura' acaba por revestir-se ... de um carácter acentuadamente 'programático'. ". Assim, mesmo aceitando que o dito preceito constitucional significa traduz a exigência de um "due process of law", devem apenas considerar-se ilegítimas as normas processuais que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido290. Logo, diz o TC, cumpre ver se o artigo 469º do CPP/29 implica um prejuízo inadmissível ou uma diminuição insuportável e injustificável das garantias dos arguidos. Quanto a isto diz o TC que a motivação "procura (.. .) garantir a 'transparência' do processo e da decisão (...)Ora atento este sentido ... da fundamentação das decisões judiciais ..., a verdade é que não se afigura que a falta de motivação das respostas aos quesitos represente um défice particularmente significativo e gravoso das garantias de defesa do réu, no contexto da estrutura do processo de querela no anterio CPP e, em especial, no contexto do respectivo regime decisório e do respectivo sistema de recursos " 291. Em particular sobre a relevância da motivação da resposta aos quesitos para efeitos de efectividade do direito ao recurso, escreve o TC que apesar de haver de se reconhecer o direito a um duplo grau de jurisdição, que tal é assim "como princípio". Ou seja, há razões, que já tivémos oportunidade de analisar supra , que impedem que em matéria de facto haja um duplo grau de jurisdição equivalente àquele que se pode praticar em matéria de direito. Assim o TC, combinando os poderes cognitivos das Relações no CPP/29, com o carácter necessariamente sucinto que toda a fundamentação tem que ter neste domínio, conclui que resulta "desvalorizada a função que tal motivação poderia desempenhar numa perspectiva de efectivação do direito ao recurso "292. E a desvalorização respeita quer enquanto elemento relevante para o arguido avaliar do interesse e oportunidade do recurso e determinar a sua extensão, quer enquanto elemento susceptível de permitir uma melhor reapreciação crítica

290

Assim também os Acórdãos nºs 337/86 e 304/88 TC. Ac. nº 61/88 do TC. No mesmo sentido os Ac.s nºs 7/85 e 55/85 do TC. 292 Ac. nº 61/88 do TC. De salientar que este Ac. foi aprovado com 4 votos a favor e 3 votos contra. Interessante é o argumento do Conselheiro Nunes de Almeida, que diz que sem fundamentação da resposta aos quesitos não há verdadeira fundamentação da sentença. No mesmo sentido o Ac. nº 304/88 do TC. 291

da prova pelo tribunal de recurso. Assim concluia o TC pela constitucionalidade da não fundamentação das respostas aos quesitos no âmbito dos processos de querela. Não parece que tal fosse o entendimento acertado, nem parece outrossim que o apelo por vezes feito, nos arestos citados, ao paralelo artigo 374º, nº 2 do CPP/87 valha de algo para menosprezar a dignidade constitucional do direito à fundamentação ou a sua ligação às garantias de defesa asseguradas no artigo 32º, nº 1 CRP. É que há argumentos ponderosos a contrapor aos que acabei de apresentar. Na verdade a CRP de 1976 na sua versão original era omissa quanto à questão da fundamentação. Na revisão constitucional de 1982 foi aditado o 210º nº 1, que na revisão constitucional de 1989 passou a figurar no artigo 208º. Depois disto a Constituição impôs inequivocamente o dever de fundamentação das decisões jurisdicionais, mas deixou ao legislador ordinário a circunscrição do âmbito operativo da garantia constitucional. Mas tal remissão "não pode ser entendida em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional do dever de fundaemntação, já que este constitui garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo ... Não se compreenderia de resto que a garantia de fundamentação seja menos exigente quanto às decisões judiciais, do que quanto aos actos administrativos ..."293. É pois indubitável que o actual 208º da CRP tem um conteúdo normativo imediato o que implica uma sua particular projecção no domínio do no processo criminal, mercê do império do Princípio Geral da Defesa, consubstanciado no 32º, nº 1, como tenho vindo a defender. Daí a inconstitucionalidade material que fere necessariamente os preceitos que não obriguem à fundamentação de decisões jurisdicionais 294. A esta luz devia ter sido lido o 469º do CPP/29, e à mesma luz também se deve interpretar hoje o 374º, nº 3, na aferição do que é e do que deve ser a fundamentação das decisões jurisdicionais295. E nem sequer se pense que a fundamentação pode enfraquecer ou impossibilitar o funcionamento dos Tribunais Colectivos. Ao invés, será uma forma de auto-contrôle 293

Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 2ª Ed., 2º vol., p. 317.

