O Direito como elemento retificador do sistema de mercado desenvolvido

June 7, 2017 | Autor: Edpo Macedo | Categoria: Economics, Political Economy, Neoliberalism, Direito Econômico
Share Embed


Descrição do Produto

O Direito como elemento retificador do sistema de mercado desenvolvido Edpo Macedo 1 de Março de 2016

Resumo O presente trabalho vislumbra a visão economicista do Direito, desde suas origens, causas e circunstâncias, até o processo paulatino de implantação, conjuntamente com a constatação de suas falhas e medidas de correção, advindas com o Direito. Este baseia-se fundamentalmente no Curso de Economia, de Fábio Nusdeo, em especial seu capítulo sobre as falhas do mercado, amplamente citado neste artigo. Palavras-chaves: direito econômico. neoliberalismo. economia.

Introdução A Economia positiva1 , isto é, economia em sentido estrito, é aquela que analisa, explica e prevê a realidade posta diante do observador. Pragmática por excelência, não atribui valores axiológicos aos seus resultados. O tráfico de drogas, por exemplo, condenável socialmente, é apreciado por esta ciência que aplica-lhe modelos de oferta e procura, tanto quanto ao comércio de artigos religiosos. Por outro lado, a Economia normativa, que direciona, prescreve e determina, busca normatizar a vida econômica, alterando-lhe o quadro normativo junto ao seu respectivo conjunto institucional. Esta atividade deve-se à subjetividade do homem, que não se transige ao exercício estéril e sem sentido de resignar-se à pura análise e explicação de fatos. Advém da normatividade a doutrina econômica. Elaborar linhas de pensamento voltadas para a necessidade de enfrentar a escassez; expender juízos, prescrições, melhores maneiras de organização social é o seu papel. A dedicação exclusiva de acomodar a atividade do homem em um conjunto de 1

Positum: lat. prep. posto, colocado.

1

instituições e mecanismos desenvolvidos é uma prática que, muito possivelmente, precede a elaboração científica. Desde a forja do termo Oeconomicus, por Xenofonte, no diálogo socrático versando sobre a administração da casa e agricultura, esta veio traduzindo suas crenças e visões através de prismas ideológicos. Assim, pois, doutrinas econômicas detêm o fito de definir os fundamentos da organização social de acordo com seus “ismos” —capitalismo, socialismo, comunismo, e assim por diante. Em seguida, tomado um sistema econômico definido e aceito, vem a ocorrer a chamada política econômica. Seu escopo de recomendações estabelece objetivos e meios para serem atingidos, revestindo-se de maior tecnicismo e especificidade. Deste modo, convencer-se-ia da prioridade dada a um programa de distribuição de renda, menos relevante do que aplicar os recursos na modernização do parque industrial, por exemplo. Tal opção é essencialmente política. A economia sugere as medidas técnicas, e, ao mesmo tempo, dispensa-se de rediscutir ou reavaliar os sistemas econômicos. Suas medidas —medidas de política econômica —, consistem na alteração e controle dos detalhes e parcelas do sistema, variando desde uma pequena mudança na alíquota de um tributo até a reforma geral do sistema previdenciário. Tanto é verdadeiro, que o conhecimento científico conviveu com regimes e ideologias diversas ao longo da história. Seus postulados atingiram resultados sempre que houve o desejo de verdade e mútuo respeito. Aquilo que podemos chamar de conflito político-doutrinário deixou seu maior exemplo prático com os diagnósticos e recomendações do mundo ocidental, chamado capitalista e liberal, para o sistema da Europa oriental, de cunho coletivista. A positivação das medidas, traduzidas em normas, como nos ensina Fábio Nusdeo, “de maneira ampla, toda a legislação de conteúdo econômico —e ela representa sempre algo superior a 95% do ordenamento jurídico de qualquer país ocidental —está imbuída de algum sentido de política econômica, por estimular ou condicionar comportamentos tidos como mais favoráveis à colimação de determinados objetivos, ainda quando vagamente intuídos”2 . Destarte, a partir destas premissas, iniciaremos nosso estudo.

1 Aceno histórico Idade contemporânea, século XVIII, todas as linhas de pensamento convergiam à consagração de dois valores: liberdade e racionalidade. No ano de 1776, na França, edita-se o Décret d’Allarde 3 , extinguindo as corporações de ofício e instaurando a liberdade de comércio e indústria. Este constitui um marco jurídico no campo da ordenação da economia. Uma década depois, 2 3

NUSDEO, cit., pg. 102. Posteriormente revogado, foi restabelecido no início da Revolução Francesa, em 1791, pela Lei de Le Chapelier. Esta, por sua vez, proibia os sindicatos, as greves e as manifestações dos trabalhadores, em defesa da “livre empresa” e da iniciativa privada, apenando transgressões com avultuadas quantias em dinheiro e privação de direitos de cidadania até a pena de morte.

2

ocorrem dois grandes processos que se tornaram epifenômenos desta continuidade assegurada: a Constituição Americana em 1787, e a Revolução Francesa de 1789. Ambos eventos implantaram concretamente um conjunto de instituições consistentes, que burilou em detalhes os fundamentos jurídicos do sistema econômico liberal.

1.1 Movimento Constitucionalista A sobrevivência e coesão do todo social dependia da alienação de determinadas faculdades. Ao passo que se organiza o Estado, tem-se, de mesmo modo, os cidadãos. Moldar e assegurar-lhes uma série de direitos tidos como fundamentais e inerentes à sua condição humana —os direitos do homem e do cidadão —, foi a primeira preocupação dos liberais. Ao estabelecer este pacto fundamental, surgem as constituições clássicas ou liberais, americana e francesa, respectivamente, também denominadas constituições garantia. Elas corporificaram e consolidaram o modelo teórico do contrato social desenvolvido por Rousseau. Recebem a alcunha de constituições garantia pois são “destinadas a garantir os direitos e prerrogativas dos cidadãos frente ao Estado”4 , de modo a conter o grande Leviatã. A clássica trinomia de Montesquieu, ou, a divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário, seria o grilhão que procuraria impedir a grande besta de “apresentar-se perante os cidadãos como um bloco monolítico encarnando um poder concentrado, a ponto de lhe permitir fazer as leis, aplicá-las e julgar as alegadas transgressões a elas”5 . Surge neste tocante a esfera privada de cada cidadão. O Estado via-se impedido de invadi-la, enfraquecido por aquela divisão, transponível apenas em ocasiões muito especiais, de seus direitos e garantias individuais. Essa ordenação trouxe ampla distinção entre o plano político e o plano econômico. Estabeleceu-se, então, a marcha dos mercados. As prerrogativas de propriedade, liberdade de profissão e contrato, em termos virtualmente absolutos, era o que se entendia por iniciativa econômica. Sabe-se que as constituições clássicas foram omissas na esfera do econômico, sem estabelecer diretrizes ou condições de funcionamento. Por outro lado, a própria omissão é uma maneira oblíqua de interferência, pois, esta concede todas as condições para a movimentação dos bens, de produção e de consumo, a bel prazer dos particulares. Acreditava-se, portanto, em uma ordem natural presidindo o desenvolvimento das relações econômicas. O cientificismo do século transpôs, por analogia, os axiomas do mundo físico —fonte de onde emanou o Direito Natural —, instaurando no mundo jurídico este pressuposto de universalidade. Surgem, deste modo, as leis da Economia, fiando-se imutáveis e inexoráveis: daí a sua positivação jurídica. No entanto, esta é uma visão muito mais ideológica do que científica. O conjunto dos dispositivos constitucionais optam, acolhem e con4 5

NUSDEO, Ibid. NUSDEO, cit., pg. 150.

