O Direito da Sociedade

July 27, 2017 | Autor: Marcos Catalan | Categoria: Law and Society
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O Direito da Sociedade

Centro Universitário La Salle Reitor: Paulo Fossatti Vice-Reitor: Cledes Antonio Casagrande Pró-Reitora Acadêmica: Vera Lúcia Ramirez Pró-Reitor de Desenvolvimento: Luiz Carlos Danesi

Editora Unilasalle Conselho Editorial: César Fernando Meurer, Cristina Vargas Cademartori, Evaldo Luis Pauly, Rafael Kunst, Tamára Cecília Karawejszyk, Vera Lúcia Ramirez, Zilá Bernd, Ricardo Neujahr (Secretário).

Programa de Pós-Graduação em Direito Coordenador: Germano André Doederlein Schwartz Coordenadora-adjunta: Selma Rodrigues Petterle [email protected] (51) 3476.8708; (51) 3476.8717 e (51) 3476.8490

Produção: Editora Unilasalle Projeto gráfico e diagramação: Ricardo Figueiredo Neujahr

O Direito da Sociedade Anuário Volume 1

Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros Germano André Doederlein Schwartz Organizadores

Sumário

Germano André Doederlein Schwartz e Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros Apresentação / p. 07 Germano André Doederlein Schwartz Dizer o direito, dizer à saúde / p. 11 Marco Félix Jobim Os novos paradigmas culturais do direito na sociedade contemporânea / p. 33 Leonel Pires Ohlweiler O direito administrativo como conceito interpretativo: questões hermenêuticas sobre a sua efetividade no constitucionalismo contemporâneo / p. 53 Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros Animais não-humanos: uma reflexão acerca da proteção jurídica no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro / p. 103 Paula Pinhal de Carlos O julgamento da ADI nº 4277 pelo STF e o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como união estável: Interseções entre direito e sexualidade / p. 149 Maria Cláudia Cachapuz Argumentação discursiva e as esferas do público e do privado nos direitos de personalidade / p. 165

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Marcos Catalan Abrindo fissuras nas paredes da Matrix: A revisitação da compreensão doutrinária do prazo visando à correção dos vícios do produto no sistema consumerista / p. 177 Selma Rodrigues Petterle A pesquisa científica com seres humanos e o direito internacional / p. 193 Daniel Achutti Do idealismo abolicionista ao realismo político-criminal: considerações sobre a potencialidade da justiça restaurativa para a administração de conflitos criminais / p. 213 Renata Almeida da Costa Policontexturalidade, risco e direito: abismos superáveis para o delineamento da criminalidade contemporânea / p. 229 Salo de Carvalho Sobre a criminalização da homofobia: perspectivas desde a criminologia queer / p. 257 Diógenes Vicente Hassan Ribeiro O mito da sociedade como um projeto jurídico / p. 283 Jayme Weingartner Neto Direitos e efetividade: a boa governança no sistema de justiça / p. 297 Sérgio Urquhart de Cademartori e Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori A construção de garantias para o direito de acesso / p. 313 Sobre os autores / p. 351

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Apresentação

O livro que ora é apresentado à comunidade acadêmica é fruto de um projeto institucional e de um grupo de pesquisadores organizados em torno de um tema. Assim, além de possuir os objetivos típicos de uma obra em conjunto, traz ainda outros bastante específicos. O projeto referido é bifurcado. De um lado, a projeção futura da transformação do Centro Universitário Unilasalle em Universidade. A pesquisa, nesse âmbito, assume grande relevo. Investimentos a respeito estão sendo feitos de forma maciça em nossa IES, reforçando, ainda mais, os recursos que já eram alocados sob tal rubrica. De outro lado, e, por causa do primeiro objetivo, desde o final do ano de 2011, o Unilasalle decidiu propor, perante a CAPES, em 2013, um Programa de Pós-Graduação em Direito stricto sensu, projeto esse que já foi aprovado e já se encontra com a primeira turma em andamento. O livro, mais precisamente, é resultado desse vetor. Em outras palavras: o Direito da Sociedade é a cristalização de um primeiro movimento do grupo de doutores – em número de dezesseis – que compõem o quadro de professores do Mestrado. Mais, é uma publicação, realmente, com o espírito de um grupo, isto é, ela é aderente à área de concentração e às linhas de pesquisa do PPGD. A área de concentração escolhida é Direito e Sociedade. Ela se circunscreve às correlações – necessárias – entre a crescente complexidade social e o papel do Direito frente a essas transformações. Preocupa-se, portanto, com miradas transversais a respeito da juridicização das esferas sociais, entendendo-se tal como a incidência do Direito no conjunto de relações sociais estabelecidas, e, também, nas formas como a Sociedade percebe o Direito e vice-versa. Suas linhas de pesquisa são (a) Efetividade do Direito na Sociedade e (b) Sociedade e Fragmentação do Direito. Como é objetivo de todo PPGD, são

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linhas que se conectam e se complementam em função das temáticas em comum quem ambas possuem. Nesse sentido, a linha Efetividade do Direito na Sociedade está focada na questão da legitimidade do Direito perante a sociedade, ou seja, de que modo o processo de produção estatal das normas jurídicas é recebido, cumprido e observado pela sociedade. Dessa forma, é seu objetivo, também, perscrutar que expectativas a sociedade possui sobre as legislações vigentes e como ela reage ao processo de implementação do Direito e às propostas de elaboração de novas leis. Por conseguinte, intenta verificar o papel das Instituições na maneira pela qual se aplica o Direito, procurando, assim, descobrir as razões do baixo índice de sua coercitividade na sociedade (brasileira). Isso toma especial relevo para que se busque compreender a efetividade das normas jurídicas em uma sociedade em constante e contínuo processo de transformação. Na mesma esteira, a linha Sociedade e Fragmentação do Direito parte do pressuposto de que o Direito Moderno foi pensando por intermédio das características de uma sociedade idem. Assim, na medida em que a sociedade global se apresenta com características de funcionamento em rede e de clara eliminação de fronteiras, o Direito, pensado – e aplicado – a partir das ideias de hierarquia e de Estados-Nação encontra-se em um momento de transformação. Sua fragmentação, portanto, deriva das forças sociais – interdisciplinares – que sobre ele atuam e produzem mudanças decisivas. Procura, com isso, abarcar o processo de juridicização das esferas sociais (reais e virtuais), da produção de um Direito Não-Estatal, da necessidade de alternativas ao processo de legitimação da produção de normas jurídicas, do enfrentamento da formação de um direito privado e público extra (e ao largo) do Estado, de formas alternativas de composição de conflitos, entre outras temáticas relacionadas ao papel do Direito em uma sociedade contemporânea. A abordagem feita no primeiro volume do Direito da Sociedade centrouse na segunda linha e os textos ora publicados, todos, possuem relação direta com ela, a demonstrar a interconexão de assuntos e de objetos. Importante salientar que se trata de uma série de livros, anual, sendo este o primeiro, com um título que espelha uma das obras centrais das teorias sociais sobre o Direito: “O

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Direito da Sociedade” de Niklas Luhmann. É uma homenagem, e, pela questão semântica, possui um evidente elo com o Mestrado em Direito e Sociedade. A cada edição serão escolhidos temas que, gize-se, não estarão presos ao autor citado, mas, sim, restarão afeitos às linhas de pesquisa e à área de concentração em comento. Como se vê, portanto, está-se diante do primeiro resultado do PPGD, que, como tal, requereu de todos os envolvidos muito sacrifício e incomensurável dedicação. Esperamos que os leitores reconheçam, além da qualidade intrínseca dos ensaios, aquilo que percebemos: a maturidade de um grupo de doutores que possui muito, ainda, a ofertar para a pesquisa jurídica em nosso país. Até o próximo!

Os Organizadores.

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Dizer o direito, dizer à saúde1 Germano André Doederlein Schwartz

1. Introdução Em entrevista publicada na Revista Veja (8 de abril de 1998, p. 11-13), o sociólogo alemão Claus Offe defendia categoricamente o fim do Estado do bem-estar social. Como resposta à falência desse modelo estatal, sustentava a necessidade de um pacto social tripartido: Estado, Mercado e Comunidade deveriam interagir para a solução de problemas que lhes dizem respeito. Partindo-se desse pressuposto e recordando-se de que, de uma forma ou de outra, as Teorias de Estado2 e de Mercado já se encontram relativamente desenvolvidas dentro de seus campos teóricos de atuação, pode-se asseverar que a perspectiva teorética ausente na proposta de Offe diz respeito à comunidade, ou seja, inexistem análises mais percucientes sobre que formas de observação é possível investigar o poder da sociedade civil.3 Com efeito, não é novidade alguma nesta etapa do século vigente pugnar pela necessidade da participação da comunidade nos processos decisórios de tarefas outrora exclusivas do Estado, como é o caso da saúde. Nesse caso específico, o campo sanitário merece destaque. Como bem recorda Bolzan de Morais (2000, p. 12), as transformações sociais oriundas daquilo que comumente se denominou pós-modernidade colocaram em xeque duas das grandes bases do Direito: o Estado e a Constituição. Suas funções são, hoje, questionadas, principalmente frente à constatação fática da prevalência de processos globalizatórios de expansão da lex mercatoria (TEUBNER, 1988). Estado e Constituição aparecem como instrumentos desatualizados, não competitivos, até mesmo jurássicos, quando contrapostos à velocidade dos fenômenos jurídico-sociais típicos de uma sociedade transnacionalizada. Dessa forma, quando se parte do fato de que a regulação da participação da comunidade na área da saúde em nosso país é dada a partir de um princípio constitucional (Art. 198, III, CF/88) e que essa mesma saúde ainda é um dever do Estado no Brasil (Art. 196, CF/88), não é difícil de sustentar, com base no anteriormente afirmado, que esse modelo, por consequência, resta ineficiente na sociedade

contemporânea. Será isso correto? A hipótese aqui defendida não pretende abordar analiticamente os métodos de consecução da tarefa estatal-constitucional da participação da comunidade em saúde. Pretende, sim, propor uma releitura dessa diretriz a partir de um novo formato regulatório, defendendo-se que os métodos de percepção hoje utilizados embaçam a necessária intervenção do cidadão no campo da saúde.

2. Dizer o direito, dizer a saúde A inovação da Constituição cidadã no estabelecimento da saúde como direito de todos representou inequívoco avanço no trato da questão sanitária no Brasil. Uma das esperanças dessa positivação era a da que, via Direito, a realidade da saúde dos cidadãos brasileiros pudesse ser modificada. De fato, isso ocorreu, porém não com a velocidade pretendida. Basta, para tanto, relembrar a posição ocupada pelo Brasil no último ranking da Organização Mundial de Saúde (125 em 191 países). Sem embargo, o dire le droit pelo Estado foi um instrumento bastante eficaz para a transformação da realidade social em tempos não muito distantes. A atuação estatal tornou-se elemento decisivo para a manutenção da pax. Em sociedades com baixo grau de complexidade, onde, por consequência, as alternativas decisórias não se mostravam contingentes, a atuação do Estado via sistema jurídico se subsumia ao esquema clássico da produção normativa exaustivamente analisada por Kelsen (2000, p. 309-354). O droit imposé, fruto do esquema representativo emergido dos resquícios da Revolução Francesa, símbolo da liberdade, igualdade e fraternidade, pode, no caso da saúde, ser merecedor de reprovação. Uma análise suficientemente comprometida revela que a conceituação da saúde em um ordenamento legal é uma tentativa fadada à estaticidade, renegando seu caráter dinâmico em uma sociedade de risco e de incertezas. Daí que o dire la santé via Direito deve ser uma construção elaborada também pelos destinatários das normas de direito da saúde. Para que se possa chegar a esse nível de abstração, impõem-se algumas considerações. Nesse sentido, a construção da saúde como Direito é, em si mesmo, uma ideia paradoxal. Quando o Art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabeleceu a relação obrigacional entre cidadão (credor) e Estado (devedor), quase todas as Constituições do mundo afirmaram-na como direito fundamental do homem (SANZ apud BALADO; REGUOIRO, 1996, p. 293). Típico de uma época em que a produção legislativa tinha pretensões universais, visando à simplicidade e a

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segurança (ARNAUD, 1999, p. 203),4 a saúde como Direito, no caso brasileiro, demonstrou-se uma ideia generosa no plano teórico, porém inadequada ao contexto social. Abordando a afirmação sob outro ângulo, é inegável o avanço, tardio, da inserção da saúde como direito de todo cidadão brasileiro (declaração do direito). Sabe-se, contudo, que a simples afirmação constitucional não surtiu os efeitos imaginados. Muito embora etapas de evolução de conquistas históricas da humanidade (BOBBIO, 1992), o preceito descritivo dos direitos fundamentais (declaração) necessita, para sua convalidação, de seu descumprimento (LUHMANN, 2000, p. 158). A ideia embora pareça contraditória, torna-se elemento propulsor da saúde como direito do homem. A simples declaração, como já dito, não tem o pendor de efetivar a norma jurídica. Ao contrário. É a sua não-observação que torna latente a necessidade de sua proteção. Quanto maior a inobservância, maior a busca pela afirmação. O que se pretende com a assunção desse paradoxo é referi-lo como algo a ser trabalhado em uma perspectiva contingencial. Isso significa levar em consideração o fato de que para uma hipótese não existe uma resposta única. As possíveis decisões são, de fato, uma redução de complexidade. Nessa linha de raciocínio, o campo sanitário oferece mais plausibilidades de decisão do que se pode imaginar. Dizer que a saúde é direito é somente reforçar o fato de que sempre houve saúde? Não. É inferir que sempre houve doença (SCHWARTZ, 2004, p. 56-62). A positivação torna-se, pois, um reforço de constatação desse fato. As decisões advindas para a redução do desvelamento paradoxal desse leque devem levar em consideração seu contraposto, sob pena de não se transmudarem nas expectativas normativas geradas pelo advento da Constituição Federal de 1988. Quanto à hipótese de preenchimento de sentido do que significa a saúde para os cidadãos brasileiros, revela-se que as decisões tendentes à consecução de tal desiderato necessitam ser direcionadas a partir da doença, como se explicitará adiante. E, mais, é sensato referir que o processo da produção decisório também pressupõe participação popular. Não pode ser exclusivo do Estado. A este cabe o dire le droit (elevar a saúde como direito); àqueles, o dire la santé (definir as políticas públicas tendentes à persecução da saúde). As características da sociedade moderna, além das já ultracitadas globalização e transnacionalização, apontam para uma sociedade cada vez mais policontexturalizada (TEUBNER, 1999), em que a emergência de regulações não é exclusivida-

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de do Estado, passando a ser compartida com seus componentes. Esse é o resultado daquilo que alguns doutrinadores denominam de sociedade de risco (LUHMANN, 1999).5 De fato, a função do Estado é, antes de segurança, descartar riscos. Nessa linha de raciocínio, como bem relembra Arnaud (1999, p. 192), a problemática do dizer o Direito (declará-lo), tem uma origem “moderna”, com fundamentos na regulação social feita única e exclusivamente pelo Direito, que, por sua vez, é monopólio exclusivo do Estado. Contudo, especialmente na área da saúde, o dire le droit por parte do Estado apresenta uma grande distância daquilo que se pode denominar de tempo da sociedade (OST, 1999, p. 10).6 Para que se consiga sincronizar o tempo do Direito com o tempo da sociedade é necessária uma lógica nova para o que se pode denominar de dire la santé. Esse dizer a saúde é, de fato, um elemento completivo daquela declaração de direito emanada do Estado. A comunidade, pois, participa de um processo decisório que antes era monopólio estatal. Isso significa, na esteira de Arnaud (1999, p. 193), que “nem toda regulação social passa necessariamente pelo direito, que a melhor regulação social não é forçosamente o direito, e que o Estado perde terreno na sua soberania, inclusive no que diz respeito ao direito”. Assim, há a necessidade de um direito negociado (droit négocié),7 que não abandona a necessidade da produção normativa do Estado, mas que a complementa. Com isso, cabe ao Estado a declaração do Direito e, em alguns casos, sua posterior proteção. À comunidade cabe a participação nos procedimentos que faticamente selecionarão, dentre as várias possibilidades existentes, a hipótese que melhor reduza a complexidade na área sanitária. Formam-se, assim, policontextos (TEUBNER, 2005, p. 34-35) normativos, todos eles interligados e, ao mesmo tempo, autônomos. Esquematicamente, pode-se ilustrar essa ideia a partir do seguinte gráfico:

Para que os modelos legalistas-positivistas possam ser suplantados, é necessária uma nova lógica na produção normativa. No campo sanitário isso se clarifica de forma ainda mais evidente, pois a concepção de saúde, como bem preconiza nossa Constituição por intermédio do princípio da descentralização dos serviços de

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saúde (Art. 198, I), deve ser regionalizada, pois os vários níveis de diferenças (sociais, econômicos, geográficos) constatadas no Brasil, sinalizam para a urgência de se implantar formas diversas de se dizer a saúde (já direito – dito pelo Estado). Essa nova lógica vem apoiada na ideia de Constituições Civis apresentadas por Teubner.

3. As constituições civis e a nova lógica regulatória Gunther Teubner propõe, atualmente, uma nova visão acerca da constitucionalização do sistema global, procurando atualizar temporalmente a Constituição e seu conteúdo (saúde) perante os fenômenos da reflexividade e da juridificação. Sem embargo, o autor é o sistêmico-jurídico de maior relevância no cenário mundial. Tal fato se deve ao seu aprofundamento na teoria luhmanniana com a tentativa da (re) definição de certos conceitos quando contrapostos à sociedade atual. Nesse sentido, Teubner agrega ao conceito biológico-autopoiético, que, em Luhmann, é uma proposta radical (CLAM, 2006, p. 166), alguns elementos históricos. Tenta conectar o contexto social ao Direito. Entidades tais como as classes sociais, as corporações jurídicas e os movimentos sociais (TEUBNER, 1996, p. 149170) são co-partícipes de uma reflexividade que “autodelimita o Direito dentro de seus vínculos com a realidade social” (MELLO, 2006, p. 357). Essa é a juridificação, a nascença dos múltiplos corpos do Rei (TEUBNER, 1997, p. 736-787),8 a razão da falência da hierarquia e da supremacia das Constituições dos Estados-Nação. A correlação sistema x ambiente é, portanto, observada a partir de interpenetrações desse código inicial com os subsistemas do Direito, da Política e da Economia, entre outros. Porém, toda essa análise, que inclui o problema da regulação da saúde, pressupõe uma espécie de autopoiese em níveis, também defendida por Clam (2001, p. 48) em sua tentativa de aclaração da teoria luhmanniana. Ao contrário de Luhmann, Teubner (1989) entende que há níveis de autonomia diferenciados no sistema jurídico. Com isso, a autopoiese vai-se constituindo no sistema jurídico, a partir da auto-observação, da autoconstituição e da auto-reprodução. Essa constelação auto são ciclos. Auto-referentes. Quando há articulação entre os três elementos, ocorrem o hiperciclo e a autonomização do Direito. Nas palavras de Teubner (1999, p. 68): Uma coisa é um subsistema social observar os seus componentes (elementos, estruturas, processos, limites e meio envolvente) através de comunicação reflexiva (auto-observação); outra diferente é um sistema definir e colocar em operação por si só o conjunto dos componentes sistê-

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micos (autoconstituição); ainda uma outra coisa diferente é a capacidade de um sistema para se reproduzir a si mesmo através da produção (circular e recursiva) de novos elementos a partir de seus próprios elementos (autopoiese).

Há, portanto, uma espécie de autopoiese gradativa do Direito, como, sob outra perspectiva, também defende Clam (2006, p. 143-189).9 Todavia, os hiperciclos não são encontráveis de forma pronta e acabada. Eles se autoconstituem. É o caso do fenômeno constitucional sanitário. No nível da comunicação reflexiva e auto-reprodutiva, e no contexto de uma sociedade globalizada, resta constatável que a juridificação de determinada Constituição se dá, hoje, em níveis diferenciados. Aduzindo-se, some-se a ideia de direito reflexivo, elaborada pelo próprio Teubner (1996, p. 19), cujo entendimento parte de um pressuposto tripartite: (1) Direito Formal – racionalidade interna; (2) Direito Material – racionalidade normativa; (3) Direito Reflexivo – racionalidade sistêmica. É, especificamente, na racionalidade sistêmica (reflexiva), que se pode observar o direito constitucional à saúde com os olhos requeridos pela sociedade contemporânea. A grande e nova característica (TEUBNER, 1996, p. 04) é o fato de que o surgimento de uma lei globalizada não pode ser mensurada e/ou avaliada por ícones do Estado-Nação, tais como a Constituição. A racionalidade reflexiva impõe à constatação da impossibilidade uma noção hierárquica de ordenamento jurídica em uma sociedade de redes (TEUBNER, 1996, p. 04). Problemas como a digitalização, a privatização e a globalização (TEUBNER, 2003, p. 02) colocam em dúvida a tríade Constituição/Estado-Nação/Soberania. De fato, em vários autores (TEUBNER, 1996, p. 04) clássicos, a Constituição foi erigida como um símbolo de limitação do Poder. Dentro do contexto apresentado, resta saliente que o ponto legitimador é outro: a sociedade necessita regulamentar dinâmicas sociais que operam de forma diferenciada. Daí, portanto, o desafio temporal: caso simbolizada dentro dos padrões liberais, não estaria, hoje, a Constituição, limitada ao que La Salle, corretamente, denominou de fatores reais do poder? Ela não correria riscos de se tornar uma folha em branco? (TEUBNER, 2003, p. 02). Ela (re)institucionalizaria tempo? Dentro da perspectiva adotada, a manutenção dessa lógica importaria em uma falha nos quatro ciclos do tempo do Direito, bem apontados por Ost (1999): Memória, Perdão, Promessa e Requestionamento. Não há uma nova promessa e, muito menos, um requestionamento. A Constituição – e seu direito à saúde – não cumpre com as expectativas normativas lançadas pela sociedade. Nessa linha de raciocínio, alerta o mesmo autor (1999, p. 28): “Como sempre, é no presente que se

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tem de triar, na herança do passado, aquilo que ainda é necessário para que o futuro tenha sentido”. Dito de outra forma: uma observação de segundo grau da Constituição deve levar em consideração seu entorno. Assim, por via de consequência, as comunicações sociais influenciam e (re)transformam seu sentido (da Constituição). A lógica do Direito não corresponde mais, segundo Teubner e Fischer-Lescano (2004, p. 1039), a um sistema de julgamento de Cortes Superiores, mas sim de networks. Nessa modalidade, a Lei não se posiciona como o centro do sistema jurídico. Em sua visão, de policontextos, o autor refere que as decisões juridificadas são absorvidas mutuamente, restando conectadas por suas recursividades, cuja origem varia e possui significados diferenciados. Assim, a unidade do ordenamento jurídico passa a ser observada como regimes normativos compatíveis. Essa é a consequência dos já referidos vários corpos do rei. Todavia, a Constituição, nesse contexto, possui, ainda um grande sentido: uma limitação de danos (LUHMANN, 1998). Como já alertava Luhmann (1997, p. 13-48), a unidade de diferença é uma realidade em um mundo de subsistemas diferenciados funcionalmente. Logo, pretender a superioridade, pressupõe racionalidade forçada, quando, ao contrário, deveria ser evolutiva. A construção de regimes que, ao invés de se colidirem, pressuponham a conexão citada, pode reconstruir tanto o sistema jurídico quanto os subsistemas por ele influenciados mediante as possibilidades advindas da repartição do poder regulatório.

4. A gestão compartida regulatória da saúde no Brasil – ‘Le pouvoir en partage’10 O plexo comunicativo de possibilidades advindas da comunicação/opinião oriundas das Constituições Civis e dos policontextos anteriormente abordados, recolocam a necessidade de se (re)pensar a forma regulatória sanitária e contemporânea em solo brasileiro. Nesse sentido é que se devem avaliar quais os instrumentos jurídicos e políticos postos na realidade da saúde do Brasil para a regulação deste bem público. Da mesma forma, a fundamentação teórica já discutida neste trabalho agrega-se aos elementos jurídicos pré-existentes para a necessária (re)construção de novos mecanismos regulatórios destinados à proteção/promoção da saúde. Com essa proposta, é que se tentará racionalizar complexa e civilizatoriamente as gamas de perspectivas de inclusão social no seio das decisões sanitárias, visto que assumidas como compromisso social. Nessa seara a participação popular

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na moldagem da nova regulação - compartida – também pode ser vista como um instrumento de controle e de participação social na gerência dos interesses públicos. Dentro desta perspectiva, poder-se-ia afirmar que o objetivo de correção das desigualdades estabelecido pelo amplo aspecto dirigente e vinculativo do Estado Democrático instalado no Brasil pela Carta Política de 1988 teria uma efetiva e real possibilidade de se concretizar no mundo dos fatos via gestão compartida sanitária, onde o requisito da descentralização dos serviços e competências de saúde assumem grande relevo e se tornam princípios legitimadores das ações nesse sentido.

4.1 A descentralização sanitária Uma pretendida regulação compartida sanitária somente pode ser alcançada quando é vista como um papel de articulação e de auto-instituição da sociedade. Um palco de discussão para a negativa da cidadania de baixa intensidade (CITTADINO, 1999). Um espaço em que se produza um embate de ideologias mediante o contraditório e tendente a formar uma opinião pública sobre o assunto. Atenta a tal ideia é que a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 198, I, elenca que o sistema sanitário brasileiro deve ser organizado a partir de uma descentralização, ainda que o comando ainda seja único e regido mediante determinações gerais, como é o caso do Art. 196 e seguintes da Lei Maior. De forma sintética, a Carta Magna traz as diretrizes tanto do direito à saúde como da organização de seu Sistema Único. O SUS deverá ser gerido de forma descentralizada, tendo direção única em cada esfera do governo. Vale ressaltar que a forma federativa brasileira já possuía esse escalonamento de esferas bem solidificado, o que facilita sobremaneira o objetivo descentralizador. Assim, como salienta Sueli Dallari, tanto os Estados-Membros quantos os municípios brasileiros têm função de editarem normas próprias que estabeleçam sua organização e tenham por objeto tudo aquilo que não lhes tiver sido vedado pela Constituição (Art. 25, §1º) ou disponham sobre todos os assuntos de interesse local (Art. 30, I), ou ainda, suplementem legislação federal ou estadual, quando couber (Art. 24, §2º c/c 30, II) (DALLARI, 1992, p. 40). Pode-se dizer, portanto, que a descentralização é uma das formas de transferência de poderes a autoridades eleitas localmente. Nessa linha de raciocínio é que a descentralização sanitária está intimamente ligada ao aspecto democrático, de vez que, até do ponto de vista psicológico, torna mais palpável a possibilidade do controle e participação dos mecanismos demo-

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cráticos de decisão e de procedimentos sanitários, transformando-se em um dos pilares da regulação compartida na área da saúde. Mais, a descentralização é parte integrante da democracia e dela não pode se dissociar, ainda mais em um país de proporções continentais como é o Brasil. A descentralização é uma reforma de Estado que procura adaptá-lo à sua nova feição de cunho democrático. Como refere Peces-Barba (1998, p. 94), as competencias administrativas se distribuyen entre el Estado, las regiones o comunidades autónomas, en su caso, las provincias o departamentos y los municipios. Son varios escalones que se coordinan y cooperan en la consecución de los fines legalmente o constitucionalmente determinados para cada uno de ellos.

Respondendo ao questionamento de Luhmann (1983, p. 103) sobre a questão da saúde pública,11 pode-se afirmar que a opção do Constituinte brasileiro foi a de compartilhar os deveres/funções da área sanitária, inclusive regulatórios, reconhecendo que somente novas formas de gestão poderiam dar respostas à sua complexidade. Lembra Sonia Fleury (1997, p. 40) que o desenvolvimento de estratégias de construção de um novo tecido social descentralizado e participativo, repõe a nossa especificidade regional em um patamar distinto, capaz de reivindicar um modelo de democracia onde impere a cogestão pública, retomando os princípios de solidariedade e igualdade em uma complexidade que seja capaz de reconhecer a subjetividade e a diversidade como parte da cidadania.

No Brasil, a faceta descentralizada/democrática da regulação sanitária assumiu duas formas que interagem e não se excluem: a municipalização e os Consórcios Administrativos Intermunicipais de Saúde, mais conhecidos como Distritos Sanitários. Assim, a o pouvoir en partage, em saúde, passa a ter maiores possibilidade de consecução de seu desiderato, (re)criando novas formas administrativas, como é o caso, por exemplo, dos Distritos de Saúde.

4.1.1 A municipalização da saúde como marco institucional do compartilhamento sanitário Muito embora não se possa negar que ainda se constitua em um marco institucional, admite-se que a municipalização sanitária vem de encontro com a nova posição do Município na federação, desde a promulgação da Constituição de 1988.

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Uma posição de vanguarda que privilegia o poder local e que, ao mesmo tempo, valoriza o espaço localizado e a constitucionalização das regiões. A responsabilidade sobre a saúde é dividida entre todas as esferas do governo. O SUS também assim se reparte, possuindo cada ente os órgãos, poderes e instrumentos para tal. À direção nacional do Sistema Único de Saúde, mais especificamente ao Ministério da Saúde – em que o responsável (gestor) será o Ministro da Saúde, compete as matérias elencadas pelo Art. 16 da Lei 8080/90. Destaca-se o dever de participar na formulação e na implementação das políticas públicas de saúde, bem como promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal. À direção estadual do SUS, através da respectiva Secretaria de Estado – onde o responsável (gestor) será o Secretário de Saúde do Estado –, compete o estabelecido pelo Art. 17 da Lei 8080/90, como, por exemplo, promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde. Caso o Estado decida pela municipalização da saúde, como é o caso do Rio Grande do Sul (Art. 241, caput, da Constituição Farroupilha), não poderá mais decidir sobre o planejamento do sistema, bem como passará a colaborar técnica e financeiramente com os Municípios. À direção municipal do Sistema Único de Saúde, por intermédio da Secretaria Municipal de Saúde ou o órgão equivalente (o gestor responsável será o Prefeito Municipal e o Secretário Municipal de Saúde – ou diretor do órgão equivalente), caberá, face ao disposto pelo Art. 18 da Lei 8080/90, participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do SUS, em articulação com sua direção estadual, bem como formar consórcios administrativos intermunicipais. Assim, a municipalização da saúde é uma exigência da organização nacional, pois descentralizar é, antes de tudo, repartir alternativas regulatórias, visto que coloca em primeiro plano as necessidades locais. Também é fato que é uma forma de melhor racionalização na busca da participação popular na saúde, já que procura detalhar, a partir de uma realidade local, o sistema e o conceito de saúde. O Município, quando trata ou legisla sobre saúde (Art. 30, I e II, da CF/88) há que levar em consideração o interesse local, que vem a ter o sentido de conveniência, utilidade ou proveito. Os benefícios da municipalização da saúde são vários: (i) o interesse maior é

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da localidade, devido às especificidades locais; (ii) faz com que caiba ao Município parcela mais importante da prestação sanitária, pois é ele que dispõe legal e materialmente sobre assuntos de interesse local – saúde; (iii) grande parte da proteção à saúde é realizada no espaço local, respeitando-se as particularidades de cada região; (iv) viabiliza uma administração moderna, privilegiando a competência, pois há uma vigilância maior sobre os encarregados do sistema, já que estes estarão em permanente contato com os cidadãos, que possuem participação no SUS (Art. 198, III, CF/88). A possibilidade de uma regulação sanitária compartida em nível municipal é feita basicamente através de duas instâncias colegiadas: (i) A Conferência de Saúde, que avalia a situação sanitária e propõe a formulação da política de saúde no nível correspondente – Art. 1º, §1º, da Lei 8142/90; (ii) O Conselho de Saúde, que formula estratégias e atua no controle da execução da política de saúde – Art. 1º. §2º, da Lei 8.142/90. Mas a participação pública não se esgota aí, conforme suas modalidades indiretas estabelecidas pela nossa Constituição em seus artigos 1º e parágrafo único, 14, 61, §2º, 58, §2º, II, 49, XV e 103, VIII e IX. Também há modalidades diretas e previstas na Carta Magna (vide artigos 29, X, 74, §2º e 85, III). Entretanto, são os Conselhos Municipais de Saúde que se apresentam com a maior positividade na construção da gestão compartida sanitária. É um órgão colegiado composto por cidadãos. Essa é a diferença. São eles que irão propor a formulação de estratégias locais de saúde e no controle das ações e serviços sanitários. Cada Conselho poderá ter uma diretriz, uma orientação diferente. Ou seja, aplicará uma decisão de política pública diferencia dos demais. Isso porque a saúde é um sistema, variando de acordo com sua comunicação e diferenciação com os demais sistemas sociais, que também são variáveis em cada localidade. Logo, todas essas decisões vêm incutidas com a figura do risco, que tornará possível a pretendida democracia sanitária mediante gestão compartida, de vez que não comporta solução única, tornando-se o espaço de (re)invenção, da pluralidade de opiniões e decisões, como quer Lefort (1983). Essa indeterminação sanitária oriunda dos Conselhos Municipais de Saúde é fonte vívida de sua democracia e elemento essencial da regulação compartilhada da saúde. Não há verdade ou certeza absoluta. Mas existe minimização de risco (e de dano) com a participação de quem é o alvo das políticas sanitárias, uma vez que se baseia em experiências locais e pessoais.

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4.1.2 Os consórcios administrativos intermunicipais (Distritos Sanitários) Os Consórcios Intermunicipais são autorizados pelos artigos 10 e 18 da Lei 8080/90, e Art. 3º, §3º, da Lei 8142/90. Também são formas de descentralização das ações e de serviço da saúde, no que também atendem ao preceito estabelecido pelo Art. 198, I, da Lei Fundamental. Têm como função reunirem-se para resolver um problema específico, no caso, a saúde. É um consórcio administrativo que visa suprir eventuais impossibilidades de um Município, de forma isolada, dispor de todo o aparato necessário para a proteção necessária, mediante uma ação corporativa, que formará um distrito sanitário, tornando, em tese, mais eficiente a prestação sanitária nas localidades abrangidas pelos consórcios. Verifica-se, portanto, que o que se procura com a formação dos consórcios administrativos intermunicipais de saúde não é a racionalização administrativa, mas sim uma outra forma de atendimento e prestação sanitária. Como assevera Eugênio Mendes (1999, p. 162): Em outras palavras, o que se busca com a construção dos Distritos é redirecionar e modificar a forma de organização e o conteúdo das ações e serviços de saúde, de modo a se responder às demandas da população, atender às necessidades de saúde e, fundamentalmente contribuir para a solução dos problemas de saúde da população que vive e trabalha no espaço territorial e social do Distrito Sanitário.

Os Consórcios são uma parceria formada entre Municípios a partir de um acordo comum de vontades, já que não é imposição legal. Facilita, pois, o processo de regionalização e hierarquização prevista no sistema (CRUZ, 1998, p. 38). Possuem personalidade jurídica própria, fazendo com que se sujeitem às normas de criação específica de tais institutos. Vale ressaltar que os consórcios fazem parte do SUS, e, logo, devem obedecer a seus princípios. Avelar Bastos (1999, p. 88-89) os considera essenciais por que se constituem “num elemento fundamental para a consecução de políticas públicas na área de saúde a nível regional, por meio da concertação entre instituições estatais e diferentes segmentos privados, objetivando a garantia do espaço público e dos direitos de cidadania”. Também são os Consórcios Sanitários (Distritos) formas de gestão compartilhada. Mitigam-se responsabilidades em nível municipal, ouvindo-se os Conselhos de Saúde de cada região – onde há a participação do indivíduo –, na busca de

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uma saúde que tenha um regulação compartilhada.

5. O orçamento participativo O caso do orçamento participativo de Porto Alegre tornou-se figura emblemática nos modos de participação popular em nível mundial. Vários estudiosos do tema vêm cotidianamente a capital farroupilha para verificar os pressupostos e modos de aplicação desse novo instituto (re)inventado pela democracia. Pode-se dizer, de certa forma, que o orçamento participativo é a descentralização da descentralização. A regionalização da regionalização. O seu fito é a participação comunitária mediante o esquadrinhamento da cidade em determinadas regiões. A ideia era (é) a de simplificar as operações decisórias “e magnificar os resultados potenciais, pois o diálogo seria entre governo e as já existentes associações comunitárias” (NAVARRO, 1999, p. 305). Nesse sentido, a saúde municipalizada e/ ou organizada em Consórcios Administrativos Intermunicipais possui mais uma modalidade de gestão compartida sanitária. O Orçamento Participativo tem, desde o seu início, caracterizado seu modus operandi mediante reuniões deliberativas, que ocorrem de março a junho de cada ano, constituindo-se na primeira etapa do processo. Conforme elucida Feddozi (1999, p. 115), este processo de participação popular nas definições do orçamento municipal dá-se em três etapas e segundo duas modalidades de participação: a regional e a temática. As Assembleias Regionais e as Assembleias Temáticas ocorrem no mesmo período, e, portanto, são concomitantes. Também obedecem à mesma dinâmica: demandas territorializadas, no primeiro caso, e temas específicos, mas referentes ao conjunto das regiões, no segundo. As etapas do ciclo anual do orçamento participativo porto-alegrense são: (i) realização das Assembleias Regionais e Temáticas; (ii) formação das instâncias institucionais de participação, tais como o Conselho do Orçamento e os Fóruns de Delegados; (iii) discussão do orçamento do Município e aprovação do Plano de Investimento pelos representantes dos moradores no Conselho de Orçamento Participativo. Na segunda etapa, realizada no segundo semestre do ano, é que efetivamente se constata a efetiva participação da comunidade nas decisões. É aqui que se formam as instâncias institucionais de participação comunitária: O Conselho do Orçamento Participativo (COP) e os Fóruns de Delegados.

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Muito embora existam outros momentos em que se efetua, de forma direta ou indireta a concretização de uma real esfera pública, é no Conselho do Orçamento Participativo que este objetivo se cristaliza. É um órgão de participação direta da comunidade, tendo por finalidade planejar, propor, fiscalizar e deliberar sobre a receita e despesa do Orçamento do Município de Porto Alegre. Nisso se inclui a saúde municipalizada. Os membros do COP e dos Fóruns de Delegados são eleitos mediante apresentação de chapas, sendo os representantes eleitos proporcionalmente à votação recebida por cada uma das chapas apresentadas (FEDOZZI, 1999, p. 122). Isso legitima o procedimento, e transforma o Conselho na principal instância participativa. A terceira etapa ocorre com a posse dos novos conselheiros e delegados, nos meses de julho e agosto, iniciando-se a fase de detalhamento na feitura do orçamento. Assim, pretende-se certa visibilidade no processo regulatório mediante um procedimento democrático, que insere e torna possível novos pensamentos e ideais para uma gestão compartida na área da saúde.

6. As ONG’s As chamadas ONG’s – Organizações Não-Governamentais – atuam primária e suplementarmente em um espaço que deveria ser do Estado, mas que o mesmo não ocupa devido à sua inércia. Também podem ser caracterizadas como uma forma de gestão compartida, inclusive na área da saúde. Assinala Juan Navarro, que as áreas de atuação das ONG’s são aquelas classicamente consideradas próprias da atividade governamental, como a prestação de serviços sociais e, em geral, a produção de bens públicos ou quase-públicos, como educação, saúde, nutrição infantil, habitação de baixo custo, promoção comunitária, proteção do meio ambiente natural etc. (FEDOZZI, 1999, p. 122).

Na área da saúde, apenas para exemplificar, pode-se citar como ONG’s sanitárias: Liga Feminina de Combate ao Câncer, Greenpeace, SOS Erro Médico, entre tantas outras. São organizações privadas e que não possuem natureza empresarial. Não possuem fins lucrativos. Fazem parte de um fenômeno que se alastrou pela América Latina no início dos anos 90. Tendem para a inovação, muitas vezes pelos parcos re-

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cursos; outras, por ser de sua natureza acompanhar as novidades da mundialização, procurando incorporá-las à sua área de atuação. A inovação “está na diversidade de iniciativas em cada país, região, localidade ou campo de ação em que operem as ONG’s” (FEDOZZI, 1999, p. 91). Em vários casos as ONG’s buscam metodologias participativas nos programas sociais, e, frequentemente, atuam em conjunto com o Estado em matéria que seria de sua competência exclusiva. Por isso, constituem-se em uma associação cooperativa/participativa baseada em um novo paradigma de regulação. Sua grande responsabilidade é encontrar um meio termo entre os deveres/direitos de ambas as partes (ONG’s x Estado). Todavia, temer a inserção dessa nova modalidade originária da democracia inventiva é algo que deve ser combatido, visto que as ONG’s já são realidade em nosso país e na América Latina. Portanto, como parte da aquisição evolutiva da sociedade, resultam de um processo favorável à visibilidade e à participação do indivíduo em uma gestão regulatória compartilhada.

7. Demais formas de participação popular em saúde Cabe referir que a participação popular em saúde também se dá via judiciária, quando as promessas de política públicas não satisfazem à necessidade sanitária da população, ou, até mesmo, quando as decisões advindas do espaço juridificado não são cumpridas/acatadas pelos demais Poderes Constituídos. Assim, cabe ao Poder Judiciário, quando provocado, ou nos casos em que tem o dever de agir de ofício, e porque é o órgão legitimado para tanto, proferir decisão corretiva da desigualdade, atendendo sempre aos princípios fundantes do Estado Democrático brasileiro. Relembre-se que a saúde é direito fundamental. Portanto, possui(rá) todos os remédios e ações existentes – e que vierem a existir – para sua efetivação. Logo, quando o indivíduo exerce sua cidadania via ação judicial ele está amparado juridicamente. Daí que o Poder Judiciário deverá se pronunciar sobre a questão em tela. Nesse sentido, assevera Leal (1997, p. 166): Em busca de novos paradigmas e pautas de ação política, talvez os direitos humanos de todas as gerações possíveis e imagináveis, entre eles o direito de um meio ambiente e de uma cidade sadia e justa, sirvam como um novo paradigma à constituição de um pacto associativo que preserve e releve valores como a democracia, o pluralismo jurídico, a igualdade a justiça social.