294 Neste sentido conclui Vital Moreira, Declaração de voto de vencido anexa ao Ac. nº 207/88 do TC, que "mesmo

quando a obrigação de fundamentação não está expressamente prevista, como na Constituição de Bona, ela deriva por via interpretativa dos outros princípios fundamentais e das garantias de defesa em particular. Mesmo em Inglaterra, refere Taruffo, onde não há constituição escrita, não é posto em dúvida que a garantia de uma reasoned decision se inclui nos princípios de natural justice que enformam todo o sistema processual ". 295 Esclarecedor a este propósito é Francisco José Veloso, Fundamentação das respostas do colectivo, in Scientia Juridica , T. XI, 1962, pp. 292 e ss, ao afirmar "A certeza moral que o juiz há-de ter, eis o que a lei processual, crente no valor da razão humana e do conhecimento, manda consignar, ao impor que se especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, os elementos em que se baseou, o raciocínio que seguiu, as razões que determinaram tal ou tal resposta. Trata-se (...) de consignar o princípio da razão suficiente. Já não tem lugar a nefasta teoria do id quod plerumque accidit, da mera probabilidade, por mais forte que seja.

da racionalidade e justiça da decisão296, o que potenciando uma melhor justiça ultrapassa de longe a eventual menor celeridade que daí resulte 297. Por tudo isto considero que o direito à informação, aqui concretizado no direito à motivação das decisões jurisdicionais, é em matéria penal uma garantia de defesa autónoma, mas mercê da sua indispensabilidade para permitir a efectivação do direito ao recurso, acaba por estar funcionalizado a este último. Por isso não é de estranhar que tenha sido em vista da garantia do direito ao recurso que se desenvolveu a tese da inconstitucionalidade da não fundamentação das decisões jurisdicionais. Por isso também, que violar o dever de fundamentação fira sempre o artigo 32º, nº1. E nem sequer se diga que no actual regime de recursos, que atrás se escalpelizou, não é fundamental a fundamentação da resposta aos quesitos, aliás , mas só a da decisão definitiva. Assim não é! Mercê das funções que vimos caberem à fundamentação, maxime

a da própria coerência do exercício do poder juris-

dicional, sempre a fundamentação será imprescindível. Por outro lado, nos escassos casos em que o recurso sobre a matéria de facto exista, tal fundamentação revelar-se-á preciosa. Ademais, se vier a ser por qualquer via possibilitado o acesso do Tribunal de Recurso aos autos na sua totalidade mesmo nos casos do artigo 410º, nº 2 CPP/87 298, também aí tal fundamentação resultará benéfica.