3

sagram um dado sistema, não podendo se falar numa constituição neutra em matéria econômica. Durante os primeiros embates judiciais do New Deal de Roosevelt, ainda que obtiveram nova orientação jurisprudencial após a contraposição das medidas governamentais, a Suprema Corte dispôs do entendimento das mesmas encontrarem-se não atentatórias à liberdade assegurada pela mesma constituição, isto é, pelo sistema de mercado livre. A este respeito, nos ensina Nusdeo: “No caso americano, o que se deu foi mais um exemplo do peculiar sistema constitucional daquele país, no qual, mesmo quando se trata de julgar da aplicabilidade dos statutes, os princípios da commom law entram em jogo para lhe determinar a razoável extensão. Aí entendeu-se que as medidas sub judice não representavam uma derrogação desarrazoada do princípio de livre mercado, tendo em vista a nova realidade do país que havia se tornado uma nação eminentemente industrial. Portanto, a passagem da jurisprudência da rejeição para a da aceitação da legitimidade de medidas de política econômica não é um sinal de neutralidade da Constituição quanto ao tema, mas uma corroboração do fato de ela ter adotado implicitamente um dado sistema econômico para o qual —veio a se entender —as questionadas medidas não representavam, afinal, ofensa irreparável” (NUSDEO, 1997, p. 153). À vista disso, as constituições garantia, na edição de suas competências constitucionais, nada tinham de neutralidade ou de absenteísmo quanto a vida econômica. A opção pela presença ou ausência de previsão para a atividade estatal no campo econômico foi uma antelação racional e conscientemente adotada. Desde a corrente política dos montagnards, que propuseram a adição de direitos sociais em oposição ao liberalismo excessivamente individualista dos textos aventados na época, denota a conturbada aparição e reforma da Declaração dos Direitos do Homem em 1789. No mesmo âmbito, em 1793, na França, perante o clube dos girondinos, Robespierre propôs inclusões para a futura Declaração de Direitos, que viria a ser a primeira Constituição Republicana, “o direito ao trabalho —e não o simples direito de trabalhar —, e o direito à assistência, despojando o direito de propriedade de seu caráter sagrado e inviolável”6 . Esta foi a concepção do embrião de responsabilidade do empregador em face de seus empregados. Em 1848, com a adoção da Constituição Republicana, logo após a abdicação de Luís Felipe, os dispositivos programáticos de conteúdo social foram sensivelmente ampliados: “no Preâmbulo fala-se numa repartição cada vez mais equitativa dos encargos e dos benefícios sociais. [...] Ao Estado reserva-se um papel mais ativo. [...] Inclui-se o trabalho entre as bases da República e arrolam-se direitos sociais diversos, sobretudo ligados 6

NUSDEO, cit., pg. 154.

4

ao trabalho, inclusive com previsão para a absorção de braços ociosos pelo desemprego em obras públicas (artigo 113). [...] A carta igualmente tocava nas instituições previdenciárias e nas de crédito”7 .

1.2 Codificação do Direito Privado Por inspiração dos dois grandes códigos napoleônicos, Code Civil, de 1804, e Code Commercial, de 1807, foi construído o segundo grande espeque do sistema de mercado. Os dispositivos econômicos fiaram uma malha lógica e coerente. A segurança e liberdade jurídicas nas atividades econômicas, nomeadamente, no uso de seus bens, fatores e produtos finais, veio a ser propiciada e garantida para todos os agentes. Mormente, e essencial para a operacionalização do mercado, destaca-se a definição precisa e adequada dos direitos de propriedade. Como nos informa Nusdeo: “É de se ter presente que como um dos resquícios da era feudal ainda havia a sobreposição e confusão de diversos direitos, de diferentes origens, sobre um mesmo bem. Na propriedade agrícola, por exemplo, coexistiram, junto com os do proprietário, direitos de terceiros, tais como o de passagem, o de servir-se de águas, o de pastagem para animais e vários outros que tolhiam a disposição plena do imóvel pelo seu titular” (NUSDEO, 1997, p. 154). A definição e defesa deste direito advieram com o instrumento contratual: uma estrutura compacta e racional de normas à disposição. Deste período em diante, desenvolveu-se a produção de códigos monumentais e extraordinárias obras de doutrina jurídica. Coube, assim, ao Judiciário imiscuir na vida privada para decidir e compor conflitos nela surgidos. No que tange ao setor público, o Direito Administrativo veio para tratar da ação e da organização do Estado em nível infraconstitucional. Notadamente, o poder de polícia, como grande sustentáculo, impunha um conjunto limitado de restrições aos particulares com intuito de impedir a interferência recíproca das esferas com eventuais prejuízos ou custos. Consolidaram, deste modo, a estrutura jurídica própria do liberalismo. O sossego público, a ordem e a incolumidade dos cidadãos, todos garantidos por meio das normas excepcionais, sujeitas a interpretação restritiva pelos tribunais. Sólida e inaudita estrutura, condensando todo o progresso e aprimoramento da legislação, conglobando o constitucionalismo e os Códigos de Direito privado, a Constituição de Weimar, de 1919, concebeu o sistema descentralizado e manteve-se como uma das grandes conquistas da civilização e da humanidade. No entanto, vale dizer, a separação entre o Direito público e privado, na concepção do jurista romano Ulpiano, definia por “objeto o estado das coisas de Roma —dir-se-ia depois do Estado —, enquanto o segundo 7

NUSDEO, cit., 154-155.

5

preocupava-se com a utilidade, o interesse, de cada cidadão”8 , deu contornos de um verdadeiro dogma ao liberalismo. As dificuldades posteriores em matéria administrativa, cometidas a tarefa de resolvê-las, foram atribuídas a criação dos Conselhos de Estado, sistema que, com alterações, se mantém até hoje. No Brasil, as Constituições Imperial, de 1824, e a primeira Republicana, de 1891, seguiram o mesmo diapasão das constituições garantia.