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Nessa linha de raciocínio, e da mesma forma, é que o Ministério Público (vide Art. 129, da CF/88) tem o dever de lutar pela defesa dos interesses difusos, como é o caso da saúde. Portanto, havendo necessidade, o MP deverá agir para restabelecer o status quo sanitário. Ainda, aos carentes é reservada a faculdade/direito de, em não tendo condições de pagar um patrocínio, recorrer à Defensoria Pública. Esta procederá e disporá dos meios para proteger a lesão reclamada. De outra banda, face às características do Estado Democrático de Direito e na busca de uma regulação que adote a possibilidade de consecução de uma gestão compartida sanitária, ainda existem outros mecanismos por meio dos quais pode ocorrer a participação popular mediante atuação direta na gestão e no controle da Administração Pública. Para Pietro (1993, p. 127), o indivíduo interage com a Administração mediante intermediários ou individualmente. Nesta última forma é que melhor se cristaliza a participação, pois na primeira corre-se o perigo de os intermediários colocarem em primeiro plano seus interesses e não os de seus representados. Ainda, a interação individual é melhor porque se presta a uma ideologia psicológica e direta, visto que os ideais têm a direta aproximação entre eleitor e eleito e inexiste a figura do intermediário. Para a mesma autora, a participação popular pode ainda ser dividida de maneira diversa: direta e indireta. A modalidade direta consiste, basicamente em quatro hipóteses: (i) no direito de ser ouvido; (ii) enquetes, como, por exemplo as audiências públicas do Art. 58, §2º, II, da CF/88. Aduzindo, dentro da modalidade direta ainda é possível acrescentar a iniciativa popular em processo legislativo – inclusive o sanitário, da mesma forma que o acesso ao Judiciário nas modalidades das garantias individuais do direito à saúde. Já a modalidade indireta é exercida de várias formas, tais como: (i) a autorização do Congresso Nacional para liberar referendo e convocar plebiscito, previsto no Art. 49, XV, da CF/88; (ii) a possibilidade de o particular denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (Art. 74, §2º, CF/88); (iii) o fato de ser crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra o exercício dos direitos individuais e sociais (Art. 85, III, CF/88); (iv) a proposição de ação de inconstitucionalidade mediante o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e/ou partido político com representação no Congresso Nacional (Art. 103, VII e VIII, da CF/88). Pietro (1993, p. 137) elenca, ainda, outras possibilidades de atuação do par-

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ticular na Administração Pública, todas elas aplicáveis ao direito à saúde. A saber: (i) participação popular em órgãos de consulta; (ii) participação popular em órgãos de decisão. Diz ainda a autora que três medidas deveriam ser tomadas para que se elevasse ainda mais a gama de atuação do indivíduo na Administração Pública: (i) a outorga de legitimidade ativa aos entes coletivos para a propositura da ação popular; (ii) criação de um ombudsman nos moldes escandinavos, sendo um verdadeiro órgão de proteção dos interesses dos cidadãos junto ao Parlamento, com prerrogativas de fiscalização da Administração Pública; (iii) a adequada interpretação do mandado de injunção, em que este não seja mais um mero sucedâneo da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Assim, em face de todos os caminhos expostos, ter-se-ia uma delegação de competência societária de modo compartido. Mais, essa enorme capacidade de compartilhamento de decisões, geradora de mais possibilidades de que se possa realizar (complexidade), é resultado de um paradigma sistêmico de sociedade, onde a figura do risco e da (re)invenção democrática tornam-se necessárias para produzir na sociedade global complexa um sentido mais democrático e sofisticado tanto para o direito como para a sociedade.

8. Considerações finais Mesmo sabendo-se da impossibilidade de uma verdade/solução (mágica) absoluta para a crise do sistema de saúde brasileiro, pode-se entender a regulação compartida (Dizer o Direito, Dizer a Saúde) como mais uma das formas/alternativas – e talvez a mais democrática e legítima – de efetivação do direito à saúde. Quando se reporta à saúde há que verificar que este é um conceito altamente subjetivo e modificável. Que este conceito depende da sua atuação/interação com os demais sistemas sociais. Por isso mesmo, a saúde deve ser analisada por uma teoria mais apta para entender sua complexidade: a teoria dos sistemas sociais. Dita teoria, quer em sua ótica luhmannina, adotada no presente trabalho, responde às incertezas trazidas no bojo da pós-modernidade. O Estado, visto tal ótica, não está imune às influências dos demais sistemas. Dada a locução do Art. 196, da CF/88. Ele avocou para si o dever de garantir a saúde mediante políticas públicas e sociais. Portanto, a questão sanitária passa por entender também o modelo de Estado adotado pelo Brasil: o Estado Democrático de Direito.

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A inovação democrática dessa modalidade estatal autorizou o Estado a lançar mão de novas técnicas burocráticas e novos procedimentos, tudo na procura da efetivação do dever assumido. É assim que o Estado passa a ter fundamental importância na consecução da saúde, uma vez que legalmente autorizado, e, face às características corretivas do Estado Democrático, passa a ter uma atuação primária – no sentido de antecedência – aos demais Poderes Constituídos. Todavia, é fato que o Estado não consegue mais cumprir as promessas da modernidade a contento. Passam a surgir novas formas autopoiéticas de sua atuação, inclusive delegando/permitindo a atuação dos particulares nesse sentido. Disso tudo nasce a gestão regulatória compartida sanitária. Entretanto, como a gama de possibilidades de uma decisão sempre implica na análise do porquê de não se haver decidido de outra maneira – seja de forma explícita ou implícita –, mister admitir que o risco será figura presente no campo da esfera pública sanitária. No entanto, mesmo que se pense o contrário, o risco não é uma má característica. Ao contrário. É uma qualidade democrática. Democráticoinventiva, assim como quer Lefort, e que se completa via regulação compartida. Dessa maneira, passa-se a admitir que não existe uma verdade anterior e absoluta. Ela se (re)produzirá a partir do debate das e posições contraditórias estabelecidas no palco da relação sistema x ambiente. A democracia sanitária não é lugar do pensamento único, até porque a saúde deve ser analisada tanto do ponto de vista individual como do ponto de vista coletivo. Com essa lógica, foi que a Constituição Brasileira descentralizou a proteção/ promoção sanitária, entendendo que a mesma seria mais bem atendida a partir de uma especificidade adaptada às características regionais. As formas assumidas para tanto – municipalização e distritos sanitários – são instrumentos em que há a concreta participação popular na gestão sanitária, especialmente nos Conselhos Municipais de Saúde. As ONG’s e o Orçamento Participativo são exemplos cristalinos da (re)invenção democrática possibilitada pela novo modelo de produção regulatória. São novos modelos técnico-procedimentais em que os indivíduos são autorizados a atuarem na defesa de seus interesses. Muito embora sejam diferentes em suas concepções, ambos são administrados de forma compartilhada. Todas essas novas formas aliam-se àquelas elencadas pela Carta Magna, em que aparece com grande destaque o acesso ao Poder Judiciário e as novas formas de consulta à população, tais como o referendo e o plebiscito. Isso sem citar a variedade de institutos protetivos da gestão compartida já declinados.

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Portanto, além de uma construção recente, a gestão compartida sanitária é também legalmente autorizada. Isso pressupõe que o direito à saúde não é um monopólio. É, isto sim, um direito de todos, e, mais do que tudo, uma regulação de, por e para todos.

Notas 1

O presente texto foi elaborado para apresentação na mesa de debate intitulada “Uma releitura constitucional da “Participação da Comunidade” em Saúde”, ocorrida durante o I Encontro Nacional de Direito Sanitário, realizado na capital brasileira e sediado na Universidade de Brasília, no ano de 2008. Foi revisado especialmente para a edição deste livro. 2

Uma análise sintética, mas analítica, a respeito dessas teorias, pode ser encontrada em Steinmetz (2004). 3

Uma das poucas teorizações relevantes nesse sentido pode ser encontrada em Arnaud (2003). 4

O Direito da modernidade possui uma série de características, particularmente o monopólio da produção legislativa pelo Estado, o que impõe uma “certeza” dentro dos limites do Estado-Nação da qual faz parte. É, pois, um Direito com pretensão de longa duração, ligado à velocidade das mudanças sociais da época. A urgência do mundo atual requer formas mais céleres de resposta do Direito, nem sempre “seguras”, porém conectadas às relações contingenciais da pós-modernidade. Um resumo das características do Direito moderno e da juridicidade pós-moderna é encontrado em Arnaud (1999, p. 203). 5

Em especial, entendo o risco como um fenômeno contigencial da aquisição evolutiva da sociedade. 6

O Direito vive em um “não-tempo mortífero”, ou seja, um passado que não passa, pouco adaptado a uma época em que o tempo social se (re)modifica incessantemente. 7

É este o sentido, por exemplo, da obra de Gérard e Ost (1996).

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Essa é a expressão usada por Teubner (1997) para explicitar a fragmentação do sistema jurídico em uma sociedade global. 9

Há uma autopoiese basal, estruturada circularmente, cuja paradoxidade é pura e operativa, e existe uma autopoiese derivada, possuidora de uma circularidade evolutiva e de uma semântica paradoxal, abrindo novos espaços de estruturação. 10

Expressão utilizada por Arnaud (2003, p. 271).

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“Por exemplo, podemos estar seguros de defender um valor considerável e não nos

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ridicularizarmos ao propugnarmos pela saúde pública. Em termos grosseiros isso também delimita o campo de eventos e ações que podem ser observados da mesma forma; permanece porém em aberto quais são as ações que devem fomentar a saúde pública, e que por isso deveriam ser esperadas normativamente, quanto dinheiro (de outras pessoas) a saúde pública poderia custar, e também se ela seria preferencial no caso de conflito com outros valores, por exemplo, econômicos, culturais, da liberdade e da dignidade individuais”. (LUHMANN, 1983, p. 103).

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Os novos paradigmas culturais do direito na sociedade contemporânea Marco Félix Jobim

1. Introdução Este texto é uma reelaboração do capítulo primeiro da obra “Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo” (JOBIM, 2012). Após algumas reflexões mais aprofundadas, reviu-se alguns posicionamentos para trazer ao leitor outros aspectos importantes do ambiente cultural brasileiro e mundial que se vive na atualidade e as suas ligações com o Direito. Num primeiro momento serão abordados aspectos importantes ligados à cultura e ao Direito, para que se tente elaborar uma concepção de que existe um relacionamento muito forte entre ambos, em especial no referente às modificações que afetam um e outro. Num passo adiante serão abordados os paradigmas que estão hoje permeando o ambiente cultural no Brasil, quais sejam, o da pós-modernidade, da globalização, da sociedade da pressa, do hiperconsumismo e da venda de praticamente tudo que se possui em termos de bens. Ao final, será concluído se o Direito vem abarcando essa nova realidade cultural que se coloca na atualidade. Não se pretende afirmar que somente os paradigmas que o estudo aponta são aqueles que estão hoje alocados na cultura da sociedade, mas sim, que, partindo deles, haja uma análise se o Direito está cada vez mais longe ou perto dos valores sociais.

2. Direito e cultura A cultura é fenômeno social que traduz o momento de determinada sociedade em determinado local e tempo. O questionamento que ora se transfere ao estudo é saber se esse momento cultural vivenciado por determinada sociedade deve espelhar, de mesma forma, o momento jurídico que ela vive.

Para início de debate deve-se buscar em Galeno Lacerda (2008, p. 04) a gênese da discussão ora trazida à lume, pois, em suas palavras, aponta ser a cultura um elemento importantíssimo para o crescimento de uma civilização. Poéticas ou não suas palavras, é inegável que o Direito não pode estar infenso aos fenômenos culturais da sociedade e vai mais além, afirmando que deve ser, inclusive, um modo de modificar o pensamento dela. Ângelo Falzea, ao se referir ao Direito, aponta ser ele um subsistema do que vem a ser o sistema maior que seria a própria cultura, ao dizer “[...] che Il diritto è un fenomeno culturale; che la cultura è configurabile come un sistema internamente articolato in sottosistemi; Che Il diritto à uno dei sottosistemi del sistema culturale” (FALZEA, 1999, p. 02).1 Ora, sendo o Direito um subsistema do sistema que vem a ser a “cultura”, conclui-se que, modificado o sistema, os seus subsistemas sofrerão igualmente consequências, modificando-os também, e vice-versa, ou seja, modificando o subsistema (Direito), a cultura (sistema) também poderá ser atingida e modificada. Na mesma linha de considerar o próprio Direito como parte integrante da cultura de um povo, pode-se ler Guido Fernando Silva Soares (2000).2 Nada mais exemplificativo e atual que a recente decisão do Supremo Tribunal Federal,3 a qual igualou as relações homoafetivas à de união estável entre homem e mulher, fazendo com que este novo norte, que faz parte do Direito, deverá ter condições de possibilidade de efetivar uma nova orientação cultural na sociedade brasileira. E o desfecho com que se pode finalizar esse tópico de Ovídio Baptista A. da Silva, que assim define as ligações existentes entre cultura e Direito, ao mencionar: Em resumo, superar o dogmatismo, fazendo com que o Direito aproxime-se de seu leito natural, como ciência da cultura, recuperando sua dimensão hermenêutica. Isto poderia parecer uma tarefa desnecessária, pois hoje ninguém mais tem dúvida de que o Direito é uma construção humana, não havendo uma ordem jurídica previamente inscrita na natureza das coisas; e a lei deve ser apreendida como uma proposição cujo sentido altera-se na medida em que se alterem as variantes necessidades e contingências históricas (SILVA, 2006, p. 01-02).

Diante de tais pensamentos, mesmo que emanados de alguns poucos autores pesquisados, não há como deixar de registrar a uniformidade de pensamento de todos eles ao referirem que a cultura influi diretamente no Direito.4 Diante de tais fatos, pode-se afirmar que o Direito deve se adaptar àquela determinada cultura na época ou na sociedade na qual se vive, assim como esta

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adaptar-se às inovações porventura trazidas por ele.

2.1 O momento do Direito na sociedade contemporânea brasileira Essa passagem do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito traz novas responsabilidades ao profissional do Direito, entre elas pensar sobre qual o momento atual do Direito na sociedade contemporânea. Será que a legalidade, que era afirmação do Estado Liberal desde a célebre obra de Montesquieu, ainda é uma realidade na atualidade, ou ela cede espaço a novas teorias que tentam explicar os fenômenos jurídicos hodiernos. Luiz Guilherme Marinoni (2010) abastece essa parte doutrinária, enaltecendo o rompimento com o Estado legalista, devendo dar-se norte a um novo Estado de Direito ligado à seara constitucional. Então, sabe-se que o momento cultural jurídico que hoje prepondera no Brasil, assim como em muitos ordenamentos estrangeiros, denomina-se de neoconstitucionalismo (CAMBI, 2009, p. 27).5 Contudo, é de se questionar se a cultura que se vivencia hoje fora das questões jurídicas está influenciando o Direito brasileiro.

2.2 A cultura da sociedade atual Inegável que as transformações trazidas pela cultura influenciam o âmbito do direito brasileiro, não sendo nem preciso a leitura da vasta bibliografia da matéria que assim entende, a qual foi parcialmente citada no capítulo sobre o tema, mas tão somente o cidadão partir de seu bom sendo para chegar a esta indubitável conclusão. O que interessa, então, neste momento, é saber quais são os novos paradigmas sociais que interessam a esta nova etapa do Direito contemporâneo. Quando da elaboração da obra “Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo” haviam sido encontrados três novos alicerces culturais – pós-modernidade, hiperconsumismo e globalização – os quais ganham mais dois reforços: o da sociedade da pressa e da compra e venda de quase tudo.

2.2.1 A pós-modernidade O ser humano já foi alguém desprovido de fala e de escrita, mas, mesmo

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assim, não deixou de sobreviver e de se comunicar pela linguagem atribuída a esta determinada época da história da humanidade. Isso se explica pelo simples fato de que talvez esse tenha sido o momento cultural ideal para aquela determinada classe de indivíduos, ou seja, não falar, não escrever, comunicando-se de outras formas. A história relata que a sociedade, salvo raros casos, não permanece estagnada. Felizmente, o mundo evoluiu, ao passo de o elemento cultural preponderante evoluir num mesmo patamar para que momentos da história global pudessem ser hoje conhecidos, estudados e compreendidos para a melhoria da qualidade de vida. Não é à toa que, quando se abre um livro destinado à história mundial, ou outro, que tente explicar o posicionamento político de determinada época, ou ainda mais, um de história do Direito, serão objetivos, seus capítulos, no que concerne aos diversos estágios existentes na sociedade mundial, sabendo-se que havia os povos da chamada Antiguidade (SILVA; SILVA, 2010, p. 19)6 (dentre os mais conhecidos, pode-se citar os gregos e os romanos), e que, quando da derrocada destes últimos, ingressou-se numa nova era, chamada de Idade Média (PALMA, 2011).7 Posteriormente, vimos o Absolutismo (SILVA; SILVA, 2010, p. 11),8 seguido do Renascimento (SCHWANITZ, 2007, p. 61),9 estes últimos dois importantes momentos na história que deram entrada ao que se conhece por Idade Moderna. Mais recentemente ainda poderiam ser lembrados outros momentos, como a modernidade líquida ou fluida (BAUMAN, 2001)10 e o estágio mais atual, o da pós-modernidade (CHEVALIER, 2009, p. 19-20).11 A exemplificativa caminhada, sem qualquer pretensão de esgotamento das fases históricas da humanidade, serve para demonstrar que o mundo evolui de acordo com determinados momentos culturais que a sociedade daquela época vivenciou, e que o passar do tempo pode vir a ser um elemento modificador da cultura e, consequentemente, do momento social que se vive. Vivencia-se, hoje, o que se passa a chamar de pós-modernidade. Isso se dá pelos diversos elementos culturais que hoje estão a cada dia modificando o modo de pensar e de agir do ser humano. Mas o que vem a ser pós-moderno? Uma das explicações é conferida por Mike Featherstone, ao assim se manifestar sobre a conceituação: Se “moderno” e “pós-moderno” são termos genéricos, é imediatamente visível que o prefixo “pós” (post) significa algo que vem depois, uma quebra ou ruptura com o moderno, definida em contraposição a ele. Ora, o termo “pós-modernismo” apóia-se mais vigorosamente numa negação do moderno, num abandono, rompimento ou afastamento percebido das características decisivas do moderno, com uma ênfase marcante no sen-

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tido de deslocamento relacional. Isso tornaria o pós-moderno um termo relativamente indefinido, uma vez que estamos apenas no limiar do alegado deslocamento, e não em posição de ver o pós-moderno como uma positividade plenamente desenvolvida, capaz de ser definida em toda a sua amplitude por sua própria natureza. Tendo isso em mente, podemos olhar os pares mais profundamente (FEATHERSTONE, 2007, p. 19).

As certezas se esvaíram. Não se sabe hoje o que se espera do amanhã, diferentemente de como era sabido na Modernidade. As incertezas tomam conta do dia a dia e isso vai se tornando cada vez mais corriqueiro para o ser humano, que acaba achando ser completamente normal viver desta forma.

2.2.2 A globalização (ADOLFO, 2001, p. 59)12 Com o advento da pós-modernidade surge algo que não pode deixar de ser também um de seus maiores alicerces: a Globalização. Talvez a obra que melhor retrate o mundo globalizado seja a do colunista do New York Times, Thomas L. Friedman, que entendeu, após passar um tempo na Índia, que o mundo como conhecemos não é o mesmo, denominando este fator de planificação do mundo, razão pela qual sua festejada obra denomina-se de “O Mundo é Plano: o Mundo Globalizado do Século XXI”. Em certa passagem aponta o autor como chegou neste conceito: Lá estava eu, em Bangalore – mais de quinhentos anos depois de Colombo, munido apenas das primitivas tecnologias de navegação da sua época, desaparecer no horizonte e voltar em segurança, comprovando em definitivo que a Terra era redonda –, e um dos mais brilhantes engenheiros indianos, que havia estudado na melhor escola politécnica do seu país e tinha as mais modernas tecnologias da atualidade ao seu dispor, vinha basicamente me comunicar que o mundo agora é plano – tão plano quanto aquele telão em que ele podia presidir uma reunião de toda a sua cadeia de fornecimento global. E o mais interessante é que, a seu ver, era ótimo, constituía um novo marco do progresso humano e uma extraordinária oportunidade para a Índia e o mundo, o fato de que havíamos achatado o planeta! No banco de trás daquela van, rabisquei quatro palavras no meu bloquinho: “O mundo é plano”, e, assim, que as vi no papel, tive a certeza de que aquela era a mensagem subjacente de tudo o que eu tinha visto e ouvido em Bangalore em 15 dias de filmagens. Estávamos aplainando o terreno da concorrência global. Estávamos achatando o planeta (FRIEDMAN 2009, p. 19).

Com as definições da era pós-moderna e da mundialização das relações sociais, políticas, econômicas, entre outras características da globalização, existe outra definição que pode ter muito a ver com as ideias destes dois conceitos acima

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referidos, mas que, mesmo se não houvesse, deveria ser estudada pela rapidez com que vem ocorrendo nos dias atuais, quer seja globalizadamente, quer seja apenas circunscrevendo ao âmbito brasileiro. Sobre o alcance do fenômeno da globalização, Luiz Gonzaga Silva Adolfo (2001, p. 47)13 afirma ser ele uma realidade a todas as áreas do conhecimento humano, não estando cingido apenas aos aspectos econômicos, jurídicos, históricos, políticos e sociais.

2.2.3 O hiperconsumismo Trata-se da noção de hiperconsumismo, ou seja, de as pessoas estarem a cada dia mais sendo hiperconsumidoras de um mercado altamente atrativo para este fim. Um livro que chama a atenção é “Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos”. O autor, Benjamin R. Barber (2009, p. 1617),14 traz uma assustadora visão de como as crianças estão ficando adultas mais jovens e como os adultos estão entrando numa era de sua infantilização, o que acaba sendo uma das razões desse hiperconsumismo. Tudo isso acaba sendo fruto de uma cultura massificada (MORIN, 2011, p. 04-05) e instantânea, na qual estamos sendo vigiados e vigiamos a vida de cada um a cada instante, em todas as partes do globo. A preocupação não está mais no ser individual, mas no ser coletivo, modificando uma cultura herdada do Modernismo e que hoje se vê desabar frente aos comportamentos industrializados que compramos todos os dias de modelos que sequer se compactuam com o nosso. 15

O hiperconsumismo acaba sendo, em dois momentos, um alavancador de processos perante o Poder Judiciário. Numa primeira visão, as pessoas, consumindo mais, estão mais propensas a que ocorram problemas nestas relações,16 acabando por estes serem resolvidos no Poder Judiciário. Por segundo, essas mesmas pessoas que consomem em damasia tudo em sua vida, também um dia serão consumidoras do Poder Judiciário, pela própria cultura incorporada em seu ser, levando a julgamento casos sem sentido e recebendo, tudo em nome de uma equivocada interpretação do artigo 5º, XXXV,17 da Constituição Federal, muitas vezes denominado, equivocadamente, de acesso à justiça ou inafastabilidade da jurisdição (SAMPAIO JÚNIOR, 2008, p. 145),18 quando, na verdade, nada mais é do que direito fundamental de o cidadão poder levar sua pretensão de direito material às portas do Poder Judiciário, embora grandes nomes defendam que existem duas concepções para o chamado “acesso à justiça”: o primeiro, de somente poder acessar o Poder

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Judiciário, e, o segundo, de que este acesso seja justo (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8).19

2.2.4 A sociedade da pressa Deve-se esquecer aquela velha concepção de tempo que grande parte de nossos antepassados vivenciou, que era consubstanciado em fragmentar o tempo em séculos, décadas, anos, dias, horas, minutos, segundos, décimos de segundos, milissegundo, microssegundo, pois chega-se a hora de, numa visão mais contemporânea de tempo, citar os novos paradigmas que o dividem em nanossegundos (LABRADOR, 2007),20 picossegundos (LABRADOR, 2007),21 femtossegundos (LABRADOR, 2007)22 e attossegundos (STIX, 2007).23 Isso dá-se já nessa nova concepção da sociedade da pressa. Os conceitos de outrora sobre tempo são difíceis de serem sustentados numa sociedade pós-moderna, tendo em vista que as pessoas vivem constantemente sem tempo. A velocidade com que alguns acontecimentos ocorrem não poderia sequer ser imaginada alguns anos atrás. Uma pesquisa que poderia demorar anos ou até mesmo uma vida inteira pode ser feita em milésimos de segundos pela internet, bastando fazer um cruzamento de informações e clicar o botão “Enter”.24 E isso é fruto de uma sociedade que necessita dessa agilidade, pois, ao invés de um compromisso apenas, o ser humano tem dezenas a realizar no mesmo dia, na mesma hora, o que acaba por tornar escasso o tempo, mesmo que existam ferramentas que facilitam o dia a dia como a acima mencionada. E o ser humano sente epidermicamente o passar do tempo e se preocupa, constantemente, com essa falta existente nos dias de hoje. Tanto é assim que não é de se estranhar que o conhecido e antigo adágio popular “time is money” (tempo é dinheiro) (STIX, 2007, p. 07)25 nunca esteve tão em voga, e não apenas pela força da expressão, mas sim, pois, estando a sociedade sem tempo, nada mais justo que aqueles que o têm consigam vendê-lo para aqueles que não o têm, e sejam devidamente compensados, da melhor forma possível. Gary Stix (2007, p. 07),26 em lição sobre o tema, afirma que “[...] o tempo, no século XXI, tornou-se o equivalente do que foram os combustíveis fósseis e os metais preciosos em outras épocas”, mostrando que ele está se tornando uma raridade e, pior, comercializável. Mais radical ainda é o pensamento de Philip Zimbardo e John Boyd que, ao

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estudarem em profundidade as questões relacionadas ao tempo e ao ser humano, ao analisarem milhares27 de questionários acerca do tema, relatam ser o tempo nosso bem mais valioso ao afirmarem: O tempo é nosso bem mais valioso. Na economia clássica, quanto mais escasso for um recurso, maior será a quantidade de usos que se pode fazer dele e maior o seu valor. O ouro, por exemplo, não tem nenhum valor intrínseco e não passa de um metal amarelo. Entretanto, os veios de ouro são raros no planeta, e esse metal tem muitas aplicações. Primeiramente o ouro era usado na confecção de jóias, e mais recentemente passou a ser usado como condutor em componentes eletrônicos. A relação entre escassez e valor é bem conhecida, e por isso o preço exorbitante do ouro não é nenhuma surpresa. A maioria das coisas que podem ser possuídas – diamantes, ouro, notas de cem dólares – consegue ser reposta. Novas reservas de ouro e diamante são descobertas, e novas notas são impressas. O mesmo não acontece com o tempo. Não há nada que qualquer um de nós possa fazer nesta vida para acrescentar um momento a mais no tempo, e nada permitirá que possamos reaver o tempo mal-empregado. Quando o tempo passa, se vai para sempre. Então, embora Benjamin Franklin estivesse certo a respeito de muitas coisas, ele errou ao dizer que tempo é dinheiro. Na verdade o tempo – nosso recurso mais escasso – é muito mais valioso do que o dinheiro (ZIMBARDO; BOYD, 2009, p. 16).

Assim, a sociedade é da pressa, o que reflete diuturnamente na vida de todos, fazendo com que já acordemos atrasados, deitemos com a cabeça no amanhã e, inclusive, durmamos pouco para poder compensar os atrasos dos dias passados. Entramos no que Vince Poscente (2008) defende ser a era da velocidade.

2.2.5 O vender tudo O filósofo estadunidense Michael J. Sandel, um dos grandes críticos na atualidade da ótica utilitarista que predomina no mercado empresarial, o que o fez em sua obra “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, e nas suas aulas sobre o tema no seu curso “Justice” na Universidade de Harvard,28 agora traz, na sequencia, outra obra que promete abalar as estruturas da sociedade de consumo contemporânea, chamada de “O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado” (SANDEL, 2012). Nas primeiras páginas da obra o leitor já se depara com as situações inusitadas que o filósofo norteia para demonstrar que, se há dinheiro, existe a possibilidade de compra de quase tudo que se quer. Entre os exemplos pode-se citar: Upgrade na cela carcerária por US$ 82; aces-

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so às pistas de transporte solidário por US$ 8 nas horas do rush; barriga de aluguel indiana por US$ 6.250, tendo em vista que nos Estados Unidos o valor tem ficado três vezes mais que na Índia; o direito de ser imigrante nos EUA, por US$ 500.000; o direito de se abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção na África do Sul, por US$ 150.000; um plano para ter o celular de seu médico à disposição diuturnamento, que varia de US$ 1.500 a US$ 25.000; o direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera por US$ 18; e, por fim, em seus exemplos iniciais, coloca a faculdade de poder matricular seu filho em uma universidade de prestígio, sendo que deixa de colocar o valor para tal “compra” pois, de acordo com o Wall Street Journal, isso é feito por meio de doações (SANDEL, 2012, p. 9-10). A partir daí, sob outra perspectiva, pondera o filósofo estadunidense que nem todos podem adquirir esses bens, mas não faltam modos de hoje poder se ganhar algum dinheiro de forma mais inusitada, afirmando existir este novo mercado que, também, não deixa de ser de venda, como: poder alugar um espaço na testa ou em outra parte do corpo para publicidade comercial por US$ 777; servir de cobaia humana em testes de laboratórios farmacêuticos para novas medicações, por US$ 7.500; combater na Somália ou Afeganistão num contingente militar privado, de US$ 250 por mês a US$ 1.000 por dia; guardar lugar na fila no Congresso americano para um lobista que pretenda comparecer a uma audiência no dia seguinte, por US$ 15 a US$ 20; pagar para que alunos leiam livros em escolas com baixo desempenho, por US$ 2 o livro; perder peso para ser mais saudável, o que vem sendo pago US$ 378 por seis quilos em quatro meses pelas seguradoras e, por último, exemplifica com a possibilidade de comprar a apólice de seguro de uma pessoa idosa ou doente, continuar pagando os prêmios anuais enquanto está viva e receber a indenização quando morrer, sem previsão de valor, que pode chegar a milhões de dólares (SANDEL, 2012, p. 10-11). Ora, tudo isso faz parte de novas concepções de mercado que irão, necessariamente, desembocar, em determinado momento, no Poder Judiciário, discutindo a validade dos atos, tudo em prol, muitas vezes sem qualquer fundamentação de fundo, do direito fundamental à dignidade da pessoa humana.

2.6 Então: o Direito abarca o novo modelo cultural? Em que pese ainda não existir estudos ligados à area do Direito que afirmem que os cinco fenômenos culturais estão ou não sendo determinantes ao Direito, alguns autores sustentam alguns deles, em particular. É o caso da processualista gaúcha Jaqueline Mielke Silva, que assim expõe parte do problema:

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No cenário contemporâneo, a sociedade é regida por novos comandos. De um lado, o mundo contemporâneo trouxe um progresso material impressionante, de descobertas e inovações tecnológicas; de outro, grande parte da população mundial permanece no mais completo estado de subdesenvolvimento e abandono. Ao desenvolvimento e progresso das metrópoles industriais é possível atribuir também o enorme crescimento das classes médias urbanas e, com elas, o destaque da estrela e vilã de nosso século: a cultura de massa, produção cultural destinada aos grandes grupos de consumidores, simples e estereotipada, com objetivos claros e definidos (SILVA, 2005, p. 37-38).

Essas transformações acima descritas, e outras tantas que a processualista refere em sua obra, trazem grandes problemas de como pensar o Direito contemporâneo. Refere: O grande problema jurídico na atualidade é como pensar o Direito, como operar com o Direito neste período de grandes transformações pela qual se passa, nesta forma de sociedade de que muitos chamam, por uma questão de comodidade, de globalização. Examinar o Direito dentro da globalização implica relacioná-la com a complexidade, com todos os processos de diferenciação e regulação social que estão surgindo (SILVA, 2005, p. 44).

Isso se dá pelo simples fato de que não aceitamos pensar o Direito na era da globalização, na pós-modernidade ou no hiperconsumismo. Novamente, Jaqueline Mielke Silva aborda esse posicionamento: No Direito brasileiro, temos experimentado diversas tentativas de “modernização” do Processo Civil. Todavia, elas são incapazes de produzir uma transformação significativa em nossa experiência judiciária, por uma simples e incontestável razão: continuamos legislando baseados no paradigma da modernidade. Sem uma mudança de paradigma, continuaremos a ter “reformas” que são apenas paliativos, que em nada resolvem problemas com a efetividade do processo e a realização do Direito (SILVA, 2010, p. 367).

A falência do Estado é também constatada por Fabiana Marion Spengler, ao referir, em sua premiada tese de doutorado recentemente publicada: O Estado contemporâneo está em crise, necessitando rever todos os seus papéis, tanto na esfera econômica quanto nos modelos de regulação social e jurídica tradicionais. Tais modelos já não mais funcionam, o que deflagra a constatação de que o Estado vive uma crise que põe em xeque o desempenho das atribuições que lhe eram específicas. De fato, há tempos a crise do Estado se anuncia e paralelamente se assiste à transformação das coordenadas espaciais e temporais da vida social. A evolução tecno-

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lógica reformula a concepção de tempo e de espaço e o Estado, que até então era uma forma de organização de determinado território nacional com delimitações bem definidas, assiste à transformação de seus contornos jurídico/políticos (SPENGLER, 2010, p. 36).

Também não é outro o entendimento emanado por Ovídio A. Baptista da Silva que, já no prefácio de sua obra mais conhecida, remete a uma jurisdição que abarque os tempos em que se vive, ao afirmar: Dentre os objetivos visados por este ensaio, cabe destacar alguns que me parecem mais significativos. O primeiro deles, pela sua importância, é o propósito de assumir uma posição decidida na defesa da jurisdição estatal, como instituição indispensável à prática de um autêntico regime democrático. Este objetivo obriga-nos a tratar das deficiências e obstáculos, apostos por nosso sistema processual, a uma jurisdição compatível com o nosso tempo, uma jurisdição capaz de lidar com a sociedade de consumo, complexa e pluralista, em seu estágio de “globalização” (SILVA, 2006, p. ix).

Diante desses fatos, a afirmação de Jacques Chevalier de que se precisa de um Direito pós-moderno para os acontecimentos que existem na pós-modernidade é de vital importância para a sobrevivência do que se chama Direito e do que se chama de processo. Nas palavras do professor francês: [...] à emergência de um Estado pós-moderno corresponde inevitavelmente o surgimento de um direito pós-moderno. Mais precisamente, ainda que os fenômenos não estejam ligados por um vínculo de causalidade, mas sim de concomitância, a dinâmica pós-moderna que sacode as sociedades contemporâneas atravessa simultaneamente, e como um mesmo movimento, tanto o direito como o Estado: paralelamente ao direito clássico, ligado à construção do Estado e característico das sociedades modernas, assiste-se à emergência progressiva de um novo direito, reflexo da pós-modernidade (CHEVALIER, 2009, p. 11).

Assim, em que pese os autores defenderem que Direito deve estar umbilicalmente ligado à cultura, também é verdade que a cultura que vem se desenvolvendo está anos-luz do que se pensa atualmente em termos de Direito, razão pela qual se deve pensar na pós-modernidade, na globalização, no hiperconsumismo, na sociedade da pressa e no possibilidade de compra e venda de quase todos nossos bens como os marcos que modificam as relações sociais, econômicas, políticas, filosóficas, artísticas e jurídicas contemporâneas e qualquer teoria do Direito que pretenda sobreviver deve estar vinculada a este perfil. O Direito que não conseguir explorar essas novas realidades é um sistema fadado ao insucesso.

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3. Considerações finais Este texto tentou demonstrar que o estudo do Direito não pode estar dissonante do momento cultural vivido por determinada sociedade em determinado período histórico, assim como o aspectos cultural podem vir a ser, de alguma forma, influenciados pelo próprio Direito quando este romper com dogmas existentes no contexto social. Diante desdas constatações, inegável que hoje se vive uma cultura diferenciada de 10 anos atrás, sendo que os valores estão sendo, diuturnamente, modificados, não estando o Direito abarcando as novas realidade sociais. Para tanto, deve-se estar ciente de que o contexto atual social é um, devendo ser, no mínimo, acompanhado de perto pelo Direito. Hoje, os novos paradigmas culturais em franca ebulição na sociedade contemporânea são: 1) a pós-modernidade; 2) a globalização; 3) a sociedade da pressa; 4) o hiperconsumismo; 5) o vender tudo. É mais que evidenciado que o contexto jurídico vigente no Brasil na atualidade, e aqui se refere a toda e qualquer manifestação do Direito – leis, jurisprudência, doutrina, equidade, analogia, costumes – não está conseguindo, nem de perto, agregar os novos conceitos que a sociedade contemporânea abarca, o que revela um hiato existente na esfera social com a jurídica de proporções gigantes. E para isto que serve este texto, para tentar demonstrar ao leitor que uma de nossas bandeiras no estudo atual do Direito é tentar, de alguma forma, reduzir esse hiato, com o estudo sério e aprofundado das relações sociais com as jurídicas, para que, num futuro não muito distante, possa ser uma realidade o caminhar do Direito e da Sociologia, se não de mãos dadas, com uma, pelo menos, enxergando a outra no horizonte.

Notas 1

“... que o direito é um fenômeno cultural; que a cultura pode ser configurada como um sistema internamente articulado num subsistema; que o direito é um dos subsistemas do sistema cultural” (Tradução livre).

2

Na verdade, o Direito, enquanto sistema normativo, encontra-se concebido e originado da cultura e da civilização de um povo e, portanto, reflete seus valores, e, sendo uma cultura de um povo ou da civilização de uma época, vale enquanto valem os valores inconfundíveis e irredutíveis daquelas cultura e civilização. Um paralelismo com as línguas vivas, que igualmente são fruto da cultura e da civilização de um povo, mostra que

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é totalmente improcedente dizer que a língua inglesa é melhor ou pior que a portuguesa, que esta é mais que aquela ou que aquela é mais concisa do que esta: o que importa é que, tanto numa quanto noutra, as ideias são expressas com igual clareza e os valores são transmitidos de pessoa a pessoa. 3

Entre 4 e 5 de maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADI 4277 e a ADPF 132, igualando as relações homoafetivas à união estável. 4

Não é por menos que a Constituição da República Federativa do Brasil dedicou tantos artigos ligados à cultura, conforme expõe o constitucionalista: “A Constituição Brasileira de 1988 refere-se à cultura nos arts. 5º, IX, XXVII, XXVIII e LXXIII, e 220, §§2º e 3º, como manifestação de direito individual e de liberdade e direitos autorais; nos arts. 23, 24 e 30, como regras de distribuição de competência e como objeto de proteção pela ação popular; nos arts. 215 e 216, como objeto do Direito e patrimônio brasileiro; no Art. 219, como incentivo ao mercado interno, de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural; no Art. 221, como princípios a serem atendidos na produção e programação das emissoras de rádio e televisão; no Art. 227, como um direito da criança e do adolescente; e no Art. 231, quando reconhece aos índios sua organização social, língua, crenças e tradições e quando fala em terras tradicionalmente ocupadas por eles necessárias à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. 5

Afirma o autor sobre o que entende pelo conceito de neoconstitucionalismo: “O neoconstitucionalismo está voltado à realização do Estado Democrático de Direito, por intermédio da efetivação dos direitos fundamentais. Aposta no caráter transformador das Constituições modernas, pois, como utopias de direito positivo, servem como norte capaz de orientar as necessárias mudanças sociais. Neste sentido, não se pode ignorar a advertência de Macpherson: ‘Só sobreviverão as sociedades que melhor possam satisfazer as exigências do próprio povo no que concerne à igualdade de direitos humanos e à possibilidade de todos os seus membros lograrem uma vida plenamente humana’” (CAMBI, 2009, p. 27). 6

Sobre os povos da Antiguidade relatam: “O significado na palavra Antiguidade faz referência a objetos do passado. Mas como conceito histórico, Antiguidade é um período da História do Ocidente bem delimitado que se inicia com o aparecimento da escrita e a constituição das primeiras civilizações e termina com a queda do Império Romano, dando início à Idade Média. Tal conceito é de vital importância para a construção da ideia de Ocidente, da mesma forma que algumas noções correlatas, como clássico e antigo” (SILVA; SILVA, 2010, p. 19). 7

Sobre esta parte da história refere o autor: “Convencionou-se designar de ‘Idade Média’ o período compreendido pelo declínio do Império Romano do Ocidente (476) e a queda de Constantinopla (1453). Além dessa classificação de praxe, pode-se estabelecer outra, que se divide em ‘Alta Idade Média’ (séculos V a X) e ‘Baixa Idade Média’ (séculos XI a XV)” (PALMA, 2011, p. 62). 8

Sobre o absolutismo relatam os autores: “O surgimento do Absolutismo se deu com a unificação dos Estados nacionais na Europa ocidental no início da Idade Moderna, e

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foi realizada a centralização de territórios, criação de burocracias, ou seja, centralização de poder nas mãos dos soberanos. Essa centralização aconteceu, no entanto, após uma série de conflitos específicos. Durante a Idade Média, os monarcas feudais dividiam o poder com os grandes senhores de terra, mas com a formação dos Estados nacionais iniciou-se um processo de diminuição do poder desses senhores. Tal processo foi possibilitado pelo crescente poder econômico da burguesia, uma camada social nascente que, sem possuir poder político, apoiou-se no rei para combater a nobreza. O Estado centralizado surgiu, assim, interligado aos conflitos políticos entre nobreza e burguesia, característicos desse momento histórico, além das disputas políticas entre os príncipes e a Igreja católica, visto que o Papado durante toda a Idade Média foi uma considerável força internacional” (SILVA; SILVA, 2011, p. 11). 9

Sobre esse determinado período na história refere o autor: “O termo ‘renascimento’ vem de renaissance, criado por Giorgio Vasari já em 1550, para caracterizar sua época nas biografias que fazia dos artistas italianos. Com Vasari, quis definir a redescoberta da cultura pagã da Antiguidade depois do longo sono da Idade Média. Esse renascimento exprimiu-se sobretudo por meio da arquitetura, da escultura e da pintura e produziu as maravilhosas cidades italianas que até hoje admiramos”. E finaliza: “Tudo isso não aconteceu por acaso: o que renasceu foram o prazer terreno, a sensualidade, as cores, a luz e a beleza do corpo humano. O ser humano voltou do além e descobriu o paraíso na terra. Era um paraíso de formas e cores. Essa descoberta provocou uma vertigem. O Renascimento era vivenciado como uma festa, como euforia e excesso e, por isso, expressava-se sobretudo nas artes que falam aos sentidos: a arquitetura e a pintura” (SCHWANITZ, 2007, p. 61).

