O Direito Canônico relido por Francisco: o bem dos fiéis como lei

June 29, 2017 | Autor: Moisés Sbardelotto | Categoria: Pastoral Theology, Teologia, Igreja Católica, Direito Canônico, Catolicismo, Papa Francisco
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Francisco

O DIREITO CANÔNICO RELIDO POR FRANCISCO:

o bem dos fiéis como lei

Um ano rico em gestos concretos de misericórdia por parte de Francisco, a disciplina da Igreja é chamada a ser coerente com a verdade de fé professada Moisés Sbardelotto *

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m vista dos grandes eventos eclesiais deste ano – o Sínodo Ordinário de outubro e a abertura do Jubileu da Misericórdia em dezembro –, o papa Francisco explicitou ainda mais o seu cuidado pastoral em relação a algumas realidades humanas delicadas, que muitas vezes encontram uma série de dificuldades, não apenas na convivência social em geral, mas principalmente na vida da Igreja. Trata-se de duas manifestações papais de grande relevância. A primeira veio no dia 8 de setembro 52

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passado (datada de 15 de agosto) sob a forma de um motu proprio, ou seja, de uma normativa eclesial de “iniciativa própria” do papa, sobre a reforma do processo canônico em torno da nulidade do matrimônio. A segunda é uma carta enviada no dia 1o de setembro ao cardeal italiano Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, responsável pela organização do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, com a qual se concede a indulgência e se expõem as modalidades para recebê-la.

Esses dois documentos mostram os braços estendidos do papa a diversos “sujeitos” eclesiais que hoje vivem uma realidade de marginalização dentro da sociedade e da Igreja, muitas vezes sem poder encontrar as portas abertas da comunidade cristã. São textos jurídicos, mas que vão muito além da lei nua e crua, para poder chegar ao coração das pessoas envolvidas. Na carta sobre as indulgências, por exemplo, Francisco dedica boa parte do seu texto aos presos. Para ele, o Jubileu poderá ser uma

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FOTOS: L’OSSERVATORE ROMANO

oportunidade para que tais pessoas possam ter acesso “concretamente à misericórdia do Pai que quer estar próximo de quem mais necessita do seu perdão”. Por isso, o pontífice permite que os presos, dada a sua situação de reclusão, possam obter a indulgência nas próprias capelas das prisões, afirmando, com muita ternura: “Todas as vezes que passarem pela porta da sua cela, dirigindo o pensamento e a oração ao Pai, que este gesto signifique para eles a passagem pela Porta Santa, porque a misericórdia de Deus, capaz de mudar os corações, consegue também transformar as grades em experiência de liberdade”. Na mesma carta, o papa também dirige o seu olhar às mulheres que recorreram ao aborto. Como bispo de Buenos Aires (Argentina) e hoje de Roma (Itália), Francisco conhece bem os condicionamentos que as levaram a tomar tal decisão. “Sei que é um drama existencial e moral. Encontrei muitas mulheres que traziam no seu coração a cicatriz causada por essa escolha sofrida e dolorosa. O que aconteceu é profundamente injusto, contudo, só a sua verdadeira compreensão pode impedir que se perca a esperança.”

Além disso, “o perdão de Deus não pode ser negado a quem quer que esteja arrependido”. O perdão – Por isso, Francisco escreve a sua decisão inédita de conceder a todos os sacerdotes do mundo, durante o Ano Jubilar, “a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado”. Esse poder, até hoje, era reservado exclusivamente aos bispos. Dada a relevância de tal gesto, o papa pede que os sacerdotes se preparem, para que possam “conjugar palavras de acolhimento genuíno com uma reflexão que ajude a compreender o pecado cometido e indicar um percurso de conversão autêntica”. Como algumas associações católicas de mulheres destacaram, contudo, Francisco não se pronunciou a respeito do pecado cometido igualmente pelo pai da criança abortada – quer rejeitando a gravidez, quer apoiando o aborto. O pecado não é apenas da mãe. Entretanto, como pastor que conhece a realidade concreta das suas ovelhas – e os seus “dramas existenciais e morais” –, o papa coloca no centro do olhar

O Jubileu da Misericórdia e o motu proprio, normativa eclesial de iniciativa própria do papa, mostram os braços estendidos da Igreja às pessoas que vivem à margem misericordioso da Igreja a vítima anterior e posterior de um aborto – justamente a mulher –, que, muitas vezes, vivencia a agressão de uma gravidez indesejada, sofre o dilema em torno do aborto e, depois, padece a rejeição e a discriminação social e até mesmo eclesial. Por outro lado, o motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (Senhor Jesus, manso juiz) traz no seu coração os fiéis leigos que experimentam a separação, o divórcio, o fracasso do matrimônio. Trata-se de um documento que reforma o processo de declaração de nulidade matrimonial, como um sinal da sensibilidade de Francisco em relação a essas pessoas. Também é um gesto de escuta ao clamor dos seus próprios coirmãos no episcopado, que, reunidos no Sínodo Extraordinário do ano passado, solicitaram “processos mais rápidos e acessíveis”. Por isso, “em total sintonia com tais desejos”, guiado pela “lei suprema da salvação das almas” e amparado por um grupo de outubro de 2015 53

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Francisco favor da nulidade, e não mais duas. Bastará também um único juiz, sob a responsabilidade do bispo e por ele delegado, ou ele mesmo, pois “o próprio bispo é juiz”. Assim também se reafirma a autoridade do bispo local, para que, como diz Francisco, “seja finalmente traduzido na prática o ensinamento do Concílio Vaticano II”. No documento também se defende a gratuidade dos procedimentos, “para que a Igreja manifeste o amor gratuito de Cristo pelo qual todos fomos salvos”. Tais gestos podem ser vistos como meramente “jurídicos”, distantes, frios. Mas, como lembra Francisco no motu proprio, o “fim supremo” das instituições, da lei e do direito eclesiásticos é a “preocupação com a salvação das almas”. Em um ano já tão rico em gestos concretos de misericórdia por parte da Igreja de Francisco, a disciplina da Igreja também é chamada a ser cada vez mais “coerente com a verdade de fé professada”, para que as instituições eclesiásticas também “tendam a comunicar a graça divina e favorecer continuamente o bem dos fiéis”.

“O perdão de Deus não pode ser negado a quem quer que esteja arrependido”

* Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário).

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especialistas em doutrina jurídica, Francisco solicita a celeridade de tais processos, para que o “coração” dos fiéis envolvidos “não seja longamente oprimido pelas trevas da dúvida”. O processo de nulidade matrimonial não visa a “anular” o primeiro casamento (como um divórcio civil), mas sim a declarar, através de um processo judicial eclesiástico, que aquele primeiro ato é nulo, ou seja, nunca existiu. Dessa forma, como reafirma o papa, permanece firme o “princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial”. Contudo, até hoje, os processos eclesiásticos se arrastavam por longos anos e passavam por diversas instâncias eclesiais, geralmente dependendo de decisões centralizadas pelos órgãos da Cúria Romana, demandando grandes somas de dinheiro. E um “enorme número de fiéis”, reconhece o papa, se afastava das estruturas jurídicas da Igreja justamente por causa da “distância física ou moral” que sentiam. Por isso, Francisco invoca a “caridade e a misericórdia”, para que a própria Igreja seja uma mãe próxima dos seus filhos afastados. Dentre as inovações trazidas por essa reforma, encontra-se a decisão de bastar uma única sentença em

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