2 Sistema de Mercado Desenvolvido e os Ramos do Direito “Tripé” —Constituição, codificação do Direito privado, e poder de polícia —, “sem dúvida portentoso pela dutibilidade, lógica e racionalidade com que forneceu a forma e as garantias legais para captar e disciplinar todo o emaranhado das relações econômicas internas e mesmo internacionais, mas incapaz de lidar com a vida econômica real em toda a sua complexidade. Foi a época em que, no dizer de Max Weber, a lei apresentava uma racionalidade puramente formal, não lhe interessando as condições pessoais ou sociais dos por ela abrangidos, nem a maior ou menor desejabilidade dos resultados das relações estabelecidas sob a sua égide” (NUSDEO, 1997, p. 161-162). O desenvolvimento da tecnologia e da atividade econômica, por mais de um século, engendrou considerável progresso. Não obstante, um quadro conturbado política e socialmente instaurou-se nos desafios de implantação do mercado, embora tenha provado viabilidade e operacionalidade. Tal agitação foi proveniente de “diversos pressupostos que a estrutura legal própria do liberalismo não havia logrado captar, muito menos tratar. Como evidente, à ausência daqueles pressupostos, a mecânica operacional do sistema passava a rodar em falso, produzindo resultados também falhos, distanciados do esperado e, em muitos casos, francamente inaceitáveis”9 .

2.1 Rigidez dos Fatores e Intervenção Estatal A mobilidade dos fatores de produção é uma presunção básica para a funcionalidade dos mercados. Tão somente, os preços, que configuram os sinais indicativos que promovem as reações de mercado, cevariam os deslocamentos necessários, de modo que certas situações indesejáveis seriam automaticamente revertidas. Empresários-produtores, denominados autômatos10 , guiados pelo pressuposto psicológico-comportamental hedonista, responderiam ágil e fielmente às decisões soberanas do consumidor-rei, via impulsos do sistema de preços. Porém, em termos práticos, isto não ocorre. O deslocamento célere e 8 9 10

NUSDEO, cit., pg. 157. NUSDEO, cit., pg. 162. Automatismo: s.m. capacidade de autocorreção do mercado.

6

oportuno não ocorre automaticamente. Professor Nusdeo nos ilustra a situação com o seguinte exemplo, quanto a rigidez física: “Altos preços do café podem levar —e normalmente levam —à plantação de extensos cafezais em terras favoráveis a este cultivo. No entanto, cada cafezal, para entrar em fase de produção comercial, leva cerca de quatro ou cinco anos e, quando isto acontece, é muito possível verificar-se uma pletora do produto, ou seja, uma superprodução a abarrotar os mercados, provocando uma baixa de preços”. Mais adiante, decorrente disto, a rigidez operacional: “Mas, mesmo não havendo superprodução, poderá ter ocorrido no meio tempo entre o plantio e as primeiras colheitas, uma recessão nos países consumidores, levando a uma queda da procura, o que vem a dar no mesmo: acumulam-se estoques invendáveis, os cafeicultores se arruínam, o desemprego cresce”. E, consequentemente, a rigidez institucional: “Além do mais, o café é uma cultura permanente e, seja qual for o preço, a cada ano ele produz uma nova safra —um ano maior, outro ano menor —, mas sempre novas quantidades periodicamente se adicionam aos estoques, deprimindo ainda mais os preços. Essa situação já foi vivida diversas vezes nas zonas cafeeiras do Brasil. E quando ela se mantém, não há outro remédio senão erradicar as plantações, substituindo-as por outras. Mas isto não se faz sem altíssimos custos. Além do mais, durante os cinco, seis ou mais anos em que a crise ocorreu os fatores escassos empregados na cultura cafeeira se quedaram ociosos ou foram literalmente perdidos”. A rigidez institucional produz graves implicações na macroeconomia: “Há também as mais sérias, as macroeconômicas, pois naquelas regiões o desemprego e o prejuízo dos fazendeiros certamente provocaram recessão e mesmo crise em outras atividades correlatas, como na indústria de bens de consumo que seriam adquiridos pelos trabalhadores desempregados, ou mesmo pelos cafeicultores, e na indústria de beneficiamento do café e dos insumos agrícolas utilizados pelo setor: arados, tratores, máquinas agrícolas, fertilizantes etc.”. Não menos importante, a rigidez psicológica também exerce influência: “A rigidez pode existir, inclusive, nos hábitos de consumo da população. Assim, o brasileiro come feijão e, ainda quando o seu preço suba, recusa-se a trocá-lo por soja, um produto sucedâneo. O russo prefere pagar um preço exorbitante pelo chá do que passar para o café. E assim por diante”11 . Qualquer produto, inclusive industrial, está suscetível de experimentar o quadro acima descrito. Situação análoga deu-se com outros produtos agrícolas, como o cacau, o arroz, as madeiras e também o petróleo. Havendo a conversão ou erradicação, as substituições são prevalentemente estimuladas ou facilitadas pelos governos, mediante financiamento ou assistência técnica. No caso do café, as medidas adotadas foram a compra dos excedentes pelo governo, a regularização dos embarques exportadores, a instituição de preços mínimos e preços de registro. Tais regulamentações da atividade foram centralizadas pelo Departamento Nacional do Café, e posteriormente pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC), hoje extinto. 11

NUSDEO, cit., pg. 163-165.

7

Os desequilíbrios causados pela rigidez dos fatores foram analisados pelo economista inglês, Lord Keynes. Em tese, sua teoria revolucionária, a do déficit sistemático das contas públicas 12 , trouxe o discernimento de que, “o governo deve lançar na economia mais recursos do que arrecada, pois esses recursos adicionais estimularão a atividade econômica, fazendo-a sair gradativamente do fundo do vale recessivo. Nas épocas de euforia, pelo contrário, o governo deveria, por várias formas, retirar recursos, para evitar excesso de atividade, prejudicial à estabilidade monetária”13 . “Keynes ilustrava a sua ideia com um exemplo aparentemente estapafúrdio. Dizia ele: se o governo numa época de depressão contratar duas equipes de operários, incumbindo a primeira de abrir buracos e a segunda de fechá-los, isto parecerá inócuo e absurdo sob o ponto de vista físico, mas terá um sentindo altamente salutar sob o ponto de vista econômico (macroeconômico). Por quê? Pela simples razão de tanto os trabalhadores do primeiro grupo, quanto os do segundo passarem a receber algum salário a ser gasto em compras. Estas, por sua vez, estimularão o comércio, que voltará a colocar encomendas junto a indústria, a qual contratará empregados (ou deixará de despedi-los) para atendê-las e, ainda, comprará matérias-primas a serem transportadas e assim, sucessivamente, as engrenagens da produção e do emprego irão se reativando” (NUSDEO, 1997, p. 166). Keynes demonstrou, também, com este raciocínio, a possibilidade de haver equilíbrio em subemprego. O corolário desta hipótese foi convertido em legislações de seguro social, inclusive o seguro-desemprego. Manifestamente, o exemplo não foi exercido à letra, mas verteve em iniciativas governamentais na ampliação de obras públicas. Designou-se, assim, a modalidade de ações goveramentais denominada ação anti-recessiva, que, em princípio, veio a ser a negação do sistema liberal descentralizado. Com a intervenção do Estado no domínio econômico, a fim de regular alguns mercados e debelar este mau funcionamento, “implicou a edição de copiosa legislação, aplicável aos mais diversos setores, como aquela destinada a regular a produção e comercialização de produtos primários, as normas relativas a subsídios ou estímulos do Estado, com vista ao fomento de algumas atividades-chave, inclusive espécie, sempre corporificadas em normas jurídicas extravagantes para o sistema liberal em vigor”. A posição do Estado como agente indutor ou refreador da atividade econômica não veio a eliminar o mercado, sobretudo devido aos notáveis êxitos dos governos e seus assessores, no périodo do segundo pós-guerra. 12

13

Cabe, aqui, sinalizar que Marx identificou uma série de mazelas no funcionamento do mercado. A gravidade do problema dos ciclos econômicos, em parte, corrobora esta noção. O movimento senoidal da atividade econômica —prosperidade e depressão —, para Marx, deveria ser eliminado. No entanto, tal posição radical não se revelou necessária. NUSDEO, cit., pg. 165.