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Sobre a chegada da modernidade líquida refere o sociólogo: “A nossa é uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável” (BAUMAN, 2001, p. 14-15). 11

Sobre a nomenclatura pós-modernidade aponta o professor francês: “Alguns falarão de modernidade ‘tardia’, ‘reflexiva’ ou ainda de ‘segunda modernidade’ (BECK, 1986; GIDDENS, 1994), insistindo sobre os elementos de continuidade com a sociedade precedente, que não teriam levado a lógica da modernidade às suas últimas consequências. Outros, que, ao contrário, privilegiam os elementos de ruptura, falarão de modernidade ‘líquida’ (BAUMANN, 2000) (a ‘liquidez’ das sociedades atuais, caracterizadas pela precariedade extrema dos vínculos sociais, contrastando com a ‘solidez’ das instituições do mundo industrial), ou ainda de ‘hipermodernidade’ (ASCHER, 2000) ou de ‘sobremodernidade’ (a radicalização da modernidade envolvendo importantes mutações). Preferir-se-á aqui falar de ‘pós-modernidade’, na medida em que se assiste ao mesmo tempo à exacerbação das dimensões já presentes no coração da modernidade e à emer-

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gência de potencialidades diferentes: comportando aspectos complexos, mesmo facetas contraditórias, a pós-modernidade se apresenta tanto como uma ‘hipermodernidade’, na medida em que ela leva ao extremo certas dimensões presentes no cerne da modernidade, tais como o individualismo, e como uma ‘antimodernidade’, na medida em que ela se desvincula de certos esquemas da modernidade” (CHEVALIER, 2009, p. 19-20). 12

Alguns, como os franceses, preferem a expressão mundialização, o que, segundo o autor da obra citada, é apenas uma questão semântica, sem maiores repercussões para o estudo em comento. 13

“Faz-se necessário tecer as considerações indispensáveis ao entendimento do fenômeno chamado globalização, que supera suas características econômicas, ou das ciências econômicas, e leva seus reflexos a diversas áreas, destacadamente ao Direito Público e sobre a soberania dos Estados Nacionais, cujo enfoque é realçado aqui, bem como sobre a história, política e sociologia, embora não esteja dissociada de praticamente todas as áreas do conhecimento humano” (ADOLFO, 2001, p. 41). 14

Neste trecho o autor alerta para como as coisas caminham, ao dizer: “Existem provas engraçadas em toda a parte: polícia de aeroporto distribuindo pirulitos para aplacar a ira de passageiros em áreas de inspeção; canais de notícias voltados para executivos da área de entretenimento, discussões pop-culturais ao estilo Vanity Fair sobre ‘infantempreendedores’, e o entusiasmo da New York Times Magazine com ‘o que as crianças querem na moda, diretamente da boca das meninas’, para sugerir calcinhas cavadas para meninas de sete anos; a profissionalização de esportes em escolas secundárias que transforma quadras de basquete de adolescentes em campos de recrutamento para a NBA e associação de jogadores de basquete em cartazes de propaganda; leitores adultos debandando para Harry Potter e O senhor dos anéis (quando não estão abandonando completamente o hábito da leitura); franquias de fast food ganhando o mundo para explorar (entre outras coisas) a inquieta aversão das crianças a jantar sentadas como adultos; jogos para adolescentes como World of Warcraft, Grand Theft Auto e Narc, e filmes inspirados em quadrinhos como Exterminador do Futuro, Homem-Aranha, Mulher-Gato e Shrek dominando o mercado de entretenimento; novos canais de televisão ‘educativos’, como BabyFirst TV e vídeos como ‘Baby Einstein’; cirurgias plásticas e injeções de Botox prometendo uma fonte da juventude a mulheres da geração baby boom que invejam suas filhas; remédios para desempenho sexual, como Levitar, Cialis e Viagra (vendas superiores a US$ 1 bilhão em 2002), tornando-se artigos de consumo de homens da geração baby boom igualmente insatisfeitos e tentando contrabandear a juventude atávica para a idade da previdência social; e homens de negócios usando bonés de beisebol, jeans e camisetas largas, imitando a negligência estudada de seus filhos ainda em crescimento. Além da cultura pop, o etos infantilista também domina: julgamentos dogmáticos, com base no ‘preto no branco’, na política e na religião substituem as complexidades cheias de nuanças da moralidade adulta, enquanto as marcas da infância perpétua são impressas em adultos que se entregam à puerilidade sem prazer e à indolência sem inocência. Daí a atração do novo consumidor pela idade sem dignidade, por roupas sem formalidade, sexo sem reprodução, trabalho sem disciplina, brincadeiras sem espontaneidade, aquisição sem propósito, certeza sem dúvida, vida

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sem responsabilidade e narcisismo até a idade avançada e até a morte sem um vestígio de sabedoria ou humildade. Na época em que vivemos, a civilização não é um ideal nem uma aspiração, é um videogame” (BARBER, 2009, p. 16-17). 15

Sobre a cultura em massa refere o autor: “Cultura de massa, isto é, produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial; propagada pelas técnicas de difusão maciça (que um estranho neologismo anglo-latino chama de mass-media); destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, família etc.)”. E finaliza seu pensamento: “O termo cultura de massa, como os termos sociedade industrial ou sociedade de massa (mass-society), do qual ele é equivalente cultural privilegia excessivamente um dos núcleos da vida social; as sociedades modernas podem ser consideradas não só industriais e maciças, mas também técnicas, burocráticas, capitalistas, de classes, burguesas, individualistas [...]. A noção de massa é a priori demasiadamente limitada” (MORIN, 2011, p. 04-05). 16

Para se ter uma noção, no site , em matéria acessada no dia 31 de maio de 2011, está a informação de que existem 24.000 (vinte e quatro mil) reclamações de consumidores que adquiriram produtos das lojas Americanas, o que, em tese, pode gerar este número de ações individuais para o Poder Judiciário julgar os danos decorrentes deste consumo. 17

XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

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Após nominar o inciso XXXV do artigo 5º no seu capítulo 4.4.3 de “acesso à justiça”, aponta na nota de rodapé 34 outras nomenclaturas encontradas no sistema: “Referimonos ao controle indispensável pelo Poder Judiciário, inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário, indeclinabilidade da prestação jurisdicional, entre outros, que trazem a ideia de que toda lesão ou ameaça de lesão a direito poderá ser apreciada e decidida pelo poder Judiciário, logo de plano se vê que essa garantia é ínsita a todo e qualquer tipo de processo, pois, em qualquer ferimento de qualquer sorte a seu direito, o cidadão tem o Poder Judiciário para protegê-lo” (SAMPAIO JÚNIOR, 2008, p. 145).

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Referem os autores sobre o duplo aspecto do título de sua obra e afirmam se tratar ela mais em sua primeira concepção de maior acesso do cidadão ao Poder Judiciário. Relatam, ainda, que em sua segunda acepção quer dizer a busca por um processo justo, o que, na acepção adotada pelo livro ora escrito, não se encontra no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Brasileira, mas numa leitura crítica e atenta de todo o processo constitucional destacado no catálogo do artigo 5º. Tudo isso indica que o nome do livro “Acesso à justiça” é de grande infelicidade, quando o livro deveria ter sido nominado pelos escritores de “Acesso ao Poder Judiciário”. Dizem os autores: “A expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. O primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam

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individualmente e socialmente justos. Nosso enfoque, aqui, será primordialmente sobre o primeiro aspecto, mas não poderemos perder de vista o segundo. Sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 08). Também na mesma linha de via dupla para a expressão “acesso à justiça”, pode-se ler Sergio Bermudes. Discorre o processualista: “O direito processual encara a expressão acesso à justiça, primeiro como significativo da possibilidade de se pedir ao Estado a solução de um conflito ocorrente, a prevenção de um conflito iminente ou a tutela de interesses relevantes, cuja administração ele chamou a si. Depois, ele toma essa expressão como indicativa da possibilidade de obtenção de uma prestação justa, isto é, conforme ao direito, cujas normas se empenham não apenas na proteção que elas asseguram, mas na pronta outorga dessa tutela.” E conclui: “Em outras palavras, acesso à justiça significa propiciar meios ao jurisdicionado, que é qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, física, jurídica ou formal, que se encontre sob a égide da soberania de um Estado, de obter a administração da justiça através de providências eficazes. Já se vê que na locução acesso à justiça o vocábulo justiça possui o duplo significado de Judiciário e de julgamento justo que reflita a vontade da regra de direito e repercuta, efetivamente, na vida do postulante e no grupo social” (BERMUDES, 2002, p. 179). 20

“NANOSSEGUNDO (um bilionésimo de segundo). Um feixe de luz percorre apenas 30 centímetros no vácuo nesse espaço de tempo. O microprocessador de um computador doméstico leva normalmente de dois a quatro nanossegundos para executar uma instrução simples, como somar dois números. O méson k, outra partícula subatômica rara, tem vida de 12 nanossegundos” (LABRADOR, 2007, p. 24). 21

“PICOSSEGUNDO (a milésima parte de um bilionésimo de segundo). Os transmissores mais rápidos operam em picossegundos. O quark para baixo, uma partícula subatômica rara criada em aceleradores de alta energia, dura um picossegundo antes de decair. O tempo médio de vida de ligação de hidrogênio nas moléculas de água em temperatura ambiente é de três picossegundos” (LABRADOR, 2007, p. 24). 22

“FEMTOSSEGUNDO (a milionésima parte de um bilionésimo de segundo). Um átomo completa normalmente uma vibração entre 10 e 100 femtossegundo. Mesmo reações químicas muito rápidas precisam de algumas centenas de femtossegundos para chegarem ao fim. A interação da luz com pigmentos na retina, o processo que permite a visão, exige cerca de 200 femtossegundos” (LABRADOR, 2007, p. 24). 23

Apenas para se ter uma ideia de como o segundo é hoje dividido: “Uma equipe da França e da Holanda conseguiu estabelecer um novo recorde de velocidade na subdivisão do segundo, ao anunciar, em 2001, que uma luz estroboscópica a laser emitiria pulsos com duração de 250 attosegundos – o que significa 250 bilionésimos de um bilionésimo de segundo. Esse estreboscópio poderá, no futuro, ser a base para a construção de uma máquina capaz de fotografar os movimentos de elétrons individuais. A era moderna já registrou avanços na mensuração de grandes intervalos de tempo. Métodos da datação radiométrica, que são como varas de medição de ‘tempo profundo’, informaram a idade da Terra” (STIX, 2007, p. 09).

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Apenas para se ter uma noção, digitar a expressão “tempo” no site de busca do “Google” serão pesquisadas 297.000.000 de informações para um tempo de apenas 0,04 segundos. Disponível em: .

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“Um professor inglês de economia chegou ao ponto de tentar capturar o ‘espírito do tempo’ do milênio atribuindo ao provérbio de Franklin um substrato quantitativo. Segundo uma equação formulada por Ian Walker, da University of Warwick, três minutos gastos escovando os dentes equivalem a U$$ 0,45, o valor médio da remuneração (descontados os impostos e a contribuição para a seguridade social) que o cidadão britânico deixa de ganhar, ao fazer algo que não seja trabalhar. Meia hora despendida lavando um carro equivale a US$ 4,50” (STIX, 2007, p. 07).

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A passagem completa do texto refere: “Há mais de 200 anos Benjamin Franklin criou a famosa frase comparando a passagem de minutos e segundos aos xelins e libras. O novo milênio – e as décadas que o antecederam – terminaram por dar às palavras de Franklin seu verdadeiro significado. O tempo, no século XXI, tornou-se o equivalente do que foram os combustíveis fósseis e os metais preciosos em outras épocas. Constantemente medida e valorada, essa matéria-prima vital continua a fomentar o crescimento de economias construídas com base em terabytes e gigabits por segundo” (STIX, 2007, p. 07).

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“Nessas três décadas, mais de 10 mil pessoas responderam ao nosso questionário. Em todo o mundo, nossos colegas em mais de 15 países usaram esses questionários com mais outros milhares de pessoas. É recompensador constatar que as pessoas se submetem a este teste e percebem que distribuem o fluxo de suas experiências pessoais em categorias mentais ou zonas temporais” (ZIMBARDO; BOYD, 2009, p. 14).

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As aulas podem ser assistidas pelo site .

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O direito administrativo como conceito interpretativo: questões hermenêuticas sobre a sua efetividade no constitucionalismo contemporâneo Leonel Pires Ohlweiler

1. Introdução O filósofo Martin Heidegger, em sua obra Holzwege, assim explicitou a escolha do título: Holz [madeira, lenha] é um nome antigo para Wald [floresta]. Na floresta [Holz] há caminhos que, o mais das vezes sinuosos, terminam perdendose, subitamente, no não-trilhado. Chamam-se caminhos de floresta[Holzwege]. Cada um segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Lenhadores e guardas florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta (HEIDEGGER, 2002, p. 03).

A presente investigação pretende trilhar caminhos, por certo, muitos dos quais não costumeiramente percorridos por aqueles que lidam com o Direito Administrativo, mas nem por isso, tais sendas não existem, tão-somente perderam-se no não trilhado. O Direito Administrativo, conforme concepção mais aceita pela dogmática jurídica, desvelou-se no seu caminhar como modo-de-ser da Administração Pública fundado nos princípios do Estado Liberal, assumindo capital importância a Revolução Francesa. O valor segurança jurídica, com efeito, apresentou-se em elemento de abertura dos entes administrativos, cunhando as pautas de compreensão de variados institutos. No entanto, as complexidades do modelo de Estado Social e do horizonte de sentido do Estado Democrático de Direito não tardaram em evidenciar as insuficiências do projeto que estava na sua base, pois cada vez mais se exigia a construção de elementos normativos capazes de dar conta dos novos fenômenos administrativos. Muitas das dificuldades enfrentadas pelo Direito Administrativo resultam de alguns princípios epocais que alimentam o modo de ser deste ramo do direito, em especial aqueles construídos por ocasião do Estado Moderno e que foram coroados com o movimento revolucionário de 1789. Alguns, inclusive, por mais paradoxal que possa ser foram releituras do antigo regime. É possível dizer, como será visto,

haver uma inexorável necessidade de compreensão do Direito Administrativo em bases hermenêuticas, sendo que o presente estudo pretende, exatamente, (re)significar algumas questões importantes, colocando em pauta temas por vezes esquecidos. O fio condutor desta breve pesquisa é que o Direito Administrativo é um conceito interpretativo, na esteira do contributo de Ronald Dworkin para a teoria do direito. Tal assertiva pretende evidenciar a necessidade de abrir a compreensão do fenômeno jurídico-administrativo para outros âmbitos, como a história institucional construída intersubjetivamente pela comunidade política, destacando a importância de evitar decisões arbitrárias. Trata-se de trabalho que precisa evidenciar as bases de compreensão das relações entre cidadãos e Administração Pública construídas do dogmatismo, o que será examinado na primeira parte desta investigação. A importância de questionar a historicidade do Direito Administrativo, considerando o trabalho filosófico de um dos grandes filósofos do século XX, Hans-Georg Gadamer, será destacada na segunda parte, pois não há como compreender fora das condições de possibilidade que nos chegam da tradição. Cada vez mais é crucial explicitar as pré-compreensões que alimentam o imaginário dos operadores do Direito, no tratamento dispensado aos diversos institutos jurídico-administrativos. Adota-se como premissa de estudo a seguinte assertiva: se há grandes dificuldades em materializar um Direito Administrativo Constitucional, significado pelo conjunto de direitos e garantias fundamentais, tal é fruto também da incapacidade de dar-se conta que na base de expectativas de sentido da dogmática tradicional há um paradigma liberal-individualista. O constitucionalismo foi determinante para inserir no conjunto de limites e prerrogativas administrativas uma complexidade compreensiva para a qual as construções dogmáticas tradicionais não estavam preparadas, daí emergindo a incessante busca de novos instrumentos para aplicação do Direito. O Direito Administrativo, como conceito interpretativo, a partir da matriz teórica aqui assumida, é modo-de-ser constitucional, quer dizer, não depende de um fundamento último (entificado), mas do modo como estrutura-se a compreensão enquanto determinada por um conjunto de práticas sociais O questionamento hermenêutico possibilita explicitar a relação circular que predomina no conhecimento, bem como vislumbrar a dimensão argumentativa dos institutos jurídicos, exigindo uma atitude interpretativa dos conceitos e princípios que constituem o propósito normativo do Direito. No âmbito do Direito Administrativo, atendo-se ao tema desta breve pesquisa, é importante repensar a questão do sentido, compreendendo-se as relações entre cidadãos e a Administração Pública no horizonte de sentido da proximidade com a práxis humana, como existência,

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como faticidade. A relevância da concepção hermenêutica, deste modo, reside em criar as condições de possibilidade para o desvelamento da consciência histórica do Direito Administrativo, analisando a linguagem dogmática no nível de sua historicidade. Este suporte teórico é primordial para compreender que o método fenomenológico “não se desliga da existência concreta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada” (STEIN, 1979, p. 88). Aqui reside o caráter circular da compreensão hermenêutica e, portanto, quando se questiona o sentido dos entes jurídico-administrativo, é importante dar-se conta de que o sentido somente se desvela sob o ente num retorno sobre a própria compreensão. Neste aspecto, é lapidar a frase de Martin Heidegger, para quem todo o acesso aos entes intramundanos funda-se, ontologicamente, na constituição fundamental do Dasein e este, por sua vez, encontra a sua constituição ontológica mais originária no Cuidado (HEIDEGGER, 2002, p. 92). Como refere Ernildo Stein, o método somente pode ser determinado a partir da coisa mesma e “a escada, para penetrar nas estruturas existenciais do ser-aí é manejada pelo próprio ser-aí e não pode ser preparada fora para depois penetrar no objeto” (STEIN, 1979, p. 92). Tal entendimento é crucial para entender que o Direito Administrativo não é mera questão de fato ou apenas um conjunto de textos normativos, pois sua aplicação ao caso exige o debate sobre um propósito que é imposto a uma prática, a um instituto jurídico, especialmente a partir do sentido constitucional construído em uma dada comunidade política. A questão da relação complexa entre Constituição e Direito Administrativo é tratada na última parte da pesquisa, cujos resultados aqui apresentados decorrem de projeto de pesquisa desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Unilasalle, com a colaboração dos colegas e alunos do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Administração Pública e Sociedade.

2. Dogmatismo jurídico e a influência das ideias racionalistas para a construção do Direito Administrativo 2.1 Estado moderno, razão e administração pública O Estado Moderno, surgido a partir do final do século XV, início do século XVI, foi corolário do próprio imaginário racionalista do período. Descabe aqui estabelecer a discussão sobre a ocorrência efetiva de descontinuidade ou não entre esta forma de organização político-social e aquela do período medieval1. No entanto, não se pode desconhecer que as transformações ocorridas são fruto da insatisfação com o mundo medieval, assumindo crucial importância o surgimento

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do humanismo como nova mentalidade, considerando a incapacidade da Igreja em fornecer elementos de organização para um mundo tomado por problemas de ordem social e econômica (CALVO GARCIA, 1994, p. 32). Assim, a razão surge como grande modus operandi para garantir as demandas capitalistas da época. Como refere Manuel Calvo Garcia, a razão passa a ser o fio condutor da progressiva secularização do pensamento prático e a segurança, a luz que guia e ilumina este processo (CALVO GARCIA, 1994, p. 32). Na gênese do Estado Moderno está a necessidade de racionalizar o exercício do poder, aliada à crescente exigência de segurança, possibilitando um agir calculado e previsível. Além da concentração de poder, fundada no critério territorial, buscava-se a criação de um aparato administrativo, dotando o Poder Público de diversas prerrogativas para alcançar finalidades específicas. Dando continuidade ao processo de despatrimonialização do poder, determinante para o enfraquecimento do feudalismo, no Estado Moderno ocorreu a despersonalização deste poder, passando a sua titularidade para o Estado. Portanto, questionar a modernidade, necessariamente, envolve dar-se conta das concepções culturais que engendraram a ideia de homem moderno, influenciando a estruturação do conhecimento jurídico. Não se pode, por exemplo, desconhecer a importância do renascimento, deixando marcas profundas nos planos político e social, como o estabelecimento de grandes Estados absolutistas. O período da ilustração foi primordial para a ascensão da classe burguesa e que forjou um direito capaz de garantir a liberdade e a propriedade. O Direito natural nesta época moderna desempenhou um papel de combatividade aos abusos do poder e fundamentou a necessidade de uma racionalização. O renascimento proporcionou ao homem um senso comum ocupado pela razão, acreditando-se na possibilidade da independência absoluta da razão humana, objetivando-se, nas Ciências Jurídicas, a formulação de preceitos jurídicos detalhadamente. O locus privilegiado para a concretização do Direito Natural seria o estado de natureza, permeado pela teoria do nominalismo. Junto com o racionalismo típico da época o objetivo da racionalidade adquiriu os ares de um fanatismo, calcado sempre na metodologia dedutivista (CALVO GARCIA, 1994, p. 33). Com efeito, os sistemas deveriam ser elaborados com base em tais postulados e sistematizar em detalhes as instituições jurídicas, pois nisto residiria o caráter de científico. Aqui são extremamente valiosas as críticas levadas a cabo por Martin Heidegger, relativamente ao modo-de-ser da metafísica, determinantes para a compreensão dos fenômenos jurídicos de modo a-histórico e abstracionista. Mais uma vez, sempre é válido repetir a seguinte passagem do filósofo da Floresta Negra: “a metafísica

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constitui-se no pensamento que não soube manter-se no nível da transcendência constitutiva do Dasein” (HEIDEGGER, 1995, p. 68).2 Portanto, pode-se dizer, o pensamento jurídico moderno, com relação à pergunta pelo fundamento, mantevese no âmbito restrito da lógica formal. É claro, é preciso compreender, a ânsia de um pensamento racional, em última análise, tinha por objetivo a substituição de uma forma de pensar medieval. Na base do pensamento renascentista encontrava-se a tentativa de resgatar a dimensão do homem a partir da natureza, o que, comparado com as anteriores formulações teocêntricas, representou um progresso sensível. No entendimento de Juan Ramón Capella “durante algum tempo o cometa da razão calculista que promete um mundo feliz recorrerá ao firmamento das ideias: um mundo crescentemente próspero e iluminado, um mundo de progresso (...) um mundo que se supõe organizado racionalmente” (CAPELLA, 1997, p. 103).3 Como decorrência, formar-se-á um conjunto de conceitos secularizados como soberania, cidadania, revolução, etc. A concepção de ciência, como já mencionado, valoriza a abstração, não desenvolvendo a forma de pensar calcada em coisas particulares. O conhecimento poderia adquirir este status somente quando teorizasse com categorias gerais, o que, em última análise, importava adotar um determinado ponto de vista para estabelecer explicações, bem como criar uma seletividade da realidade (CAPELLA, 1997).4 No entanto, um dos graves problemas gerados pela vivência moderna para a construção das ciências, foi aquilo que Hans-Georg Gadamer denominou ao longo de toda sua obra: a recusa dos pré-juízos. Para este filósofo “desde logo é certo que tanto o movimento da ilustração na Idade Moderna, como sua consciência científica repousam sobre a negação dos pré-juízos, e isto implica não aceitar também a mera apelação à autoridade” (GADAMER, 2002, p. 60). Assim, a Ciência Jurídica construída a partir do edifício de experiências da modernidade, no intuito de dotar-se de objetividade, deixou de questionar os próprios juízos prévios determinantes de toda a compreensão dos entes jurídicos. Dentro desta tendência para a racionalização, deve ser feito o exame do Direito Administrativo, não se podendo olvidar, no período inicial do Estado moderno houve a consolidação do chamado poder real, com as teorizações absolutistas. O rei seria a fonte de todo o poder, desencadeando a reação da burguesia e, por consequência, a elaboração de um conjunto de ideias antiabsolutistas. É claro, a sua estruturação não ocorreu abruptamente, pois durante algum tempo houve a convivência entre uma burocracia do Estado, característica desta época, e alguns resquícios dos poderes estamentais. Logo, a estrutura administrativa do Estado é pensada a partir de um modelo que busca concentrar o conjunto de atividades e poderes, interfe-

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rindo em diversos setores da vida social. Segundo menciona António Francisco de Sousa, o absolutismo, como teorização política, assume a característica de reação às circunstâncias políticas de espartilhamento do poder, em decorrência das constantes guerras que marcaram o período, especialmente no século XVII (SOUSA, 1995, p. 110). As tentativas de unificação dos territórios e a imposição de certa segurança exigiram a formação de exércitos, havendo neste período o aumento considerável da burocracia estatal para a manutenção destas forças de guerra, especialmente nos períodos de paz. No entanto, se a atuação interventiva do Estado constituiu-se mesmo em exigência militar, também, a própria ideologia econômica do período proclamava a necessidade de um órgão superior, capaz de conferir segurança às relações de trocas comerciais e fomentar a produção. Trata-se da política do mercantilismo dominando a Europa, especialmente nos séculos XVI e XVII (SOUSA, 1995, p. 111), e que passou a ser o horizonte de sentido do período. A estrutura administrativa portuguesa desta época, por exemplo, fundamentalmente, caracterizava-se pela existência de conselhos, ora com competência funcional, ora com competência para atuar sobre um determinado território, cuja função basilar era o assessoramento do rei, além da atuação jurisdicional como tribunal de apelação. No âmbito das organizações locais preponderava a confusão entre atividades administrativas e jurisdicionais, sendo que a administração central portuguesa sofre importante reestruturação em 1736 com a criação de Secretarias de Estado, ocupadas por um político nomeado pelo rei e responsável por uma parcela das funções administrativas do Estado (SOUSA, 1995, p. 115). As práticas políticas do período absolutista estavam ligadas com as teorizações da época com relação à soberania e a grande capacidade de poderes conferida ao rei. Mas, ao menos no plano formal, deve ser mencionada a existência de um conjunto de limitações, como a subordinação ao Direito Natural, ao Direito Divino e ao Direito das Gentes. Outrossim, alude António Francisco de Sousa, o rei absoluto estava limitado pelo princípio da inalienabilidade dos bens e direitos do Reino e pelas ‘leis fundamentais’ (reconhecidas como tais especialmente em França). Finalmente, constituíam também limites ao poder absoluto do Rei as resoluções privadas dos súbditos, especialmente as resultantes da propriedade e dos contratos, conhecidas geralmente por ‘direitos adquiridos’ [iura quaesita; wohlerworbene Rechete] (SOUSA, 1995, p. 119).

A atividade de intervenção do Estado, no plano da teoria jurídica, encontrava-se relacionado com o conceito de polícia e que, inicialmente, englobou toda a atividade da Administração Pública, funcionalizada pela ideia de garantir a boa or-

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dem da cidade. Tal concepção, no entanto, foi paulatinamente sendo reduzida, deixando de abarcar, por exemplo, as questões de justiça, como decorrência da criação dos tribunais, além dos assuntos militares, política externa e questões financeiras. Uma das notas peculiares deste regime administrativo foi a ausência da concepção de contraditório em matéria de atuação dos órgãos administrativos. Outro aspecto a ser salientado, como elemento que contribuiu para a estrutura racional da administração, obviamente, dentro dos parâmetros da época, foi o desenvolvimento de um ramo do Direito especialmente pensado para questionar os assuntos do Estado, o Direito Público e que, muito embora haja alguma divergência teórica com relação ao locus do seu surgimento, Alemanha, Inglaterra ou França, foram extremamente importantes para a época as teorizações de Thomas Hobbes, John Locke e Barão de la Brède et de Montesquieu (SOUSA, 1995, p. 60).5 Tais modos de compreensão do fenômeno jurídico foram cruciais para a caminhada de construção do agir racional no âmbito das relações com a Administração Pública, como a seguir será examinado. É claro, a postura de lançar perguntas capazes de abrir os horizontes de sentido das teorizações da época não pretende cair na fé ingênua de partir-se de uma espécie de grau zero da compreensão, até porque, a pergunta é sempre a resposta para outra pergunta previamente dada (GADAMER, 1993).

2.2 Aportes do pensamento exegético do direito administrativo francês O Direito Administrativo Francês contribuiu sobremaneira para a teorização racional-dogmática do regime da Administração Pública, absorvendo as concepções até então existentes, em especial oriundas do jusprivatismo sobre o caráter normativo dos princípios jurídicos. Aliás, a ideia de regime administrativo está diretamente relacionada com a concepção de submeter o Estado, enquanto poder, ao Direito, mas, não à lei civil e sim a um conjunto de disposições que conferem a este Direito uma caracterização diferente, a fim de dar conta da pressuposta superioridade da atividade administrativa. É claro que este ideal de submeter-se ao Direito constituiu-se muito mais em pretexto para dotar a Administração de um material normativo diferenciado e capaz de legitimar sua atuação, conforme será examinado posteriormente. A França foi o exemplo mais bem acabado de regime administrativo, exercendo papel importantíssimo o Conseil d’Etat, responsável pelo desenvolvimento do próprio Direito Administrativo, de base dogmática,6 que acabou por influenciar diversos países da Europa. Como menciona Fernando Garrido Falla o regime ad-

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ministrativo francês possui como características a existencia de um conjunto de normas aplicáveis à Administração que se constituem como um Direito especial, autônomo e independente do Direito comum ou civil, bem como uma jurisdição administrativa distinta e separada dos tribunais ordinários, além da noção de serviço público, pois o regime administrativo somente poderia ser aplicável às atividades que constituem serviço público (GARRIDO FALLA, 1994, p. 81). Não se pode olvidar, esta necessidade de sistematizar e regular o exercício da atividade da Administração Pública, também, é fruto do ideal revolucionário calcado na concepção natural-racionalista. O século XVIII institucionalizou uma nova mentalidade utópica, acreditando ser possível descobrir por meio da razão os princípios básicos de uma legislação perfeita, bem como supor que o intérprete pode chegar a concretizar hermeneuticamente esta legislação calcada em procedimentos lógico-formais. A compreensão de princípios jurídicos, por exemplo, encontrava-se permeada pela ideia de construção de princípios universais e imutáveis, inerentes à própria natureza humana, que serviriam como instrumento de limitação do poder régio, constituindo-se, em última análise, emanações de um tipo abstrato de homem.7 A esta forma de compreender o Direito, alia-se a concepção democrática fundada na soberania nacional e que será responsável pela manutenção da autoridade da lei, ou seja, como fruto dos representantes do povo, é considerada fonte exclusiva do Direito, constituindo-se em elemento capaz de racionalizar a própria sociedade. Mas, há uma espécie de retórica embutida neste discurso, pois assim como se defendeu a submissão à lei, em contrapartida, construiu-se toda uma concepção teórica que cristalizava a fuga das decisões administrativas do controle jurisdicional, na medida em que uma Justiça Executiva era responsável pelo controle dos atos emanados da Administração. De qualquer sorte, a lei é vislumbrada por intermédio de uma ideia abstrata, cujo sentido objetivo seria capaz, no âmbito do Direito Administrativo, de fornecer as soluções dos casos concretos surgidos em razão da atuação do Estado. Ademais, a solução adotada seria exatamente aquela previamente fixada pela legislação. No entendimento de Manuel Calvo Garcia dois são os fatores determinantes da nova ideologia lógico-dedutiva que irá caracterizar a partir deste momento o método jurídico: a matematização dos jogos de verdade e a ideia de sistema (CALVO GARCIA, 1994, p. 40).8 A incorporação da forma matemática de raciocinar e construir o conhecimento influenciou o Direito, impondo como objetivo científico a necessidade de construir um sistema perfeito e capaz de atender os ideais de segurança e certeza.

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Os princípios jurídicos, assim como diversos institutos do Direito Administrativo, seriam pensados pela dogmática jurídica como elementos axiomáticos e conceituais de uma racionalidade formal, rompendo com o anterior paradigma autoritário do ancien régime. Tais princípios, a partir da metodologia apropriada, seriam extraídos de um conjunto legislativo perfeito, de modo a fornecer imediatamente a solução para o caso concreto. Mais uma vez cumpre ressaltar que aqui são encontradas as raízes do método dedutivo, pois a necessidade de buscar uma decisão coerente com o sistema jurídico faz pressupor que toda decisão jurídica pode consistir na aplicação de um preceito geral e abstrato a um fato concreto.9 Não se pode olvidar que no discurso oficial da época, o dedutivismo seria um sinal de isenção na tomada de decisões, mesmo as administrativas. A metodologia racionalista, e que tanto influenciou a formação do conjunto dos diversos institutos do Direito Administrativo, permite tornar plausíveis metodologicamente os postulados da plenitude, harmonia, universalidade e intemporalidade da lei positiva, determinando a simbiose moderna entre poder e razão. Tais formulações, no entendimento de Manoel Calvo Garcia são propícias para acolher os ideais da classe burguesa (CALVO GARCIA, 1994, p. 60). Com efeito, no bojo desta sistemática estava a concepção de racionalidade formal, o que foi determinante, como se verá, para as construções teóricas sobre o próprio conceito de Direito Administrativo. A exigência de tal espécie de racionalidade, por outro lado, estava ligada diretamente ao princípio da igualdade formal que consagra o novo Estado de direito, e a generalidade que possibilita superar as contingências inerentes ao casuísmo, viabilizando a exata aplicação da lei. Tal forma de concretizar o Direito estabelecia a aparência de isenção na regulação das situações típicas, bem como contribuiu para dotar o direito burguês de seu caráter ideológico, ou seja, o converteu em um sistema capaz de desmascarar a realidade social, apresentando-a como o reino juridicizado e carente de conflitos ou compromisso materiais, a instância neutra que garantiria o livre jogo das leis naturais da vida social (CALVO GARCIA, 1994, p. 70).10 Fundamentado em tais postulados racionalistas, aliado ao método lógicodedutivo11, o Direito Administrativo é construído como um conjunto de regras especiais. No entendimento de André de Laubadère, toda a atividade da administração não está uniformemente submetida às regras especiais do Direito Administrativo, sendo a concorrência destas regras e das regras de direito privado que conduz à necessidade de delimitar seus campos de aplicação respectivos. Assim, esta demarcação constitui a questão fundamental do sistema francês e que, concernente à aplicação do Direito Administrativo, chama-se regime administrativo ou regime

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exorbitante de direito público (LAUBADÈRE, 1973, p. 38). Mas, não seria apenas este o objetivo a orientar a estruturação de um regime administrativo, buscando-se, também, a construção de uma Teoria do Direito Administrativo, capaz de fornecer critérios para aplicação deste ramo do Direito, bem como delimitar a competência da jurisdição administrativa (LAUBADÈRE, 1973, p. 38). Tais objetivos, mais uma vez é importante destacar, estavam profundamente marcados por uma espécie de ideal não dito, qual seja, revestir a atuação da Administração do caráter de racionalidade e imune a eventuais controles, com grande potencialidade, desta forma, para albergar certos interesses da época. Este imaginário social influenciará decisivamente na construção dos diversos critérios para definir o Direito Administrativo.

2.3 Uma análise crítica dos critérios semânticos para definir o direito administrativo: (ou) a necessária compreensão hermenêutica No âmbito do modo de ser cotidiano das diversas produções dogmáticas, são encontrados variados critérios para definir o que poderia ser considerado como Direito Administrativo. De plano, já se evidencia um grande equívoco pretender erigir uma definição perfeita e acabada, não se dando conta do caráter existencial em todo o processo de compreensão. Em tal diversidade, pode-se destacar, por exemplo, o critério do serviço público, tendo como grandes expoentes Leon Duguit, Jèze e Bonnard, preponderando como elemento delimitador o instituto de serviço público. No intuito de ultrapassar a vetusta concepção até então predominante de identificar o Direito Administrativo com a ideia de pussance public, este ramo do direito seria o conjunto de regras que regula a prestação de serviços públicos pelo Estado, normatizando ainda os direitos dos usuários e deveres dos prestadores.12 Uma das críticas que têm sido realizadas no que tange a este conceito, reside na redução do campo de incidência à prestação de serviços públicos. Não há dúvida, o Direito Administrativo estuda o tema referente aos serviços públicos, mas sem que tal possa constituir-se como o universo abarcado por sua normatização. De outra banda, deve-se mencionar o critério do Poder Executivo,13 constituindo-se no estudo das relações entre este poder e os cidadãos, além de problematizar sua estruturação e funcionamento. Igualmente, detecta-se as insuficiências desta concepção ao reduzir o Direito Administrativo ao estudo do Poder Executivo. Nos demais poderes – Legislativo e Judiciário – também há o exercício de atividade administrativa, não sendo crível reduzir sua problematização ao primeiro. Além destes critérios, encontra-se na dogmática administrativista uma multiplicidade de outros elementos determinantes da definição, como os critérios das

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relações jurídicas, teleológico, etc.14 No entendimento de Eduardo García de Enterría, o Direito Administrativo constitui-se em “un Derecho de naturaleza estatutária, en cuanto se dirige a la regulación de las singulares especies de sujetos que se agrupan bajo el nombre de Administraciones Públicas, sustrayendo a estos sujetos singulares del Derecho común” (GARCIA DE ENTERRÍA, 1995, p. 39). Este autor faz questão de ressaltar a importância de vislumbrar no Direito Administrativo a difícil tarefa de proceder ao equilíbrio entre privilégios e garantias, com a finalidade última de salvaguardar o interesse geral da comunidade, mas sem desconsiderar os cidadãos. Já, no âmbito da visão de Otto Mayer (1982, p. 17 e ss.), o Direito Administrativo deveria ser compreendido como o direito relativo à Administração, o direito que lhe é aplicável, opondo-se ao direito constitucional, subsistindo como um ramo especial do direito público, dotado de um método próprio, da mesma maneira que o direito civil (MAYER, 1982, p. 17). Na órbita das preocupações de alguns administrativistas franceses, George Vedel e Pierre Delvolvé refletem a grande preocupação de construir certas concepções teóricas que ressaltem a autonomia do direito administrativo como um conjunto de regras capaz de derrogar a aplicação das leis de direito privado no que concerne à via administrativa (VEDEL e DEVOLVÉ, 1992, p. 76). Outrossim, Diogo Freitas do Amaral vislumbra o Direito Administrativo “como o ramo do direito público constituído pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização e funcionamento da Administração Pública, bem como as relações por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito no exercício da atividade administrativa de gestão pública” (AMARAL, 1998, p. 130). Portanto, qualquer conceito que se tenha sobre o Direito Administrativo, a partir de uma perspectiva hermenêutica, não pode deixar de vislumbrar que há sempre uma determinada pré-compreensão a ordená-lo, uma espécie de a priori fundante. Os conceitos não podem ser compreendidos como repertórios metafísicos, capazes de abarcar a totalidade de sentido. Estabelecer um conceito é uma relação de aproximação com a coisa, buscando-se descrever como ela acontece em seus diversos âmbitos (STEIN, 2002, p. 156).15 Qualquer tentativa de conceituação não passará de um destaque, um colocar entre parênteses algumas manifestações, no caso, do fenômeno jurídico-administrativo, até porque sempre deverá ser considerada a temporalidade e que impede o homem de abarcar em definitivo as formas de expressão. Uma crítica interessante sobre o ideal de conceituar o Direito Administrativo, no campo dogmático, foi realizada por Juan Alfonso Santamaría Pastor quando menciona a ausência de utilidade prática das disposições conceituais, pois refere: hablar del Derecho administrativo como de un sistema o subsistema de

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normas, delimitado en el interior del total ordenamiento jurídico, no pasa de ser una convención terminológica sin significado preciso [...]; por otra parte intentar hallar una noción nuclear en torno a la cual construir la ‘ciencia’ del Derecho administrativo, no deja de ser una inversión de los términos lógicos de la investigación científica [...], y, por último, resulta notorio que algo tan convencional como el contenido de las enseñanzas académicas no puede definirse abstractamente mediante noción teórica de ningún tipo (SANTAMARIA PASTOR, 2000, p. 83-84).

Corolário do que acima foi explicitado, no campo das construções conceituais do Direito Administrativo, há grande propensão em destacar no fenômeno jurídico-administrativo basicamente o aspecto da norma (a norma não no sentido adotado pela hermenêutica jurídica). Certamente, tal dimensão também fará parte das problematizações a serem desenvolvidas, mas não reduz o conjunto de possibilidades de tratamento da matéria. Hodiernamente um dos elementos interessantes para abarcar uma gama considerável de manifestações administrativas é a partir da construção de uma Teoria da Decisão Administrativa,16 entendida como o agir da Administração Pública, seja por meio de seus órgãos específicos ou de pessoas jurídicas criadas para determinadas finalidades e em coordenação com particulares, com o propósito de materializar determinados objetivos constitucionais, sempre com a preocupação de evitar decisões arbitrárias. O Direito Administrativo, assim, poderia ser indicado como o campo de conhecimento que estuda as condições de possibilidade (Streck) da decisão administrativa, seja no que tange ao conjunto de regras e princípios correlacionados ou no aspecto atinente às suas formas de expressão (atos administrativos, poderes, contratos, prestação de serviços, administração de bens, etc.). Na medida em que qualquer decisão situa-se no campo da interpretação, tal perspectiva desloca o foco de atenção para o modo de ser do Direito Administrativo, o questionamento sobre os seus propósitos (Dworkin), hermeneuticamente falando. Destarte, qualquer decisão da Administração Pública deverá ser compreendida a partir do horizonte de sentido do Estado Democrático de Direito (arts. 1º e 3ª da Constituição Federal), fundando-se no conjunto de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e a promoção do bem estar da comunidade. Em tal sentido, vale a ideia de Prosper Weil para quem: o direito administrativo não pode, pois, ser desligado da história, e especialmente da história política; é nela que encontra o seu fundamento, é a ela que deve a sua filosofia e os seus traços mais íntimos. Não se trata de relembrar o passado, mas sim de conhecer o próprio solo do qual o

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direito administrativo extraiu a seiva que ainda hoje o alimenta (WEIL, 1977, p. 10).

No âmbito da referência citada, é interessante ressaltar a chamada crise do direito, e também do Direito Administrativo, e destacar as possibilidades de ultrapassá-la. Neste sentido, Lenio Luiz Streck tem dado um grande contributo ao identificar a nominada crise de dupla face do direito, pois (a) os operadores do direito estão inseridos no paradigma da filosofia da consciência e (b) estão inseridos no paradigma liberal-individualista (STRECK, 2004, p. 55). Em apertada síntese, boa parte dos que lidam com o Direito não se dão conta da necessidade de superar o paradigma liberal que ainda grassa na prática jurídica e compreender o Direito(Administrativo) como condição de possibilidade para fazer acontecer um Estado (pré)ocupado com a sociedade, vocacionado para intervir em prol dos direitos e garantias fundamentais, sejam eles liberais ou sociais, assumindo o Poder Judiciário um papel fundamental, conforme o autor: “Por tudo isso é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, há – ou deveria haver – um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional” (STRECK, 2004, p. 55). Ao examinar-se o Direito Administrativo, faz-se mister destacar explicitamente a importância da jurisdição constitucional na construção de uma Administração Pública mais democrática, sendo imperioso, por exemplo, compreender de um modo diferenciado alguns princípios epocais que estruturaram a atividade administrativa como o princípio da separação de poderes. Ademais, além desta dimensão de filosofia política a orientar a construção do Direito Administrativo, faz-se mister destacar, no âmbito de uma dimensão hermenêutico-filosófica, o problema da filosofia da consciência, ou seja, é necessário registrar que, na sustentação desse imaginário jurídico prevalecente, encontra-se disseminado ainda o paradigma epistemológico da filosofia da consciência – calcada na lógica do sujeito cognoscente, onde as formas de vida e relacionamentos são reificadas e funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto (como denuncia Habermas) – carente e/ou refratária à viragem linguística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida contemporaneamente, no qual a relação ou relações passa(m) a ser sujeito-sujeito (STRECK, 2004, p. 61).