b) Direito ao tempo para recorrer. No Ac. nº 40/84299 começa por se esclarecer a função dos recursos, dizendo-se que Impõe-se a certeza ". 296 No Boletim da Faculdade de Direito, vol xxxvii, 1961, pp. 181 e ss consta um parecer da F.D.Univ.Coimbra, a p. 183 no qual se lê: "A fundamentação da decisão é garantia, desde logo, da racionalidade, imparcialidade e ponderação da própria decisão judicial. Como se referiu amplamente acima, a motivação é um elemento de controlo interno necessário do princípio da livre convicção do juiz em matéria probatória: 'O próprio juiz, sabendo-se desligado da obrigação de motivar as suas decisões, é naturalmente conduzido a deixar de autocontrolar-se " 297 Especialmente sobre a fundamentação da resposta aos quesitos escreveu-se: "tendo aparentemente como causa imediata a ideia de combater mais um dos vícios assacados à actuação dos colectivos (o de se chegar a dar como provados factos não atestados por nenhum dos meios probatórios utilizados) (...) tem como principais objectivos o de aprimorar, na medida do possível, e o de robustecer desse modo a força persuasiva do julgamento dos factos, junto das partes e seus patronos . (...) Tanto um, como outro dos objectivos da motivação requerem, sem dúvida, a identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do julgador. Mas exigem outrossim, para plena eficiência do requisito formulado, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto ". (Antunes Varela, M.Bezerra e S. e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., 1985, pp. 654-655). 298 V.g. através de uma declaração de inconstitucionalidade da restrição do 410º, nº 2 ao "texto da decisão recorrida" mercê de violar o Direito ao Recurso como vimos supra . 299 Alegava o recorrente a inconstitucionalidade dos artigos 561º e 651º, § único do CPP/29, que na forma de processo sumário, e segundo a interpretação fixada pelo Assento nº 4/79 de 28 de Junho do STJ, impõe que a

"por natureza os recursos visam modificar as decisões recorridas ", o que só por si patenteia um entendimento sobre a primordial finalidade dos recursos compatível com as posições que acima perfilhei. Porém, a principal virtude deste aresto é trazer a autonomização dentro do Direito-aoRecurso de outra faculdade, qual seja a do

"direito ao prazo para recorrer". Surge este

acórdão após uma divisão jurisprudencial que, interpretando o artigo 20º do Dec.-Lei nº 605/75, ora sustentava que o recurso devia ser interposto no prazo de cinco dias a contar da data em que a a decisão fôra proferida por semelhança ao regime geral do artigo 651º CPP/29, ora que o recurso tinha de ser interposto imediatamente após a leitura da sentença nos termos dos artigos 561º e 651º § único do mesmo CPP/29. O Assento 4/79 do STJ resolveu o conflito jurisprudencial a favor desta segunda linha. Contra tal Assento esgrimia-se que a faculdade de recorrer integrava o núcleo essencial de defesa, e que pressuposto de tal faculdade era o prazo de recurso. O prazo para recorrer é pré-ordenado ao exercício do direito ao recurso. Em oposição a estes argumentos sustentava a jurisprudência e em regra o MºPº que se a CRP consagrava um direito ao recurso, não impunha que fosse concedido mais ou menos prazo para o exercício de tal direito. O TC começa por recordar a valia constitucional do espírito de celeridade processual, logo sublinhando de seguida que "esta vertente positiva do processo sumário não pode, porém ser exacerbada a ponto de tornar tal forma de processo num processo não equitativo, designadamente num processo em que as garantias de defesa, expressas no artigo 32º, nº 1, da Constituição, por mor da velocidade imprimida ao iter processual, sejam esquecidas ou postergadas ". Disserta após o TC sobre algumas das especialidades das garantias de defesa em processo sumário. Conclui o TC por demonstrar que o tempo para interpor recurso tem que ser suficiente para que o arguido se dê conta do decidido, para que dialogue com o seu defensor, para que tenha oportunidade para reflectir. Tanto mais em situações de ausência de defensor que aconselhe o arguido sobre as vantagens e inconveniências de um eventual recurso, e até sobre a oportunidade de o interpor. Não há escolha consciente sem tempo para ponderação, afirma também o TC. Assim, "se as garantias de defesa exigem (...) liberdade na escolha dos meios apro-

impugnação por via de recurso a que se refere o artigo 20º do Dec.Lei nº 605/75 de 3 de Novembro, tenha lugar logo após a leitura da sentença. Fundamentava a inconstitucionalidade alegada no facto de tal norma não permitir ao arguido o eficaz exercício da faculdade de recorrer.

priados, em cada momento, à posição do arguido ", não se pode senão concluír que a disponibilidade de um prazo razoável para interpor o recurso integra indirectamente as garantias de defesa do arguido.