8

2.2 Acesso à Informação e Consumo O acesso às informações relevantes a todos os operadores de um mercado, de modo que estejam aptos a exercer influência, é outro pressuposto básico para o sistema descentralizado. “Uma legislação inteiramente estranha para os cânones liberais vem sendo paulatinamente introduzida, à ilharga daquela puramente destinada a fazer funcionar o mercado. Note-se não ser ela endereçada aos agentes econômicos em suas relações bilaterais [...] O seu escopo é outro: defender a chamada economia popular, ou seja, o conjunto indistinto e não identificável diretamente de poupadores, consumidores, investidores e acionistas, consorciados segurados e tantos outros que como um grupo nem sempre bem delimitado —porque pode incluir até mesmo membros potenciais —estão à mercê da informação ou da desinformação que lhes queiram transmitir”14 . O preço, como já dilucidado, conteria em si a informação relevante essencial para os agentes interessados, sendo este o sinal inconfundível da escassez ou da abundância, conforme altas ou baixas. A disseminação da notícia, conquanto não se dissemine ou apenas alguns poucos a tenham, estimulará hedonisticamente a expansão das compras do produto para locupletarem-se com a futura alta, à custa dos demais que, inadvertidamente, se desfizeram do mesmo. Tendem a passar despercebidos um grande número de fatos, à falta de alguma regulamentação oficial, quando não ocultado deliberadamente. Resulta desta falha o escamoteamento de diversas informações ao mercado. “Os exemplos podem se multiplicar, pois os produtos tendem com a moderna tecnologia a diversificar-se acentuadamente, de sorte a deixar o consumidor confuso e atarantado quanto à qualidade ou às propriedades dos artigos oferecidos. [...] Em grande número de países, vêm-se adotando normas de proteção ao consumo” (NUSDEO, 1997, p. 168). Atenção substancial deve-se dar aos riscos, pois, por vezes, o consumidor é levado a adquirir produtos perigosos ou prejudiciais. Exempli gratia, o chamado recall, quando compradores de bens duráveis com defeitos são chamados para a correção dos mesmos pelas próprias indústrias produtoras, que os informam a respeito, causou uma verdadeira revolução nestes padrões. O Brasil, com a Lei 8.058/90, o “Código do Consumidor”, defere um corpo de leis bastante avançado acerca disto. Grande parte do seu conteúdo consiste na obrigatoriedade, por parte de produtores e vendedores, de informar adequadamente os consumidores potenciais ou atuais quanto aos perigos, efeitos e propriedades dos bens oferecidos ou anunciados. “Há mesmo uma seção da lei dedicada à propaganda enganosa e abusiva, pois, como é claro, ela pode levar os seus destinatários a adquirirem algo de que não necessitem ou, pura e simplesmente, provocar danos de cunho psíquico ou moral nos mesmos, como 14

NUSDEO, cit., pg. 170.

9

é o caso da propaganda dirigida às crianças. Há ainda a obrigação em casos especiais da chamada contrapropaganda: o dever de informar claramente os riscos trazidos por um dado produto, como no caso do fumo”15 . O dever de informar, fora do campo do consumo, agrupa dispositivos para valer-se a regulamentação, desde operações de Bolsa, até a própria lei das sociedades anônimas. O chamado insider trading, tipifica o caso: “Em uma empresa dedicada a empreitadas públicas, os diretores e principais assessores podem ficar sabendo a respeito de um grande contrato a ser por ela celebrado, por exemplo, para a construção de um trecho do metrô de uma grande cidade. Estes personagens poderão ir à Bolsa de Valores e adquirir grande quantidade de ações daquela companhia, para revendê-las com substancial lucro, logo depois, quando a notícia do contrato chegar ao mercado bursátil, elevando os preços daqueles papéis. O mesmo poderá se dar, em sentido inverso, se o contrato vier a ser cancelado. A isso chama-se “informação privilegiada” ou em inglês insider trading, isto é, negociação por aqueles de dentro —em muitas legislações capitulado como crime —, caso não feita ao mercado a competente comunicação” (NUSDEO, 1997, p. 169).

2.3 Concentração Econômica e Poder Econômico O êxito do mercado advém da composição de um número razoavelmente elevado de compradores e vendedores em interação recíproca. É crucial que nenhum deles seja muito grande ou muito importante. Assim, o pretendido automatismo e adaptabilidade a condições mutantes é assegurado, pois, a concentração, seja qual for a sua origem, o impede, representando uma falha de estrutura do sistema de mercado. A capacidade ou não de influir sobre as condições do mercado onde opera define a posição relativa de dada unidade econômica. O tamanho, volume de produção ou número de empregados não precisa, necessariamente, se uma empresa é grande ou pequena. Esta caracterização se dá com a valência de determinar os preços praticados no mercado. Tal como Nusdeo nos esclarece, a ausência de um vendedor, certo dia, em uma feira livre, não levará qualquer alta dos preços dos produtos por ele oferecidos, pelo simples fato de a sua parcela no conjunto total da oferta ser negligenciável. Os artigos não vendidos por ele serão supridos facilmente pelos seus concorrentes. Já não se pode dizer o mesmo de uma empresa automobilística que venha a abandonar o parque produtor de veículos. Claramente, o impacto dessa decisão sobre os preços será sensível e sentido até com a simples notícia da sua decisão. Nota-se, assim, que a criação de normas estritas de funcionamento, correspondentes a arranjos especialíssimos, não se comportam uniformemente. 15

NUSDEO, cit., pg. 169.