Os aspectos aludidos da crise de dupla face do direito, com efeito, deveriam ingressar em qualquer problematização dos diversos institutos do Direito Administrativo e da compreensão de um conceito (hermenêutico) propondo-se melhor destacar neste ramo do direito as potencialidades para provocar mudanças, criando condições de fazer acontecer aquilo que vem indicado nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal, obviamente, sem cair na ingenuidade segundo a qual a instituição

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de textos legais ou constitucionais é suficiente para alcançar tal desiderato. Destarte, a hermenêutica jurídica, de cariz fenomenológica, irá desempenhar um papel importantíssimo, acompanhada de um modo-de-ser mais social-solidário, uma concepção mais comunitária da atividade desenvolvida pela Administração Pública. Este, ao que parece, pode ser o grande desafio a orientar a construção de uma nova Teoria do direito Administrativo, certamente, sem pretender inserir um novo dogmatismo, mas apenas temporalizar as diversas possibilidades de sentido deste ramo do direito, privilegiando a compreensão a partir da consciência histórica efeitual, utilizando a referência de Hans-Georg Gadamer. Busca-se, assim pensá-lo hermeneuticamente, fugindo-se da tentação objetificadora de construção de mundo. Quando for lançado o questionamento “o que é isto o direito administrativo?”, é crucial que não se pretenda respondê-la arrolando alguns enunciados linguísticos, pois no enunciado não está a resposta para tal indagação. A problematização a ser levada a cabo exige dialogar como aquilo que vem sendo transmitido como sentido de Direito Administrativo, ultrapassando-se as evidências lógico-formais do dogmatismo e assumindo a linguagem como locus privilegiado para abrir clareiras, possibilidades antes impensadas de dizer o Direito Administrativo. A partir da chamada viragem hermenêutica (STRECK, 2004), perguntar o que é o Direito Administrativo importa lançar juristas e operadores do direito para, por exemplo, problematizar a incapacidade das construções tradicionalmente dogmáticas, vocacionadas para aspectos metafísicos, e incapazes de transmitir o sentido, decorrência do ideal de especialização preponderante na sua estruturação teórica, especialização esta calcada na postura formalista do conhecimento jurídico e que desconsiderava outras possibilidades metodológicas senão aquelas suficientes para a aplicação subsuntiva de regras legais. Destarte, uma segunda dimensão de análise relaciona-se à posição ocupada pelo Direito Administrativo no conjunto da existência histórico-social, ou seja, hodiernamente, em um país de modernidade tardia como o Brasil, com um alto índice de exclusão social, qual tem sido a função deste campo do conhecimento jurídico? Finalmente, urge problematizar a questão atinente ao próprio fundamento do Direito Administrativo e a concepção de racionalidade científica que alimenta o imaginário de juristas, operadores do direito e administradores. Como aduz Martin Heidegger, “tenemos antes que aprender a entender qué significa fundamentos de una ciencia y en qué medida la crisis de fundamentos pone de manifesto los limites esenciales de la ciencia como tal” (HEIDEGGER, 1999, p. 52). Há, portanto, uma tarefa originária de reconhecer que no próprio modo de ser característico do Direito Administrativo há o inacessível e que tal é incontornável e o dar-se conta da crise de fundamentos, em última análise,

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relaciona-se com a problematização da possibilidade histórica de existir do homem. O sentido não está no campo semântico, seja de um conceito de direito natural, verdade divina ou razão, mas no horizonte (histórico) do modo de ser do próprio homem, de uma dada comunidade política a qual pertence. Daí a importância no próximo item de situar a problematização do conceito do Direito Administrativo naquilo que o funda hermeneuticamente, buscando-se com isto destacá-lo como prática interpretativa. Adotando alguns aspectos da teoria do direito de Ronald Dworkin, é crível sustentar que o Direito Administrativo pode ser compreendido melhor a partir da reflexão dos seus propósitos, por meio de uma interpretação construtiva (DWORKIN, 1999, P. 62).17

3. As pré-compreensões históricas do direito administrativo: do modo de ser liberal-individualista ao Estado Constitucional de Direito. 3.1 Condições de possibilidade para a consciência histórica do direito administrativo Conforme já salientado em outra ocasião (OHLWEILER, 2003, p. 147), as condições de possibilidade de uma análise interpretativa (hermenêutica) passa pela interrogação fenomenológica da vida histórica, por intermédio do pensar reflexivo sobre as diversas mudanças sociais e econômicas que engendraram as compreensões do Direito Administrativo a partir de determinados propósitos. Este ramo do direito passou por variadas tentativas tecnicistas, quer dizer, em um primeiro momento apenas poderia ser-lhe atribuído o status de científico caso houvesse a aplicação do método das chamadas ciências naturais, único capaz de possibilitar a compreensão rigorosa dos fenômenos, segundo restou examinado no item anterior. É claro, tal mister não pode ser alcançado, pois, como refere Ernildo Stein, “nas ciências do espírito ou históricas, não se processa uma explicação semelhante à das ciências naturais. Não é possível uma distância que permita a objetividade própria da explicação positiva. Em todo o âmbito das ciências da história o próprio homem que pesquisa está envolto” (STEIN, 1999, p. 26). Busca-se, portanto, ao lançar tal interrogação, a investigação de uma consciência histórica do Direito Administrativo, sempre considerando que somente é possível fazer conhecimento compreendendo. O homem é um ser essencialmente histórico e a sua temporalidade radical é historicidade (STEIN, 1999, p. 28), que brota do passado, presente e futuro, não como etapas sucessivas de uma conjunção linear, mas como totalidade. O questionamento do Direito Administrativo capaz de abrir dimensões de sentido é aquele que tem por objetivo, em última análise, ex-

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plorar o seu “poder-ser” (STEIN, 1999, p. 28), isto é, a busca de suas possibilidades a serem concretizadas no presente. Não se trata, simplesmente, da tarefa de definir marcos históricos, atividade típica da historiografia, mas de compreensão da história concreta na qual ele acontece. Não se pode olvidar que os entes jurídicos estão imersos na tradição, compreendida como verdadeiro acontecimento. A finalidade, portanto, é problematizar as condições de possibilidade de o Direito Administrativo ser no presente e no futuro, eis que o passado não é mudo, considerando que o homem – e no caso os operadores do direito – estão inseridos em uma tradição que lhes é dada previamente, com um conjunto de propósitos construídos no contexto de uma dada comunidade política. Qual esta tradição que acaba por engendrar uma forma de compreensão dos diversos institutos do Direito Administrativo? Como fazer acontecer o presente deste ramo do Direito se há toda uma tradição, por vezes, limitadora, impedindo o triunfo do novo? Aqui é importante resgatar o pensamento de Hans-Georg Gadamer, pois já no início de sua obra Verdad y Método menciona a tese segundo a qual em toda compreensão da tradição opera o momento da história efeitual (GADAMER, 1993, p. 16).18 Reconhece certa ambiguidade no conceito da consciência da história efeitual: “A ambiguidade do mesmo consiste em que, com isso, tem-se em mente, por um lado, a consciência, ativada no curso da história e determinada pela história, e por outro lado uma consciência do próprio ser ativado e ser determinado” (GADAMER, 1993, p. 22).19 No entanto é categoria fundamental para possibilitar a compreensão autêntica, considerando constituir-se em antítese do pensamento dogmático, objetificante e esquecido da finitude de todo o compreender. A compreensão é um processo histórico-efeitual, quer dizer, o intérprete, em sua relação com a coisa mesma, está determinado pelos fatores históricos, como aduz Gadamer (DUTT, 1998, p. 37). Trata-se também de influência do pensamento de Martin Heidegger, pois o filósofo da Floresta Negra, em sua obra Ser e tempo, faz alusão à temporalidade como uma das dimensões do Dasein, o ente compreendedor privilegiado. Um dos elementos fundamentais para a estruturação da história efeitual é a experiência. É claro, quando se fala em experiência, não se está vislumbrando-a de forma idealizada, como ocorre no âmbito das ciências naturais em que se procura garantir uma objetividade no fato de que as experiências subjacentes só serão válidas na medida em que, uma vez repetidas, podem ser confirmadas, ou seja, reproduzidas. Após fazer uma análise crítica de algumas concepções sobre a experiência, Gadamer alude que a experiência não é a ciência mesma, porém seu pressuposto necessário. Constitui-se, por conseguinte, em aspecto fundamental do conhecimento, um conhecimento não-dogmático, mas calcado na percepção de finitude do homem. A experiência tem lugar como um acontecer do qual ninguém é

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dono (GADAMER, 1993, p. 428).20 No âmbito deste acontecer é que se dão as novas possibilidades de sentido, ou ainda, pode desvelar-se a coisa mesma. Para Gadamer, como a experiência que alguém faz transforma o conjunto de seu saber, quando se fez uma experiência pode-se dizer que a possui e o que experimenta ganha um novo horizonte. Com efeito, é preciso estar disposto a ganhar novos horizontes, a abrir-se para novas experiências, aspecto este característico do que Gadamer chama de “pessoa experimentada”. Utilizar esta expressão não quer fazer referência simplesmente a alguém que já tenha tido experiências, ou vivenciado acontecimentos diversos, mas aquele que se mostra capacitado para estar aberto; a abertura que possibilita ter acesso às coisas mesmas. Desconsiderar o caráter de abertura da experiência traz como consequência, desta forma, retirar a capacidade de compreender novas dimensões de sentido dos entes e achar que já é detentor de todos os sentidos, que já sabe tudo.21 No entendimento de Gadamer, aquele que efetua uma compreensão hermenêutica deve dar-se conta de que a relação do intérprete com as coisas não é uma relação que ocorra naturalmente, sem criar problemas. Na mensagem que é transmitida há uma tensão entre familiaridade e estranhamento, sendo que “o intérprete encontra-se suspenso entre o seu pertencimento a uma tradição e a sua distância com relação aos objetos que constituem o tema de suas pesquisas” (GADAMER, 1998, p. 67). Daí, como já afirmado, a importância da consciência histórica, da distância temporal, permitindo estabelecer a distinção entre os preconceitos que cegam daqueles preconceitos que esclarecem, pois estes últimos é que são capazes de possibilitar um sentido autêntico da coisa interpretada. Para Gadamer “denunciar algo como preconceito é suspender a sua presumida validade; com efeito, um preconceito só pode atuar sobre nós, como preconceito no sentido próprio do termo, enquanto não estivermos suficientemente conscientes do mesmo. Mas a descoberta de um preconceito não é possível enquanto ele permanecer simplesmente operante; é preciso de algum modo provocá-lo” (GADAMER, 1998, p. 68). Neste aspecto reside a importância da ideia de interrogação que deve estar presente em todo labor hermenêutico. Conforme Gadamer, a essência da interrogação é pôr a nu as possibilidades e mantê-las de sobreaviso (GADAMER, 1998, p. 69). A provocação de que fala o filósofo, com efeito, apenas pode ocorrer por meio de uma profunda reflexão, capaz de suspender os pré-juízos e denunciar a tradição objetificante que por vezes encobre o trabalho hermenêutico e, nos termos da linguagem heideggeriana, vela o ser dos entes, mostrando-se como metafísica. Ir às coisas mesmas importa mergulhar no modo-de-ser da pergunta, pois por meio dela os entes – um texto, uma obra de arte, um poema, um dispositivo legal – são colocados sob uma determinada perspectiva, abrindo-se.

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No que tange ao Direito Administrativo, os operadores do direito não estão livres das influências do passado, assim como absolutamente determinados por uma tradição na qual são jogados. O primordial é ser capaz de apreciar sua verdadeira posição na história e fugir da chamada tentação objetivista: “A tentação do espectador imparcial na história não é nada mais que uma tendência para o objetivismo típico das ciências naturais. Nosso conhecimento do passado sempre vem carregado pelas condições que no presente nos ocupam e limitam. O passado que atingimos vem envolto nos problemas, preconceitos e interesses que nos atarefam no presente” (STEIN, 1999, p. 29). Daí a importância de investigar o modo-de-ser histórico dos diversos institutos jurídico-administrativos, pois a tradição na qual o intérprete está jogado acaba por selecionar seus juízos e este mesmo “já-acontecido” influencia na compreensão do passado, chamando-se de “ação da história” e “esta limita a objetividade total e impede um juízo neutro a cada momento. Somente na medida em que temos consciência da ação da história sobre nós, sabemos de nossa situação na história” (STEIN, 1999, p. 29). Este dar-se conta da ação da história é o que possibilita ultrapassar a postura de ingenuidade diante do passado e determina a finitude do processo de compreensão da história do direito, compreensão esta limitada pelo nosso próprio acontecer. Uma atitude racionalista somente leva à fuga da própria história, como refere Ernildo Stein (1999, p. 30). A reflexão sobre o fio condutor da história, como elemento de pré-compreensão do Direito Administrativo, deve ser permeada por um questionamento dos conflitos sociais, das mudanças de paradigmas e dos referenciais para pensar o fenômeno jurídico, sempre com a finalidade de problematizar os propósitos dos diversos institutos, vislumbrados como práticas sociais, mas construídos com determinado sentido (hermenêutico). Não se pode olvidar que o acontecer destas práticas sociais está inserido em um horizonte temporal, diverso daquele ocupado pelos operadores do direito. Mas, não adianta querer fazer com que os operadores sejam inseridos no horizonte subjetivo do Direito Administrativo da época, transportando-o para o atual. É exatamente uma postura de estranhamento, mantendo a tensão entre a diversidade de lugares, que irá possibilitar a compreensão (STEIN, 1999, p. 32) e o constante questionar das antecipações de sentido que chegam ao horizonte do jurista. O dar-se conta da ação da história importa ultrapassar os postulados do entendimento objetivista do “já-acontecido”, como algo constante, linear e que possui um algo a ser fixado pela compreensão. Portanto, “é por isso que a compreensão histórica não procede objetivando. Ela avança, antes, refazendo continuamente a unidade entre o sujeito que conhece e a realidade histórica que é conhecida. Nem o sujeito, nem o objeto pairam acima da história” (STEIN, 1999, p. 33). Para o fim de compreender o que é o Direito Administrativo fora dos muros

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da verdade semântica, é fundamental o desenvolvimento da consciência histórica, levando a uma forma diferenciada de entender os institutos jurídicos, relativizando-os e transformando-os em face do fenômeno jurídico. Este ramo do direito possui uma forma de acontecer temporal e historicamente determinada, sendo que a inserção dos operadores na tradição leva a uma diversidade de compreensão com relação ao jurídico. Logo, cabe assumir, de forma consciente, esta ação da história, desobjetificando-se, assim, a atual visão dos diversos institutos. A historicidade do homem é fundamental para constantemente revisar o conjunto de horizontes históricos (STEIN, 1999, p. 34). Refletir sobre os horizontes de sentido da história, assim como o próprio horizonte de sentido, leva à abertura das possibilidades. A consciência histórica é determinante para o ato de refletir, de forma lúcida, os condicionantes da tradição e que acabam por moldar a orientação de sentido dos institutos jurídicos. De outra banda, considerando não haver um direito a-histórico e fixista, esta consciência leva à reformulação contínua das projeções futuras do Direito Administrativo. Para Ernildo Stein, “na medida em que penetramos com lucidez na tradição, libertamos dela possibilidades para nosso projeto histórico no futuro. É por isso que a consciência histórica é tão importante para a descoberta da verdadeira posição diante da história” (STEIN, 1999, p. 36). Esta afirmação é fundamental para a construção do Direito Administrativo, calcado em bases hermenêuticas e situado em um Estado Democrático de Direito, como será examinado. A ausência de consciência histórica é um dos fatores determinantes para que os operadores jurídicos não sejam capazes de desvelar os verdadeiros propósitos dos diversos institutos jurídicos. A investigação permeada pela consciência histórica não possui apenas a tarefa de melhor compreender o que se passou, mas abrir possibilidades do futuro, eliminando as posturas que partem de um a priori dogmático para determinar como devem ser produzidos os horizontes de sentido. Assim, mais uma vez com precisão reflete Ernildo Stein: Diante disso todas as previsões, todos os absolutos, todos os determinismos, inventados para dominar o acontecer do futuro da história humana, são impotentes. O único caminho é a consciência histórica, que possibilita a verdadeira compreensão da história como passado, e dele liberta as possibilidades do futuro, como projeto, que deve continuamente ser refeito, na medida em que a história evolui (STEIN, 1999, p. 37).

Com razão Hans-Georg Gadamer quando refere que a tomada de uma consciência histórica constitui a mais importante revolução pela qual se passou desde o início da época moderna (GADAMER, 1998, p. 17), entendendo-se tal consciência

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como o “privilégio do homem de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião”. Um dos resultados mais concretos desta forma de entender o Direito Administrativo é dar-se conta da imperiosidade de adquirir uma posição reflexiva, e crítico-filosófica, com relação à tradição do material normativo construído para resolver os casos concretos, bem como sua metodologia. Não se pode mais, de forma ingênua, “escutar beatificamente a voz que lhe chega do passado”, mas é imperioso “refletir sobre ela, recolocando-a no contexto em que se originou, a fim de verificar o significado e o valor relativos que lhe são próprios” (GADAMER, 1998, p. 18).

3.2 O debate sobre os equívocos da origem do direito administrativo Nunca é demasiado afirmar que a consolidação do Direito Administrativo, enquanto disciplina jurídica, não ocorreu de forma abrupta (CHEVALIER, 1998, p. 1.794), mas foi resultado de longo processo de desenvolvimento histórico, marcado por descontinuidades e sustentado por uma gama variada de elementos do antigo regime. Com efeito, vale ressaltar a discussão da dogmática do Direito Administrativo sobre a existência, ou não, de verdadeira ruptura entre este ramo do Direito no período do antigo regime, de cunho absolutista, e o que veio a consolidar-se aos poucos após o movimento da Revolução 1789. Autores como Zanobini, Haouriou, Duguit, Weil, Mayer, Merkl, Santi Romano, E. Garcia de Enterría (MARÍN, 1992, p. 22)22 e Garrido Falla defendem a tese segundo a qual somente após os acontecimentos de 1789 surgiram condições de possibilidade para a formação do Direito Administrativo, considerando no modelo de Estado Liberal-Burguês a presença dos princípios que acabaram prevalecendo. No entanto, há um conjunto de teóricos defendendo posição diversa, no sentido de haver mesmo antes da Revolução Francesa alguns institutos que foram incorporados no período posterior, caracterizando, assim, mera continuidade. Vale aludir, os defensores do primeiro entendimento não desconhecem e não negam a existência de diversidade de técnicas administrativas já existentes no antigo regime, mas diferenciam a existência de alguns mecanismos de exercício dos poderes administrativos e o Direito Administrativo. Este último consolidar-se-ia com o princípio da divisão de poderes e o estabelecimento de limites ao poder. Os partidários desta concepção entendem que atividade da Administração, por certo, havia, bem como um conjunto de poderes dos administradores, no entanto, não seria crível sustentar a existência de uma Administração regulada e, por via de consequência, submetida a um Direito específico, pois “la primacía de la ley y, con ello,

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el sometimiento, real e verdadero, del poder ejecutivo a ella fueron precisamente la victoria de los revolucionarios contra algo, la reacción contra un régimen que negaba todo eso” (MARÍN, 1992, p. 53). Obviamente, a existência de alguns limites ao exercício do poder administrativo, por certo, não é suficiente para representar a existência de um Direito Administrativo, pois eles seriam limites fragmentários, muitas vezes não acompanhados de um conjunto de garantias postas à disposição dos indivíduos, constituindo-se em meras figuras retóricas. No entanto, o período de transição de um regime absolutista, o governo dos homens, para um regime de Estado Liberal, Estado de Direito ou governo das leis, não ocorreu sem alguma resistência do poder institucionalizado na época. Como alude António Francisco de Sousa, a máquina real que exercia o controle sobre o exército, a polícia, as finanças, a burocracia, etc., buscou estabelecer alguns mecanismos compensatórios, como a participação na função legislativa, por meio de institutos como a sanção, promulgação e veto, além da institucionalização de um poder regulamentar autônomo, prescindindo de lei prévia, o que ocorreu por meio da compreensão larga do significado do poder de execução das leis (SOUSA, 1995, p. 189). A própria garantia de que os conflitos surgidos entre os cidadãos e a Administração seriam resolvidos por um tribunal independente, foi objeto de concepções reducionistas, pois quando tais conflitos foram confiados a órgãos da Administração, permaneceu a confusão entre Administração e Justiça até 1872.23 Tais contradições do discurso revolucionário podem ser bem percebidas na obra de Paulo Otero, quando menciona o duplo equívoco da origem do Direito Administrativo. Aduz haver um contrassenso no princípio da separação de poderes, pois assim como se constituiu em bandeira do movimento de 1789, assumindo a postura de garantia do cidadão, o protagonismo do Conselho de Estado revela-se desajustado com tal princípio: Numa outra perspectiva, aquilo que está em causa na intervenção do Conseil d’ Etat não é um simples desenvolvimento interpretativo da lei, fazendo um prolongamento da sua letra ou do seu espírito, ou mesmo um desenvolvimento integrativo da lei; ao criar o Direito Administrativo, a jurisprudência do Conseil d’Etat aquilo que faz é substituir-se ao legislador, agindo no seu lugar ou em vez do parlamento (OTERO, 2003, p. 270).

No entanto, o mais grave reside que como o próprio Executivo resolvia as questões atinentes à competência para julgar os conflitos entre cidadãos e Administração Pública, sua ingerência era considerável, eis que se constrói uma legalidade derrogatória do direito comum. Mais uma vez são lapidares as palavras do administrativista português referido:

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Todavia, a criação de uma jurisdição administrativa própria, subtraindo a resolução dos litígios jurídico-administrativos aos tribunais comuns, apesar de alicerçada na ideia de que ‘julgar a Administração ainda é administrar’, não teve qualquer intuito garantístico, antes se baseou na desconfiança dos revolucionários franceses contra tribunais judiciais, pretendendo impedir que o espírito de hostilidade reinante nesses últimos contra a Revolução limitasse a liberdade de ação das autoridades administrativas revolucionárias. A invocação do princípio da separação de poderes foi um simples pretexto para que, visando um objetivo político concreto de garantir efetivo alargamento da esfera de liberdade decisória da Administração Pública, tornando sua atividade imune a qualquer controlo judicial, se construísse um modelo de contencioso em que a Administração se julgaria a ela própria: há aqui uma perfeita continuidade entre o modelo de controlo administrativo adotado pela Revolução Francesa e aquele que vigorava no Ancien Regime... (OTERO, 2003, p. 275).

No âmbito desta polêmica, não se poderia deixar de fazer referência, ainda que brevemente, ao texto O Antigo Regime e a Revolução de Alex de Tocqueville, no qual igualmente crítica a posição daqueles que tomam a Revolução Francesa como um processo inovador, ressaltando que algumas das consequências de tal movimento foi o de aumentar o poder e os direitos da autoridade pública, dar continuidade à centralização administrativa já presente no antigo regime,24 manter e até aprofundando a tutela administrativa sobre os cidadãos,25 albergando as instituições do antigo regime como a justiça administrativa e estabilidade dos funcionários.26 Longe de ser resolvida tal polêmica, o importante é não perder a dimensão crítica sobre as origens do Direito Administrativo, evitando-se discursos de garantia que, até mesmo hodiernamente, são mais utilizados na prática para solapar direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Neste sentido também a conclusão de Gustavo Binenbojm, ao aludir que “nenhum cunho garantístico dos direitos individuais se pode esperar de uma Administração Pública que edita suas próprias normas jurídicas e julga soberanamente seus litígios com os administrados” (BINENBOJM, 2006, p. 12).

3.3 Administração pública e função administrativa: da dimensão do Estado Liberal à construção do paradigma social-solidário O Estado liberal apresenta-se como que marcado pela concepção individualista da sociedade, estando em primeiro lugar o indivíduo com seus interesses e necessidades, adquirindo a natureza de direitos inatos, e depois estaria a sociedade, contrapondo-se a esta ideia a teoria organicista, segundo a qual a sociedade estaria

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em primeiro lugar em relação aos indivíduos, considerando que o todo precede as partes. No entendimento de Norberto Bobbio, a concepção contratualista modifica a compreensão em relação ao pensamento político e a relação entre o indivíduo e a sociedade, pois “já não faz da sociedade um fato natural que existe independentemente da vontade dos indivíduos, senão um corpo artificial, criado pelos indivíduos a sua imagem e semelhança para a satisfação dos seus interesses e necessidades e o mais amplo exercício dos seus direitos” (BOBBIO, 1996, p. 16). O liberalismo, como modo de pré-compreensão do ente Estado, influenciou de forma significativa o Direito Administrativo a ser estruturado, considerando que dentro de suas teorizações são questionados os próprios limites do Poder Público, bem como suas funções.27 Com efeito, temos o Estado “Gendarme” ou o Estado Guarda-Noturno, caracterizado por não possuir profunda responsabilidade na promoção do bem comum, considerando que o estado ótimo para a sua realização seria a entrega dos indivíduos à sua plena liberdade, livres de estorvos de natureza estatal (BONAVIDES, 1996, p. 40). Caberia ao Estado a manutenção da ordem e da segurança, propiciando um ambiente tranquilo e seguro para os indivíduos desenvolverem suas iniciativas. Na hipótese de surgirem eventuais conflitos caberia ao Poder Público, por intermédio do aparelhamento burocrático e do juízo imparcial, dissolver tais embates, dentro de um conjunto de regras. O Estado, com efeito, teria funções de caráter negativo, devendo-se mencionar que a partir de 1.800 com o surgimento dos Novos Liberais, questionando o modelo individualista proposto, começa-se a discutir a inadequação desta forma de compreensão do ente público.28 Este período da administração pública liberal foi marcado pela tentativa de atribuir funções específicas para órgãos públicos próprios, dividindo-se a organização administrativa entre os níveis central e local. Portanto, como o movimento revolucionário tinha o objetivo de congregar o poder, estabelecendo formas racionais de sua utilização, não tardou em mais uma vez consolidar a ideia de um poder central, com considerável conjunto de prerrogativas, em detrimento dos poderes locais. É claro, o estabelecimento de um regime administrativo central, próprio e específico foi gestado de forma lenta, mas com o “aumento das funções do Estado e a implementação prática dos princípios da Revolução conduziu ao crescimento acentuado da máquina burocrática, que foi adquirindo uma identidade própria à medida que foi crescendo e o seu peso foi aumentado” (SOUSA, 1995, p. 174). Deste crescimento surgiu a necessidade de aumentar o número de funcionários e reforçar o modelo de organização hierárquica, inicialmente de origem militar. As diversas funções administrativas eram atribuídas a unidades burocráticas especializadas, sendo que o território era dividido em circunscrições uniformes, denominadas de províncias, departamentos, distritos, círculos ou freguesias como em Portugal.

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O século XX impôs uma atuação do Estado finalisticamente diferenciada em relação ao período anterior, com um conjunto de interrogações e perplexidades diversas. Muito embora não seja possível defender a tese de que no Estado Liberal o ente público estava completamente ausente da vida dos indivíduos, é imperioso reconhecer a mutação ocorrida no seu papel. O liberalismo, que tanto influenciou a estruturação simbólica do Estado Liberal, determinou como efeito deletério o extremado individualismo, exigindo-se, assim, uma atuação mais contundente por parte do Poder Público, especialmente por meio da atuação interventiva no domínio econômico, ingressando na esfera até então própria da iniciativa privada. Após a 1ª Guerra Mundial ocorreu a tendência de cada vez mais juridicizar a atuação do Estado, bem como a vida social, generalizando-se o constitucionalismo e positivando-se um catálogo de direitos humanos. No entanto, não houve apenas um processo de expansão da legislação, mas a institucionalização de uma categoria jurídica que irá desempenhar papel primordial como elemento capaz de propiciar a redução das desigualdades. São os direitos sociais, cujo início de implantação ocorreu com a Constituição Mexicana de 1917 e na República de Weimar com a Constituição de 1919. A ideia de Estado Social foi inserida na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha ao definir-se no seu artigo 20 como “Estado federal, democrático e social”, constando no artigo 20 a sua estruturação como um “Estado democrático e social de direito”. Muito embora não exista uniformidade sobre a conceituação dos chamados direitos sociais, Albrecht Weber refere que a menção desta expressão traduz o reconhecimento da ideia de solidariedade, justiça social, igualdade de fato e de complementariedade entre as liberdades individuais e suas condições sociais (WEBER, 1995, p. 681). Com efeito, a intervenção do ente público constituiu-se em exigência relativamente à regulação da questão social, e a atividade estatal passou a adquirir roupagem prestacional.29 Tal modelo pretendeu ultrapassar o liberalismo que na sua formulação clássica não propiciou os elementos capazes de resolver diversos problemas econômicos do proletariado, a grande maioria da população. A liberdade propugnada e institucionalizada dentro de uma forma de regulação estatal não solucionava as gravíssimas contradições sociais, em especial daqueles destituídos de propriedade. Um dos fatores determinantes da inserção na ordem jurídica de um instrumental voltado para a questão social foi a derrocada do voto censitário, pois com o sufrágio universal possibilitava-se o ingresso de uma classe na democracia política e a criação de uma legislação de compromisso. Nestes termos refere Paulo Bonavides, “aqui ocorre o momento decisivo, em que, abrindo mão compulsoriamente daquela franquia fundamental – da liberdade política como liberdade de classe –, que antes lhe afiançava o controle do Estado, a velha burguesia liberal

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reparte esse controle com as demais classes, notadamente a classe com a qual se achava envolvida num antagonismo de vida e morte” (BONAVIDES, 1996, p. 189). É difícil estabelecer, de forma exaustiva, as causas determinantes desta forma de manifestação do ente estatal, o novo modo-de-ser. O administrativista Juan Afonso Santamaria Pastor as enumera de forma resumida: a) as crises econômicas que teriam ocorrido desde a I Grande Guerra, encontrando-se com a grande depressão dos anos trinta e a crise energética dos anos setenta; b) as não menos constantes crises bélicas e que ocasionaram a direção centralizada dos recursos nacionais; c) a irrupção dos princípios democráticos, caracterizada pelo acesso de classes menos favorecidas ao exercício do poder político, ocasionando o que Giannini chamou de Estado pluriclasse e d) o aumento demográfico e o crescimento acelerado do fenômeno da urbanização, sendo determinante para que o Ocidente deixasse de ser uma civilização agrária para transformar-se em industrializada (SANTA MARIA PASTOR, 2000, p. 69-70). Assim como o liberalismo foi uma teorização que orientou a construção do modelo de Estado Liberal, o Estado Social, igualmente foi fruto da tentativa de institucionalização de um novo paradigma. No entendimento de José Afonso da Silva, esta concepção diferenciada de ente estatal é a forma de compatibilizar o capitalismo, como forma de produção, e a realização do bem-estar social, constituindo-se em verdadeira promessa nos regimes ocidentais com relação à definição de direitos econômicos e sociais (SILVA, 1995, p. 116-117). Vale referir que as teorizações responsáveis pela criação das condições de possibilidade para o surgimento deste tipo de Estado, foram construídas ao longo de mais de um século, desde o século XIX, quando há o fortalecimento dos movimentos sociais, até a segunda metade do século XX. Dentre tais construções teóricas, é imperioso referir a de Léon Duguit e que, juntamente com Maurice Hauriou, tentou combater as concepções individualistas e normativistas caracterizadoras do Estado de Direito. Como refere José Fernando de Castro Farias, “os enunciados de Duguit e de Hauriou tentaram construir critérios sociojurídicos para fundamentar o Estado de Solidariedade, no qual a subordinação dos atos dos governantes e da administração a um controle jurídico se baseia não mais na lógica subjetivista, mas na lógica do direito de solidariedade” (FARIAS, 1999, p. 41). Por certo, tais autores não desconsideravam a importância do surgimento do Estado de Direito, no entanto, era preciso localizá-lo como modelo estatal necessário para suplantar a antiga ordem absolutista. A paulatina construção do paradigma do Estado Social de Direito afeta diretamente a estrutura administrativa, especialmente com relação ao crescimento das

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unidades burocráticas do ente estatal, fenômeno detectável tanto no plano nacional como das localidades, havendo a multiplicação de organismos públicos e empresas estatais. A necessidade de políticas de intervenção na ordem econômica e social, com efeito, exigiu o deslocamento das demandas do legislativo para o executivo, constituindo-se este no centro desta forma de atuação estatal por intermédio da Administração Pública. Quando se fala em “Bem-Estar Social” é preciso compreender tal expressão relacionando-a com uma específica forma de atuação do Estado, exigindo, por sua vez, aparato administrativo e regime jurídico apropriado funcionalmente. A Administração Pública passa a lidar com a tarefa de correção dos efeitos disfuncionais de uma sociedade competitiva, constituindo-se tal mister ao mesmo tempo em exigência ética, mas também necessidade histórica, como bem refere Manuel García-Pelayo (GARCÍA-PEAYO, 1996, p. 15). O Estado que se vislumbrava tinha como objetivo a adaptação daquela forma tradicional burguesa – liberal-individualista – às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial com a sua gama de complexos problemas, mas, ao mesmo tempo, com variadas possibilidades técnicas, econômicas e organizativas. (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 18).30 Mas este aspecto organizacional é o resultado da mutação na relação entre o Estado e a Sociedade, considerando que no Estado do tipo liberal prevalece não apenas a diferenciação e sim a clara oposição. O liberalismo possui relação peculiar com o racionalismo da época, concebendo-se o Estado como organização racional orientada para determinados objetivos, construída primordialmente sobre relações de subordinação (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 21-22). A regulação jurídica desta dimensão liberal de Estado seria marcada fundamentalmente pelo conjunto de leis abstratas e sistematizadas, a fim de possibilitar a salvaguarda do ideal de separação de poderes. A sociedade, por sua vez, apresentava um conjunto de características naturais, sendo considerada como ordem espontânea e possuindo sua própria racionalidade. Não como algo planejado, previsto, mas imanente à sua forma organizacional. Com efeito, caberia ao Poder Público assumir a postura de não intervenção nesta “ordem natural das coisas”, possuindo como função primordial assegurar as condições mínimas para tal desenvolvimento. O Estado Social, no entanto, possui postulados diversos. A atuação estatal funcionaria como elemento de racionalização da vida em sociedade, pois caso ela fosse deixada para dirigir-se por meio de seus mecanismos autorreguladores prevaleceria a irracionalidade. O organismo estatal desempenharia importante tarefa, por intermédio especialmente de sua ordem administrativa, na correção dos

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“efeitos disfuncionais de um desenvolvimento econômico e social não controlado”, como expressa Manuel García-Pelayo (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 23). Estado e Sociedade não são considerados como duas instâncias separadas e autônomas e sim altamente inter-relacionadas, por meio de mecanismos complexos, podendo ser citada a realização de tarefas públicas por empresas com personalidade jurídica de direito privado ou mediante a celebração de contratos. O Welfare State possibilita, portanto, o surgimento da forma diferenciada de colocar o problema Estado-Sociedade, distanciando-se da postura liberal-individualista. Dentro deste novo modo-de-ser, Eduardo Garcia de Enterria menciona uma sentença do Tribunal Constitucional Espanhol, datada de 7 de fevereiro de 1984, retratando bem a necessidade da atuação mútua do Estado e da Sociedade: La consecución de los fines de interés general no es absorbida por el Estado, sino que se armoniza en una acción mutua Estado-sociedad, que difumina la dicotomía Derecho público-privado... El reconocimiento de los denominados derechos de carácter económico y social – reflejado en varios preceptos de la Constitución -, conduce a la intervención del Estado para hacerlos efectivos, a la vez que dota de contenido social al ejercicio de sus derechos por los ciudadanos – especialmente de los de contenido patrimonial como el de propriedad – y al cumplimiento de determinados deberes (GARCIA DE ENTERRÍA, 1998, p. 31).

A própria racionalidade sobre a qual é configurado o Estado Social é diversa daquela preponderante no período de maturação do Estado Liberal. Dentro do paradigma individualista o princípio da legalidade assumiu capital importância para estabelecer a regulação jurídica sobre os poderes absolutistas, que marcaram o antigo regime. Com efeito, haveria de ser entendida como normatividade geral, abstrata e válida para um número indefinido de casos e durante um tempo indeterminado. Segundo Manuel García Pelayo “la ley creaba un orden para la acción de otros, pero ella misma no era – normalmente – un instrumento de acción o intervención del Estado en el curso de los acontecimientos” (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 62). No Welfare State adota-se postura diferenciada com relação à lei, considerando que ela é utilizada não só para criar a ordem geral para a ação, senão também como instrumento de ação e, por consequência, específico e concreto, de acordo com a singularidade e com a temporalidade do caso a regular ou do objetivo a conseguir (GARCÍA-PELAYO, 1996, p. 63). Destarte, o conjunto de poderes administrativo vai ser estruturado por meio de uma razão instrumental, ou seja, a normatização da ação administrativa do ente público, crescentemente, há de ser concreta e finalística, permeada por elementos de ordem material, deixando de buscar aquela racional sistematização

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do modelo liberal-individualista. O Direito Administrativo do Estado Social adota critério diverso de temporalidade das regulações jurídicas, na medida em que os diversos institutos possuem caráter funcional, deverão adaptar-se às constantes mutações da ordem econômica e social, não havendo, possibilidade de ser construído um critério certo e permanente de racionalidade, pois não é algo permanentemente dado, senão construído, reproduzido ou transformado pela ação contínua (GARCÍA-PELAYO, p. 63). Portanto, a lógica de sistematização e de codificação que tanto marcou o período do Estado liberal, nesta fase, torna-se desacreditada. Certamente não desaparecem os códigos editados na época, mas, cada vez mais, constata-se a sua insuficiência paradigmática. O Direito do Estado Social, como bem alude Juan Ramón Capella, não é propriamente um direito codificado “es un derecho de colecciones legislativas, de recopilaciones, de prontuarios velozmente obsolescentes cada vez más parecidos a los nuevos productos de usar y tirar” (CAPELLA, 1997, p. 208). A construção do Direito Administrativo, no âmbito deste paradigma, não haveria de contar com um corpo de regras sistematizadas, codificadas, havendo, por vezes, a edição das chamadas leis-medidas, isto é, instrumentos capazes de possibilitar a atuação concreta e limitada do Estado, funcionalmente determinada para resolver situações específicas. Vale destacar também a postura de intervenção assumida pela Administração na Alemanha, começando após a Constituição de Weimar a instituição da chamada autorização para a celebração dos negócios jurídicos, cujo objetivo era possibilitar a participação do Estado na conformação de âmbitos sociais necessitados, com o intuito de garantir a integridade da ordem social. Por meio do Decreto contra o abuso de situações econômicas de poder, de 2 de novembro de 1923, o Estado submeteu ao seu influxo a conformação dos chamados trusts. A referida legislação criou instrumentos de inspeção muito eficazes por parte do Estado; como alude Ernest Forsthoff, o objetivo da regulação era a proteção da totalidade da economia e do bem comum, assegurando-se, assim, a liberdade econômica aos indivíduos isolados (FORSTHOFF, 1958, p. 104). No entanto, esta forma de atuação da Administração Pública não poderia ser confundida com a tradicional intervenção decorrente do exercício do poder de polícia. O administrativista alemão acima referido preleciona que o poder de polícia levava à imposição de determinados deveres por razões de segurança e ordem pública, enquanto as medidas contra o abuso do poder econômico caracterizavam intervenção na esfera do Direito Privado, isto é, nas relações jurídicas dos cidadãos entre si, e tinham o intento de manter coativamente a economia autônoma (FORS-

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THOFF, 1958, p. 108). Esta multiplicidade de atuação do Estado, a fim de garantir o Daseinvorsorge31 é determinante para o crescimento administrativo do ente público, surgindo paralelamente um conjunto de técnicas orgânicas. Ademais, como lembra António Francisco de Sousa, após a II Guerra Mundial, especialmente na Europa, assistiu-se uma reversão do fenômeno de concentração administrativa, nota característica do período napoleônico, como forma de lutar contra a excessiva burocratização da Administração (SOUSA, 1995, p. 404).32 Mas, não bastava apenas a descentralização, na medida em que o Estado necessitava ter ingerência na ordem econômica. No plano da Administração Pública, o Estado começou a utilizar-se da figura dos concessionários, por meio dos quais poderia o Poder Público cumprir determinadas atividades próprias da iniciativa privada, mas sob seu controle. Os institutos do Direito Administrativo, no entanto, eram marcados ainda por um formalismo excessivo, havendo a preponderância do aspecto da autoridade, dificultando a utilização com sucesso pleno do regime de concessão, por exemplo. Como alude Maria João Estorninho, “uma das consequências fundamentais deste processo de alargamento das tarefas da Administração Pública, no Estado Social, é o facto de ela passar a utilizar o meio de atuação mais típico do Direito Privado, o contrato” (ESTORNINHO, 1996, p. 42). Assim, também foi necessário recorrer às chamadas empresas estatais, entidades dotadas de personalidade jurídica própria, com a participação no capital total ou majoritariamente e submetidas a regras de direito privado. Aqui reside um dos elementos paradoxais deste novo modo-de-ser da Administração Pública, pois fica evidente a necessidade de superar o modelo de administração autoritária para a chamada, “Administração soberana consensual”, isto é, “uma forma de administração nova, negociada ou contratual, em que o acordo vem substituir os tradicionais atos unilaterais da autoridade, aparecendo em relação a eles como uma verdadeira alternativa e em que os administrados deixam de ser meros destinatários passivos das decisões unilaterais da Administração Pública” (ESTORNINHO, 1996, p. 44).