c) Direito à gratuitidade do recurso. Também nesta questão será proveitoso apelar para a jurisprudência constitucional, até para se conseguir perspectivar a evolução do entendimento do TC quanto a esta questão. Assim o Ac. nº 30/88 300do TC vem afirmar que a restrição do seguimento dos recursos judiciais contra a aplicação de coimas ao prévio depósito do respectivo quantitativo vem, na prática, impedir o acesso à via judiciária no caso de o arguido não dispor de meios económicos para efectuar esse depósito prévio. Dessa forma se atinge o conteúdo essencial da garantia da parte final do nº 2 do artigo 20º da CRP. Apela depois para os pareceres 8/78 e 9/82 da Comissão Constitucional, na parte em que se afirma que a Constituição vai além do mero reconhecimento de uma igualdade formal no acesso aos tribunais, visando afastar a desigualdade real nascida da insuficiência dos meios económicos, determinando expressamente que tal insuficiência não pode motivar uma denegação de Justiça 301. Já o Ac. nº 120/89 302 afirma que o condicionamento do direito ao recurso contra decisões aplicativas de coimas ao prévio depósito do montante da coima constitui desvio ao regime geral do processo contraordenacional. Afirma ainda que o respectivo Decreto-Lei ao regular um pressuposto do recurso judicial, versa um aspecto relevante do respectivo regime, sendo que tal regulamentação só podia ser emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo devidamente credenciado por aquela. Considera assim que o normativo do artigo 15º, nº 5 do Decreto-Lei nº 21/85 de 17 de Janeiro é inconstitucional, mesmo na parte em que obsta ao seguimento de recurso quando o recorrente que não proceda ao prévio pagamento do quantitativo da coima não seja carecido de meios económicos. Embora a razão da declaração de inconstitucionalidade não permita concluir tal, julgo que a admissibilidade do recurso não pode nunca ser posta em causa, tenha ou não o recorrente meios económicos para o fazer. Até porque nem sempre é seguro apurar da liquidez 300

Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 15º, nº 5 do Dec.Lei nº 21/85 de 17 de Janeiro, na parte em que obsta ao seguimento do recurso judicial quando o recorrente não procede ao prévio depósito do quantitativo da coima, por insuficiência de meios económicos. 301 Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 1º Vol., cit., p. 182, escrevem que "o reconhecimento do direito de recorrer aos tribunais seria meramente teórico se não garantisse que o direito à via judiciária não pode ser prejudicado pela insuficiência de meios económicos ". 302 Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 15º, nº 5 do Dec.Lei nº 21/85 de 17 de Janeiro, na parte em que obsta ao seguimento do recurso judicial quando o recorrente não procede ao prévio depósito do quantitativo da coima, ainda que não carecido de meios económicos.

de quem quer que seja, pelo que a solução mais compatível com a ratio legis do 32º, nº 1 seria aquela que permitisse a admissão do recurso, e depois se permitisse ao recorrente ou fazer prova da impossibilidade do pagamento, ou remeter o pagamento para momento ulterior ao trânsito em julgado da decisão definitiva.

DIREITO-AO-RECURSO

A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE 1987

ÍNDICE Pág. §1.

Considerações de Teoria Geral. A genética e a estrutura do processo penal. 1 - O Direito Penal , o Direito Processual Penal e a Constituição. A. Direito Penal e Direito Processual Penal................................................... 1 B. Direito Processual Penal e Constituição................................................... 5 2 - A estrutura "partificada" do processo penal e a paridade de armas entre as respectivas partes........................................................

9 §2.

Delimitação do objecto do relatório e justificação da sua relevância científica................................................................

19 §3.

Uma aproximação sumária ao significado, função e limites do

Artigo

32º



1

da

Constituição

da

República

Portuguesa

................................... 31 §4.

O

Instituto

jurídico

dos

Recursos............................................................................... 39 §5.

O "Direito-ao-Recurso" na Jurisprudência Constitucional Portuguesa...................

49 §6.

O Direito ao Recurso como integrador do mais lato Direito de Defesa garantido

aos

arguidos

............................................................... 83

em

processo

penal

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