10

A passagem do capital fixo16 para a economia de escala, marcada pela Revolução Industrial, figurou o processo pelo qual foi reduzido acentuadamente o custo unitário de produção de um bem. À medida que aumenta o volume produzido, reduz-se o custo unitário. Este fenômeno manifesta-se incipientemente em quase todas as atividades, inclusive o consumo. A indivisibilidade técnica 17 , mostrou a experiência, que quando uma unidade não dispõe dos recursos suficientes para instalá-los, ela acaba juntando-se a outra, para ganhar a dimensão adequada ou é por ela absolvida. Este processo de fusão demanda grande mobilização de capital financeiro18 , isto é, recursos para investimento, o qual passou a ser o fator preponderante da produção. “Com o acelerar-se da revolução industrial, em um número crescente de setores algumas unidades lograram antecipar-se às outras em obter as vantagens de redução de custos pelo aproveitamento das economias de escala. Mas isto implicou a elevação substancial de seu volume de produção e de vendas e, consequentemente, a redução do volume produzido pela demais. Estas últimas viam-se gradualmente expelidas do mercados por não poderem concorrer com os preços e mesmo a qualidade das primeiras, que acabaram por se ver sozinhas no mercado, tornando insubsistente o pressuposto da atomização, base da concorrência. Estava, assim, instalado o processo de oligopolização de inúmeros setores da economia” (NUSDEO, 1997, p. 173). O oligopólio, mais uma vez nos alerta Nusdeo, cria uma certa barreira à entrada de novas unidades e quanto mais ele for chegando ao monopólio, maior o seu poder de impor preços altos pelos seus produtos, apropriando-se de uma parcela da renda do consumidor. Ademais, o monopolista pode controlar não apenas o preço mas também a quantidade oferecida e, por esta forma, distorcer todos os mecanismos de autocontrole do mercado, além de adquirir, em alguns casos, dimensões tais que tornam politicamente perigoso. O acesso a uma fonte de matéria-prima rara, ou uma condição tecnológica exclusiva como uma patente de invenção, caracteriza o monopólio derivado de situações de fato, naturais. Do mesmo modo, a prestação de alguns serviços públicos, 16

17

18

Unidades produtoras de dimensões reduzidas. “Máquinas, equipamentos e utensílios, o que, na prática, tornava muito mais fácil a entrada de novos produtores em um dado mercado, quando este se revelasse promissor, e a saída dele em caso contrário, pois aquele capital fixo, representado por equipamento não muito sofisticado, poderia, com algumas adaptações, ser aproveitado em outros ramos da indústria”. (NUSDEO, cit., pg. 171). “As economias de escala decorrem das chamadas indivisibilidades técnicas, ou seja, a impossibilidade ou inviabilidade econômica de se produzirem equipamentospara serem aplicados apenas a número reduzido de peças ou unidades. E assim, ou eles comportam uma produção em grande série ou, pura e simplesmente, não são adotados”. (NUSDEO, cit., pg. 172) “Daí vem a denominação de Capitalismo, também associada ao sistema de mercado ou de autonomia, inclusive em decorrência da principal obra de Marx: Das Kapital”. (NUSDEO, cit., pg. 173).

11

como o fornecimento de água, pois ser-se-ia inconcebível dezenas de empresas, cada qual com sua tubulação direcionada para a mesma localidade. Outrossim, o monopólio legal, estabelecido por lei em situações especiais, como o caso das concessões de radiofusão no Brasil. Quando as decisões de mercado deixam de ser impessoais e objetivas, para decorrerem da vontade e do planejamento de algumas poucas unidades aptas a imporem seus preços e seus interesses, pormenoriza o prejuízo que torna a forma de coordenação das decisões econômicas e seu controle inoperantes. Tal-qualmente, o fenômeno das economias de escala não constituem um mal em si. Na medida em que permite a redução de custos e o maior acesso ao mercado pelas faixas de menor renda, passa a representar um bem. Há, de natureza igual, o monopólio da procura, os oligopólios de compra, tecnicamente chamados de monospônios ou oligospônios, que vêm a exercer influência sobre os preços. Estes elementos caracterizam a concorrência imperfeita. A falha de estrutura sobrevinda da concentração econômica trás consigo práticas abusivas, como o conluio19 , o cartel 20 , e a venda casada 21 , para citar alguns exemplos. Quanto à tutela, “virtualmente em todos os países do Ocidente existem leis destinadas a combater ou a atenuar o poder de controle dos oligopólios, monopólios ou formas diversas de concentração econômica sobre os mercados”.22 . Na ilustração de Nusdeo, de acordo com a concepção liberal, os agentes econômicos foram vistos mais como Davis do que como Golias, ignorando-se, assim, a possibilidade de um poder econômico, ou, truste, utilizado como veículo ou forma de concentração. Não obstante, este tornou-se o fulcro dos diplomas legais de refinado nível técnico e com sofisticados mecanismos jurídicos, exigindo alta especialização dos que se dedicam ao ramo antitruste 23 .

2.4 Externalidades e Interesses Difusos Um dos grandes calcanhares de Aquiles do sistema de autonomia ou de mercado, nos dizeres de Fábio Nusdeo, decorre do fato de, numa atividade 19

20 21 22 23

“Em um mercado concentrado, a alta de preços proveniente de um aumento da procura não necessariamente levará a um aumento da oferta, pelo simples fato de ser mais fácil para as poucas unidades nele atuantes conluiarem-se e elevarem mais os preços. Por outro lado, estes poderão também subir, por iniciativa dos vendedores conluiados sem qualquer relação com uma possível elevação da procura”. (NUSDEO, cit., pg. 175). Acordos entre vendedores para a fixação de preços comuns. Venda acoplada de produtos diversos, impedindo a livre escolha dos compradores. NUSDEO, cit., pg. 175 “A de maior repercussão foi a americana conhecida como Sherman Act, por levar o nome do senador que a propôs [...] aquela lei e as demais que se lhe seguiram, mesmo em outros países, passaram a ser conhecidas como legislação antitruste. [...] No Brasil, afora dois decretos-lei promulgados entre os anos 30 e 40, mas que não chegaram a ser aplicados, existem desde 1962 leis destinadas a esse fim. Naquele ano editou-se a Lei 4.137, a qual teve uma tímida aplicação. A lei atualmente em vigor é a 8.884 de 1994, bastante técnica e atualizada. Sua aplicação incumbe a uma autarquia federal o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, órgão vinculado ao Ministério da Justiça”. (NUSDEO, cit., pgs. 175-176).