4. O direito administrativo como conceito hermenêutico: democracia e cidadania no constitucionalismo contemporâneo O questionamento da expressão Estado Democrático de Direito, invariavelmente, remete para a própria ideia de democracia. Não há unanimidade com relação ao significado desta última e o problema de suas características é tão antigo quanto a reflexão sobre a política, passando por uma reformulação em todas as

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épocas, como bem coloca Norberto Bobbio (BOBBIO, 1997, p. 320). Em Platão, na República, são descritas cinco formas de Governo, a aristocracia, timocracia, oligarquia, “democracia” e tirania, aparecendo como uma boa forma apenas a aristocracia. Assim, durante um período considerável, democracia foi tida como palavra negativa, utilizando-se como significado de governo ótimo a expressão República. Por certo não seria cabível aqui a problematização do processo histórico de construção deste conceito, considerando que o objeto destas indagações é outro. As referências acima aludidas apenas objetivam demonstrar o caráter de polissemia adquirido pela expressão de certo modo um desgaste semântico. Com efeito, igual incerteza política e jurídica está por permear a concepção de Estado Democrático de Direito. Para os fins deste breve estudo, é possível especificar a passagem do Estado Social para esta concepção que, vale dizer, não importa em ruptura abrupta ou estrutural do ente público, mas, muito mais, nova forma de compreensão do fenômeno Estado-Sociedade. O final da década de 60 e início da década de 70 são marcados por um campo de incertezas políticas; as crises econômicas que começam a assolar o Estado Social levam ao questionamento de outras fórmulas de atuação do Estado. Tal processo é ainda hoje mais debatido, a partir dos recentes acontecimentos envolvendo as administrações da Europa. Ademais, já naquele período a sociedade desenvolve-se de modo crescentemente complexo, exigindo a modificação nos processos de regulação social e jurídica, podendo-se salientar a consolidação dos chamados direitos fundamentais de terceira geração, os interesses ou direitos difusos, o meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico e cultural, etc., como novos direitos que necessitam de uma forma de organização estatal diferenciada para serem atendidos. O Estado Democrático de Direito busca, ainda, agregar alguns elementos ao conceito de Estado de Direito, com o objetivo de oportunizar o aprofundamento da questão da igualdade. No entendimento de José Afonso da Silva, “o Estado Democrático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo” (SILVA, 1999, p. 116). Assim, se no Estado Social um dos objetivos primordiais é melhorar as condições sociais, quer dizer, desenvolver a procura existencial, no Estado Democrático de Direito há um plus em relação ao papel do ente público, pois deverá desempenhar papel transformador da realidade, incidindo este novo ethos sobre a atividade da Administração Pública. Os diversos institutos administrativos do poder público devem ser direcionados para propiciar o desenvolvimento dos cidadãos nos planos

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social, econômico e cultural. As características deste tipo de Estado foram muito bem explicitadas por Gomes Canotilho e Vital Moreira (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 83): a) Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; b) Organização Democrática da Sociedade; c) Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; d) Justiça Social com mecanismos corretivos das desigualdades; e) Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como articulação de uma sociedade justa; f) Divisão de Poderes ou Funções; g) Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; h) Segurança e Certezas Jurídicas. A Constituição ocupa papel central no Estado Democrático de Direito, sendo mesmo característica do Estado de Direito, pois como menciona Gomes Canotilho, o Estado de Direito é um Estado Constitucional e pressupõe a existência de uma constituição como “ordem jurídico-normativa fundamental” vinculando os poderes públicos, bem como dotada de caráter de supremacia (CANOTILHO, 1993, p. 360). Estabelece-se, com efeito, a vinculação ao conteúdo formal e material do texto constitucional por parte do legislador: “A constituição é, além disso, um parâmetro material intrínseco dos atos legislativos, motivo pelo qual só serão válidas as leis materialmente conformes à constituição” (CANOTILHO, 1993, p. 360). Não apenas o legislador está sujeito à normatividade do texto constitucional, pois todos os demais atos do Estado devem estar em conformidade com a Constituição, prevalecendo o que se convencionou chamar de força normativa da Constituição, como aludido pelo constitucionalista português: o princípio da constitucionalidade postulará a força normativa da constituição contra a dissolução político-jurídica eventualmente resultante: (1) da pretensão de prevalência de ‘fundamentos políticos’, de superiores interesses da nação, da ‘soberania da nação’ sobre a normatividade jurídico-constitucional; (2) da pretensão de, através do apelo ao ‘direito’ ou à ‘idéia de direito’, querer desviar a constituição da sua função normativa e substituir-lhe uma superlegalidade ou legalidade de duplo grau, ancorada em ‘valores’ ou princípios transcendentes (CANOTILHO, 1993, p. 362).33

Vale mencionar que a Constituição como parâmetro de normatividade no

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Estado Democrático de Direito apresenta notas diferenciais em relação ao paradigma clássico do Estado Liberal, como, por exemplo, não está estruturada pela racionalidade positivista que vislumbra o Direito dentro de uma pureza axiológica, impedindo a visualização dos conflitos políticos e sociais nas questões atinentes à inconstitucionalidade. A observação de Eduardo Garcia de Enterria merece destaque: “Es cierto que, como indicó Triepel, en su conocido discurso rectoral, el Derecho público no es actuable sin consideración a la política; conceptos como Estado de Derecho, Estado Social, libertad, igualdad, dignidad humana, etc., no pueden interpretarse sin recurrir a las ideias o convicciones sociales y políticas de la comunidad” (ENTERRÍA, 1991, p. 182). Outro fator a ser considerado diz respeito ao conjunto normativo dos textos constitucionais contemporâneos, pois são utilizadas fórmulas dotadas de grande amplitude, possuindo, assim, caráter deliberadamente aberto, estruturando-se com princípios jurídicos. A aplicação do texto constitucional irá exigir a tarefa interpretativa fulcrada na amplitude significativa, ultrapassando-se o postulado liberal de meramente pronunciar as palavras da lei. O Direito Administrativo no Estado Democrático de Direito, no âmbito da constitucionalidade como característica primordial, será concebido como regulação jurídica construída a partir dos parâmetros da Constituição. Aliás, a crescente “constitucionalização da Administração Pública” é fenômeno contemporâneo e começou após a I Guerra Mundial, cristalizando-se nas constituições Italiana de 1947, Portuguesa de 1976 e Espanhola de 1978. Pode-se dizer, com efeito, na órbita do Estado Constitucional, busca-se a constante submissão da Administração Pública ao Direito como um todo, além de uma atividade de controle jurisdicional, pretendendo-se eliminar decisões arbitrárias. A Constituição, como texto normativo de parâmetro, possibilita “oferecer uma imagem unitária dos processos jurídicos que asseguram o seu desenvolvimento conforme um conjunto de valores e princípios vinculantes a todos os poderes do Estado e a redução ou correção das práticas desviantes que se puderem produzir” (PEÑA FREIRE, 1997, p. 274). O Direito Administrativo, portanto, haverá de estruturar-se a partir dos elementos de validade oriundos do texto constitucional, texto fundamental para a retirada das possibilidades de atuação administrativa, seja no uso de determinadas prerrogativas ou nas limitações impostas à atuação do Poder Público. A Administração Pública estará submetida, inicialmente, à dimensão de sentido do Estado retratado no texto constitucional. A constitucionalização, portanto, deve ser compreendida como constante transformação do fenômeno jurídico, ocasionando a impregnação total pelas

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normas constitucionais, conforme destaca Ricardo Gaustini não como ato isolado (GUASTINI, 2003, p. 49). Obviamente, este não é o espaço apropriado para debater as profundas mudanças de paradigmas ocasionadas pela constitucionalização do Direito Administrativo, sendo imperioso referir a observação de Harmut Maurer sobre as relações entre Direito Administrativo e a Constituição: “Ela conduziu a transformações profundas, à recusa de concepções jurídicas tradicionais e ao reconhecimento de novos institutos jurídicos” (MAURER, 2006, p. 21),34 salientando, inclusive, o papel importante que a doutrina e jurisprudência assumiram, ora com postura dirigente e, até mesmo, por vezes, de ruptura decisiva. Como bem destacam Hans J. Wolf, Otto Bachof e Rolf Stober, a Constituição tem que ser capaz de regular a estrutura jurídica fundamental e fixar os seus limites no sentido de um genetic code (MAURER, 2006, p. 193). De outra banda, a permanente dependência constitucional da Administração surge no fato de toda a decisão administrativa ser potencialmente uma decisão constitucional. Contributo importante para a construção do Direito Administrativo constitucionalizado, dentre outros importantes autores nacionais, é o trabalho desenvolvido por Juarez Freitas, ao apontar a relevância do controle das práticas administrativas a partir dos objetivos fundamentais da Constituição, previstos no artigo 3º da Constituição Federal (FREITAS, 2009, p. 30) e do direito fundamental à boa administração pública. Efetivamente, o horizonte de sentido da tradição dos direitos fundamentais é crucial no curso do processo de democratização substancial das relações entre cidadãos e Administração Pública, pois os agentes públicos devem adotar a postura de “defesa concreta da constitucionalidade”, como menciona o autor acima aludido. De qualquer modo, é crucial não olvidar que o fenômeno do Constitucionalismo foi determinante para retomar o debate sobre os efeitos da constitucionalização da Administração Pública, fruto também da inserção de princípios relacionados com a atividade administrativa em diversos textos constitucionais, inclusive falando-se em “pós-positivismo”, ou seja, concepção dotada de uma positividade mais aberta e axiológica, calcada nas grandes constituições do século XX.35 Aliás, algumas críticas têm sido direcionadas em relação a estas concepções teóricas, no modo como recepcionadas pela doutrina e jurisprudência brasileiras, muito mais voltadas para, ao reconhecer a indeterminação do Direito, atribuir o caráter discricionário às decisões judiciais (STRECK, 2012a, p. 58-71). Igual crítica é produzida no Brasil, relativamente à dogmática distinção entre atos administrativos vinculados e discricionários, como bem alude Krell (2013, p. 19). Conforme já salientado em outra oportunidade (OHLWEILER, 2004, p. 285-

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328), o advento do constitucionalismo representou nova forma de viver o Direito, inclusive o Direito Administrativo, compreendendo-o em bases marcadamente democráticas, pois se trata de “teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade” (CANOTILHO, 1999, p. 47). Mais recentemente tem-se falado no chamado neoconstitucionalismo, responsável por mudanças no paradigma do Estado Constitucional, destacando-se dentre tais alterações o modo de vislumbrar o texto constitucional, não mais como mero documento de ordem política, mas dotado de normatividade, assumindo crucial condição normativa de garantia dos cidadãos. Destarte, considerando o conteúdo com alto grau de elementos principiológicos, a Constituição impõe repensar o modo de fazer o Direito Administrativo, evidenciado as insuficiências da vetusta concepção positivista fundada no dedutivismo.36 Esta expressão, neoconstitucionalismo, tem gerado diversos debates, não apenas por suas ambiguidades, mas por certos exageros e posturas que contribuem para um voluntarismo no processo decisório, como bem destaca Lenio Luiz Streck, embora reconheça a importância inicial do movimento para marcar a necessidade de ultrapassar o vetusto constitucionalismo de feições liberais,37 mas preferindo utilizar a expressão Constitucionalismo Contemporâneo: Assim, é preferível chamar o constitucionalismo instituído a partir do segundo pós-guerra de Constitucionalismo Contemporâneo(com iniciais maiúsculas), para evitar os mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo. Na verdade, refiro-me aos modelos constitucionais que implementam, de fato, o plus normativo democrático (STRECK, 2012b, p. 61).

De qualquer sorte, a concepção do constitucionalismo, como alude o autor, deve pautar-se pelo debate sobre a teoria do Estado e as consequências do Estado Democrático de Direito, bem como pela necessidade de repensar a teoria das fontes, a teoria da norma e a teoria da interpretação.38 Tais questões são importantes para problematizar o conceito do Direito Administrativo, considerando não apenas sua dimensão normativa como fonte primordial do Direito, as questões relacionadas com a localização dos princípios constitucionais da Administração Pública no âmbito da teoria da norma jurídica, bem como sua aplicação/compreensão. Como conceito hermenêutico, portanto, o Direito Administrativo é compreendido como prática social, dotada de um conjunto de objetivos e princípios que lhe conferem sentido, não um sentido abstrato, obtido por meio de conceitos semânticos, mas um propósito construído no âmbito das relações intersubjetivas e projetado no horizonte da história institucional da comunidade política a que per-

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tence. Este propósito, compreendido hermeneuticamente, é condição de possibilidade para a aplicação de regras e resolução de casos nos quais figurem os cidadãos e a Administração Pública. Quando Ronald Dworkin examina o significado da interpretação construtiva, refere: Em linhas gerais a interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou gênero aos quais se imagina que pertençam. Dai não se segue, mesmo depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem (DWORKIN, 1999, p. 63-64).

A partir desta concepção, três questões importantes devem ser destacadas e merecem estudo próprio: (a) o Direito Administrativo não pode ser vislumbrado como simples questão de fato; (b) como prática social possui um propósito construído intersubjetivamente ao longo de sua história institucional e (c) o intérprete/ aplicador não possui liberdade para atribuir qualquer sentido ao Direito Administrativo e os respectivos institutos que lhe são próprios. Como o próprio Dworkin aduz, a historicidade exerce uma espécie de coerção sobre os intérpretes. Tratandose de um conceito interpretativo, é certo que possui importante dimensão social, no entanto, como menciona o autor, “sua complexidade, função e consequências dependem de uma característica especial de sua estrutura. Ao contrário de muitos outros fenômenos sociais, a prática do direito é argumentativa” (DWORKIN, 1999, p. 40).

5. Conclusão No entendimento de Rüdiger Safranski, Heidegger possuía verdadeira paixão por indagar, mergulhado em uma espécie de devoção do pensar, pois abria novos horizontes, assumindo especial força a pergunta sobre a qual se debruçou uma vida inteira: a pergunta pelo ser (SAFRANSKI, 2000, p. 496).39 Este breve estudo mirou este olhar questionador, ou seja, tratou de compreender o Direito Administrativo deslocando-o para este aberto da historicidade, para a clareira propiciada pelo meditar constitucionalizante. Daí a importância da hermenêutica, pois cria as condições de possibilidade para um conjunto de indagações originárias sobre este campo do Direito. Parte-se do pressuposto segundo o qual interpretar não depende do método, mas do modo-de-ser no mundo. Em tal caminho filosofante, a historicidade do Direito Administrativo foi de grande relevância, levando a presente investigação para as vivências jurídico-administrativas, assumindo-se que tais vivências não se constituem em meros objetos, prontos e à espera para serem acoplados ao presente,

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mas devem ser problematizadas como propósitos construídos intersubjetivamente por uma comunidade política, relativamente ao modo-de-ser do administrar a coisa pública e reveladores da própria faticidade da existência humana. O Direito Administrativo consolidou-se a partir e no modelo de Estado Liberal, marcado pelo ideal revolucionário francês de materializar nas ciências a verdadeira razão humana, caracterizando-se pela exigência de propiciar aos indivíduos o exercício pleno de suas liberdades, livres da ingerência estatal, apresentando-se relevante, por outro lado, a manutenção da ordem e da segurança. Digno de nota como modo-de-ser racionalizador, afigura-se o princípio da separação de poderes, bem como a ideia de legalidade tão importante para resguardar os ideais burgueses preponderantes. O Estado Democrático de Direito, desta forma, funcionou como síntese autêntica entre as dimensões de Estado Liberal e Social, vocacionando-se para o desenvolvimento pleno dos cidadãos nos planos social, econômico e cultural, apresentando também como característica primordial a constitucionalidade. Com efeito, é ultrapassado o caráter autoritário ainda manifesto na dimensão do Estado Social, corolário de sua ação interventiva, pois na esfera do paradigma democrático a transformação do status quo desvela-se com a participação dos cidadãos. Outrossim, assume especial relevância a normatividade dos direitos fundamentais, criando as condições de possibilidade para controlar a atuação mais substancial da Administração Pública e alterar profundamente os parâmetros de legalidade, agora matizados por toda a gama de princípio constitucionais. Pode-se dizer que a linguagem constitucionalizante é o locus privilegiado para o acontecimento do sentido (propósito construído pela história institucional) do Direito Administrativo. Lançar-se neste caminho questionador exige desvelar a crise do Direito Administrativo, como crise, a partir de uma tríplice análise, nos termos do pensamento de Martin Heidegger (1999, p. 42): (a) a crise na relação dos operadores jurídicos com o Direito Administrativo, sendo imperioso dar-se conta de que o modo-de-ser das ciências somente pode ser compreendido em conexão com a existência humana. Por tal razão, é importante a postura filosofante que prima pela interrogação dos conceitos interpretativos, presente no labor dos operadores do Direito; (b) a crise do Direito Administrativo no tocante a sua posição no conjunto de nossa existência histórico-social. Trata-se de meditar sobre a própria função do Direito Administrativo e a dogmatização dos seus institutos, além do debate sobreas condições de possibilidade para materializar o horizonte de sentido do Constitucionalismo Contemporâneo. Por fim (c) a crise na estrutura essencial interna do Direito Administrativo mesmo. Esta crise manifesta-se como crise de fundamentos, pois é crucial questionar as próprias bases institucionalizadas do Direito Administrativo.

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Finalmente, uma última palavra. Por certo, as indagações aqui lançadas destinam-se a provocar o salutar debate sobre Direito Administrativo. De qualquer sorte, trata-se de apenas iniciar uma caminhada, buscando contribuir para construir possibilidades. Martin Heidegger, em seu escrito Meu Caminho para a Fenomenologia interrogou-se sobre o papel da fenomenologia naquela época, julgada como algo do passado, assim respondendo tal questão: a Fenomenologia não é nenhum movimento, naquilo que lhe é mais próprio. Ela é a possibilidade do pensamento – que periodicamente se transforma e somente assim permanece – de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a Fenomenologia for assim compreendida e guardada, então pode desaparecer como expressão, para dar lugar à questão do pensamento, cuja manifestação permanece um mistério. O sentido da última frase já vem expresso em Ser e Tempo (1927), pág. 38: ‘O essencial para ela (a Fenomenologia) não consiste em realizar-se como ‘movimento’ filosófico. Acima da atualidade está a possibilidade. Compreender a Fenomenologia quer unicamente dizer: capta-la como possibilidade (HEIDEGGER, 1979, p. 301-302).

Que as interrogações lançadas ao longo deste estudo, igualmente, possam ser captadas como possibilidade.

Notas 1

Sobre a questão ver Streck e Morais (2000, p. 24-25)

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A expressão Dasein também é utilizada como “pre-sença”, em que pese ser comum a tradução para línguas latinas a expressão “ser-aí”, (LEÃO, 1995, p. 309). Segundo esclarece “pré-sença” não é sinônimo de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação natural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem constrói seu modo de ser, a sua existência, a sua história, etc. 3

Portanto, esta concepção de homem e de mundo, por óbvio, influenciará a estruturação do Direito Administrativo, a organização do Estado e o exercício dos poderes públicos. Haverá uma crescente tendência cientificista de racionalização, buscando, assim, sistematizar em detalhes os institutos jurídico-administrativos. Este ideal, no entanto, até hoje parece dominar as práticas dogmatistas do Direito Administrativo. 4

O autor refere que um dos aspectos criticáveis da razão moderna reside exatamente nesta sua tendência para o abstrato, o que não implica em construir uma análise pobre, pelo contrário. O produto desta forma de pensar durante o período renascentista foi muito rico. Faz-se mister salientar, no entanto, a inadequação deste modo de pensar, em

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especial, para o mundo atual, cheio de complexidades, na medida em que a generalidade ocasiona uma miopia para as especificidades. O específico, o particular, não pode possuir a pecha de irrelevante e que não deve ser considerado em uma análise científica. Na Ciência Jurídica, em especial no Direito Administrativo pós-revolução francesa, conforme será examinado posteriormente, está presente esta marca. 5

Deve ser salientado, já a partir do século XV, mesmo que de forma incipiente, começa a surgir uma construção doutrinária do Direito Público, como decorrência dos conflitos políticos da época e que mais consistiam em defesas de uma ou outra parte, sendo que António Francisco de Sousa aduz que a divulgação da chamada jurisprudência dogmático-sistematizadora, corrente surgida no século XVI, colaborou para o surgimento desta disciplina. Constituía-se em continuação dos postulados da escola humanista, com o objetivo de proceder a elaboração científica e sistemática da matéria legal, levando, por exemplo, a discussão da clássica divisão direito público e direito privado (SOUSA, 1995, p. 60). 6

Quando se fala em dogmática jurídica, é preciso compreender uma especial forma de teorizar o Direito, com base em determinados pressupostos. Neste sentido, vale a referência de Enrique Zuleta Puceiro: “A dogmática é vista assim como um saber esencialmente descritivo, baseado em um conjunto de procedimentos abstratos, capazes de obter, a partir dos materiais do direito positivo, uma rede de instituições que, reagrupadas e ordenadas segundo criterios de coerencia interna, constituem-se em sistema” (PUCEIRO, 1981, p. 11). No entendimento do autor, considerando a expressão “dogmática” como um conceito histórico, suscetível a um conjunto de variantes sociais, políticas e ideológicas, não se pode expressá-la de um modo universal, como se pudesse ser caracterizada em qualquer época da história. A dogmática é uma forma de ver o Direito dentro de um determinado momento histórico, o que impede a sua compreensão como um corpo doutrinário homogêneo. O paradigma dogmático para Enrique Zuleta Puceiro apresenta os seguintes pressupostos de base: a) a consolidação do conceito moderno de ciência, orientado nem tanto para a verdade ou falsidade de suas conclusões ou resultados como ao caráter sistemático dos mesmos; b) a historificação do objeto do saber, através de uma identificação dos conceitos de direito e lei positiva; c) o abandono da teoria do direito natural, entendida como ontologia social subjacente à análise científica; d) a substituição de uma lógica de problemas pelos métodos da lógica formal e d) a definitiva separação entre teoria e praxis e a afirmação do saber jurídico como saber essencialmente teórico, presidido por uma atitude axiologicamente neutral e tendencialmente descritiva (PUCEIRO, 1981, p. 15-16). Com efeito, dentro de tais pressupostos, o pensamento dogmático teria dois objetivos básicos: 1º) reduzir como objeto de sua análise as normas positivas de origem estatal e 2º) a construção científica de um sistema conceitual capaz de dar razão rigorosa à totalidade da experiência jurídica, elaborado a partir do material oferecido pelas regras positivas (PUCEIRO, 1981, p. 18). 7

“Constituído por princípios universais sobre as relações humanas, enquanto emanações de um tipo abstrato de Homem, o direito natural racionalista, aliado à soberania nacional, é, em grande medida responsável pela uniformidade da onda política revo-

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lucionária que, sobrepondo-se às fronteiras dos diferentes Estados, une os povos num desejo comum de liberdade e igualdade – a concepção liberal repousando sobre a defesa da liberdade, junta-se à concepção democrática apoiada na soberania nacional” (FERREIRA PINTO DIAS GARCIA, 1994, p. 264). 8

O autor menciona que as tentativas de aprofundamento epistemológico nesta época estavam impregnadas pela fé absoluta na ordem matemática do conhecer. A verdade, portanto, seria um valor puramente lógico, constituindo-se na mesma coisa que proposição verdadeira. Vale aqui, por exemplo, referir o pensamento de Thomas Hobbes, para quem a razão seria, por si mesma, a razão exata, como a aritmética é uma arte certa e infalível.

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Na base desta forma de pensamento é possível identificar algumas formulações teóricas típicas do Estado Moderno. Por exemplo, para Thomas Hobbes, o autor que rompe definitivamente com o método aristotélico, a lei seria um mandato que expressa a vontade do soberano e recebe a sua autoridade exclusivamente do fato de representar a própria vontade do soberano. Estabelece-se a personificação da ideia do legislador racional, o que possibilita defender a noção de coerência sistemática da lei. Portanto, o Estado seria a expressão absoluta da razão, não podendo surgir facilmente uma contradição nas leis e, mesmo quando tal ocorresse, a mesma razão seria capaz, por meio de interpretação, de eliminar tal incoerência (CALVO GARCIA, 1994, p. 45). 10

Dentro da concepção racionalista são fundamentais os seguintes princípios orientadores: a) o mundo constitui-se em um sistema ordenado, regido por leis universais e necessárias; b) o homem é um ser racional, dotado, de capacidade para compreender tal legislação objetiva e c) a ciência consiste no descobrimento e formalização de ditas leis, por meio de proposições universais dotadas de idêntica necessariedade e universalidade que seu objeto (PUCEIRO, 1981, p. 24). 11

O método lógico-dedutivo, que posteriormente será fundamental para o positivismo jurídico, apresenta-se como estruturante da dogmática jurídica, capaz de conferir segurança ao sistema jurídico, acomodando a nova ideologia liberal relativamente às forças do mercado. 12

É importante salientar que o critério do serviço público foi de grande importância para o desenvolvimento do Direito Administrativo em França, considerando a existência do Conselho de Estado, órgão encarregado de dirimir os conflitos entre cidadãos e a Administração Pública. Com efeito, determinar a competência do Conselho de Estado ou dos órgãos do Poder Judiciário, incumbidos de solver lides privadas, seria crucial. Como o Brasil não adota o sistema de justiça administrativa ou do contencioso administrativo, este debate não possui similar repercussão. 13

Conforme Fernando Garrido Falla (1994, p. 114), “definimos el Derecho administrativo como aquella parte del Derecho público que regula la organización y el funcionamiento del Poder ejecutivo y sus relaciones con los administrados, así como la función administrativa de los diversos Poderes y Organos constitucionales del Estado”.

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No âmbito da doutrina pátria, Hely Lopes Meirelles (1999, p. 29) define o Direito Administrativo como um “conjunto harmônico de princípios que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado”. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2012, p. 48), é “o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública”. No entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 29), “o direito administrativo é o ramo do direito público que disciplina a função administrativa, bem como pessoas e os órgãos que a desempenhem”.

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A chamada Teoria dos Indícios Formais é fundamental para melhor compreender as condições de possibilidade de ultrapassar um modo de pensar metafísico, formalista e objetificador, ou seja, o pensamento que tudo quer abarcar. Refere expressamente Ernildo Stein: “Onde temos os indícios formais não temos o todo da coisa, temos os elementos formais que remetem a algo que pode estar disperso na condição humana. Dela apanhamos aspectos limitados, mas não o todo da condição humana. Como nunca conseguimos completar a exposição dos indícios formais, nunca acabamos a analítica existencial. Ela é a caminho, sempre um processo em formação” (STEIN, 2002, p. 166).

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O tema da Teoria da Decisão Jurídica tem sido desenvolvido de forma pioneira por Lenio Luiz Streck, relativamente à decisão judicial, na qual o autor refere a importância de desenvolver um conjunto mínimo de princípios conformadores de um agir concretizador da Constituição (STRECK, 2013, p. 329-330). Trata-se de questão crucial para o Direito Administrativo, pois no âmbito da concepção hermenêutica, é traduzido como agir concretizador da Constituição, relativamente aos objetivos de ações administrativas. Para o autor há cinco princípios no conjunto de uma Teoria da Decisão Judicial: (a) preservar a autonomia do direito; (b) controle hermenêutico da interpretação constitucional; (c) o efetivo respeito à integridade e à coerência do direito; (d) o dever fundamental de justificar as decisões ou de como motivação não é igual à justificação e (e) o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada (STRECK, 2013, p. 330-348).

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A importante imbricação entre as concepções filosóficas de Hans-Georg Gadamer e Ronald Dworkin tem sido realizada por Lenio Luiz Streck, com o propósito de resgatar o que o autor denomina de mundo prático do direito: “Resgatar o mundo pratico do direito e no direito significa colocar a interpretação no centro da problemática da aplicação jurídica, explorar o ‘elemento hermenêutico’ da experiência jurídica e enfrentar aquilo que o positivismo desconsiderou: o espaço da discricionariedade do juiz e o que isso representa na confrontação com o direito produzido democraticamente” (STRECK, 2012, p. 46).

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A consciência histórica efeitual desempenha importante papel no pensamento de Gadamer, propiciando o dar-se conta da história não apenas como instância de sentidos passados, previamente dados, mas como condição produtiva do ato de entender e guardião do Ser, conforme refere Custódio Luís S. de Almeida: “Para ele, a história não é um

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depósito de acontecimentos passados, completados e canonizados e, consequentemente, não há sentido autêntico já dado de uma vez para sempre, que precise ser passivamente descoberto. Pelo contrário, a consciência histórica é a dimensão sempre crítica da hermenêutica, que entende a história como processo contínuo e sempre influente, que jamais se cristaliza num passado distante e fechado. A consciência histórica é guardião do Ser que sempre precisa ser compreendido; nela se apreende a própria consciência da finitude” (ALMEIDA, 2002, p. 276). Partindo-se de tal afirmação, há uma nítida influência de Heidegger, que tantas vezes afirmou o caráter de finitude da compreensão. Quando se fala em consciência histórica não se pode adotar a posição objetivista ou coisificadora, pretendendo reduzi-la a algo a ser apreendido; a história é um todo a ser renovado em cada momento do existir do Dasein, um feixe de sentidos que se deu, que possibilita a compreensão no presente e continuará sua marcha temporal no rio de sentido que é a história. 19

A expressão história efeitual não permite definições breves, mas Gadamer evidencia os seus elementos estruturais: conhecimento da situação hermenêutica especial e do horizonte que a caracteriza; relação dialógica entre intérprete e texto; dialética entre pergunta e resposta e abertura à tradição (BLEICHER, 1992, p. 157). 20

A experiência de Gadamer, é essencial para vislumbrar o caráter de finitude do homem e relaciona-se com a teorização heideggeriana de temporalidade do Dasein, pois a temporalidade é o modo de ser do Dasein e a compreensão não pode estar descolada do mundo enquanto possibilidade de experiências. Ter a dimensão da experiência significa também ter mundo. Aliás, as concepções objetificantes e dogmáticas, como não possuem no seu campo de visão a experiência, levam a uma perda de mundo, isto é, como o processo de compreensão é ditado por uma instância abstrata e metafísica, um critério universal, perde-se a condição-de-ser-no-mundo do conhecimento. A historicidade gadameriana reside em um aspecto primordial do homem, que é o fato de estar influenciado pela história como um acontecer. A história é essencialmente experiência. Portanto, conforme será abordado, não há como problematizar o conceito de Direito Administrativo sem refletir sobre a experiência. 21

“La verdad de la experiencia contiene siempre la referencia a nuevas experiencias. En este sentido la persona a la que llamamos experimentada no es sólo alguien que se há hecho el que es a través de experiencias, sino también que está abierto a nuevas experiencias. La consumación de su experiencia, el ser consumado de aquél a quien llamamos experimentado, no consiste en ser alguien que lo sabe ya todo, y que de todo sabe más que nadie. Por el contrario, el hombre experimentado es siempre el más radicalmente no dogmático, que precisamente porque há hecho tantas experiencias y há aprendido de tanta experiencia está particularmente capacitado para volver a hacer experiencias y aprender de ellas” (GADAMER, 1993, p. 431-432). 22

O administrativista Eduado Garcia de Enterría possui interessante estudo no qual assumi a posição de que a Revolução Francesa teria sido o marco divisor, responsável até mesmo pelo surgimento do Direito Público como um todo (ENTERRÍA, 1995). A seguinte passagem é marcante da posição do autor, tomando o movimento revolucio-

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nário como verdadeiro ato fundador de um novo discurso: “La Revolución Francesa há aportado a la historia de la cultura occidental en el terreno del lenguaje jurídico algo mucho más sustancial que un repertorio léxico determinado, que haya que enumerar analíticamente; há aportado un discurso enteramente nuevo para explicar las relaciones entre los hombres y su organización social y política como material del Derecho, discurso que expresa un sistema conceptual original a cuyo servicio há aparecido y se há desarollado a lo largo de dos siglos todo un ‘universo léxico’ complejo y nutrido absolutamente novedoso, que há cortado como un tajo la tradicón histórica” (ENTERRÍA, 1995, p. 37). Portanto, dentro desta concepção, a Revolução Francesa representou novo momento de nomeação das coisas jurídicas, oferecendo um modelo diferente de relação entre os homens, fundando uma nova linguagem e uma nova sociedade, necessitando para tal mister, é claro, de um diferenciado campo linguístico simbólico. A implantação dos princípios revolucionários necessitavam substituir os do antigo regime, na medida em que para a classe burguesa era imperioso um campo de poder a fim de consolidar a liberdade e a igualdade tal como tinham concebido. Não se pode cair no exagero extremado de que a Revolução Francesa teve por objetivo sincero exercer o poder em nome do povo, como um todo, considerando, como já referido, que o acesso democrático era restrito a alguns, obviamente, proprietários. 23

“A garantia jurisdicional nos conflitos entre a Administração e os cidadãos estava declarada na lei. No entanto, era exercida não por tribunais imparciais e independentes, mas por tribunais cujos membros eram funcionários públicos, estavam sujeitos à disciplina da função pública e eram livremente nomeados e destituídos. A Administração era pois juiz em causa própria” (SOUSA, 1995, p. 190).

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“Outrora no tempo em que tínhamos assembleias políticas na França, ouvi um orador falar na centralização administrativa, ‘esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja.’ Admito que a centralização é uma bela coisa, consinto que a Europa nos inveje, mas sustento que não é uma conquista da Revolução. É ao contrário, uma conquista no antigo regime, aliás a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixar-se no novo estado social criado por esta revolução” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 77).

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Sobre a questão da tutela administrativa sobre os cidadãos, menciona o autor: “No antigo regime, como hoje, não havia nenhuma cidade, aldeia, vilarejo ou povoado da França, por menor que fosse, nem hospital, fábrica, convento ou colégio algum com o direito de administrar independentemente seus negócios particulares ou seus bens. Na época, como aliás hoje, a administração tutelava todos os franceses e, se a insolvência da palavra ainda não se produzira, a coisa em si já existia” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 88). 26

“Como o rei quase nada podia fazer em relação aos juízes, não tendo o direito de revogá-los nem transferi-los para outro lugar nem mesmo elevá-los a um posto superior; numa palavra, como não podia dominá-los nem pela ambição nem pelo medo, sentiu-se rapidamente tolhido por esta independência. Isto o levou a retirar-lhes o conhecimento dos negócios que interessavam diretamente o poder e criar para seu uso particular uma espécie de tribunal independente, assim oferecendo aos seus súditos uma aparência de

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justiça sem assustá-los pela realidade” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 89). 27

Há divergências não apenas com relação ao que é o liberalismo, bem como qual a sua origem, mas pode adotar-se o entendimento segundo o qual teve origem nas lutas travadas na Inglaterra, culminando com a Revolução Gloriosa de 1688 contra Jaime II, cujos objetivos revolucionários eram a tolerância religiosa e o governo constitucional, buscando-se, portanto, fixar limites para a autoridade, além da divisão da autoridade. 28

São interessantes as referências de Giannini sobre a absolutização do princípio da livre iniciativa e os reflexos no Estado, mencionando algumas das consequências destrutivas: a) foram liquidados os enormes patrimônios de terrenos apreendidos anteriormente como bens não privados do monarca; b) foram extintas empresas em mãos públicas, sobretudo no setor de defesa, como laboratórios, arsenais militares e navais; c) foi proibido todo tipo de auxílio público a empreendimentos privados como auxílio financeiro direto ou auxílio administrativo indireto (GIANNINI, 1986, p. 40-41). 29

No entendimento de Paulo Bonavides pode-se falar em Estado Social quando o Estado confere os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata casa própria, controla as profissões, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual...” (BONAVIDES, 1996, p. 186). Já, no entendimento Juan Alfonso Santamaria Pastor o Estado “...asume la responsabilidad de conformar el orden social en el sentido de promover la progresiva igualdad de todas las clases sociales y de asegurar a todos los cidadanos el acceso a un cierto nivel de bienestar económico, el disfrute de los bienes culturales y una cobertura de sus riesgos vitales; en términos jurídicos, equivale a la imposición a todos los poderes públicos de un deber de actuar positivamente sobre la sociedad, en una línea de igualación progresiva de todas las clases sociales y de mejora de sus condiciones de vida” (SANTA MARIA PASTOR, 2000, p. 108). 30

Segundo o autor, a partir do final do século XIX, os países mais desenvolvidos começaram a implementar políticas sociais, cujo objetivo era remediar as péssimas condições vitais das camadas mais desamparados da população. A atuação dos entes estatais não buscava incidir somente sobre os aspectos econômicos, mas também sobre a promoção do bem-estar geral, cultura, educação, defesa do meio ambiente, promoção de regiões atrasadas, etc. 31

Trata-se de expressão cunhada por Ernest Forsthoff, pois o Estado Social caracteriza-se pela “procura existencial” (Daseinvorsorge), ou seja, trata-se de não simplesmente proteger a sociedade do Estado, mas de proteger a sociedade por meio do Estado, constituindo-se o ente público instrumento de correção social. O Estado deve responsabilizar-se pela procura existencial dos cidadãos, quer dizer, levar a cabo as medidas que assegurem ao homem as possibilidades de existência que não pode garantir por si mesmo, conforme refere Manuel García-Pelayo (1996, p. 27).

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“...assistiu-se depois da II Guerra Mundial a um fenómeno de regionalização ou descentralização política, especialmente no centro da Europa, fenómeno esse que se alastrou nos últimos anos a Portugal e Espanha. Essas novas instâncias territoriais entre o Estado e as autarquias tiveram motivações diversas, mas podemos dizer que em geral visaram superar o modelo de Estado centralizado preconizado pela França napoleónica e que se alastrou a muitos países (com exceção dos países germânicos). Por outro lado, a acumulação desmesurada de funções e competências nos organismos da Administração pública levou muitas vezes à sua ruptura funcional, pelo que foi necessário recorrer a entes dotados de autonomia (administrativa e financeira) para a prossecução de fins específicos pertencentes à entidades que os criou” (SOUSA, 1995, p. 404).

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“La Constitución, por una parte, configura y ordena los poderes del Estado por ella construídos; por outra estabelece los limítes del ejercicio del poder y el ámbito de libertades y derechos fundamentales, así como los objetivos positivos y las prestaciones que el poder de cumplir en beneficio de la comunidad. En todos esos contenidos la Constitución se presenta como un sistema preceptivo que emana del pueblo como titular de la soberania, en su función constituyente, preceptos dirigidos tanto a los diversos órganos del poder por la propria Constitución estabelecidos como a los cidadanos” (ENTERRÍA, 1991, p. 49). 34

O autor refere alguns princípios e impulsos jurídico-constitucionais que devem repercutir e repercutiram no direito administrativo: 1) com relação aos direitos fundamentais, as restantes prescrições constitucionais e os princípios constitucionais valem para o Estado como um todo, não existindo espaços juridicamente livres; 2) o reconhecimento constitucional das tarefas da administração de prestação e administração de direção exige o cuidado e desenvolvimento dos instrumentos jurídico-administrativos adequados para o cumprimento das tarefas típicas da administração de prestação e administração de direção no sentido estatal-social e estatal-cultural; 3) o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio determina que o indivíduo não pode ser tratado meramente como súdito da administração, mas como cidadão emancipado. Tal status tem como consequências, por exemplo, a reconhecimento de direitos subjetivos, de contratos entre cidadãos e administração, além da obrigação de a administração considerar em decisões discricionárias os interesses protegidos jurídico-fundamentalmente do cidadão individual (MAURER, 2006, p. 21).

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Sobre a expressão “pos-positivismo” e sua significação, ver Bonavides (1996, p. 260265) e Alexy (1997, p. 74).

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Este tema é debatido por Sastre Ariza (2003, p. 245). O autor destaca que com o neoconstitucionalismo o modelo de ciência jurídica começa a exigir algo que se contrapõe ao defendido pelo positivismo jurídico. Opõe-se um modelo em que as principais características são: a inevitável intervenção dos juízos de valor na análise do Direito e a prioridade do caráter prático da ciência jurídica. De outra banda, destaca que a incorporação de conteúdos materiais supõe que a teoria jurídica não pode ser independente da política. Aqui mais uma vez evidencia-se a correção das críticas de Lenio Luiz Streck sobre o neoconstitucionalismo, pois muito embora procedentes as críticas construídas

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contra o positivismo jurídicos, em diversos aspectos, manteve os mesmos problemas. 37

Em virtude deste debate foi editada importante obra intitulada “Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli” (2012b) no qual faz críticas significativas ao movimento neoconstitucionalista, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a relevância das questões colocadas. 38

No âmbito do Direito Administrativo, ver Ohlweiler (2005, p. 129-164).

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“O sentido dessa pergunta não é senão esse abrir, esse remover, esse sair para uma clareira onde de repente é concedido ao evidente (Selbstvertändlicen) o milagre do seu ‘aí’ (Da); onde o ser humano se vivencia como local onde se escancara, onde a natureza abre os olhos e percebe que está ali, onde portanto no meio do ente existe um local aberto, uma clareira, e onde é possível a gratidão por tudo isso existir” (SAFRANSKI, 2000, p. 496).