12

econômica, nem sempre, ou raramente, todos os custos e os respectivos benefícios recaem sobre a unidade responsável pela sua condução. As externalidades representam uma nocente falha de sinal. Com efeito, todo o cálculo econômico realizado pelos centros decisórios descentralizados passa a ser viciado. Por certo, a incapacidade de incorporar todas as informações relevantes reproduz um sério entrave ao funcionamento do sistema: a gratuidade. “É como se houvesse uma estática causando um viés no sistema de comunicação do mercado. Este baseia-se no pressuposto de que sempre os custos e os benefícios de qualquer atividade serão apropriados pelas unidades responsáveis, quer produtoras, quer consumidoras. Quando tal pressuposto deixa de ocorrer, alguns fatores escassos passam a ser utilizados gratuitamente, sem ter a sua escassez devidamente sinalizada” (NUSDEO, 1997, p. 177). Concomitante com os custos e benefícios circulando externamente ao mercado, estes quedam-se incompensados, isto é, sem o devido auferimento de preços. Malogrados os exemplos dos efeitos externos, que permeiam o tecido social a cada instante, não podem ser tratados como exceção. Estes não são fatos ocorridos fora das unidades econômicas, mas sim fatos ou efeitos ocorridos fora do mercado, externos ou paralelos a ele, de modo geral vistos como efeitos parasitas. Nusdeo comenta: “Numa imagem muito simples, e imperfeita, o mercado pode ser assimilado a uma barreira de pedágio das estradas. Para passar por ela, é preciso pagar o preço. No entanto, se a barreira não for bem construída e instalada, poderão alguns carros se valer de um atalho e elidi-la, safando-se sem o correspondente tributo. Claramente eles estarão em situação favorecida frente aos demais. [...] Mas, além disso, os responsáveis pela estrada estarão recebendo uma informação incorreta sobre o exato número dos seus usuários. Daí a falha de sinal” (NUSDEO, 1997, p. 177). Os efeitos das externalidades recaem bilateralmente: “Imagine-se uma lavanderia que estenda a roupa lavada em um gramado a fim de secá-la ao sol. Após algum tempo, uma usina metalúrgica instala-se nas vizinhanças e de sua chaminé é expelida fumaça preta, bojada de partículas de fuligem que se depositarão sobre a roupa estendida. Haverá aí um custo adicional para a lavanderia, imposto pela usina. Ou, o que dá na mesma, ela lhe transferiu um custo que seria seu, pois ela é responsável pela combustão imperfeita de onde provém a fuligem. Logo, a lavanderia passou a ter um custo a mais: o reenxaguar a roupa ou construir um abrigo para ela”; e plurilateralmente: “Tentará repassar aquele custo adicional aos seus clientes. Em caso positivo, estes arcarão, no fim das contas, com o custo da usina, ao pagarem mais caro pela roupa lavada. Caso não haja a possibilidade de transferência dos custos 13

(em virtude da concorrência de outra lavanderia imune à fuligem), ela arcará com o excesso de custo e possivelmente perderá o incentivo de ampliar os seus serviços. Ainda na primeira hipótese, a da possibilidade de repasse, os usuários poderão reduzir a frequência da lavagem de roupa. Em ambos os casos, a comunidade talvez acabem ficando com roupas menos limpas do que desejava, antes de surgir o custo parasita gerado pela usina. O exemplo pode ser levado adiante. A fumaça preta, certamente, afetará as vias respiratórias dos moradores locais —clientes ou não da lavanderia —, os quais terão custos adicionais com a compra de remédios, consultas médicas ou temporadas para mudança de ar”24 . Depreende do cenário acima descrito, no que concerne à externalidade, o generante de problemas mundiais. Estes provêm de unidades produtoras e consumidoras, equitativamente. Ao discorrer sobre a poluição, por exemplo, em ambos os casos, tanto a usina metalúrgica quanto os carros produzidos pela indústria automobilística contribuem com a emissão de elementos poluentes. Quando as externalidades sobejam em algum custo para alguém são chamadas de negativas, ou deseconomias externas. Verifica-se o fenômeno em ocasiões que o arcabouço legal se mostra incapacitado a identificar e a atribuir tais custos adequadamente. Isto posto, o sinal dos preços (custos) continua falhando. “Mas eles, custos, não deixam de existir por causa disto e recaem sobre terceiros determinados ou indeterminados. Por essa razão, esse tipo de externalidade é chamado de custo externo ou custo social, conforme identificáveis ou não aqueles que lhe sofrem os efeitos”25 . Existem igualmente benefícios transferidos a terceiros26 , ou seja, externalidades ou efeitos externos positivos. A tendência provinda do espírito hedonista será sempre de lançar para fora os seus custos e, pelo contrário, granjear a internalização dos benefícios gerados externamente ao mercado. “Neste último caso, tentarão obter uma compensação dos beneficiados —o que é difícil —ou do governo, mediante subsídios, redução de impostos, fornecimento gratuito de serviços públicos e outras formas. Veja-se, a respeito, o caso dos incentivos oferecidos pelos municípios, em geral, para empreendimentos que se instalem em seus territórios. Pondo de lado o notório exagero das chamadas guerras fiscais entre municípios, a justificativa para aqueles incentivos são exatamente as externalidades positivas trazidas por tais empreendimentos” (NUSDEO, 1997, p. 181). Apenas uma decidida ação do poder público no sentido da internalização dos custos do produtor hedonista pode reverter esta situação, pois, como já dito, a tendência é de mantê-las como tais. A redução dos custos terá sempre todo o impulso em tomar ou manter externos aqueles que não conseguir 24 25 26

NUSDEO, cit., pgs. 177-178. NUSDEO, cit., pg. 179. Os beneficiários podem ser não identificáveis; não formar um grupo definido de pessoas.

14

reduzir. Ao perquirir sobre a natureza e as causas básicas da existência da externalidade, o Brasil, “à semelhança de outros países, conta com uma lei expressamente destinada à proteção dos interesses difusos27 . É a Lei 7.347/85, a qual disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico”28 . 2.4.1

Disfunção do Sistema “Na realidade, ela decorre de um divórcio entre escassez e propriedade” (NUSDEO, 1997, p. 182).

O fundamento institucional básico do sistema descentralizado é a propriedade privada. Ela engendra toda a cadeia de trocas com a imputação de preços respectivos. Uma vez que os custos ou benefícios não são compensados pecuniariamente, a comunidade serve-se de bens escassos como se fossem livres, exaurindo-os ou deteriorando-os em sua qualidade. A escassez é o que impõe uma contenção no uso do bem escasso. Ora, como já salientado, fenômenos diversos como a poluição, o congestionamento das estradas e vias públicas e o esgotamento de recursos naturais, inclusive de espécies animais, são causados pelos “bens que se tornam escassos sem atribuição de propriedade ou sem o seu efetivo exercício pela imposição de preços. Um terreno esquecido pelo seu proprietário acaba se transformando em um depósito de lixo. Nesse caso, existe a propriedade mas ela não é exercida”29 . “Mas o que haveria de comum entre congestionamento, poluição e exaustão de recursos? Exatamente a ausência ou o não exercício mercantil (próprio do mercado) da propriedade. As estradas se congestionam porque apesar de escassas não se cobra um preço pelo seu uso ou então esse preço é muito pequeno. O rio é poluído porque não se cobra um preço pelo uso de suas águas como elemento reciclador de resíduos ou resfriador de aparelhos. O mesmo quanto à atmosfera. Se bem pensarmos, a poluição não passa de um caso especial de congestionamento, o congestionamento dos bens ambientais, oferecidos gratuitamente. Os recursos naturais ou espécies animais exaurem-se, por não terem seus direitos de propriedade firmados. Por essa razão, as espécies bravias —não apropriáveis 27

28 29

“Os exemplos de interesses difusos prendem-se, em sua maioria, à figura das externalidades. São os residentes de uma estância hidromineral ou de um balneário, mas também os seus frequentadores, turistas, interessados na sua preservação. São os moradores de um bairro residencial, mas também os demais habitantes de uma cidade, interessados em não vê-lo desfigurado. Os consumidores ou espectadores de televisão, interessados em não ser ludibriados pela propaganda enganosa ou massacrados pelo excesso de anúncios”. (NUSDEO, cit., pgs. 181-182). NUSDEO, cit. pg. Ibid. NUSDEO, cit., Ibid.

15

—não. No preço de um frango já está computado o custo da sua reposição, isto é, do ovo fecundado; mas não o custo de prear uma espécie selvagem ou pescar um peixe antes da piracema. Há, em suma, um divórcio entre escassez e propriedade” (NUSDEO, 1997, p. 183). 2.4.2

Responsabilização dos Agentes e Correção

A ausência mercantil e o exaurimento de recursos proveniente da gratuidade são dificuldades extremamente sérias. Elas projetam a internalização ou privatização dos efeitos negativos representados pelos custos sociais. Deste modo, as normas jurídicas vêm com a finalidade de promover a internalização destes pelas suas unidades geradoras; ou então, simplesmente, impedir a própria geração dos mesmos. O Direito Urbanístico e o Direito Ambiental encontram no fenômeno em análise a sua base e a sua justificativa: “o zoneamento urbano, por exemplo, representa a tentativa de organizar as atividades citadinas de maneira a reduzir a interferência de umas sobre as outras, com a consequente imposição de custos”30 . Estas também alcançam dispositivos típicos de poder de polícia em vários setores, junto às normas proibitivas: “os aplicáveis a condições, também, de segurança e higiene de estabelecimento abertos ao público, como casas de espetáculos, restaurantes, escolas, com o fim ostensivo de evitar o custo externo ou social, representado pelo risco à incolumidade dos espectadores ou clientes pela falta de higiene ou de adequado sistema de saídas em caso de emergência. Igualmente quanto a normas aplicáveis a toda sorte de atividades, inclusive as de publicidade ou de entretenimento”31 . Juntamente, esquemas tributários são estruturados quando as externalidades implicam em altos custos para a sociedade —como é o caso do tabagismo —, em especial, para a Previdência Social, de modo a arcarem com eles os seus agentes causadores transferindo recursos dos fabricantes para os centros hospitalares, como ocorre em alguns países. A implantação de tarifas, de mesmo modo, para o uso do meio ambiente32 , está presente na legislação ambiental de países mais avançados. “Dessa forma, corrige-se esta disfunção do mercado, pois, como deve ter ficado claro, o custo transferido é custo inexistente para o seu gerador, uma indústria, por exemplo, a qual, assim, torna-se artificialmente mais lucrativa do que o seria se obrigada a absorvêlo, permitindo-lhe destarte vender os seus produtos a um preço artificialmente mais baixo. Há aí um viés do sistema de preços, 30 31 32

NUSDEO, cit., pg. 184 NUSDEO, cit., Ibid. “Na Alemanha, no caso de bacias hidrográficas, é feito através de organizações especiais, um tipo de cooperativa, chamadas Genossenschaften, as quais cobram um preço por unidade de poluente lançado ao rio e usam os recursos para obras destinadas a facilitar a sua despoluição. É o chamado princípio do poluidor-pagador, exemplo típico do processo de internalização dos custos sociais”. (NUSDEO, cit., pg. 185)

16

levando a sociedade a consumir mais meio ambiente do que o faria ou do que quereria caso existisse um preço associado ao seu uso” (NUSDEO, 1997, p. 185). As regras de bom tom, ou boa educação, ainda que não legais, ou simplesmente morais, representam uma forma de atenuar os custos que a nossa existência impõe aos demais membros da sociedade, no que tange aos interesses difusos33 .

2.5 Bens Coletivos O suprimento de bens coletivos revela-se não operacional no sistema de mercado. O princípio da racionalidade hedonista e moralidade utilitarista, molas mestras do liberalismo, são incompatíveis com o princípio de inclusão dos bens coletivos. Ao contrário dos bens exclusivos, os coletivos são aqueles aptos ao atendimento simultâneo das necessidades de um grupo ou coletividade —para os quais não vigora o princípio da exclusão no ato de seu uso ou do seu consumo. Ao disputar no mercado de bens exclusivos, os consumidores, através da preferência revelada, estão dispostos a sacrificar uma parcela de suas rendas para obtê-los. Essa dinâmica não ocorre com os bens coletivos, justamente pelo fato de não poderem ser excluídos de sua utilização, caso tais bens venham a ser produzidos —como é o caso da defesa nacional, exemplo mais absoluto de um bem coletivo, pois a proteção que ela traz a um cidadão é exatamente igual àquela proporcionada a qualquer outro membro da coletividade. O princípio da soberania do consumidor determina o voto preferencial, isto é, “a comunidade vota nos artigos que deseja ver produzidos, manifestando as suas preferências por aqueles bens cujos preços se dispõe a pagar”34 . Nusdeo nos exemplifica, em termos práticos, a preferência discriminada: “Seria o caso de uma ponte, do ensino público, de uma campanha de vacinação, da melhora do aparato policial? Em princípio não, porque o consumidor ou usuário sabe que se vier a colaborar financeiramente para a realização de qualquer iniciativa desse tipo sua participação individual será insignificante e dela não dependerá a materialização daquela iniciativa. Além do mais, uma vez disponíveis aqueles bens, quaisquer terceiros que não contribuíram receberão idênticos benefícios. Serão os free riders, ou seja, os beneficiários gratuitos da obra ou do serviço. A consequência dessa 33

34

“Uma notável reação do Direito aos generalizados efeitos externos das atividades econômicas veio a ser a elaboração do conceito de Interesse Difuso. Ele quer significar um interesse comum a um grupo não delimitado de pessoas, contrapondo-se, assim, a outras categorias de interesses contempladas pelo Direito: os interesses individuais, os interesses coletivos, os interesses individuais homogêneos. Interessante observar que, no Direito Processual Civil clássico, de índole liberal, era basicamente construído para a defesa dos interesses individuais, subjacentes a qualquer demanda”. (NUSDEO, pgs. 185-186). NUSDEO, cit, pgs. 186-187