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Animais não-humanos: uma reflexão acerca da proteção jurídica no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro1 Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros

1. Introdução: o conceito de ambiente Pode-se afirmar que, na civilização ocidental, a preocupação com a proteção do ambiente tem assumido marcadamente um desenvolvimento como sociedade, enquanto comportamento cultural e uma crescente evolução que ocorre nem sempre na mesma proporção em que os recursos tecnológicos, científicos e seu entendimento avançam. Prieur sustenta que a noção de ambiente assemelha-se a um camaleão, haja vista ser uma palavra que em um primeiro momento exprime fortes paixões, esperanças e incompreensões e, ainda, conforme o contexto no qual é utilizada será entendida, simplesmente, como uma palavra da moda, um luxo dos países ricos, um mito (PRIEUR, 2004, p. 01). Enfrenta-se, aqui, essa noção ‘camaleão’ proposta por Prieur a partir de um tema de contestação nas passeatas hippies ocorridas intensa e pontualmente em determinados cantos do mundo nos anos 70, hodiernamente a proteção da fauna e da flora é motivo de uma mobilização global, envolvendo desde ativistas, atores da sociedade civil organizada, até governos, em face da necessidade da preservação da biodiversidade e dos efeitos que ela provoca em toda a biota. Contudo, nem sempre foi assim, e Zsögön (2004) adverte que a preocupação não se desenvolveu de forma global e nem mesmo no mesmo ritmo em todos os povos e em todos os períodos históricos e nem mesmo poderia ter sido assim. Cada povo se desenvolve de acordo com a sua cultura, sua memória, sua geografia, seus recursos naturais ou mesmo a falta deles. Seria efetivamente impossível o desenvolvimento de uma consciência ambiental homogênea globalizada, essa consciência pela necessária proteção e preservação do ambiente foi se desenvolvendo paralelamente ao desenvolvimento das civilizações e ao consequente desaparecimento dos recursos ambientais. Não é exagero, nos tempos em que se vive e nos tempos que estão por vir, relembrar e realçar a importância da questão ambiental e dessa conscientização da proteção dos recursos naturais (GOMES, 1999).2 As consequências da exploração

descontrolada do meio ambiente são oriundas de uma falta de consciência ecológica e de uma tendência destrutiva do homem em relação ao meio em que vive que se traduz em consequências negativas, produzindo danos incalculáveis e irreversíveis (extinção de espécies e de recursos ambientais), com reflexos econômicos, refletindo a importância da questão ambiental e da conscientização da proteção dos recursos naturais (TEIXEIRA, 2006).3 Uma inquestionável consagração do emergir de uma consciência ambiental veio a ocorrer em meados do século XX (ARAGÃO 1997),4 como um despertar de um movimento ambientalista moderno. Contudo, essa mesma consciência, de uma forma ou de outra, já se mostrava presente desde a pré-história, quando a espécie humana acumulava informações acerca de diferentes curas para diferentes doenças com as drogas que tinham à disposição na época (BRÜGGER, 2004). Os estudos sobre o uso de antigas técnicas como autópsias, epidemiologia, observações clínicas, sem, com isso, desenvolver nenhum experimento com animais permitem tanto perceber a capacidade humana de superar a si mesma, se estiver voltada a um paradigma orientador sistêmico ou holístico, de uma outra ordem, que não a instrumental ou econômica e, ainda, quanto estão atreladas a forças técnicas (GREEK e GREEK, 2000). São ordens tecnológicas, simplistas, reducionistas e orientadoras das ações, por mais complexas que pareçam suas engrenagens. No que concerne ao movimento protecionista ambiental moderno, é indelével a marca da ameaça econômica nesse momento de descobertas. É como se houvesse o estabelecimento de uma relação pendular desequilibrada entre ambiente, desenvolvimento econômico e exploração dos recursos naturais, principalmente no que se refere à indústria. Ao ocorrer uma exploração excessiva dos recursos naturais a ponto de existir uma ameaça de extinção de boa parte deles, a vertente econômica da comunidade5 passa a se preocupar com o futuro do planeta, o que, em suposição, poderia ser o mesmo que se preocupar com o futuro da economia, sem prever as bases econômicas, necessárias ao mundo de hoje para a sobrevivência com qualidade, de uma nação globalizada e independente. Fato que não surpreende, haja vista que muitos dos problemas e das situações de risco6 ambiental, hoje vinculada à proteção da natureza, se originaram justo do desenvolvimento das civilizações e até, paradoxalmente, essencialmente sob o ponto de vista econômico (GIDDENS, 1991). Desenvolvimento esse que, em regra, vem ocorrendo de forma descontrolada e pouco se importando com as consequências que restam à natureza e ao ambiente em que se vive.7 E é nesse sentido que a sociedade capitalista e o seu modelo de exploração econômica atuam e se organizam em torno de práticas e comportamentos concernentes à exploração dos recursos naturais (LEITE e AYALA, 2002).8

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Consoante já anunciado, efetivamente, a sociedade capitalista possui um comportamento muito mais agressivo que qualquer outra forma de proposta de Estado, portanto, seu sucesso pode ser um fator relevante para explicar a capacidade desse sistema na transformação no ambiente. Contudo, afirmar isso não significa dizer que no socialismo não existe poluição, ou mesmo, que na sociedade não industrializada não se fizesse presente o dano ambiental. Goldblatt (1991) sustenta justamente essa discussão, pois houve sociedades capitalistas que não foram industriais e sociedades industrializadas que não são capitalistas. É preciso ter em mente que toda a poluição de um mundo moderno, que antes era inexistente, portanto tão diferente das sociedades primitivas, que Giddens (1991) denominou de ‘ambiente criado’, se desenvolve, de uma forma ou de outra. É possível acreditar que por razões distintas, ambas as ideologias, ou seja, tanto o capitalismo quanto o socialismo de Estado tenham provocado efeitos semelhantes no meio ambiente (GOLDBLATT, 1996). Essas razões diferentes devem se dar pelas naturezas peculiares da sua organização econômica e política, e não em virtude da tecnologia industrial que lhes é comum e muito menos em face de sua preocupação com um futuro, seja ele melhor ou não. O desafio da humanidade é conciliar o desenvolvimento econômico e social com a proteção e a preservação ambiental, com o intuito de não inviabilizar a qualidade de vida das futuras gerações, nem mesmo das presentes gerações, assim como o exercício do direito de propriedade sobre os bens ambientais (TEIXEIRA, 2006). É por derradeiro, e em decorrência dos recursos naturais que o ser humano desenvolve todas as suas atividades, econômicas ou não. A necessidade de estabelecer um balanço equilibrado entre desenvolvimento social e ambiental no que tange a qualidade de vida das gerações presentes e das futuras faz nascer no horizonte próximo, para alguns no horizonte do presente (MOLINARO, 2007), o Estado Socioambiental e Democrático de Direito (FENSTERSEIFER, 2008). Nesse Estado, um princípio nuclear tem sede no direito fundamental à vida e na manutenção das bases que a sustentam, ou seja, um ambiente equilibrado e saudável que vai acabar por concretizar, na plenitude, a dignidade da pessoa humana e, numa visão mais ampla, a dignidade da vida. No entanto, a realidade planetária, repleta de desigualdades (sociais e econômicas), em razão da degradação ambiental em escala descomunal (ou será em escala mundial?), a construção de um Estado do Ambiente, em sua perspectiva, inerentemente social,9 se coloca como uma utopia realista, haja vista ser de cunho notório que os recursos ambientais são finitos e não é nenhuma novidade que se a produção continuar no nível que se encontra e a sociedade permanecer caracteriza-

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da como uma sociedade de consumo, não será suficiente nem para essa nem para as próximas gerações (LEITE e AYALA, 2002).10 Essa utopia, da construção de um Estado Socioambiental, está cada vez mais próxima de tornar-se uma realidade. Há de se remodelar a estrutura do Estado, em face da necessidade de reconfigurar a forma de desenvolvimento socioeconômico, a fim de incluir e fazer integrar o bem ambiental, efetivamente, como elemento indissociável desse novo modelo estatal. Um Estado Socioambiental e Democrático de Direito é decorrente da unidade de sua Constituição, assim como qualquer Estado Democrático de Direito. Contudo, esse Estado em especial é um Estado Ambiental e, portando, calcado em princípios ambientais. O Estado Socioambiental está fundado numa tríade de princípios: o princípio da precaução, o princípio da responsabilidade e o princípio da cooperação (MOLINARO, 2007). Crê-se que, na construção desse Estado Socioambiental e Democrático de Direito se poderia incluir, para além da tríade prevista por Molinaro (2007), o princípio da prevenção, haja vista se estar, também, discutindo uma sociedade que se submete a situações de riscos conhecidos,11 compondo aqui uma relação com outras racionalidades que não meramente instrumentais ou econômicas (BRÜGGER, 2004). O que se considera, portanto, conforme pesquisa de Goldblatt (1996), é a teoria do uso, ou seja, obrigatoriamente tem-se que identificar o que os seres humanos necessitam dos seus ambientes. E essa é uma das atitudes que irá permitir compreender as razões por que as sociedades transformam o mundo natural, quais são os aspectos transformados desse meio ambiente e de que maneira são os mesmos transformados. E, a partir dessa pré-compreensão, como melhor protegê-lo. Contudo, há de se elucidar a qual ambiente se está referindo. Durante milhares de anos, a intervenção do homem na natureza foi relativamente reduzida devido às limitadas técnicas de exploração utilizadas na produção dos bens de consumo, seja nas manufaturas, na agricultura ou na pecuária. Com o início da era industrial essa realidade alterou-se e, ao final do século passado, os perigos que afetam o meio ambiente atingiram um nível dramático: são técnicas que, para melhorar a vida e para impedir a vida, variam desde uma queimada (para preparar a terra e para destruí-la) até a liberação de gases poluentes na atmosfera, destruindo a camada que protege a possibilidade de mantença de vida. A degradação ambiental tem sua origem na própria ação do homem, que pode ser entendida como uma atividade eminentemente modificadora do ambiente, tendo em vista a alteração de processos naturais, de características físicas, químicas e/ou biológicas que, de alguma forma, interferem nos usos preexistentes de

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um determinado meio ambiente. Pode-se afirmar que o homem é o maior poluidor e o maior responsável pelo esgotamento das próprias bases naturais da manutenção da vida, por intermédio de suas ações modificadoras do meio, como as obras da construção civil (com o uso dos recursos minerais),12 as atividades agrícolas13 e de mineração14 que ocupam e transformam o solo através do uso, entre outras. Por vezes, deixar de fazer alguma coisa em prol da proteção do ambiente provoca justamente a degradação do objeto a ser protegido, o que indica que eventualmente até as omissões podem ser consideradas como modificadoras do meio ambiente. Não obstante, esta visão aos poucos vem sendo modificada pela participação efetiva na proteção, promoção e preservação do meio ambiente. Governos, organizações não-governamentais, escolas, dentre outros tantos entes, têm-se manifestado na luta pela preservação da vida, incluindo (mas não só) a vida humana. Essa busca é global, haja vista o meio ambiente ser um dos poucos temas a despertar o interesse de todas as nações, “independentemente do regime político ou sistema econômico” (FREITAS, 1998, p. 12), devido à consciência de que as consequências dos danos ambientais ultrapassam fronteiras, países ou regiões: “daí a preocupação geral no trato da matéria que, em última análise, significa zelar pela própria sobrevivência do homem” (FREITAS, 1998, p. 12). Dessa forma, o dever de zelar pela manutenção de um meio ambiente saudável supera conceitos fechados de soberania e suplica por uma interpretação supranacional no concernente à proteção ambiental.15 Passa-se a se desenvolver uma crise de paradigma, resultado da alteração do estado de consciência ecológica (OST, 1995). Uma crise do vínculo e do limite entre o homem e a natureza: “Crise do vínculo: já não conseguimos discernir o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; crise do limite: já não conseguimos discernir o que deles nos distingue” (OST, 1995, p. 09). Essa crise é uma das chaves para a solução do conflito ou, pelo menos, de um ou alguns dos conflitos que aqui se iniciou a demonstrar. Tem-se de definir qual é a relação entre o homem e a natureza, qual o papel que se tem em relação com o ambiente. O que distingue e o que aproxima animais humanos de animais não-humanos, da flora, e o que há de vínculo, qual o limite com a natureza, com o meio ambiente, enfim. A única maneira de fazer justiça ao homem e à natureza é assumindo esse novo paradigma16 (a partir desse despertar de consciência ecológica) e afirmar ao mesmo tempo aquilo que os aproxima e aquilo que os afasta. Afinal, o homem é um ser vivo produzido pela natureza, no decorrer da evolução, à qual, hoje, assegura a sua sobrevivência e ela, a natureza é diferente do homem, é diferente ao homem e mesmo assim possuem um vínculo sem que se possam reduzir um ao outro (OST, 1995, p. 12).

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Neste inspirado trecho, Ost (1995, p. 12), aproxima homem e natureza ao mesmo tempo em que os vincula, demonstrando que a quebra de paradigma é necessária para que se possa ter uma efetiva proteção ambiental: Afirmar simultaneamente a sua semelhança e a sua diferença. Se o homem é um ser vivo, ele tem também – o que é um privilégio exclusivo – a capacidade de liberdade e é gerador de sentidos, sujeito de uma história, autor e destinatário de regras. Se a natureza, no decorrer da sua evolução, produziu a espécie humana à qual assegura diariamente as condições de sobrevivência, ela é também, para o homem, completamente diferente, absolutamente estranha. Homem e natureza têm um vínculo, sem que, no entanto, se possam reduzir um ao outro (OST, 1995, p. 12).

Mas que ambiente é esse que se quer ver protegido? Qual conceito adotar? Qual linha seguir? A legislação brasileira adotou um conceito de ambiente quando, em 31 de agosto de 1981, foi editada a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). No inciso I, do artigo 3º da Lei da PNMA tem-se que “meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”(BRASIL, lei n.º 6.938, 1981). A partir desse conceito, diversas considerações podem ser suscitadas, destaca-se, nitidamente, um conceito antropocêntrico moderado, haja vista não reduzir a conceituação à “vida humana” e sim “a vida em todas as suas formas” (MORATO LEITE, 2000). Tal posicionamento propicia o reconhecimento da proteção (no que se refere a direitos e deveres fundamentais) a todos os seres vivos incluindo, naturalmente, todos os animais não-humanos. Contudo, outra consideração pode ser promovida, qual seja: em que pese à realização dessa leitura seja favorável a tese sustentada nesta pesquisa (por entender-se que o Direito deve debruçar-se sobre todas as formas de vida e não apenas a vida humana), adotar o conceito legal da PNMA como conceito de ambiente seria incoerente. Tem-se que o ambiente é muito mais do que o ambiente natural, ambiente esse, descrito pela legislação federal referida. Partindo-se do acordo conceitual a respeito de ambiente, há que advertir que este vai além de uma análise ampla e unificada, pois a vida pode se desenvolver em diversos espaços e de diversas maneiras. Alicerçados nesse entendimento adota-se a classificação do ambiente em quatro diferentes categorias, quais sejam: o ambiente natural, o ambiente cultural, o ambiente artificial e o ambiente do trabalho (MACHADO, 2009). É com base nessa classificação que esse estudo pretende lançar as bases, tanto conceituais de seu próprio entendimento de ambiente, assim como de extensão da proteção no campo do espaço jurídico, da mesma forma que traçar as fronteiras da vida em si mesma.

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Tradicionalmente e, talvez, equivocadamente, se esteja acostumado a associar a questão da proteção ambiental unicamente à proteção do ambiente natural, todavia, proteger o ambiente vai muito além dessa categorização. Pode-se definir o ambiente, como ambiente natural, como sendo o conjunto de compostos bióticos e abióticos que dão suporte à vida, como a água, o solo, o ar atmosférico e, em certa medida, a vida em si mesma (do ponto de vista da proteção da vida não-humana), quando se reúne a fauna e a flora. É coerente, ainda, resumir como sendo o equilíbrio entre os seres e o meio em que vivem (e, nessa medida, estão inseridos os animais humanos). A Constituição Federal brasileira, por exemplo, no § 1º do artigo 225, reza pela proteção do ambiente natural ao disciplinar pelo manejo ecológico das espécies e ecossistemas.17 Contudo, a proteção cultural também é proteção do ambiente (MARCHESAN, 2007)18 e se faz presente na carta fundamental brasileira. A proteção do ambiente cultural tem como fulcro a preservação da história do povo, a preservação da memória. Isso só se faz possível através do cuidado com o patrimônio histórico, paisagístico, artístico, arqueológico e turístico.19 O ambiente artificial já é uma categoria de proteção que desperta a atenção dos incautos, haja vista poucos associarem a relevância da questão do espaço urbano construído artificialmente como uma questão ambiental da mais alta importância. Nessa categoria, se está referindo ao conjunto de edificações, públicas e privadas, e estabelecendo as conexões necessárias ao urbanismo.20 A Constituição de 1988, para além de se preocupar em estabelecer os dispositivos pertinentes à proteção desse bem21 no Capítulo do ambiente, no artigo 225, disciplinou, ainda, a matéria protetiva no artigo 182. Outra, mas não menos importante forma de analisar a proteção do ambiente é sob a ótica do labor. A Constituição aborda a temática a partir do art. 200, VIII.22 O ambiente do trabalho é o local onde se passa a maior parte da vida adulta e sob a sua égide que se submete à saúde e à qualidade de vida. É o local onde o animal humano desempenha a sua atividade de labor, independentemente da contraprestação, ou seja, remunerada ou não. Esse ambiente também deve ser monitorado pelas autoridades ambientais, uma vez que a ele também se aplicam às normas de proteção do ambiente. A intenção é a mantença do equilíbrio, baseado na salubridade do meio, para a saúde física e psíquica do trabalhador (SIRVINSKAS, 2008, p. 26-27).23 Assim, em que pese essa tese abordar somente o aspecto do ambiente sob o seu viés natural, não é possível olvidar as demais categorias. Para além da abordagem legal, a jurisprudência compreende o conceito de meio ambiente da seguinte forma, como se pode depreender, a título exemplificati-

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vo, da decisão de Lugon: [...] meio ambiente tutelado pelo Estado constitucional ecológico não é um conceito apenas naturalista, envolve o ambiente em sentido amplo [...] (econômicas, sociais e culturais) que influenciam direta ou indiretamente na qualidade da vida humana. O meio ambiente é um dos bens jurídicos mais [...] preciosos para o ser humano, [...], tendo em vista que a vida nunca esteve tão ameaçada (inundações, extinção da camada de ozônio, falta de água potável e energia, chuva ácida) pelo risco da falta de bens indispensáveis. [...]. Possui, também, status de direito fundamental à medida que constitui a principal forma de concretização da dignidade da pessoa humana, sua existência e qualidade de vida. O Estado constitucional ecológico impõe uma redefinição do conteúdo dos direitos de feição individualista, os quais devem estar também a serviço de toda a coletividade [BRASIL, Tribunal Regional Federal, 4ª Região, Processo 2008.04.00.034672-9, Agravo de Instrumento/SC].

O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Segurança n.º 22164-0/SP, através do Ministro Relator Celso de Mello, pontua a questão ambiental como sendo: [...] um princípio da solidariedade – o direito a integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social.

Nesse sentido, acolhem-se alguns conceitos básicos para servir de guia nessa caminhada. O primeiro dos conceitos de ambiente vem caracterizado pelo pensamento que defende que o ambiente deve ser entendido em sua plenitude e a partir de um ponto de vista humanista (SOUZA FILHO, 1997). Dessa forma, a partir dessa leitura, o ambiente compreende a natureza e as modificações que o homem vem nela introduzindo. Assim, ambiente pode ser traduzido como uma união da: “[...] terra, a água, o ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras-de-arte e os elementos subjetivos e evocativos como a beleza da paisagem ou a lembrança do passado, inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da passagem de seres humanos” (SOUZA FILHO, 1997, p. 10). Consoante já anunciado, e em razão disso se fez à opção por conceitos-mestre, o ambiente não pode ser compreendido numa visão limitada ou somente através de uma de suas vertentes. O ambiente não pode estar restrito ao homem, mas alcança a todas as formas de vida. O meio ocupa-se dos elementos abióticos que sustentam a vida, preocupa-se com os elementos imateriais que representam a vida,

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uma vez que o ambiente engloba a vida humana e de todos os seres vivos, engloba o meio em que a vida acontece e engloba a história da vida. Seguindo Molinaro, que define ambiente como “um lugar de encontro” (MOLINARO, 2007, p. 22), adota-se o conceito de que ambiente é o local onde a vida acontece e é, ao mesmo tempo, o lugar que propicia esse acontecimento, ou seja, o homem está e é ambiente. A proposta, aqui encabeçada, diz respeito a um olhar diferenciado do todo ambiental, com a pretensão de alçar a outro nível de importância, ou ao menos de reflexão, quanto às partes que compõem o meio ambiente. Do todo ambiental descrito como sendo parte de um conteúdo do meio ambiente, ou seja, o ambiente natural, o ambiente cultural, o ambiente artificial e o ambiente laboral vão ocupar as linhas desta pesquisa apenas uma parte do todo, apenas uma parte do ambiente natural. O objeto dessas linhas está alicerçado na proteção dos animais não-humanos, parte da categoria do meio ambiente natural.

2. A proteção jurídica do ambiente: um panorama do direito brasileiro O Brasil é, hodiernamente, um dos países detentores de uma das maiores listas de biodiversidade no mundo e, em decorrência desse fato, detém uma grande responsabilidade de preservar e proteger “muitas das espécies, ecossistemas naturais e processos biológicos que tornam nosso planeta habitável” (CAVALCANTI, 2004, p. 05). Vive-se em um período de intensos contrastes no desenvolvimento econômico-político-social da humanidade. Ao mesmo tempo em que a sociedade mundial deslumbra-se com as habilidades da civilização para as grandiosas descobertas técnico-científicas distancia-se, cada vez mais, da intimidade com o planeta que a abriga e envolve (MEDEIROS, 2004). Essa falta de intimidade provoca um sentimento e um comportamento, mesmo que inconsciente, de irresponsabilidade do homem (animal humano) para com a proteção do ambiente em sua mais ampla acepção (GONÇALVES, 2004).24 O fato pode ser comprovado diante das inúmeras questões ambientais globais emergentes, tais como o desaparecimento de espécies vegetais e animais, o encolhimento de florestas, o aquecimento da temperatura do planeta, a erosão dos solos, a produção avassaladora de lixo, a poluição e a escassez da água, a extinção da própria espécie humana, em sua face econômica perversa. O mundo “apesar de notáveis esforços retóricos, continua acentuando suas características e relações reais: continua sendo financeiramente total, economicamente global, politicamente tribal e ecologicamente letal” (CAUBET, 1999, p. 58). A assertiva se confirma fa-

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cilmente ao se verificar que a política econômica mundial é globalizada e está em crise, esgotando os recursos naturais dos países em eterno desenvolvimento e colocando em risco a sobrevivência de todas as espécies, fazendo valer, cada vez mais um dos princípios basilares do direito ambiental, o princípio da precaução.25 Nessa oportunidade, se defende que no mundo inteiro está aumentando o interesse em uma ideia simples para a regulação do risco: “em caso de dúvida, siga o princípio da precaução” (SUNSTEIN, 2005, p. 13). Nesse caso, devem-se evitar ações que poderão criar risco de dano e deve-se ser cauteloso até que a segurança seja estabelecida (SUNSTEIN, 2005).26 Assim, apesar de os recursos naturais disponíveis terem uma utilidade praticamente vital para os agentes econômicos, e apesar de serem cada vez mais escassos, eles estão sujeitos a uma tal intensidade de exploração pelo Homem que, em muitos casos, os faz aproximarem-se a passos largos da extinção. Esta situação absurda reflete alguma ‘miopia’ dos agentes econômicos, que, incapazes de ver ao longe, não se apercebem de que, tomando decisões econômicas com base em dados de curto prazo, estão a ‘cavar a sua própria sepultura’ alheios às consequências futuras que, a médio ou longo prazo, decorrerão das suas decisões de hoje (ARAGÃO, 1997, p. 24).

Tem-se estabelecido uma posição de análise de custo-benefício como uma ferramenta de política pública para se gerenciar os riscos socioambientais. Sunstein (2005) sustenta que a análise de custo-benefício frequentemente é incitada como uma alternativa à aplicação do princípio da precaução. Os agentes econômicos, assiduamente, argumentam que em vez de “cegamente” tomar medidas precaução deveriam registrar a regulação dos custos e dos benefícios e depois escolher a ação que maximizasse o benefício socioambiental. Essa abordagem, geralmente, justifica as bases de uma economia de eficiência que pouco ou nada liga para a proteção dos recursos ambientais, pois na realidade pouco se preocupam com o que é social ou o que é ambiental. Ao mesmo tempo em que a raça humana necessita dos ecossistemas naturais equilibrados para a sua própria sobrevivência, estabelece uma relação parasitária e depredatória com o meio que a circunda. Tomando-se como referência a experiência brasileira, a Mata Atlântica e o Cerrado já fazem parte do rol dos vinte e cinco biomas de alta biodiversidade mais ameaçados no mundo. Animais (não-humanos) característicos do nosso referencial cultural, como é o caso do tatu, um verdadeiro exemplo da fauna genuinamente brasileira, está, por exemplo, a um passo do desaparecimento (DEUTSCH e PUGLIA, 1990).27 Susin alerta para o fato de “o sucesso da tecnologia como domínio e fun-

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cionalização da natureza em favor do ser humano empreendedor se exacerbou a tal ponto que hoje sofremos a ameaça do aprendiz de feiticeiro: não sabemos bem como parar uma vassoura que continua a trazer água, a tal ponto que estamos ameaçados de um novo dilúvio!” (SUSIN, 2003, p. 12). Essa realidade impactante trazida por Aragão (1997), Sunstein (2005) e por Susin (2003) enseja um questionamento profundo acerca do rumo e da forma como a humanidade tem direcionado sua relação com o meio que o circunda e o envolve. Em nossa cultura, nos acostumamos a apreender a natureza como uma máquina provedora de onde se retirou toda a nossa produtividade por meio de técnicas cada vez mais avançadas (BRÜGGER, 2004). Contudo, essa época, esse período histórico está sendo marcado por uma transformação na técnica e no comportamento humano, que exigirá uma nova ética, uma ética de responsabilidade (JONAS, 2004 e 2006). Afirma Brügger, ainda, a respeito dessa necessária responsabilidade para o que é e com o que é natural, “essa enorme pressão sobre a natureza não acontece somente para dela retirar o que é necessário para a nossa sobrevivência. Hoje, mais do que nunca, a grande pressão é o resultado de ações que visam a satisfazer os desejos hedonistas de uma minoria. E para tanto, existe uma parte animal (tanto humana, quanto não-humana) dessa natureza que também é explorada de forma brutal” (BRÜGGER, 2004, p. 10) Trata-se, portanto, de uma sociedade circunscrita a uma imensa crise ambiental. A degradação do ambiente coloca em destaque que essas não estão confinadas em termos de espaço ao âmbito de seu impacto, nem estão confinadas em termos sociais a determinadas comunidades. A degradação ambiental, na modernidade, é potencialmente global no âmbito de seu alcance. Um conjunto de riscos ecológicos que podem ser descritos como catastróficos, em potência (ALBUQUERQUE, 2006).28 Os perigos ecológicos seriam os acidentes nucleares em grande escala, os efeitos tóxicos progressivos, a liberação de químicos29 em escala continental ou, ainda, pela alteração e manipulação do material genético da flora e da fauna do planeta (BECK, 1998). Diante do fato evidente e notório da degradação ambiental provocada pela institucionalização da sociedade de risco em razão da existência de um “conhecimento completo sobre os efeitos de determinada técnica e, em razão do potencial lesivo já diagnosticado, o comando normativo toma o rumo de evitar danos já conhecidos” (FENSTERSEIFER, 2008, p. 81) faz-se necessário destacar o alerta de Gomes (GOMES, 2000) para o fato de que, diante da iminência de uma ação humana que, comprovadamente, lesará, de forma grave e irreversível, o bem ambiental,

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a intervenção do Estado se faz necessária, em face da aplicação do princípio da prevenção. Tal crise decorrente da constatação de que “as condições tecnológicas, industriais e formas de organização e gestão econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida” (LEITE e AYALA, 2003, p. 182). Nesse sentido, o papel da ciência jurídica, atualmente, atinge patamares mais elevados, pois a complexidade da sociedade moderna exige a regulamentação de novas situações, antes inexistentes no mundo jurídico, como requisito cogente ao ordenamento social. Nesse contexto, podem-se citar as relações do homem com o ambiente, cujos fatos obrigam o reconhecimento de novos bens e posições jurídicas. Os animais não-humanos são utilizados para os mais variados fins humanos, dentre eles, pesquisa científica, como sujeitos de testes, alimentos, companhia, transporte, esporte. Sem se levar em consideração os animais silvestres que, por exemplo, somente nos Estados Unidos, no ano de 2004, havia mais de 60 milhões de cachorros com proprietários, no que tange os animais domésticos de estimação e o Brasil é o segundo colocado no mundo em número de animais de estimação (segundo estimativas do IBOPE, cerca de 59% dos domicílios brasileiros têm algum animal de estimação, sendo que em 44% deles há pelo menos um cachorro e em 16% pelo menos um gato).30 Bilhões de animais são mortos anualmente para alimentação humana e animal e outros tantos, de cifra tão surpreendente quanto, são exterminados em pesquisas científicas. A questão essencial é: será que é preciso que os animais não-humanos pareçam humanos (se reconheçam e sejam reconhecidos) para serem protegidos ou mesmo serem titulares de suas próprias vidas? Pensar a proteção do ambiente e a evolução jurídica dessa proteção ocorrida no Brasil desde a Constituição de 1891 representa um pensar sobre a história de cada época e dos interesses político-econômico-jurídicos que se apresentavam e se apresentam em cada período histórico (GONÇALVES, 2004).31 Significa tentar entender o mundo sob a perspectiva de quem viveu cada período histórico e o que cada modificação legislativa e jurisprudencial efetivada na proteção do ambiente representava para a sociedade de então e vice-versa. No concernente à proteção do ambiente, vários temas e questões latentes na sociedade podem e devem ser debatidas, contudo, uma delas toca em cada um em maior profundidade: o dever de proteção dos animais, ou seja, a temática que norteia a trajetória dessa pesquisa é o cruzamento entre o dever fundamental de proteção aos animais não-humanos e o direito à tutela jurídica dos animais não-humanos como sendo interesses juridicamente tuteláveis. Caracteriza-se como sendo, em um modo de entender, o momento em que o animal humano deverá chamar

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para si a responsabilidade de cuidado e respeito para com as demais formas de vida, essencialmente no que tange o animal não-humano, reconhecendo nessas outras formas de vida uma titularidade subjetiva de direitos fundamentais e o direito à aplicação do princípio da dignidade por ser vivo. O olhar a que se submete essa revisão é uma forma de ver pelos olhos daqueles que participaram da história ao longo dos tempos constitucionais brasileiros. Acredita-se que ao refletir acerca da evolução da proteção ambiental na legislação brasileira, no que concerne à proteção da fauna, se está em condições de conhecer um pouco mais do modo de ser, viver e entender os diversos mundos das pessoas que fizeram cada um desses períodos históricos. Da mesma forma, ao dialogar com cada uma dessas manifestações e perspectivas no modo de olhar e de viver a questão, se está também trazendo nossas problematizações acerca desse e de outros temas conexos. Não há como se apartar o homem de sua obra. Cada período histórico se faz mostrar pela forma como os homens de seu tempo interagem. Existe um pouco de cada um e de todos na totalidade dos momentos de uma sociedade, essencialmente quando se refere à legislação e mais enfaticamente a legislação ambiental, uma vez que os ordenamentos legais dizem como certos posicionamentos se instituíram como hegemônicos em determinados momentos da história da humanidade, mesmo sem serem homogêneos, do ponto de vista da sociedade como um todo. Houve, certamente, outras perspectivas que se fizeram presentes e que, algumas deram origens a outros modos de pensar com os quais se convive hodiernamente e que, da mesma forma problematizam para produções futuras. Esse se constitui num outro modo de olhar a produção da verdade instituída, como verdades provisórias que se apresentam para serem novamente e sempre problematizadas. Por meio de uma leitura perspectivada da evolução jurídica da proteção do ambiente acredita-se estar apto a conhecer os interesses sócio-políticos de cada período histórico, dialogando32 com os mesmos, provocando-os, instigando a pensar de outro modo que não o instituído tal como se apresenta, desafiando a buscar e a construir outras relações com a verdade e sua história. A preocupação do Direito em face da necessidade de proteção do ambiente surgiu em meados do século passado, mediada pela ampliação de um pensar ecológico, e foi oriunda de um momento de crises e de transformações, experimentações, fossem elas ligadas a alterações técnico-científicas ou vinculadas a valores éticos (MEDEIROS, 2004). O direito à proteção constitucional do ambiente, consubstanciado na prerro-

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gativa de usufruí-lo como um bem ecologicamente equilibrado, é fruto da evolução dos direitos, tratando-se de um produto histórico, diferente das proteções jurídicas de bens ambientais esparsos nas legislações anteriores; esse direito decorre das necessidades da espécie humana33 no final do século XX, desnudando a ampliação do conteúdo dos direitos humanos (VARELLA e BORGES, 1998). As normas jurídicas de proteção ambiental vêm em resposta a circunstâncias sociais e históricas, ou seja, são disposições contextualizadas, datadas e historicizadas, como assevera Habermas (1990), se fundadas em condições de argumentação racional. Em outra oportunidade afirma-se que “as disposições de lei buscaram atender aos anseios de uma sociedade que se estava deparando com o surgimento de novos valores e interesses e, dessa forma, vinham em auxílio às demandas e necessidades da população, que se via possuidora de uma nova consciência da vida e do ambiente que a circunda, como partícipes dessas demandas e ações” (MEDEIROS, 2004, p. 53). Pode-se depreender que o Direito é decorrente das transformações sociais e das demandas criadas em razão dessas modificações da estrutura social. As normas jurídicas34 são fruto, portanto, da necessidade de o Estado regular em conformidade com as novas demandas da sociedade. Ademais, não há como ignorar a conjuntura histórica de cada período como causa geradora da produção legislativa correspondente. A necessidade de se analisar o que está por trás de um discurso, de uma norma. De se enxergar a época, a cultura que permeia a construção do Direito. O referido autor aponta, ainda, obrigatoriedade de se levantar os pressupostos, as razões por trás das razões a fim de se compreender o Direito que não está dito nas entrelinhas do que está posto (HESPANHA, 2007). Nesse sentido, a apropriação do pensamento de Grossi acerca das mitologias jurídicas da modernidade permite afirmar que “a visão histórica consola porque retira o caráter absoluto das certezas de hoje, relativiza-as pondo-as em fricção em certezas diferentes ou opostas experimentadas no passado, desmistifica o presente, garante que essas sejam analisadas de modo crítico, liberando os fermentos atuais da estática daquilo que é vigente e estimulando o caminho para a construção do futuro” (GROSSI, 2004, p. 26). Em face do conhecimento do passado e da necessidade do surgimento de um novo modelo de Estado Social, um modelo de Estado Socioambiental, e, para tanto, passa-se a analisar o desenrolar e o desenvolvimento da proteção ambiental no direito constitucional no Brasil.

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2.1 A proteção Constitucional do ambiente no Brasil 2.1.1 Um olhar acerca das Constituições brasileiras anteriores a 1988 A consciência ecológica, pensar verde, despertada nos últimos trinta anos do século XX propiciou o surgimento e o desenvolvimento da legislação ambiental em vários países. No Brasil não foi diferente, a tutela jurídica do ambiente nasceu e foi se transformando e se aprimorando ao longo do tempo, assim como ia se transformando a sociedade à qual servia. Com o intuito de se chegar ao ápice da proteção ambiental no Brasil, a Constituição Federal de 88, opera-se uma breve análise das Constituições brasileiras anteriores a de 1988. Merece registro que não há na Constituição brasileira de 1824, a Constituição do Império, nenhuma menção à proteção ambiental quiçá à proteção da fauna e da flora e as consequentes vedações às práticas que prejudiciais à manutenção e/ou recuperação da diversidade. Tal fato não surpreende, haja vista estar em consonância com o período histórico e político ali adjacente. À época, além da preocupação com o ambiente não ser corrente em todos os povos, o Brasil ainda carecia de uma identidade como povo e nação independente, inexistindo qualquer alusão à busca da preservação do ambiente. Em 24 de fevereiro de 1891, com o advento da 1ª Constituição republicana brasileira, iniciou-se uma preocupação com a normatização constitucional no concernente aos denominados elementos da natureza. Todavia, essa preocupação traduziu-se apenas em uma proteção às terras e às minas, indicando uma atitude que buscou proteger os interesses da burguesia e institucionalizar a exploração do solo com aval estatal, a ele – Estado – cabendo uma fatia da exploração.35 Dessa forma, a Constituição de 1891, no número 29 do artigo 34, somente atribuiu à União competência acerca de assuntos referentes às minas e às terras. Portanto, não se pode afirmar que havia uma preocupação constitucional de proteção ambiental, o que se delineava era uma forma de controle econômico dos recursos naturais e, mesmo assim, de alguns deles tão-somente. A partir da Constituição de 1934, a Constituição do Estado Novo, se pode observar um aumento no leque de competência legislativa da União em face dos bens ambientais. Das minas e das terras a que se referia a Constituição de 1891 acresce-se as águas, as florestas, a caça e a pesca. De toda a feita, o constituinte, gerador da Constituição de 34, aumentou o leque de bens ambientais sob um recorte extremamente antropocêntrico, mas que, no entanto, já se manifestou como um avanço. Inclusão relevante trazida pela Constituição de 34 foi à possibilidade das leis estaduais suprirem as lacunas ou deficiências da legislação federal, desde

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que obedecendo à norma geral.36 A Constituição de 1934 foi, também, a primeira a referir-se a proteção das belezas naturais e os monumentos de valor histórico como forma de preservar a memória e a cultura do país, caracterizando a proteção ao meio ambiente cultural.37 E, ainda, como meio de manter determinadas águas como propriedade do povo, a Carta determinou que os lagos, as correntes, as ilhas e as margens de rios seriam de domínio público, como rezavam os artigos 20 e 21, inegável, portanto, o avanço em matéria ambiental.38 Por certo, à época da feitura da Carta Fundamental de 1934 a preocupação atinente aos bens ambientais pendia muito mais para o quesito econômico39 do que propriamente para o ambiente per si. De qualquer forma, evidencia um olhar que se volta ao uso coletivo e à cultura, preocupando-se com direitos da população. A Constituição de 1937, não muito diverge da relação de proteção estabelecida com o ambiente e a Carta Fundamental de 1934. A questão da proteção ambiental aparece de forma transversal e com uma fachada mais econômica do que ecológica. Os artigos 16 e 1840 do referido diploma legal apontam para as questões de competência legislativa no que tange às matérias vinculadas aos recursos naturais.41 Por sua vez, os artigos 36 e 3742 supracitados referem-se à dominialidades dos bens naturais, de uso comum do povo, essencialmente vinculados às águas. É notório que, desde a Carta de 1934, o legislador Constitucional originário preocupa-se com a questão que envolve o domínio das águas, por se tratar esse recurso natural de bem essencial para a sobrevivência de todas as formas de vida.43 Talvez até, pelo próprio período histórico a que se estava vivenciando, mas a questão ambiental não foi uma matéria de destaque na Constituição que recebeu o apelido de “a polaca”. Na mesma linha das Constituições anteriores e com pouquíssimas alterações quanto ao seu conteúdo, os dispositivos constitucionais com abordagem de proteção ao ambiente natural na Constituição de 1946 mantiveram a preocupação em disciplinar as questões de competência legislativa e determinar o domínio dos recursos naturais, mantendo com a União, por exemplo, a competência legiferante no que tange as riquezas do subsolo, mineração, águas, florestas, caça e pesca, dentre outras.44 No concernente aos artigos 152 e 15345 pode-se observar um maior cuidado do constituinte originário brasileiro em determinar os diferentes tipos de propriedade para os consequentes tipos de exploração tanto no que diz respeito ao uso da água, essencialmente com vistas às usinas hidroelétricas, quanto no que diz respeito à exploração de minerais. A Constituição de 1967, talvez em razão do próprio período político-social conturbado da história brasileira a que estava inserida, trouxe um alargamento quanto aos bens da União, aumentando o abraço do manto da dominialidade públi-

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ca sob os recursos ambientais, mesmo que fosse somente sob a ótica econômica.46 Nessa seara, em que pese o entendimento de Silva, que as “Constituições Brasileiras anteriores à 1988 nada traziam especificamente sobre a proteção do meio ambiente natural” (SILVA, 2004, p. 46), levanta-se um mínimo de discordância. É possível admitir que até a Constituição de 1988 o Brasil ainda não tinha visto uma Carta de Direitos, efetivamente, verde como é a Carta Fundamental de 1988, contudo, não há como vendar os olhos para o avanço gradativo da proteção constitucional ao ambiente, mesmo que de início tenha sido, exclusivamente, sob o viés econômico. No concernente à evolução da proteção ambiental no constitucionalismo brasileiro é inegável, após a análise das Cartas Constitucionais, que a referência ao tema na história constitucional brasileira tem evoluído sobremaneira. Parte-se de um modelo constitucional que nada disciplinava acerca da proteção ambiental até alcançarmos nível de amparo e de conscientização de proteção do ambiente, regrado pela Constituição vigente. É notório assegurar, portanto, que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a proteger de forma deliberada a questão do ambiente. Contudo, tal fato não descarta uma abordagem, mesmo que discreta e progressiva, de uma orientação protecionista das Constituições brasileiras anteriores, nem que fosse somente ligada ao fato da repartição da competência legislativa e administrativa entre os membros da Federação, circunstância que possibilitou a elaboração de legislação protetiva do ambiente como foi o caso do Código Florestal, do Código de Água e de Pesca, dentre outros.

2.1.2 A proteção dos animais não-humanos na Constituição de 1988: noções gerais A Constituição Federal de 1988, disciplina em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988). Foi imposto ao legislador e, principalmente, ao aplicador do Direito,47 a tarefa de dar concretude ao disciplinado pela norma de proteção ambiental. Incluindo-se o meio ambiente como um bem jurídico passível de tutela, o constituinte delimitou a existência de uma nova dimensão do direito fundamental à vida e do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Machado (2005) defende que o uso do pronome indefinido todos48 “alarga a abrangência da norma jurídica, pois,

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não particularizando quem tem direito ao meio ambiente, evita que se exclua quem quer que seja” (MACHADO, 2005, p. 104). O referido autor sustenta que a locução “todos têm direito” cria um direito subjetivo, oponível erga omnes, pois o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de cada um, como pessoa humana, independentemente de sua nacionalidade, raça, sexo, idade, estado de saúde ou profissão (MACHADO, 2005). Nessa linha, colaciona-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em julgado paradigma, que assevera o meio ambiente como a “expressão constitucional de um direito fundamental que assiste à generalidade das pessoas. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual”.49 É indubitável que o caput do artigo 225 da Constituição Federal de 88 é antropocêntrico, é feito pelo homem e para servir ao homem. Mirra defende, nesse sentido e na linha do que se manifestou até então, que o dispositivo do artigo 225 é um direito fundamental da pessoa humana, previsto como forma de preservar a vida e a dignidade das pessoas – núcleo essencial dos direitos fundamentais. E, afirma, ainda, que ninguém contesta que o quadro da destruição ambiental no mundo põe à prova a possibilidade de uma existência digna para todos os seres humanos (MIRRA, 1994). Alerta-se, alicerçados na concepção de Machado, que com indiscutível razão, afirma que os incisos I, II, III e VII do § 1º e os §§ 4º e 5º do artigo 225 equilibram o antropocentrismo do caput tornando o capítulo do meio ambiente na Constituição Federal de 88 um pouco mais próximo do biocentrismo, “havendo uma preocupação de harmonizar e integrar os seres humanos e biota” (MACHADO, 2005, p. 10). Nesse contexto, os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento na dignidade da pessoa humana, mesmo que de modo e intensidade variáveis (SARLET, 2001; MIRANDA, 1998; ANDRADE, 1976). Dessa forma, a proteção ao ecossistema no qual se está inserido, e dele faz parte,50 foi concebida para respeitar o processo de desenvolvimento econômico e social para que o ser humano desfrute de uma vida digna. Toda a matéria relacionada, direta ou indiretamente, com a proteção do ambiente, projeta-se, portanto, no domínio dos direitos fundamentais (MEDEIROS, 2004). Esta inter-relação ocorre, não somente pela inserção sistemática do meio ambiente no âmbito dos direitos fundamentais, mas, principalmente, por ser o Estado Democrático de Direito a garantia, a promoção e a efetivação desses direitos.

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O direito fundamental à proteção do ambiente pode ser classificado segundo as categorias de direito de defesa e direito à prestação (MEDEIROS, 2004). O direito fundamental à proteção ambiental constitui um direito que pode ser designado complexo, abrangendo as múltiplas funções dos direitos fundamentais do homem. Tomando por pressuposto a distinção entre texto (dispositivo), norma e direitos (STRECK, 2000, p. 18),51 vê-se que, no que diz com o artigo 225 da Constituição Federal, se cuida de uma série de disposições (textos) que encerram várias normas que, por sua vez, asseguram posições jurídicas subjetivas fundamentais, de natureza diversa, tanto com função defensiva quanto prestacional.52 Portanto, para uma concepção acertada da diferença existente entre os direitos a prestações e os direitos de defesa, não basta afirmar que o primeiro corresponde a ações positivas enquanto o segundo corresponde a ações negativas. A diferença consiste em que, a omissão de cada ação individual de destruição ou de afetação é uma condição necessária e somente se a omissão de todas as ações de destruição e de afetação seria uma condição suficiente para o cumprimento da proibição de destruir e, com isso, alcançar a satisfação do direito de defesa. Pode-se afirmar que várias normas definidoras do direito fundamental, a proteção do meio ambiente, exercem simultaneamente duas ou mais funções (direitos de defesa e direitos a prestações). Cabe ressaltar, com o intuito de exemplificar a linha argumentativa do presente trabalho, onde e em que sentido convém observar, à luz do artigo 225, a presença dessas diversas posições jurídicas fundamentais. No que tange aos direitos e aos deveres de proteção do meio ambiente, no sentido amplo dos direitos a prestações, na acepção de que este direito à proteção outorga ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros em determinados bens (SARLET, 2005), urge ressaltar o próprio caput do artigo 225, quando dispõe, claramente, o direito e o dever, tanto do Estado (enquanto tarefa estatal) quanto da coletividade (enquanto dever fundamental), de prestar proteção ambiental. Dessa feita, no que se refere ao direito fundamental de preservação ambiental, para efetiva aplicação da norma correspondente ao direito há a necessidade imprescindível da conjugação das duas funções dos direitos fundamentais, tanto na condição de direitos de defesa, quanto na perspectiva prestacional. Não é suficiente que apenas haja a omissão de ações de destruição ou de afetação do meio, é necessário que haja, também, ações que ordenem a preservação e a promoção da saúde e do equilíbrio ambiental. Tais questões serão retomadas e desenvolvidas nos próximos segmentos.53

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Contudo, a proteção do ambiente não é, tão-somente, direito fundamental, mas se consubstancia, ainda, em um do dever fundamental de proteção ao meio ambiente (ANDRADE, 1998). Esse dever fundamental está alicerçado, na pressuposição de que os deveres fundamentais remetem à condição de nele incluir princípios sócio humanos de convivência que, por sua vez, instruem e são instruídos pelas questões presentes no direito fundamental ao contemplar o direito à igualdade, à liberdade, à solidariedade.54 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal55 é pacífica em se posicionar acerca da consideração da proteção ambiental como um direito fundamental. Como se vê o STF compreende o ambiente como “(...) o adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral”. Em que pese a leitura primeira e antropocêntrica que pode ser feita do caput do artigo 225 da Constituição Federal de 88, cumpre destacar o conjunto que alberga um ideal biocêntrico, pois somente através da preservação da vida que se alcançará o equilíbrio proposto pelo legislador. Machado (2009, p. 57-58) salienta que, “o direito ao meio ambiente equilibrado, do ponto de vista ecológico, consubstancia-se na conservação das propriedades e das funções naturais desse meio, de forma a permitir a ‘existência, a evolução e o desenvolvimento dos seres vivos’”. Assim, o equilíbrio somente pode ser obtido a partir da relação entre os seres e o ambiente que os recebe. A Constituição brasileira, como bem pontua Machado (2009), para além de asseverar o meio ambiente como bem ecologicamente equilibrado, determina que é dever do Poder Público proteger a fauna impedindo as práticas que coloquem em risco sua função ecológica ou provoquem a extinção das espécies.