17

situação é evidente. Uma economia fundada apenas no mercado tenderá a discriminar fortemente os bens coletivos e a exagerar a produção de bens exclusivos. Terá, assim, muitos carros, mas poucas linhas de metrô ou um deficiente transporte coletivo: terá muitas fábricas, mas poucos aparelhos antipoluentes —o ar puro é um bem coletivo: maior pureza para uns, não significa menor pureza para outros —; terá médicos particulares mas uma deficiente higiene pública e assim por diante. E, em muitos desses casos, verifica-se ainda um fenômeno de causação circular: quanto pior o transporte coletivo, mais se exacerba a procura por automóveis particulares. Este, aliás, tem sido um dos pontos mais ressaltados por diversos autores: a deficiente provisão de bens coletivos é uma das distorções mais sérias de uma economia cujo processo decisório se baseie essencialmente no mercado, pois o fato de as necessidades por bens coletivos não serem veiculadas adequadamente pelos canais do mercado não significa que elas não existam ou não sejam importantes. Há aí uma falha de incentivo, a inibir, pelo menos parcialmente, o processo de encaminhamento de recursos aos seus pontos ótimos de aplicação. Falha de incentivo em a população manifestar a sua preferência, o que implica igualmente uma falha de sinal para os supridores desses bens.” (NUSDEO, 1997, p. 187). A rigor, esta percepção sempre existiu. O Estado, desde as eras mais remotas, cobra tributos para fazer face, entre outros fins, às necessidades de caráter coletivo, inclusive a sua própria manutenção. O serviço público, hoje tratado pelo Direito Administrativo, com o crescimento da população e seu adensamento nas áreas urbanas, veio normatizar estas necessidades, antes pura e simplesmente desconsideradas, agora expandidas enormemente. Encontrar-se-ia os bens coletivos, assim, como uma modalidade positiva de externalidade, sendo aquele dotado apenas de externalidades e produzidas para tal fim de geração ou produção de benefícios externos extramercado. “É o caso de praças, parques e outros bens tipicamente coletivos. A estrada, por exemplo, reduz os custos do transporte na região por ela atravessada. Mas não é só. Há outros bens ou serviços que, muito embora exclusivos, geram um tal montante de externalidades positivas a ponto de serem cada vez mais vistos, eles próprios, como bens coletivos. É o caso da vacina35 [...], do ensino e do saneamento”36 . A diversificação e desenvolvimento destas modalidades destinadas ao Estado suprir, quer diretamente, quer mediante concessão de serviços públicos 35

36

“Aparentemente trata-se de um bem exclusivo, pois protege a quem foi com ela inoculado. Mas, à medida que uma parcela razoável da população a receba, aumentam as probabilidades de todo o conjunto de habitantes ver-se livre de uma possível epidemia. As altas externalidades fazem a vacina ser encarada muito mais como um bem coletivo do que exclusivo”. (NUSDEO, cit, pg. 188). NUSDEO, cit., pg. 188.

18

ou contratação de terceiros, quer via incentivos à produção pelo setor privado, sempre deve-se ater e ser dotado de alto coeficiente de externalidades positivas. Por esta razão, a falta de sinal decorrente da ausência de incentivo não ocorre pelos canais de mercado, mas pelos canais da representação política, segundo a escolha de legisladores e governantes, cujos programas contemplem o fornecimento deste ou daquele conjunto de bens coletivos, conforme a preferência dos eleitores. Somente assim, de acordo com o economista francês, Henri Storch, em 1823, no tratado Cours d’économie politique, “as bases da lei não seriam princípios vagos como o direito divino ou natural, mas o princípio fecundo da utilidade coletiva, plausível ao bom senso e passível de verificação”37 O Direito incorporou, nos ramos supracitados, o conceito de bem coletivo, cuja essência consiste, exatamente, em torná-los disponíveis à comunidade. O financeiro: “fixando critérios e diretrizes para a movimentação dos recursos estatais e, em particular, para a aplicação dos mesmos em serviços, obras e contratações”; o administrativo: “implementando-os e disponibilizandoos à população ainda quando sob formas de caráter privatizante, como as concessões, parcerias e outras que tais”; e o tributário: empenhando-se “em estabelecer os princípios e normas para a obtenção daqueles recursos, via tributação, tendo subjacente a tais princípios as necessidades coletivas a serem atendidas sob a égide estatal”38 .

Considerações finais A mecânica operacional de mercado, tal qual imaginada pelos clássicos, não estava irrestrita a falhas. Previa-se, a cada caso concreto, um modelo simplificado de concorrência perfeita —critério fundamental para o seu funcionamento —, numeradamente: (I) ampla mobilidade dos fatores; (II) pleno acesso a informações; (III) ausência de economias de escala, assegurando a atomização; (IV) ausência de economias externas, quer positivas, quer negativas; (V) exclusividade de todos os bens; e (IV) homogeneidade dos produtos. Como constatado, o progresso do sistema de mercado revelou, ao mesmo tempo, o apontamento dos seus problemas, cujo horizonte diferencia-se do acima elencado, e, cada um deles, passou a corresponder a várias ações corretivas por parte do Estado, traduzidas em normas legais e regulamentares de toda espécie. Contíguo ao processo decisório do mercado veio emaranhado um aparelho controlador de caráter burocrático, visando o impedimento das consequências indesejáveis, e, para esta nova configuração, denominou-se o capitalismo regulamentar ou de regime de mercado controlado ou ainda de neoliberalismo, indicando a permanência dos postulados liberais, mas —nos dizeres do Professor Fábio Nusdeo —, modificados para poderem levar em consideração os novos reclamos provocados pelo imperfeito funcionamento dos mercados, o qual, em última análise, implicava tolher a liberdade daqueles sobre quem 37 38

NUSDEO, cit., pg. 189. NUSDEO, cit., pg. 190.

19

recaíssem as mesmas imperfeições. “Este é um aspecto importante, pois veio deixar nítido as ameaças à liberdade podem provir de outras fontes que não apenas o Estado. À liberdade do poluidor de poluir correspondem a falta de liberdade da população de respirar ar puro ou de adquirir alimentos não contaminados. O poder do monopolista de provocar a escassez e fixar preços significa a compulsória entrega a ele de parcela extra da renda do consumidor. A defesa intransigente da liberdade do indivíduo frente ao poder político poderia levá-lo à perda dessa liberdade frente ao poder econômico, por alguma forma manifestado” (NUSDEO, 1997, p. 191). Enceta-se, assim, a inauguração da intervenção do Estado na economia, ou no domínio econômico, e, este em vez de visto como mero interventor, passa a ter a sua presença reclamada como um agente habitual, pois, em tese, cerca-se das indispensáveis cautelas para limitá-la ao estritamente necessário, a fim de suprir as disfunções maiores do sistema, dando-lhe condições de operacionalidade e viabilidade, legitimando-o. Logo, os setores da economia insuscetíveis de equacionamento pelo mercado deverão, necessariamente, ser atendidos pela ação coletiva. Parafraseando, uma vez mais, Professor Nusdeo, isto não significa agir contra o mercado, mas, pelo contrário, em harmonia com ele, suprindo-lhes as deficiências, sem lhe tolher as condições de funcionamento. Sem embargo, uma segunda motivação e extremamente poderosa acoplou-se à esta, decorrente de preferências políticas, levando o Estado não apenas a complementá-lo mas a direcioná-lo deliberadamente em função de fins específicos. Consequentemente, a presença do poder político na economia deixa de ter apenas por justificação as falhas do mercado e, este é um objeto para ulterior dissertação.

Referências

NUSDEO, F. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico. São Paulo, SP, BR: Revista dos Tribunais, 1997. Citado 14 vezes nas páginas 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 20.

20

The Law as a rectifier element of the developed market system Edpo Macedo 1 de Março de 2016

Abstract The present work presents the economic view of the law, from its origins, causes and circumstances, to the gradual process of implementation, together with the realization of their faults and corrective measures, stemming from the law. This is mainly based on "Curso de Economia", by Fábio Nusdeo, especially his chapter on market failures, widely cited in this article. Key-words: economic law. neoliberalism. economy.

21

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.