2.1.3 As normas legais infraconstitucionais concretizadoras da proteção do animal não-humano A proteção infraconstitucional federal do animal não-humano se apresenta no ordenamento jurídico brasileiro desde muito antes da história constitucional recente. Desde 03 de janeiro de 1967, por intermédio da Lei n.º 5.197, que ordenamento jurídico brasileiro dispõe de uma norma acerca da proteção da fauna, espe-

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cialmente no que concerne à regulamentação da caça, se é que é possível considerar uma norma que regulamente a caça como norma que tenha vindo para proteger os animais não-humanos. Em seu artigo 1º,56 o referido diploma legal disciplina que os animais que compõem a fauna silvestre, de qualquer espécie, estão proibidos de serem caçados. Contudo, em que pese à proibição parecer peremptória (uma vez que o referido artigo impede a caça de qualquer espécie animal em fase de desenvolvimento e que viva fora do cativeiro, ou seja, desde que seja fauna silvestre) não o é, e permite a abertura de inúmeras exceções que figuram com a denominação de peculiaridades, conforme a técnica legislativa utilizada à época, como se pode verificar através da análise dos dois parágrafos que suportam o referido dispositivo.57 O § 1º abre exceção para o caso da existência de peculiaridades regionais58 e o § 2º permite que, em domínio privado, seja proibida a caça, mesmo que liberada conforme o § primeiro, mas, nesse caso, o responsável pela fiscalização será o particular, situação que muito dificulta a proibição, pois exime o Estado de qualquer tipo de fiscalização passando para o particular toda a responsabilidade de cuidado para com os animais. Ainda no mesmo ano, mas com um enfoque um pouco diferenciado (mas não menos antropocêntrico) do que se manifestou na proteção vinculada à caça, no mês de fevereiro, o ordenamento jurídico brasileiro dispôs sobre a proteção e sobre o estímulo à pesca. No Decreto-Lei n. 221, de 28 de fevereiro de 1967, é nítido o enfoque econômico e a pouca preocupação com a fauna enquanto animal vivo e não apenas como recurso ambiental.59 Em nenhum momento se observa a preocupação do legislador com o objeto da atividade, ou seja, com a proteção dos animais que estão sendo capturados para as finalidades a que está se propondo regular a legislação. Uma legislação que ainda causava polêmica nos bancos acadêmicos, em razão dos múltiplos questionamentos que comportava, em face da carência de uma abordagem ética e bioética que há pouco vem despertando, e em razão dos avanços tecnológicos a que se está subjugado é a lei que regula a vivissecção60 de animais para a pesquisa científica e para fins didáticos. A Lei n.º 6.638, de 8 de maio de 1979 estabelecia, até recentemente, as normas para a prática didática e científica da vivissecção de animais. A Lei regulamentava a prática em todo o território nacional desde que os biotérios e os centros de experiências e demonstrações com animais vivos estivessem registrados. Um caráter protetivo apontava na referida legislação quando esta proibia a realização da atividade sem emprego de anestesia ou sem a supervisão de um técnico especializado.61 Um caráter interessante que podia ser destacado na própria legislação refe-

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rida é que, com a aparência da proteção do animal não-humano, o diploma legal demonstra a brutalidade, a violência e a crueldade do procedimento. O legislador proibia, a ponto de imprimir penalidade ao infrator, se ocorresse vivissecção em estabelecimento de ensino ou em qualquer outro local frequentado por menor de idade, tamanho o choque psicológico que o procedimento pode causar ao expectador, quiçá ao paciente. Urge salientar o quão “benéfica” é a legislação para o animal não-humano que serviu de sujeito de pesquisa ou de simples demonstração em ambiente de prática didática: após a sua utilização o animal não-humano “poderá ser sacrificado” e “caso não sejam sacrificados” poderão ser adotados.62 Em 8 de outubro de 2008 foi sancionada uma nova lei de vivissecção no Brasil, revogando a Lei anterior e instaurando um retrocesso socioambiental jamais visto no que concerne a proteção da fauna. Constrói-se a figura da instauração da quebra do princípio da proibição de retrocesso, pois a Constituição Federal de 88, proibindo o tratamento cruel para com os animais não-humanos, já está encaminhando a legislação para um novo paradigma que foi ignorado pela Lei Arouca (BRASIL, lei n.º 11.794, 2008). A Lei Arouca inclui a possibilidade de realizar atividade de vivissecção em estabelecimentos de ensino médio, o que era proibido na legislação anterior. Convém esclarecer que a proibição não era mera cosmética legislativa, existia porque o procedimento é violento, é brutal, expõe o animal à crueldade (ambos os animais – humano e não-humano)63 e no que tange a validade científica e didática, essa é, no mínimo, duvidosa, quiçá inexistente. Ainda na perspectiva da evolução legislativa, em 14 de dezembro de 1983, a Lei n.º 7.173 veio a disciplinar o estabelecimento e o funcionamento dos jardins zoológicos no Brasil. Passou-se, dessa forma, a considerar, na forma da lei, que qualquer coleção de animais silvestres mantidos em cativeiro, expostos à visitação pública, é zoológico.64 O interessante na legislação supracitada é que, embora, venha a regular um espaço onde estejam mantidos em cativeiro animais silvestres, há sempre a demonstração de preocupação com os animais humanos (visitantes do espaço de exposição) quase na mesma proporção que com os animais não-humanos presos nos espaços e distantes de seu habitat natural. A título de ilustração da observação realizada pode-se destacar o artigo 7º65 do referido diploma legal, que dispõe que os humanos devem estar confortáveis no zoológico. Nessa seara, se pode observar a preocupação do legislador com a proteção e o conforto do visitante, ao passo que, em muitas circunstâncias, o objeto da visita, o sujeito a ser visitado encontra-se em condições precárias, em jaulas pequenas (quando nem mesmo deveria estar em jaulas), em situação de vida muito distante daquela que estaria se estivesse em seu meio.66

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Em 1987, com a entrada em vigor da Lei de n.º 7.643,67 de 18 de dezembro, alcança-se uma evolução no quesito da pesca de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras. Finalmente restou terminantemente proibida a pesca ou qualquer outra forma de molestamento intencional de toda a espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras, impulsionando uma série de trabalhos de pesquisa e de organizações não-governamentais pela proteção de espécies de cetáceos que já estivessem em risco. Convém esclarecer que, em razão disso, perdem a vigência os artigos 41 a 45 do Decreto-Lei n.º 221, de 28 de fevereiro de 1967, que regulava a pesca e a industrialização de cetáceos. O artigo 4168 do Decreto-Lei ainda se referia à pesca da baleia (sendo a baleia um mamífero, portanto impossível de ser pescado). De qualquer sorte, a partir da proibição de qualquer tipo de molestamento aos cetáceos na costa brasileira que foi possível o retorno das populações de várias espécies já tidas como praticamente desaparecidas de nosso litoral. Só no Estado de Santa Catarina, onde está localizada a Área de Preservação Ambiental (APA) da Baleia Franca (que fica localizada do sul da ilha de Florianópolis até o município de Içara),69 mais de cem (100) baleias da espécie são avistadas anualmente junto à costa. Os mamíferos deixam a região da Antártida e partem para o sul do Brasil em busca de águas mais quentes para reprodução e amamentação de seus filhotes.70 Situação que só se faz possível se os animais não forem molestados, nem perseguidos, nem caçados.71 Ainda acerca da pesca, para a proteção dos períodos de reprodução, a Lei nº. 7.679, de 23 de novembro de 1988, reza pela proibição da pesca em determinados locais e em determinadas situações especificas, tais como pescar em cursos d’água nos períodos migratórios para a reprodução ou nos períodos de desova; pescar animais indefesos; animais com tamanho inferiores ao permitido; espécies que devam ser preservadas ou quantidades superiores às permitidas. Com relação ao método de pesca a legislação também foi bem específica e proibiu a pesca com explosivos, substâncias tóxicas, em locais interditados, ou sem licença ou autorização, dentre outras.72 E mesmo com a proteção da legislação se não houver uma efetiva participação da comunidade e um trabalho de educação ambiental pouco efetiva se torna a letra da lei. No ano de 1989, o Decreto n.º 97.633 passou a dispor sobre o Conselho Nacional de Proteção à Fauna, criado pelo artigo 36 da Lei n.º 5.197, de 03 de janeiro de 1967, criando parques e áreas protegidas para o exercício da caça e áreas de lazer, com o intuito de proteção da fauna, fato que é, no mínimo, controverso, pois admitir que uma norma que está criando um conselho nacional para a proteção da fauna fixe áreas de “lazer” destinadas a caça que, por certo, não terá como objeto o homem

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e sim a própria fauna protegida é, assumir institucionalmente a não proteção.73 Ainda em 1989, dentre as inúmeras Portarias do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Ambientais Renováveis (IBAMA) uma, em especial, merece destaque, a Portaria n.º 1522 (já retificada pela Portaria n.º 221, de 1990) que reconhece a Lista Oficial de Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção, uma vez que serve como um alerta (mesmo que tardio) para a finitude da vida animal e concede aos animais arrolados proteção integral, sujeitando aos infratores às penalidades da legislação vigente. A Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conhecida como a Lei dos Crimes Ambientais (LCA), dedicou um capítulo aos crimes contra a fauna. São nove artigos dedicados à proteção dos animais não-humanos, em sua maioria voltados para a proteção das espécies silvestres da fauna. Contudo, cumpre ressaltar que a partir da Lei n.º 9.605/98, as atividades danosas cometidas contra a fauna passaram de contravenção para crime, o que para aqueles que buscam a proteção dos animais é uma gigantesca vitória.74 O artigo 2975 prevê crime com pena de detenção de seis meses a um ano e multa nos casos de morte, perseguição, caça, apanha e utilização de animais, mas somente de animais silvestres nativos ou em rota migratória. Por precisão a LCA definiu o que são animais silvestres no § 3º, dispondo que são todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. Assim, nada impede que se faça criação de animais não-humanos exóticos específicos para a caça. Ou impede? Para a configuração do crime, de acordo com o art. 29, as seguintes hipóteses deverão ocorrer: a) não existir a licença, permissão ou autorização da autoridade competente, ou, b) a conduta praticada pelo agente estar em desacordo com a licença, permissão ou autorização, se existente (COPOLA, 2008). Sendo que o elemento subjetivo é o dolo. O artigo 3276 da Lei dos Crimes Ambientais proíbe a prática de ato abusivo, de maus tratos, de ferir ou de mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.77 Caso ocorra o crime a pena é de detenção de três meses a um ano, e multa, o que, de fato, é irrisório. O § 1º78 do artigo 32 aponta que incorrerá nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos, dispositivo que parece ser ignorado quando se verifica a existência de uma outra norma (dentro do mesmo ordenamento jurídico) que disciplina a vivissecção, como é o caso da Lei Arouca, uma lei insciente. Com efeito, a prática da crueldade

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contra os animais não-humanos é vedada expressamente pela Constituição Federal de 88 (art. 225, § 1, VII), e pelo supracitado art. 32 da Lei de Crimes Ambientais. Cumpre destacar que, há um Projeto de Lei (PL) em tramitação no Congresso Nacional, sob o número 4548, de 1998, da autoria do Deputado Federal José Thomaz Nonô, do PSDB de Alagoas, que pretende alterar a LCA, excluindo das sanções penais a prática de atividade com animal doméstico ou domesticado. O PL-4548/1998 foi, em 23 de abril de 2009, analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados e emitido parecer pela aprovação nos quesitos constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito. O que causa em um primeiro momento, no mínimo, estranheza no que concerne ao procedimento legislativo, pois o PL-4548/1998 foi submetido a três pareceres parciais de relatores da CCJ. O primeiro parecer, do Deputado Federal Bosco Costa considerou o PL-4548/1998 inconstitucional e opinou pela rejeição, o segundo parecer, do Deputado Federal Regis de Oliveira, também opinou pela inconstitucionalidade e pela rejeição, surpreendentemente, em 2 de abril de 2009, o mesmo Deputado relatou pela constitucionalidade e pela aprovação, sendo este o resultado final do parecer da CCJ. Em um segundo momento, a estranheza se dá pela manifesta inconstitucionalidade do PL proposto, pois o inciso VII, do § 1º, do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 disciplina de forma expressa que estão vedadas “as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. Atualmente foi interposto um recurso ao parecer da CCJ, pelo Deputado Federal Ricardo Tripoli com o escopo de ver considerado inconstitucional o PL 4548 (Recurso interposto ao PL 4548/98). Vale advertir que, enquanto o Poder Legislativo não alterar a norma, outras condutas contra os animais não-humanos são reputadas cruéis, para além do que estão dispostos no art. 32 da LCA e podem ser anunciadas da seguinte forma, segundo o que se entende: a caça esportiva amadora não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988; a caça profissional, que foi expressamente proibida pelo art. 2º, da Lei n. 5.197/67; a caça científica sem licença especial é considerada crueldade e proibida, conforme o art. 14 da Lei n. 5.197/67; o abate de animais para o consumo não realizado nos termos da Declaração Universal dos Direitos dos Animais (que já é uma Declaração que busca apenas o bem-estar animal); a farra do boi, que é proibida pelo art. 225, § 1, VII da CF/88 e já foi julgada inconstitucional pelo STF em Recurso Extraordinário n. 153.531-8/SC; a briga de galo, que também já foi proibida pelo STF, através da ADIN-MC 1856-6/RJ; os rodeios e vaquejadas; a utilização de animais em circos, que constitui contravenção penal, conforme disciplina o art.

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64, § 2, do Decreto-Lei n. 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) e mantido pela LCA; a posse de animais de estimação da fauna silvestre, que constitui crime (ressalvada a situação prevista na Resolução do CONAMA n. 394/2007, que estabelece os critérios a serem considerados na determinação das espécies da fauna silvestre, cuja criação e comercialização poderá ser permitida, como animais de estimação); e, a venda de animais vivos em mercados e feiras ilegais (COPOLA, 2008). Contudo, apesar de toda a tipificação e proteção prevista na legislação penal, como pode se observar, as penas são baixas e passíveis de serem substituídas por multas e, ainda, são crimes que envolvem detenção e não reclusão em caso de condenação. Cumpre ressaltar que na perspectiva do direito penal a existência da inequívoca vinculação entre os deveres de proteção e a teoria dos bens jurídicos fundamentais é um elemento legitimador da intervenção do Estado. Dessa feita, cabe aqui a aplicação da lição de Sarlet (2008c) acerca da dupla via do princípio da proporcionalidade:79 ou seja, o legislador e o juiz entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência. Assim, o Estado, por meio de um de seus agentes, pode afetar, desproporcionalmente, um direito fundamental. Vale a advertência que “esta hipótese corresponde às aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle da constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que, nessa perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibições de intervenção” (SARLET, 2008, p. 150). Na medida em que o autor aponta, o princípio da proporcionalidade atua na sua faceta de proibição de excesso, tópico que dispensa apreciação, haja vista não ser de excesso o mal que assola a Lei Penal do Ambiente (LCA), surge a necessidade de se refletir acerca da omissão. Com efeito, a outra banda ocorre quando o Estado frustra o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente, isto é, “ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos”. Nessa via da proporcionalidade, contrapondo a proibição de excesso, que a doutrina batiza a proibição de insuficiência – no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado – “o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção” (SARLET, 2008, p. 150). Para realizar a aplicação do princípio da proporcionalidade, sob a ótica da proibição de proteção insuficiente (já que se crê que é essa a questão da Lei de Crimes Ambientais), deve-se utilizar à análise de três etapas (SARLET, 2008, p. 150): a) se a medida adotada é eficaz para a proteção do bem protegido; b) sendo afirmativa a primeira resposta, é caso de averiguar se existe medida mais eficaz e menos

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interventiva em bens de terceiros; c) afirmativa a resposta anterior, é necessário investigar se o impacto das ameaças e dos riscos pode ser tolerado pela coletividade em face da necessidade de preservar outros direitos e bens fundamentais pessoais ou coletivos. Esse raciocínio escalonado, trifásico, que se realiza para se alcançar o juízo de proporcionalidade de uma determinada medida questionada está envolvendo, portanto, em síntese: os exames de adequação (idoneidade), necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. Diante disso, após a análise, “o meio previsto pelo legislador deve ser adequado e exigível para alcançar o objetivo proposto” (FELDENS, 2005, p. 161). O que se tem de ter em mente quando se aborda a questão do princípio da proteção deficiente, como sustenta Feldens (2005), ou, princípio de proibição de insuficiência como denomina Sarlet (2008), é que o objeto de controle da constitucionalidade é uma abstenção legislativa (quando for o caso da omissão da proteção), ou seja, não está cumprindo um dever de proteção, ou de uma norma legal existente, mas que não protege o direito fundamental ou que o protege deficientemente, uma vez que não permite sua realização na maior medida possível. Contudo, é imperioso frisar que não se está desmerecendo, nem se está, aqui, renunciando ao valor da Lei de Crimes Ambientais. No entanto, muitas de suas penas, efetivamente, pouco ou nada dizem no que concerne a inibir o detrator do bem ambiental. Em 2000, o Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o artigo 84, inciso IV da Constituição Federal de 1988, e tendo em vista o disposto na Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), firmada em Washington, em 03 de março de 1973, aprovou o Decreto n.º 3.607. A CITES é uma convenção extremamente controversa, haja vista a permissão e legitimação do comércio de animais, sob o apelo do controle. A referida convenção estabelece as medidas de controle pelos países importadores e exportadores e dispõem quais são as obrigações das autoridades administrativas e científicas quando existir transação comercial envolvendo animais não-humanos. Cumpre ressaltar que é norma importante para o Brasil, uma vez que o País se encontra numa das maiores rotas de tráfico de animais silvestres do mundo.80 Ao lado da regulação do quesito lazer e diversão dos animais humanos em face dos animais não-humanos, tem-se a legislação dos jardins zoológicos, já apontada anteriormente, e, mais recentemente, a normatização das atividades de rodeio e provas de montaria em 2002, pela Lei n.º 10.519, de 17 de julho. A Lei apresenta uma abordagem nitidamente antropocentrista, cuja preocupação é a regulação na atividade de lazer no qual o animal humano demonstrará a

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sua destreza sobre o animal não-humano. Contudo, para tanto, não poderá fazê-lo sofrer, conforme se depreende da interpretação do artigo 1º e seu §81, pois se o “atleta” deverá ser um perito na sua atividade, não poderá sujeitar o animal (seu parceiro) à crueldade. Contudo, mesmo assim os animais são molestados de alguma forma. A brutalidade da atividade desenvolvida é tamanha que o legislador teve o cuidado de especificar que os animais utilizados nessas atividades não poderão ser molestados, nem mesmo machucados de nenhuma forma e, para tanto, descrevem, com pormenores, as proteções e impedimentos, quais sejam: os apetrechos utilizados nas montarias não poderão causar injurias nos animais, nem mesmo ferimentos. As cintas e barrigueiras devem ser confeccionadas com dimensões adequadas a ponto de garantir conforto ao animal não-humano. É vedado o uso de esporas com rosetas pontiagudas e aparelhos que provoquem choques elétricos para instigar os animais, dentre outras atividades de proteção.82 E, mesmo assim, em caso de descumprimento a multa pecuniária é ínfima e as outras infrações que podem levar até a suspensão definitiva do rodeio, não estabelece a gradação, deixando para as legislações estaduais a aplicação e a fiscalização. O Decreto n.º 4.810, de 19 de agosto de 2003, estabelece as normas para operação de embarcações pesqueiras nas zonas brasileiras de pesca, alto mar e por meio de acordos internacionais, e dá outras providências. O artigo 1º do Decreto estabelece o que são as zonas brasileiras de pesca (mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva). Cumpre salientar que, de todo o Decreto, seguindo a linha do Código de Pesca (Decreto n. º 221, de 1967), o diploma é tremendamente antropocêntrico, voltado para política econômica, tendo apenas um artigo preocupado com as questões ecológicas e ambientais da pesca. Em 2004, o Decreto n.º 4.998 alterou o artigo 2º do Regulamento da Organização, Funcionamento e Execução dos Registros Genealógicos de Animais Domésticos no País, aprovado pelo Decreto nº 58.984, de 3 de agosto de 1966. O referido artigo define animais domésticos para o ordenamento jurídico brasileiro da seguinte forma: “são considerados animais domésticos, para os efeitos deste Regulamento, as seguintes espécies: asinina, bovina, bubalina, equina, suína, ovina, caprina, canina, leporina e outras de interesse zootécnico e econômico, assim definidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”. O diploma, que tutela acerca dos animais domésticos no Brasil, está preocupado com a questão do registro e não com o cuidado e com as inter-relações. Urge observar que, apesar das inúmeras normas aqui comentadas nem todas, como se pode observar alude a proteção do animal não-humano sob a ótica

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sensocentrista ou mesmo, antropocentrista moderada. Muitas das normas de “proteção dos animais” existentes, na realidade, apontam para uma inexistência legislativa, haja vista a lacuna normativa no que concerne ao conteúdo das mesmas. Um Estado que está em busca de um novo marco referencial, de um novo paradigma, um Estado que busca se identificar como um Estado Socioambiental, que é capaz de produzir uma Constituição com o conteúdo ambiental de proteção como a Constituição Federal de 88, deve galgar o próximo passo e, efetivamente, produzir normas que protejam os animais não-humanos reconhecendo-os como seres sencientes.

Notas 1

O presente texto apareceu primeiro no livro “O direito dos animais” (MEDEIROS, 2013, p. 23-65). Reprodução permitida. 2

Gomes aponta para o paradoxo da relação homem/natureza, pois somente a partir de uma tomada global de consciência ecológica é que será possível refrear a destruição do planeta. Fato que é incontestável, contudo, mister registrar que se não se revisitar o modo de exploração econômica, de desenvolvimento e de consumo, talvez o a tomada de consciência chegue tarde demais. Aqui se recolhe a lição de Gomes (1999, p. 43): “enaltecer uma realidade que ganha contornos crescentemente preocupantes para a Humanidade, trata-se, ao fim e ao cabo, de convocar as consciências ecológicas para a necessidade de contrariar a tendência destrutiva da ação humana sobre o ambiente”. 3

Teixeira adverte que foi essa situação de imprevisibilidade das catástrofes ecológicas, já alertadas por Prieur (2004), que se elevou um grito de alerta para os limites de crescimento, haja vista o desenvolvimento desenfreado estar levando a um esgotamento dos recursos naturais. Teixeira sustenta que essas circunstâncias “criaram na consciência dos legisladores a necessidade de impor limites e de criar a obrigação de poupar os recursos para as gerações futuras”. No caso da pesquisa em tela, sempre há como se questionar a legitimidade e a efetividade da legislação ambiental. A título exemplificativo pode-se destacar a situação dos zoológicos no Brasil (Lei n.º 7.173/83), norma caracteristicamente antropocêntrica que se preocupa muito mais com o zelo pelo animal humano do que pelo animal não-humano, possuindo pouca ou nenhuma consciência ecológica 4

Aragão (1997) esclarece e, aqui se recolhe a sua lição, que “A verdadeira percepção das características, perfeitamente terrenas, dos bens ambientais verificou-se apenas a partir de meados do século XX. Foi precisamente nesta altura, quando a sobre-explo-

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ração dos recursos ambientais se começou a fazer sentir como uma ameaça séria para a Economia, para o Homem e para a própria Natureza, que se tornou evidente a necessidade de adoptar medidas públicas dirigidas ao controlo da degradação ao ambiente e, particularmente, ao controlo da poluição”. 5

A simples observação das atuais ‘merchandising’ dos grandes bancos multinacionais que atuam no país volta-se para destacar ações de ecologia social, ecologia ambiental e de desenvolvimento sustentável, além das já defendidas atividades de ecologia cultural em cada região específica.

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Giddens (1991, p. 42-43) preocupado em delimitar o conceito de risco estabelece a diferença entre risco e perigo, afirmando que em que pese estarem intimamente relacionados não são a mesma coisa: “a diferença não reside em se um indivíduo pesa ou não conscientemente as alternativas ao contemplar ou assumir uma linha de ação específica. O que o risco pressupõe é precisamente o perigo (não necessariamente a consciência do perigo). Uma pessoa que arrisca algo corteja o perigo, onde o perigo é compreendido como uma ameaça aos resultados desejados. Qualquer um que assume um ‘risco calculado’ está consciente da ameaça ou ameaças que uma linha de ação específica pode pôr em jogo. Mas é certamente possível assumir ações ou estar sujeito a situações que são inerentemente arriscadas sem que os indivíduos envolvidos estejam conscientes do quanto estão se arriscando. Em outras palavras, eles estão inconscientes do perigo que correm”. Com relação à temática ambiental cumpre observar a ponderação de Giddens no que tange a individualidade e a coletividade e o risco, segundo o autor: “o risco não é apenas uma questão de ação individual. Existem ‘ambientes de risco’ que afetam coletivamente grandes massas de indivíduos – em certas instancias, potencialmente todos sobre a Terra, como no caso de risco de desastre ecológico ou guerra nuclear”. 7

E é sempre relevante salientar de que ambiente estamos nos referindo e de que civilização desenvolvida os autores, como os referidos, apontam como justamente vínculo preocupação com o ambiente, pois, é notório que muitas populações antigas primaram pela proteção do meio em sua cultura como forma de manter sua própria história.

8

Em obra de referência sobre a temática, Leite e Ayala (2002, p. 103) afirmam que: “A sociedade capitalista e o modelo de exploração capitalista dos recursos naturais economicamente apreciáveis se organizam em torno das práticas e comportamentos potencialmente produtores de situações de risco. Esse modelo de organização econômica, política e social submete e expõe o ambiente, progressiva e constantemente, ao risco”.

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O que poderia ser entendido, quase que como uma tautologia, no mínimo, uma redundância, embora, se possam encontrar ambientes que estejam a serviço do econômico e da tecnologia e ideologia instrumental, estejam os mesmos amparados numa perspecti-

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va capitalística ou socialista (DELEUZE e GUATTARI, 1996). 10

Por derradeiro, nesse sentido, esses autores afirmam que: “Em horizonte de início de milênio na reconfiguração das políticas de um mundo marcado por desigualdades sociais, empobrecimento das maiorias e degradação ambiental, em escala planetária, a construção de um Estado do ambiente parece ser uma utopia realista, porque se sabe que os recursos ambientais são finitos e antagônicos com a produção de capital e o consumo existentes” (LEITE e AYALA, 2002, p. 20). 11

No sentido de conhecer os danos provenientes de atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores. 12

O problema do esgotamento dos recursos naturais causados pela construção civil pode ter a aparência de uma situação ambiental não moderna ou contemporânea, contudo basta um contato, mesmo que superficial, com a realidade das cidades e dos foros ambientais para se verificar a gravidade das situações das pedreiras, tanto em matéria natural (escavação dos morros), quanto em matéria laboral (trabalhadores sem carteira assinada e sem perceber nenhum direito trabalhista), constituindo um problema de grave ordem socioambiental. A título ilustrativo pode-se apontar a situação de Nortelândia no interior do Mato Grosso, onde todos os quebradores de pedra que trabalhavam em situações análogas às de escravos somente receberam as suas primeiras carteiras de trabalho depois da realização de um Termo de Ajustamento de Conduta junto ao Ministério Público do Trabalho (TAVES, 2008). O mesmo ocorre com a questão da areia para a construção, que muitas vezes é retirada de áreas de preservação permanente. 13

Na grande categoria denominada atividades agrícolas podem-se incluir todas as alterações que envolvem plantações e, nesse sentido, está-se lidando com o plantio de organismos geneticamente modificados, o plantio de florestas de pinos, as monoculturas destinadas aos biocombustíveis e assim por diante. 14

As atividades de mineração têm afetado sobremaneira as áreas de preservação ambiental a ponto de abalar o equilíbrio ecológico das unidades e despertar a necessidade de uma nova forma de gestão. 15

Embora aqui a preocupação seja prioritariamente com a proteção jurídico-constitu-

cional. 16

Essa é uma das premissas do presente trabalho. Considerando que não se busca uma luta por uma igualdade massificadora, mas uma igualdade de interesses, afirmando simultaneamente, suas semelhanças e suas diferenças (OST, 1995), o diferente e a singularidade entre os animais humanos e animais não-humanos na ótica dos direitos e deveres fundamentais (DELEUZE, 2000).

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CF/88. Art. 225. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas.

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Nessa seara, importantes iniciativas do Ministério Público têm sido efetivadas junto aos órgãos públicos e às secretarias municipais e estaduais para que um trabalho permanente e educativo se desenvolva junto à crianças, adolescentes e adultos na formação de uma cultura ecológica, assim como na ação direta via Termo de Ajustamento de Conduta. 19

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 20

Cfe. CF/88. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Cumpre salientar que, atualmente o artigo 182 da CF/88 está regulamentado pelo Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.527 de 10/07/2001).

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Além dos dispositivos referidos no corpo do texto, cumpre salientar que a Carta Fundamental também atribuiu competência à União, no artigo 21, para: “XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”.

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Cfe. CF/88. Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (...) VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

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Na linha de proteção do ambiente laboral, Sirvinskas salienta que o direito ambiental não se preocupa somente “com a poluição emitida pelas indústrias, mas também com a exposição direta dos trabalhadores aos agentes agressivos”.

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Compreendendo o ambiente na sua acepção natural, artificial, cultural e do trabalho. Nesse sentido, corroboramos o pensar de Gonçalves (2004, p. 07) ao afirmar que “parece não haver campo do agir humano com o qual os ecologistas não se envolvam: preocupam-nos questões que vão desde a extinção de espécies como as baleias e os micos-leões, a explosão demográfica, a corrida armamentista, a urbanização desenfreada, a contaminação dos alimentos, a devastação das florestas, o efeito estufa, as técnicas centralizadoras até as injunções do poder político que nos oprime e explora”.

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Nessa perspectiva, Sunstein (2000, p. xiii) adverte os riscos a que todas as nações, globalmente, estão submetidas, reforçando que as situações ambiental e econômica não podem ser tratadas isoladamente: “em todo o mundo, as nações estão tratando de reduzir riscos, melhorar a segurança e prolongar a vida. A redução dos riscos, por certo, tem-se convertido em um objetivo principal dos governos atuais. o que se deve fazer em face do aquecimento global? Como as nações deveriam lidar com os riscos derivados do terrorismo, incluídos os riscos associados às armas químicas e a segurança em aviões? Os governos deveriam regular, ou proibir, a modificação genética dos alimentos? Devese eliminar o arsênico da água corrente? Qual a relação entre a política de energia e a proteção do ambiente? O governo deveria exigir que os automóveis cumprissem com as prescrições em matéria de economia de combustível? Poderiam esses requisitos tornar menos seguros os veículos? Questões desse tipo preocupam as instituições públicas não só em nível nacional como também em internacional” (tradução nossa). 26

Sunstein (2005, p. 13) resumiu que a cautela pode ser apreendida em uma frase: “better safe than sorry” e, realmente, não há como pode discordar. 27

Os autores ressaltam que apesar da existência de lei protetiva coibindo a caça ou mesmo a captura, “este primo da preguiça e do tamanduá” está à beira da extinção. 28

A esse respeito vale trazer a ponderação de Albuquerque (2006, p. 99) acerca do risco e da catástrofe: É preciso ter em consideração que o cenário de risco é muito mais amplo que o cenário de catástrofe. O Estado não pode agir somente em situações emergenciais e localizadas, como vem acontecendo. O cenário de risco é dinâmico, afinal o risco de hoje não é o risco de amanhã. Não há como trabalhar apenas ameaças e vulnerabilidades já constatadas, o cenário de risco exige um processo de projeções que só poderá ser alcançado através de um planejamento estruturado. 29

A esse respeito merece destaque a fala de Albuquerque (2006, p. 63): “a poluição por poluentes orgânicos persistentes (POPs) é denominada ‘poluição invisível’, o que caracteriza bem a natureza dos perigos causados pela sociedade pós-industrial às comunidades humanas, que não são capazes de identificar os riscos que se fazem presentes no seu cotidiano de vida sem dados e estudos científicos específicos”. 30

A fonte é da Anfal Pet (Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais de Companhia) e do IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística). Notícia obtida no site . 31

Esse olhar se apresenta por um prisma, essencialmente, jurídico-cultural quando direcionamos a questão para a proteção dos animais não-humanos. Gonçalves (2004, p. 09) assevera, nesse sentido, que o movimento ecológico é um movimento de “caráter político-cultural, demonstrando que cada povo/cultura, constrói o seu conceito de natu-

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reza ao mesmo tempo em que institui as suas relações sociais”. 32

Esse diálogo, a semelhança do desafio que Habermas (1988, p. 102) nos faz em Teoria da Ação Comunicativa, como uma experiência contrafática, nos permite trabalhar o pensamento não como algo dado e imutável, mas como propostas para se pensar, repensar, instituir, desinstituir e reconstituir o presente em novas bases argumentativamente construídas. 33

Essa análise já apresenta uma perspectiva claramente antropocêntrica, pois a preocupação da referida autora consiste em demonstrar as necessidades da espécie humana em primeiro plano e consequência da preocupação com o homem a proteção do meio que o circunda. 34

Cumpre ressaltar que estamos utilizando o conceito de norma de Alexy, no sentido de entendê-la como espécie da qual princípios e regras são gênero. Alexy (1997, p. 8183) dispõe que: “a menudo, no se contraponen regla y principio sino norma y principio o norma y máxima. Aquí las reglas y los principios serán resumidos bajo el concepto de norma. Tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la ayuda de las expresiones deónticas básicas Del mandato, la permisión y la prohibición. Los principios, al igual que las reglas, son razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La distinción entre reglas y principios es puedes una distinción entre dos tipos de normas”.

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A preocupação do Estado se fazia observar pela definição dos seus bens, fato que garantia a exploração e o lucro sobre os recursos naturais. O inciso 29, do artigo 34, bem retrata a situação: “Art. 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional: 29º) legislar sobre terras e minas de propriedade da União” (BRASIL, 1891).

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A esse respeito pode-se destacar o § 3, do art. 5 da referida Carta: “Art. 5º - Compete privativamente à União: § 3º - A competência federal para legislar sobre as matérias dos números XIV e XIX, letras c e i , in fine , e sobre registros públicos, desapropriações, arbitragem comercial, juntas comerciais e respectivos processos; requisições civis e militares, radiocomunicação, emigração, imigração e caixas econômicas; riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca, e a sua exploração não exclui a legislação estadual supletiva ou complementar sobre as mesmas matérias. As leis estaduais, nestes casos, poderão, atendendo às peculiaridades locais, suprir as lacunas ou deficiências da legislação federal, sem dispensar as exigências desta”.

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Aliás como indica o inciso III, do art. 10 da Carta de 34: “Art. 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: III - proteger as belezas naturais e os monumentos

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de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte”. 38

Importante anotar: “Art. 20 - São do domínio da União: II - os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países ou se estendam a território estrangeiro; III - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas fronteiriças. Art. 21 - São do domínio dos Estados: II - as margens dos rios e lagos navegáveis, destinadas ao uso público, se por algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular”. (BRASIL, 1934). 39

Partindo-se do pressuposto que a preocupação com o ambiente atualmente seja mais desprendida dos valores econômicos, o que de fato, sabemos que não condiz com a realidade. Contudo, há época da Constituição de 1934 a consciência de preservação ecológica era praticamente inexistente, portanto muito mais voltada para o controle das fronteiras e dos recursos financeiros que poderiam derivar dos bens ambientais. 40

Conforme a Carta: “Art. 16 - Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias: XIV - os bens do domínio federal, minas, metalurgia, energia hidráulica, águas, florestas, caça e pesca e sua exploração. Art. 18 - Independentemente de autorização, os Estados podem legislar, no caso de haver lei federal sobre a matéria, para suprir-lhes as deficiências ou atender às peculiaridades locais, desde que não dispensem ou diminuam es exigências da lei federal, ou, em não havendo lei federal e até que esta regule, sobre os seguintes assuntos: a) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e sua exploração”. (BRASIL, 1937). 41

E aqui já opto por fazer a utilização do verbete ‘recurso’ com a leitura econômica do mesmo já que estão relacionadas às riquezas do Brasil. 42

Art. 36 - São do domínio federal: b) os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países ou se estendam a territórios estrangeiros. c) as ilhas fluviais e lacustres nas zonas fronteiriças. Art. 37 - São do domínio dos Estados: b) as margens dos rios e lagos navegáveis destinadas ao uso público, se por algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular. 43

José Afonso da Silva (2004, p. 120-121) assevera que “toda água, em verdade, é um bem de uso comum de todos. Tanto que ninguém pode, licitamente, impedir que o sedento sorva a água tida como de domínio particular”. 44

Art. 5º - Compete à União: XV - legislar sobre: l) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, floresta, caça e pesca. 45

Art. 152 - As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d’água, cons-

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tituem propriedade distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial. Art. 153 - O aproveitamento dos recursos minerais e de energia hidráulica depende de autorização ou concessão federal na forma da lei. § 1º - As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros ou a sociedades organizadas no País, assegurada ao proprietário do solo a preferência para a exploração. Os direitos de preferência do proprietário do solo, quanto às minas e jazidas, serão regulados de acordo com a natureza delas. § 2º - Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento de energia hidráulica de potência reduzida. § 3º - Satisfeitas as condições exigidas pela lei, entre as quais a de possuírem os necessários serviços técnicos e administrativos, os Estados passarão a exercer nos seus territórios a atribuição constante deste artigo. § 4º - A União, nos casos de interesse geral indicados em lei, auxiliará os Estados nos estudos referentes às águas termominerais de aplicação medicinal e no aparelhamento das estâncias destinadas ao uso delas (BRASIL, 1946). 46

Importante ressaltar os dispositivos que disciplinam a competência, o domínio e, até mesmo os impostos: “Art. 4º - Incluem-se entre os bens da União: II - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, que sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro, as ilhas oceânicas, assim como as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; III - a plataforma submarina; IV - as terras ocupadas pelos silvícola. Art. 5º - Incluem-se entre os bens dos Estados os lagos e rios em terrenos de seu domínio e os que têm nascente e foz no território estadual, as ilhas fluviais e lacustres e as terras devolutas não compreendidas no artigo anterior. Art. 8º - Compete à União: XVII legislar sobre: h) jazidas, minas e outros recursos minerais; metalurgia; florestas, caça e pesca; I) águas, energia elétrica e telecomunicações. Art. 22 - Compete à União decretar impostos sobre: VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos; IX - produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica; X - extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais do País”. (BRASIL, 1967). 47

Conforme Freitas (1998, p. 151), “O sistema, em sua abertura [...] não prospera senão no intérprete em sua idêntica abertura e vocação para ser o positivador derradeiro do Direito”.

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Realizando uma pesquisa por amostragem e fazendo o levantamento daquelas Constituições que trazem à baila a questão ambiental selecionam-se algumas Constituições que se destacam na proteção do ambiente e são da família romano-germânica, a mesma da Constituição brasileira. Nessa linha, colaciona-se o dispositivo da Constituição francesa de 1958 que busca que todo o cidadão tenha o direito, individualmente de viver em um ambiente equilibrado e saudável. O artigo 66 da Carta lusitana, de 1976, prevê

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a todos o direito a qualidade de vida, por meio de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. A Constituição Espanhola (1978), em seus artigos 45 e 46, disciplina que todos têm o direito de desfrutar de um ambiente adequado para o desenvolvimento da pessoa. A Constituição colombiana, de 1991, é clara, ainda, ao dispor que todos têm direito a um ambiente saudável e que a lei garantirá a participação da comunidade nas tomadas de decisões que possam vir a afetá-lo. 49

(RTJ 164/158-161) (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI-MC 3540/DF).

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Quando se afirma que além de o ser humano estar inserido no ambiente natural faz parte dele, significa dizer que o homem não está desvinculado ou apartado da natureza, o homem faz parte do meio tal como um igual, o homem é um animal que faz parte da teia da vida. 51

Conforme Streck, em confessada companhia a Eros Roberto Grau, existe diferença entre texto (jurídico) e norma (jurídica) ao afirmar que “o texto, preceito ou enunciado normativo é alográfico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estará completo quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nova forma de expressão. Assim, o sentido expressado pelo texto já é algo novo, diferente do texto. É a norma. A interpretação do Direito faz a conexão entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicação particular: ou seja, opera sua inserção no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretação. É a ordem jurídica, em seu valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações, ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa”. 52

Quanto à dupla função defensiva e prestacional das normas do direito de proteção do meio ambiente, pode-se arrolar como exemplo o inciso IV, do §1º, do artigo 225 e o §5º, do referido artigo como direitos de defesa e os incisos I e V, do §1º como direitos a prestações. 53

Pode-se afirmar, ainda, que no sistema da Constituição e dos Direitos Fundamentais encontram-se outras normas diretamente relacionadas à proteção ambiental assim como são possíveis conflitos – tal como o direito do uso da propriedade de uma empresa e a proteção do meio ambiente. Inolvidável também é o papel da legislação infraconstitucional na concretização e desenvolvimento das diretrizes estabelecidas pela Carta Magna de 1988. As questões, que aqui vão referidas, serão em parte consideradas, mas não serão aprofundadas haja vista não serem o objeto deste trabalho. 54

A título de ilustração cumpre apontar que o constituinte argentino, assim como o brasileiro, também determinou a proteção ao meio ambiente como um direito e um

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dever fundamental intergeracional e prospectivo. A Constituição Espanhola, no mesmo sentido, também inseriu em seu texto o dever fundamental de proteção ao ambiente. A Constituição da República Francesa (1958) proclama que o povo francês considera que o equilíbrio natural e os recursos naturais são condições de emergência da humanidade e que a existência da humanidade é indissociável do ambiente. Nessa seara, determina que é dever de todas as pessoas a proteção e preservação do meio ambiente e o dever de indenizá-lo e repará-lo em caso de ocorrência de dano. A Constituição da República Portuguesa (1976) aborda a questão ambiental, tal como a Carta brasileira, como um direito e um dever fundamental de proteção ao meio ambiente. Pode-se observar no artigo 9º da Carta Portuguesa, a preocupação com a proteção do ambiente. Já a Constituição da República do Chile (1980) é concisa no dispositivo de proteção do ambiente e refere-se apenas ao dever do Estado em ofertar um ambiente sadio ao cidadão. Todavia, alerta que poderá haver algumas restrições legais de liberdades e de exercícios de determinados direitos para que se proteja o meio ambiente. 55

BRASIL. STF. ADI-MC 3540/DF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: 01/09/2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno – DJ - 03-02-2006 PP-00014.

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Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha. (BRASIL, lei n.º 5.197, 1967).

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§ 1º Se peculiaridades regionais comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato regulamentador do Poder Público Federal. § 2º A utilização, perseguição, caça ou apanha de espécies da fauna silvestre em terras de domínio privado, mesmo quando permitidas na forma do parágrafo anterior, poderão ser igualmente proibidas pelos respectivos proprietários, assumindo estes a responsabilidade de fiscalização de seus domínios. Nestas áreas, para a prática do ato de caça é necessário o consentimento expresso ou tácito dos proprietários, nos termos dos artigos 594, 595, 596, 597 e 598 do Código Civil (BRASIL, lei n.º 5.197, 1967). 58

A interrogação se faz presente pela falta de precisão legislativa ao liberar a atividade de caça. Utiliza a expressão “peculiaridades regionais” sem realizar um mínimo de esclarecimento a respeito, deixando um espaço enorme para a criação.

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Art. 1º Para os efeitos deste Decreto-lei define-se por pesca todo ato tendente a capturar ou extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais frequente meio de vida. Art. 2º A pesca pode efetuar-se com fins comerciais, desportivos ou científicos; § 1º Pesca comercial é a que tem por finalidade realizar atos de comércio na forma da legislação em vigor. § 2º Pesca desportiva é a que se pratica com linha de

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mão, por meio de aparelhos de mergulho ou quaisquer outros permitidos pela autoridade competente, e que em nenhuma hipótese venha a importar em atividade comercial; § 3º Pesca científica é a exercida unicamente com fins de pesquisas por instituições ou pessoas devidamente habilitadas para esse fim (BRASIL, Decreto-Lei n. 221, 1967). 60

O termo vivissecção tem a sua origem no latim com a junção de “vivus” (vivo) e “sectio” (corte, secção). Logo, “vivissecção” quer dizer “cortar um corpo vivo”, no caso dos animais não-humanos, para a realização de testes laboratoriais, demonstrações didáticas, etc. A vivissecção pode ser definida, portanto, como sendo o uso de seres vivos, principalmente animais não-humanos, para o estudo dos processos da vida e das doenças, na prática experimental e didática. Greif e Trez (2009, p. 19) definem vivissecção como sendo: “qualquer forma de experimentação animal que implique intervenção com vistas a observar um fenômeno, alteração fisiológica ou estudo anatômico”. 61

Art. 3º - A vivissecção não será permitida: I - sem o emprego de anestesia; II - em centro de pesquisas o estudos não registrados em órgão competente; III - sem a supervisão de técnico especializado; IV - com animais que não tenham permanecido mais de quinze dias em biotérios legalmente autorizados; V - em estabelecimentos de ensino de primeiro e segundo graus e em quaisquer locais frequentados por menores de idade. (BRASIL, lei n.º 6.638, 1979). 62

Art. 4º - O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos das experiências que constituem a pesquisa ou os programas de aprendizado cirúrgico, quando, durante ou após a vivissecção, receber cuidados especiais. § 1º - Quando houver indicação, o animal poderá ser sacrificado sob estrita obediência às prescrições científicas. § 2º - Caso não sejam sacrificados, os animais utilizados em experiências ou demonstrações somente poderão sair do biotério trinta dias após a intervenção, desde que destinados a pessoas ou entidades idôneas que por eles queiram responsabilizar-se. (BRASIL, lei n.º 6.638, 1979). Na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, uma cadela sem raça defina foi utilizada para demonstração com finalidade acadêmica e em treinamento cirúrgico por nove (09) vezes consecutivas, no ano de 2005. Era submetida a uma cirurgia, era colocada de repouso e depois de recuperada, novamente utilizada, mas o animal foi resistente e não morreu. Os estudantes da última turma que utilizou o animal, penalizados, resolveram colocar a cadela para adoção, haja vista a sua força de vontade em manter-se viva, mesmo sendo submetida reiteradas vezes a procedimentos invasivos e dolorosos. 63

Cumpre registrar que, o procedimento, com finalidade acadêmica, foi observado in loco pela pesquisadora em duas oportunidades e em duas instituições de ensino superior. É relevante registrar que, para além de acompanhar a vivissecção, a pesquisadora investigou acerca do descarte dos animais em duas outras instituições de ensino supe-

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rior. Portanto, crê-se que quando a legislação proibia que o procedimento fosse realizado no ensino médio é porque, de fato, é violento. 64

Art. 1º - Para os efeitos desta lei, considera-se jardim zoológico qualquer coleção de animais silvestres mantidos vivos em cativeiro ou em semiliberdade e expostos à visitação pública (BRASIL, lei n.º 7.173, 1983).

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Art. 7º - As dimensões dos jardins zoológicos e as respectivas instalações deverão atender aos requisitos mínimos de habitabilidade, sanidade e segurança de cada espécie, atendendo às necessidades ecológicas, ao mesmo tempo garantindo a continuidade do manejo e do tratamento indispensáveis à proteção e conforto do público visitante (BRASIL, lei n.º 7.173, 1983).

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Em agosto de 2005 o Jardim Zoológico da Cidade de Londres, na Inglaterra, realizou uma exibição pelo período de 26 a 29 de agosto de 2005, no mínimo, curiosa, em que a atração eram as pessoas. O nome da exibição era o “Zoológico Humano” e a ideia da atração era alertar o público sobre a importância de incluir o homem como parte da natureza. As pessoas que participaram da exibição permaneceram, por pelo menos um dia, em gaiolas, sob o olhar do público. Informação acessada em .

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Art. 1º - Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras. (BRASIL, lei n.º 7.643, 1987). 68

Art. 41. Os estabelecimentos destinados ao aproveitamento de cetáceos em terra, denominar-se-ão Estações Terrestres de Pesca da Baleia. (BRASIL, Decreto-Lei n.º 221, 1967). 69

BRASIL. Decreto Federal de Criação de Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, de 14/09/2000.

70

Conforme notícia disponibilizada pelo Projeto Baleia Franca em: .

71

A Portaria n.º 117, de 26 de dezembro de 1996 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA) veda a qualquer embarcação que opere em águas jurisdicionais brasileiras a aproximar-se de qualquer espécie de baleia cachalote e orca com motor engrenado a menos de 100m de distância do animal mais próximo, devendo o motor ser obrigatoriamente mantido em neutro, quando se tratar de baleia jubarte e desligado ou mantido em neutro, para as demais espécies. A Portaria ainda veda a perseguição com motor ligado a qualquer baleia por mais de 30 (trinta) minutos, ainda que respeitadas as distâncias supra estipuladas; a interrupção do curso de des-

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locamento de cetáceo(s) de qualquer espécie ou tentar alterar ou dirigir esse curso; a penetrar intencionalmente em grupos de cetáceos de qualquer espécie, dividindo-o ou dispersando-o; a produção de ruídos excessivos, além daqueles gerados pela operação normal da embarcação, a menos de 300 m (trezentos metros) de qualquer cetáceo. A Portaria vedou, também, o mergulho e a natação a uma distância inferior a 50m do animal. Com a mesma intenção protetiva, a Instrução Normativa n.º 102, de 19 de junho de 2002 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA) regulamenta as restrições de atividades náuticas nos meses de junho a novembro em diversos setores da APA da Baleia Franca com o intuito de proteger os animais que vem se proteger no litoral brasileiro. Os setores que estão sujeitos à restrição são: a Praia da Vila, a Praia d’Água, a Praia da Gamboa, a Praia do Luz, a Praia do Silveira e a Praia de Garopaba. 72

Art. 1º - Fica proibido pescar: I - em cursos d’água, nos períodos em que ocorrem fenômenos migratórios para reprodução e, em água parada ou mar territorial, nos períodos de desova, de reprodução ou de defeso; II - espécies que devam ser preservadas ou indivíduos com tamanhos inferiores aos permitidos; III - quantidades superiores às permitidas; IV - mediante a utilização de: a) explosivos ou de substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante; b) substâncias tóxicas; c) aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos; V - em época e nos locais interditados pelo órgão competente; VI - sem inscrição, autorização, licença, permissão ou concessão do órgão competente. § 1º Ficam excluídos da proibição prevista no item I deste artigo os pescadores artesanais e amadores que utilizem, para o exercício da pesca, linha de mão ou vara, linha e anzol. § 2º É vedado o transporte, a comercialização, o beneficiamento e a industrialização de espécimes provenientes da pesca proibida. (BRASIL, lei n.º 7.679, 1988). 73

Art. 1 - I - criação e implantação de Reservas e Áreas protegidas, Parques e Reservas de Caça e Áreas de Lazer; II - o manejo adequado da fauna. (BRASIL. Decreto n.º 97.633, 1989). 74

Até o advento da LCA a proteção penal da fauna brasileira se deu por caminhos diversos. A primeira medida de proteção dos animais se deu no Governo de Getúlio Vargas, então Chefe do Governo Provisório, avocando a atividade legiferante, promulgou o Decreto Federal n.º 24.645/1934 que em seu art. 3º elencava um rol extensivo de atividade que disciplinava como maus-tratos (já revogado pelo Decreto Federal n.º 11/1991). Em 3 de outubro de 1941 foi editada a lei de contravenções penais que, em seu art. 64 disciplinava a prática de crueldade contra os animais como contravenção penal (artigo que foi revogado pela LCA). 75

Art. 29 - Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nati-

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vos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. (BRASIL, lei n.º 9.605, 1998). 76

Art. 32 - Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. (BRASIL, lei n.º 9.605, 1998).

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Copola (2008, p. 88) elucida que “os animais domesticados são aqueles que apesar de não terem nascido para viver no mesmo habitat que o homem, podem adaptar-se a tal meio, dependendo da ação do homem” (existem animais que nascem domésticos? Seria, então a domesticação uma questão de natureza?). A autora sustenta, ainda, que os animais nativos são “todos aqueles pertencentes ao nosso ecossistema, e os animais exóticos, por outro lado, são todos os provenientes de outro ecossistema”. Não pode-se olvidar, no entanto, que o Brasil possui inúmeros ecossistemas quando se for analisar o conceito de animais nativos e exóticos. 78

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos (BRASIL, lei n.º 9.605, 1998).

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Uma das lições que resta a respeito do princípio (postulado?) da proporcionalidade é a proferida por Freitas ao afirmar que: “o princípio da proporcionalidade quer significar que o Estado não deve agir com demasia, tampouco de modo insuficiente na consecução de seus objetivos. Exageros para mais ou para menos configuram irretorquíveis violações do princípio” (FREITAS, 1997, p. 56).

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O tráfico de animais representa hoje, ao lado das drogas proibidas e de armas, uma das fontes principais de renda ilícita dos criminosos. Desta forma, combater a guarda de animais silvestres em cativeiros, por menor que seja a quantidade de animais, é dever do Poder Público. O Brasil é um dos principais alvos dos traficantes da fauna silvestre devido a sua imensa biodiversidade. Os traficantes movimentam cerca de 10 a 20 bilhões de dólares em todo o mundo, colocando o comércio ilegal de animais silvestres na terceira maior atividade ilícita do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. O Brasil participa com 15% desse valor, aproximadamente 900 milhões de dólares. 81

Art. 1º - A realização de rodeios de animais obedecerá às normas gerais contidas nesta Lei. Parágrafo único. Consideram-se rodeios de animais as atividades de montaria ou de cronometragem e as provas de laço, nas quais são avaliados a habilidade do atleta em dominar o animal com perícia e o desempenho do próprio animal. (BRASIL, lei n.º 10.519, 2002).

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Art. 4º - Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas. § 1º As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir o conforto dos animais. § 2º Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos. § 3º As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal. (BRASIL, lei n.º 10.519, 2002).

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O julgamento da ADI nº 4277 pelo STF e o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como união estável: interseções entre direito e sexualidade Paula Pinhal de Carlos

1. Introdução Este texto trata do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277-DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ, julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 5 de maio de 2011. A ADI nº 4277 e a ADPF nº 132 foram julgadas procedentes, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, estabelecendo-se à união estável homoafetiva as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva. A ADPF nº 132 foi proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. O descumprimento de preceito fundamental resultaria da interpretação conferida a alguns artigos do Estatuto dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, especialmente no que se refere aos termos família, cônjuge e dependente, reduzindo-se assim os direitos dos homossexuais. Seria resultante, ainda, das decisões proferidas no Estado do Rio de Janeiro e em outras unidades federativas do Brasil, negando às uniões entre pessoas do mesmo sexo os direitos reconhecidos aos heterossexuais. Sendo assim, restariam violados os preceitos fundamentais da igualdade, da segurança jurídica, da liberdade e da dignidade da pessoa humana. É postulada na ação a aplicação do regime jurídico da união estável às relações homoafetivas. A ADI nº 4277 foi proposta pela Procuradoria Geral da República, com o objetivo de que o STF declarasse a obrigatoriedade do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidades familiares, desde que cumpridos os mesmos requisitos para a caracterização da união estável entre homem e mulher. A ação objetivava, ademais, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. A fundamentação foi embasada nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de discriminações odiosas, da liberdade e da proteção à segurança jurídica. O julgamento dessas duas ações levou o STF não somente a se pronunciar

sobre a extensão ou não de direitos assegurados a heterossexuais a homossexuais. Ele resultou, também, na discussão sobre diversas questões envolvendo a temática da sexualidade, na medida em que esta, no caso em tela, possui diversas interseções, ou seja, pontos de contato, com as questões jurídicas debatidas nessa oportunidade. Logo, passa-se a discutir a seguir ditos e não ditos sobre sexualidade pelo STF, bem como se ressalta a inadequação na utilização de alguns termos.

2. Não diferenciação entre sexo e gênero Em primeiro lugar, cabe referir a não diferenciação realizada por alguns dos ministros entre sexo e gênero. Os dois conceitos, absolutamente distintos, aparecem como sinônimos em algumas vezes e, em outras, é utilizado o termo gênero, quando na realidade a referência é ao sexo. É o que se verifica no voto de Ricardo Lewandowski: É exatamente o que estabelece, como parâmetro, a nossa Carta Republicana, no citado art. 226, § 3º, averbando que se trata de uma a união “entre o homem e a mulher”, ou seja, uma relação duradoura desenvolvida entre pessoas de gênero distinto, à qual se assegura a conversão em casamento, nos termos da lei. (grifos nossos)

Em outro momento, o mesmo julgador refere-se a casais formados por pessoas de sexo distinto como “casais de gênero diverso”. A diferença, embora sutil, reside no fato de que, apesar de semelhante em muitos aspectos à união estável entre pessoas de sexo distinto, especialmente no que tange ao vínculo afetivo, à publicidade e à duração no tempo, a união homossexual não se confunde com aquela, eis que, por definição legal, abarca, exclusivamente, casais de gênero diverso.

Também Marco Aurélio de Mello refere que a ação trata da “afetividade direcionada a outrem de gênero e igual”. Na mesma linha segue Celso de Mello, para quem o artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição, ao tratar da união estável entre homem e mulher, faz alusão à “diversidade de gênero”. Resta clara, dessa maneira, a utilização equivocada dos conceitos de sexo e gênero pelos referidos ministros do STF. Utilizam os julgadores a categoria gênero quando na realidade querem se referir a sexo, uma vez que, o que está em jogo, quando se trata do reconhecimento jurídico de relações entre homossexuais, é o sexo, a caracterização biológica dos indivíduos que se relacionam com pessoas que possuem o mesmo sexo que o seu, e não a construção cultural realizada sobre esse aparato biológico denominado sexo. É o que é possível depreender a partir da eluci-

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dação do conceito de gênero e de sua relação com o conceito de sexo. O conceito de gênero foi produzido após a intensa movimentação cultural da década de sessenta, mais especificamente a partir dos anos setenta, principalmente no campo das Ciências Sociais. Esse conceito foi criado com o intuito de separar o fato de alguém ser fêmea ou macho, do trabalho de simbolização que a cultura realiza sobre essa diferença sexual (HEILBORN, 1997, p. 51). Para contrapor o argumento da distinção biológica entre mulheres e homens como fundamentadora das desigualdades, faz-se necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas a forma com que elas são representadas ou valorizadas que constrói o feminino e o masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Esse debate constitui-se através de uma nova linguagem, na qual gênero é um conceito fundamental (LOURO, 1997, p. 21). Vários aspectos do papel ou da identidade de gênero, que são construídos socialmente, são tidos como biológicos.1 O processo de naturalização é responsável, também, pela formação de estereótipos, que são tidos como “a fixação de características como representativas de uma pessoa, grupo ou coletivo” (STREY et al., 1997, p. 76). Uma mesma cultura, sob a qual vivem mulheres e homens, destina a cada um dos gêneros um papel diverso nas relações sociais. Esses papéis serão exercidos de diferentes formas, de acordo com a cultura local e o período histórico (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995, p. 15 e 17). Para Scott, o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos (GROSSI et al., 1998, p. 115). A autora fundamenta o gênero em quatro elementos: os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas;2 os conceitos normativos que põe em evidência as interpretações do sentido dos símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas possibilidades metafóricas;3 a noção de política e a referência às instituições e à organização social4 e a identidade subjetiva.5 O gênero é, ainda, uma primeira maneira de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1990, p. 16). Louro argumenta que, ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não se pretende negar a biologia,6 pois o gênero se constitui sobre corpos sexuados. Busca-se, contudo, enfatizar a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. Recoloca-se o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações desiguais entre os sujeitos (LOURO, 1997, p. 21-22). Sendo assim, são esperados determinados comportamentos sociais das pessoas de determinado sexo. Tal expectativa é denominada papel de gênero. Pelo papel de gênero, são prescritas pela sociedade diferentes funções para as mu-

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lheres e para os homens, diferindo essas prescrições conforme a cultura, a classe social e o período histórico. Heilborn (1997, p. 52-53) salienta que, na classificação do que é masculino e feminino, há sempre um vetor de assimetria, o qual estabelece o masculino como o polo valorado e o feminino como o polo subordinado. Isso não implica, necessariamente, na associação do masculino a homens e do feminino a mulheres, pois há a possibilidade de um certo deslocamento da condição sexual anátomo-fisiológica e o gênero.7 Sendo assim, é possível classificar o gênero como uma construção social e cultural, em oposição ao sexo biológico, tido como um dado da natureza. No entanto, quando os julgadores falam da existência de relação entre pessoas de gênero distinto ou diverso, na realidade querem se referir ao sexo desses indivíduos, ao biológico, ao corpo, e não à construção social e cultural realizada sobre eles.

3. Não diferenciação entre sexo e sexualidade O relator, ministro Ayres Britto, menciona, dentre seus argumentos, a proibição da discriminação em razão do sexo, inscrita no art. 3º, inciso IV, da Constituição.8 Entende, portanto, que a não extensão dos direitos e garantias assegurados à união estável entre homem e mulher às uniões entre pessoas do mesmo sexo é devida ao sexo, e não à sexualidade. No entanto, a discriminação efetuada não se dá em virtude do sexo das pessoas envolvidas, e sim da identidade sexual, aspecto relacionado à sexualidade. Já Gilmar Mendes, embora mencione que se trata de aspecto relacionado à vedação da discriminação por sexo, afirma que consiste o pleito, num “sentido mais amplo”, em vedação à discriminação por orientação sexual. Assevera-se que o que está em jogo na ADI nº 4277 não é a discriminação por sexo, e sim por orientação sexual. Não se trata de aspecto concernente ao biológico, conforme explicitado acima, e sim algo que diz respeito à sexualidade, outra categoria teórica que é preciso explicitar e que se relaciona com a identidade sexual e a orientação sexual. Nessa esteira pontuou Luiz Fux, ao afirmar que se trata de “questão concernente à violação de direitos fundamentais inerentes à personalidade dos indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária”. Além disso, Ayres Britto também peca ao tratar a sexualidade como algo natural, biológico, instintivo, desconsiderando a construção social e o caráter político que aí se insere. Segundo seus dizeres, “nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte.

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Ostensiva”. Novamente aparece aqui a não diferenciação entre sexo e sexualidade e a desconsideração da relação existente entre a sexualidade e as construções socioculturais. As identidades sexuais constituem-se através da forma com que a sexualidade é vivida: com parceiros do sexo oposto, com parceiros do mesmo sexo, com parceiros de ambos os sexos ou sem parceiros (LOURO, 1997, p. 25). Para Foucault (1988), a sexualidade não pode ser concebida como uma espécie de dado da natureza, mas deve ser vista como um dispositivo histórico.9 O autor, em sua obra “História da Sexualidade”, busca demonstrar que as concepções sobre a sexualidade são mutáveis. Sobre a necessidade de compreender a sexualidade como construção social, assim descreve Weeks (2001, p. 43): [...] só podemos compreender as atitudes em relação ao corpo e à sexualidade em seu contexto histórico específico, explorando as condições historicamente variáveis que dão origem à importância atribuída à sexualidade num momento particular e apreendendo as várias relações de poder que modelam o que vem a ser visto como comportamento normal ou anormal, aceitável ou inaceitável.

Louro (1997, p. 11-12) coloca-nos o seguinte acerca do tema: “a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política, […] a sexualidade é ‘aprendida’, ou melhor, é construída, ao longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos”. Logo, ao contrário do que prega o ministro Ayres Britto, relator do processo, a sexualidade não é algo que possuímos naturalmente, como se fosse inerente ao ser humano. Pelo contrário, é através dos processos culturais que é definido o que é ou não natural. As possibilidades da sexualidade são socialmente estabelecidas e codificadas. Dessa forma, as identidades sexuais são definidas pelas relações sociais, sendo moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. A sexualidade seria, então, uma invenção social, constituída historicamente, a partir de diversos discursos reguladores sobre o sexo. Giddens (1993, p. 33) também credita às relações de poder a forma com que é elaborada a sexualidade. Segundo o autor, “a sexualidade é uma elaboração social que opera dentro dos campos do poder, e não simplesmente um conjunto de estímulos biológicos que encontram ou não uma liberação direta”. A tentativa de biologização da sexualidade possui ainda mais força devido ao fato de que o corpo biológico é tido como o seu local. No entanto, ela é mais do que simplesmente o corpo, devendo ser relacionada, ainda, às nossas crenças, ideologias e imaginações. Logo, a sexualidade deve ser compreendida como uma construção

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social, já que os corpos não têm nenhum sentido intrínseco. Weeks (2001) está de acordo com esse entendimento. Para ele, a sexualidade pode ser definida “como uma descrição geral para a série de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente modeladas” (WEEKS, 2001, p. 43). As identidades sociais, constituídas não só pelas identidades sexuais e de gênero, mas pelas identidades de raça, nacionalidade, classe, etc., são definidas nos âmbitos histórico e cultural. Portanto, assim como as identidades sociais, as identidades sexuais possuem um caráter fragmentado, instável, histórico e plural (LOURO, 1997, p. 12). Sendo assim, não podemos afirmar que sejam naturais e, consequentemente, imutáveis. Portanto, é possível afirmar que, além da não diferenciação entre sexo e gênero, também é efetuada uma confusão entre sexo e sexualidade, na medida em que esta é naturalizada. Da mesma forma, são atribuídas ao sexo, que é biológico e tido como um dado da natureza, características presentes apenas na sexualidade que, assim como o gênero, é uma construção social. Logo, quando é realizada a menção à discriminação por sexo, o sentido conferido é o da orientação sexual, categoria atrelada à sexualidade. É possível, então, com Grossi, entender que sexo é “uma categoria que ilustra a diferença biológica entre homens e mulheres”, gênero é “um conceito que remete à construção cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (que nomeamos de papéis sexuais)” e sexualidade é “um conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e sentimentos ligados à atividade sexual dos indivíduos” (GROSSI, 1998, p. 18).

4. Inadequação dos termos opção sexual, preferência sexual e homossexualismo O ministro Gilmar Mendes utiliza diversas vezes em sua argumentação a expressão “opção sexual” para se referir à homossexualidade. Também o relator Ayres Britto fala em “preferência sexual”. Em seu voto, também a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha utiliza a expressão “opção pela união homoafetiva”: Aqueles que fazem opção pela união homoafetiva não pode ser desigualado em sua cidadania. Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não aquiesceu em adotar modelo de vida não coerente com o que a maioria tenha como certo ou válido ou legítimo.

Ressalta-se aqui a inadequação dos termos escolha e opção sexual para fazer menção à homossexualidade, considerada como orientação sexual. As palavras

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utilizadas são recheadas de significados importantes e, nesse caso, há uma franca oposição entre orientação e opção sexual. A categoria opção sexual denota a escolha deliberada e autônoma realizada pelo indivíduo, enquanto que a categoria orientação sexual diz respeito justamente ao sexo dos indivíduos eleitos como objetos de desejo (GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA, 2009, p. 124). Nesse sentido entendeu o ministro Luiz Fux, quando afirmou que a “homossexualidade é um fato da vida”, na medida em que existem indivíduos homossexuais que constituem relações afetivas com pessoas do mesmo sexo. Ademais, ressaltou que “a homossexualidade é uma orientação e não uma opção sexual. Ressaltou também que a “única opção que o homossexual faz é pela publicidade ou pelo segredo das manifestações exteriores desse traço de sua personalidade”. Dessa maneira, não só rejeitou o julgador o uso do termo opção sexual, como ainda relacionou a opção apenas à publicização da homossexualidade.10 Embora tenha rechaçado o termo opção sexual e tenha inclusive feito menção ao fato de que “já é de curso corrente na comunidade científica a percepção – também relatada pelos diversos amici curiae – de que a homossexualidade não constitui doença, desvio ou distúrbio mental, mas uma característica da personalidade do indivíduo”, o mesmo ministro Luiz Fux, juntamente com outro julgador, o ministro Gilmar Mendes, escorrega em sua argumentação ao utilizar a categoria homossexualismo. E por que motivo é preciso rejeitar o termo homossexualismo? Justamente porque ele remete à caracterização da homossexualidade, ou seja, da orientação sexual homossexual, como uma patologia, algo presente no discurso biomédico a partir do final do século XIX. Como ressalta Adelman, a tentativa de identificação das manifestações e causas da homossexualidade insere-se na regulamentação da vida sexual presente nesse momento histórico e realizada pelo movimento de higiene social. É nesse momento em que se situa a construção da homossexualidade e isso se dá a partir de uma condição patológica (ADELMAN, 2000, p. 165). A associação do sufixo ismo, indicador de doença, patologia ou anomalia ocorre nesse contexto. Cabe ressaltar que a descaracterização da homossexualidade como doença se deu apenas na segunda metade do século XX. Assim, a Associação Norte-Americana de Psiquiatria passou a não mais considerar a homossexualidade como distúrbio mental em 1974. Posteriormente a esse fato, a Organização Mundial de Saúde também excluiu a homossexualidade do Código Internacional de Doenças. No Brasil, a homossexualidade deixou de ser considerada como um desvio sexual pelo Conselho Federal de Medicina em 1985 (GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA, 2009, p. 125). Logo, recomenda-se a utilização da categoria

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homossexualidade no lugar de homossexualismo, por conta da carga patológica que esse termo carrega.

5. A heteronormatividade Algo que também merece ser referido, uma vez que é apontado por alguns ministros no julgamento da ADI nº 4277, de forma explícita ou implícita, é a noção de heteronormatividade. Esta diz respeito à reprodução da heterossexualidade como norma, de maneira compulsória. De forma explícita está contida a heteronormatividade na argumentação de Luiz Fux, que trata do desprezo da homossexualidade, citando inclusive Nancy Fraser, filósofa norte-americana e uma das principais teóricas do feminismo da atualidade: Um exemplo que parece aproximar-se desse tipo ideal é o de uma “sexualidade desprezada”, compreendida através do prisma da Concepção Weberiana de status. Nessa concepção “a diferenciação social entre heterossexuais e homossexuais está fundada em uma ordem de status social, como padrões institucionalizados de valor cultural que constituem a heterossexualidade como natural e normativa e a homossexualidade como perversa e desprezível. O resultado é considerar gays e lésbicas como outros desprezíveis aos quais falta não apenas reputação para participar integralmente da vida social, mas até mesmo o direito de existir”. E sob esse enfoque, ontem, aqui da tribuna, foram rememorados momentos trágicos da história da civilização brasileira onde se tratava a homossexualidade não só através da violência simbólica, mas, o que é pior, da violência física perpassada por várias gerações. E continua, então, a professora americana: “Difusamente institucionalizados, tais padrões heteronormativos de valor geram formas sexualmente específicas de subordinação de status, incluindo a vergonha ritual, prisões, ‘tratamentos’ psiquiátricos, agressões e homicídios; exclusão dos direitos e privilégios da intimidade, casamento e paternidade e de todas as posições jurídicas que deles decorrem; reduzidos direitos de privacidade, expressão e associação; acesso diminuído ao emprego, à assistência em saúde, ao serviço militar e à educação; direitos reduzidos de imigração, naturalização e asilo; exclusão e marginalização da sociedade civil e da vida política; e a invisibilidade e/ou estigmatização na mídia. Esses danos são injustiça por não reconhecimento”.

Já Ayres Britto, também trata da não correspondência da homossexualidade ao padrão social: Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a prefe-

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rência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a velha postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração.

A ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha menciona a não legitimidade da homossexualidade em nossa sociedade, o que relegaria homossexuais a “cidadãos de segunda classe”: Aqueles que fazem opção pela união homoafetiva não pode ser desigualado em sua cidadania. Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como ser humano, não aquiesceu em adotar modelo de vida não coerente com o que a maioria tenha como certo ou válido ou legítimo.

A heteronormatividade diz respeito à consideração da heterossexualidade como uma forma natural de sexualidade. Para Welzer-Lang, foi no momento em que se passou a definir os indivíduos a partir do desejo sexual, e não mais por meio do aparelho genital, que o paradigma da heterossexualidade foi imposto. O autor também relaciona a naturalização da heterossexualidade com o heterossexismo, que seria “a discriminação e a opressão baseada em uma distinção feita a propósito da orientação sexual”. O heterossexismo representa, portanto, de um lado a promoção da superioridade do padrão heterossexual e, de outro, e também como consequência, a subordinação da homossexualidade (WELZER-LANG, 2001, p. 467-468). Butler também é merece ser citada aqui, uma vez que é uma das principais referências nos estudos de gênero e sexualidade, bem como uma das primeiras autoras a tratar da existência de um padrão heterossexual, relacionando-o com a necessidade de invisibilidade da homossexualidade: “para que a heterossexualidade permaneça intacta como forma social distinta, ela exige uma concepção inteligível da homossexualidade e também a proibição dessa concepção, tornando-a culturalmente ininteligível” (BUTLER, 2003, p. 116). Segundo Louro, esse paradigma heterossexual traz consigo um paradoxo: ao mesmo tempo em que delimita os padrões a serem seguidos, fornece a base para as transgressões. Os desviantes, que ficariam à deriva, também paradoxalmente ao seu afastamento, fazem-se mais presentes: Suas escolhas, suas formas e seus destinos passam a marcar a fronteira e o limite, indicam o espaço que não deve ser atravessado. Mais do que isso, ao ousarem se construir como sujeitos [...] de sexualidade precisamente nesses espaços, na resistência e na subversão das ‘normas regulatórias’, eles e elas parecem expor, com maior clareza e evidência, como essas normas são feitas e mantidas (2004, p. 17-18).

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Conforme a autora, a sexualidade desenvolve-se de forma binária, sendo direcionada ao sexo oposto, o que se dá também a partir da concepção binária do sexo (em masculino e feminino). Dessa forma, a heterossexualidade torna-se “o destino inexorável, a forma compulsória da sexualidade”, sendo as transgressões vistas como desviantes, incompreensíveis ou patológicas. Para garantir a característica do desvio desse destino inexorável são formuladas normas regulatórias, dentre as quais incluem-se as normas jurídicas, que indicam os limites da legitimidade e da moralidade, dentre outros (LOURO, 1997, p. 81-82). Revela-se, com isso, a presença no discurso dos julgadores de que a matriz heterossexual é imposta e legitimada culturalmente. Isso, de acordo com a categoria heteronormatividade, demonstra a afirmação da matriz heterossexual como natural e compulsória e a consequente subordinação da homossexualidade, o que se dá também no plano jurídico.

6. A homoafetividade Por fim, embora não menos importante, salta aos olhos na leitura da decisão judicial em análise a larga utilização do termo homoafetividade. Se antes a afetividade referia-se apenas às relações entre pessoas do mesmo sexo, pelo menos a partir do julgamento da ADI nº 4277, verificou-se uma extensão da utilização desse termo, a partir da menção, que é realizada por diversos ministros e em vários momentos: relações homoafetivas, relações heteroafetivas, indivíduos homoafetivos e também indivíduos heteroafetivos. No voto do relator, ministro Ayres Britto, aparece pela primeira vez a menção ao termo homoafetividade, indicando o julgador inclusive sua origem. Ele refere ter sido tal termo cunhado por Maria Berenice Dias no livro “União homossexual: o preconceito e a justiça”. Esse termo passou, a partir de então, a ser largamente utilizado no meio jurídico, o que não se verifica da mesma maneira, por exemplo, no âmbito das Ciências Humanas, nas quais são realizadas a maioria das pesquisas nas áreas de gênero e sexualidade. Segundo Oliveira, quando trata da utilização do termo homoafetividade no meio jurídico, configura-se uma relação com o amor presente no casal heterossexual (OLIVEIRA, 2009, p. 19). Cabe referir também que, conforme mencionei em outro lugar, esse amor presente no casal heterossexual também possui traços de construção sociocultural, na medida em que é possível identificar diferentes modelos amorosos ao longo da história (CARLOS, 2011). Apenas o ministro Celso de Mello, em seu voto, faz menção ao termo homoerótico: “os exemplos de nosso passado colonial e o registro de práticas sociais

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menos antigas revelam o tratamento preconceituoso, excludente e discriminatório que tem sido dispensado à vivência homoerótica em nosso País”. É Costa uma referência na utilização do termo homoerótico, em oposição a homossexual. Defende ele que o homoerotismo propicia uma desvinculação com a ideia de patologia contida na categoria homossexualismo, bem como indica a não existência de uma substância homossexual ou características que possam ser atribuídas a todas as pessoas que possuem relações homoeróticas (COSTA, 1992, p. 22). A preferência pelo termo homoafetividade justifica-se sobretudo pela relação que possui com a valorização do afeto no Direito de Família, âmbito jurídico no qual se insere a discussão proposta pela ADI nº 4277. É nesse contexto em que também se insere a reivindicação dos homossexuais ao enquadramento ao modelo familiar. Isso só é possível a partir do momento em que o modelo patriarcal e hierarquizado de família dá lugar a um novo modelo, fundado no afeto (FACHIN, L. E., 2003, p. 17). A isso se relaciona o reconhecimento do afeto enquanto valor jurídico e a valorização do afeto serve também ao reconhecimento das uniões homossexuais, conforme propõe Brauner (2001, p. 10): A partir do entendimento de que o afeto é a base da relação familiar, sustenta-se que é necessário reconhecer efeitos jurídicos a outras uniões, inclusive aquelas entre pessoas do mesmo sexo, pois estas consolidam, muitas vezes, relações duradouras, construindo um patrimônio comum por esforço mútuo, criando laços de responsabilidade e assistência que devem ser tutelados pelo Direito.

Segundo Rosana Fachin (2001, p. 09 e p. 131), o afeto e a solidariedade surgem a partir de um novo modo de ver a sociedade brasileira e o Direito comprometido com seu tempo, com uma concepção plural e aberta do Direito de Família, o que se dá principalmente com a Constituição de 1988. Também Lôbo (1989, p. 71, 72 e 74) salienta que a família atual está baseada em interesses de cunho pessoal ou humano, os quais são tipificados pelo elemento aglutinador da afetividade. Portanto, “a restauração da primazia da pessoa, nas relações de família, na garantia da expressão da afetividade, é a condição primeira de adequação do direito à realidade”. Sendo assim, a família torna-se um espaço de realização pessoal afetiva. Para Carbonera (1988, p. 297), o ingresso da noção de afeto no mundo jurídico deve-se às transformações sofridas pela família, especialmente no que se refere ao deslocamento de preocupações da sua instituição para os seus integrantes. Dessa forma, foi “a vontade de estar e permanecer junto a outra pessoa” que se revelou como um elemento importante, muito mais do que a vinculação a um modelo prédeterminado.

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Revela-se, com isso, que a larga utilização do termo homoafetividade no mundo jurídico, o que se reflete no julgamento da ADI nº 4277, sendo cunhadas inclusive outras denominações, como homoafetivo e heteroafetivo, para se referir a indivíduos, opõe-se aos termos homossexual e homoerótico, amplamente utilizados em outras áreas do conhecimento, como as Ciências Humanas. Isso não se dá sem motivos e está intrinsecamente ligado à emergência do afeto como categoria jurídica e de forte utilização no âmbito do Direito de Família

7. Considerações finais Pretendeu-se, com a análise efetuada, esclarecer alguns pontos obscuros na fundamentação dos ministros que participaram da decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277-DF. Demonstra-se, com isso, a necessária interface entre Direito e sexualidade, a qual transparece na medida em que o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, equipando tal relação às uniões estáveis entre pessoas de sexos distintos. As inadequações temáticas certamente revelam o distanciamento existente entre a área jurídica e os estudos de gênero e sexualidade, o qual deve ser transposto, especialmente na medida em que, a partir dessa decisão, abre-se um maior espaço também para o reconhecimento jurídico de outras questões, tais como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção por homossexuais e a homofobia.

Notas 1

Acerca da biologização das diferenças culturais, ver Citeli (2001).

2

Como exemplo, temos Eva e Maria simbolizando a mulher, dentro da tradição cristã do Ocidente (SCOTT, 1990, p. 14).

3

Os conceitos normativos “estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica de uma oposição binária, que afirma de maneira categórica e sem equívocos o sentido do masculino e do feminino” (SCOTT, 1990, p. 14). 4

É necessária uma visão mais ampla do gênero, que não inclua somente o sistema de parentesco, mas também o mercado de trabalho, a educação e o sistema político (SCOTT, 1990, p. 15).

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5

Isso porque os homens e as mulheres reais não cumprem sempre os termos das prescrições da sua sociedade ou das categorias de análise, tornando-se necessário o exame das maneiras pelas quais as identidades de gênero são realmente construídas, relacionando-as com uma série de atividades, de organizações e representações sociais historicamente situadas (SCOTT, 1990, p. 15). 6

Sobre a dicotomia construção social x determinismo biológico, ver Vance (1995).

7

A autora traz dois exemplos. O primeiro exemplo refere-se aos travestis, por serem homens que transitam para um gênero feminino. O segundo exemplo é trazido por uma sociedade africana de pastores do Sudão, na qual uma mulher infértil pode comprar uma outra mulher, casar-se e ter filhos com ela, através de um escravo de uma outra etnia. Não há qualquer tipo de contato sexual entre essas mulheres. Nesse caso, apesar de biologicamente ser mulher, a identidade de gênero assumida nessa sociedade é masculina. 8

“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” 9

“Não se deve concebê-la (a sexualidade) como uma espécie de dado da natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e de poder” (FOUCAULT, 1988, p. 100). 10

Tal fato relaciona-se diretamente com a epistemologia do armário, proposta por Sedgwick, segundo a qual o ato de homossexuais de “sair do armário” relaciona-se com os diferentes âmbitos de publicização da orientação sexual, não ocorrendo de maneira definitiva a partir do momento em que expõem esse aspecto de sua personalidade ao público (SEDGWICK, 2007, p. 19-54).

Referências ADELMAN, Miriam. Paradoxos da identidade: a política de orientação sexual no século XX. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 14, p. 163-171, jun. 2000.

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Argumentação discursiva e as esferas do público e do privado nos direitos de personalidade Maria Cláudia Cachapuz

1. Introdução Para que se possa estabelecer uma análise científica segura acerca dos limites possíveis de serem estabelecidos entre as esferas do público e do privado na sociedade contemporânea, começa-se recordando trechos de um ensaio de Sérgio Paulo Rouanet, intitulado “A coruja e o sambódromo”. O texto está adaptado, na sua extensão, para o momento e a pretensão de argumentação ora exposta: A heroína deste ensaio é uma coruja. Ela já foi uma ave arrogante, pois representava a razão universal, tanto a razão teórica, capaz de compreender o mundo, como a razão prática, capaz de legislar para os homens. Mas hoje anda triste e cabisbaixa, tiritando de frio e com medo da própria sombra. Ela se recorda de sua juventude radiosa, quando repousava nas oliveiras sagradas (...) e lembra-se com orgulho do seu período de apogeu, transformando-se na deusa Razão. Daí por diante foram desastres sobre desastres. Vieram os românticos, veio Nietzsche e veio Heidegger, todos negando à mísera criatura seu direito a existir. Mas tudo isso é passado. A coruja resolve investigar o presente: quem sabe se no mundo contemporâneo ainda há lugar para ela? A coruja decide viajar. (...) Pousa em Berlim. A coruja observa, com nojo, cenas de violência semelhantes às que ocorreram na véspera da Segunda Guerra. As vítimas agora são imigrantes turcos, negros e vietnamitas. Querendo escapar da truculência dos novos SS, ela se infiltra numa reunião de direitistas, onde ela espera testemunhar embates de ideias e não episódios de pancadaria explícita. (...) A direita civilizada diz coisas que poderiam ter saído de Lévi-Strauss, e advoga, simplesmente, o respeito à especificidade de cada cultura. O que não significa coabitação, pois seu programa político é a Europa para os europeus. Mas não significa, tampouco, racismo, pois a palavra de ordem é o respeito à diferença. Se a França, por exemplo, quer ficar francesa, não é porque o europeu seja superior ao africano, mas ao contrário, porque todas as culturas devem ser mantidas em sua particularidade, o que impõem uma condenação simétrica do imperialismo francês na África e do

imperialismo africano na França. (...) Desgostosa a coruja voa para o Oriente. (...) Pára no Irã, mas não consegue falar sobre os poetas. (...) Os interlocutores potenciais estão todos muito ocupados, dilapidando uma adúltera. A coruja quer chamar a polícia, mas ela também está ocupada, prendendo uma mulher que saíra à rua sem xador. (...) Ainda com o coração aos pinotes, a coruja atravessa o Atlântico. Ela pousa numa universidade americana. Está se realizando uma assembleia universitária. Discute-se a questão dos direitos humanos no campus. (...) Uma estudante acusa a ideologia dos direitos humanos de ser falocrática, por ter usado “homem” como termo genérico, em vez de ter se referido, especificamente, aos direitos da mulher. Um militante gay diz que as liberdades de 1789 se dirigiam apenas aos heterossexuais, enquanto um ativista negro afirma que a Declaração só pensara na emancipação dos europeus. (...) Libertar o negro, o judeu, o chicano significa reforçar a sua identidade como integrante da etnia negra, como aderente da fé judaica, como membro da comunidade linguística hispano-americana. Contribuir para que eles se sintam orgulhosos de pertencer a essas coletividades, aprendendo sua história, cultivando, em suma, a diferença em vez de dissolvê-la num igualitarismo nivelador. (...) A coruja tenta defender-se, mas desanima, quando a acusam de ter uma posição individualista, falando em seu próprio nome em vez de falar como porta-voz credenciada da comunidade zoológica à qual pertence e defendendo os direitos humanos em vez de defender a identidade cultural das corujas. (...) A coruja faz uma nova tentativa e pousa no México. (...) Há um seminário sobre “a ilusão da ciência”. (...) Um discípulo de Foucault diz que a ciência é uma prática de poder, destinada a produzir a docilidade social. Um professor americano, que elaborou sob a orientação de Kuhn uma tese de doutorado sobre a história da ciência, afirma que não há progresso do saber, mas uma simples sucessão de paradigmas. Um filósofo pós-moderno diz que não se trata de rejeitar o conceito de ciência, mas de acolhê-lo juntamente com a noção de ignorância, de intuição, de palpite e de erro. (...) Aturdida, a coruja resolve divertir-se. (...) Ela chega ao Rio. Ei-la no sambódromo. Há um grande desfile. Um carro alegórico cheio de bananas e abacaxis. Mães-de-santo girando com suas saias rodadas. Macunaíma fazendo gestos obscenos para as arquibancadas. O tema é a emergência entre nós de um novo tipo de humanidade, sensual, espontâneo e intuitivo, em tudo diferente da humanidade gringa. O florescimento, em nosso meio, de um saber próprio, de uma ciência ajustada às particularidades nacionais. E o surgimento de uma nova moral, que convenha ao nosso clima, à nossa formação multirracial e às nossas raízes históricas. É demais para a coruja. Ela diz coisas sentenciosas que ninguém

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quer ouvir e voa, deprimida, em direção a um pouso incerto (ROUANET, 1993, p. 46-95).

Ao propor-se a discussão, pela ótica da Modernidade, sobre os limite-se entre as esferas do público e do privado na sociedade contemporânea – inclusive para identificar-se a necessidade, ou não, do estabelecimento de tal dicotomia – pretende-se, de certa forma, responder à coruja que há espaço à universalidade na sociedade contemporânea. Talvez não, exatamente, na dimensão do corpo social, espaço destinado ao exercício das diferenças regionais, culturais, ideológicas, sexuais, mas numa esfera própria à argumentação racional do ponto de vista político e, mais ainda, jurídico. Quer-se mostrar que, numa perspectiva racional, há também espaço para a representação das diferenças, contaminadas que devem ser estas pela esfera destinada à reserva, à exclusividade. A opção pela representação de uma dicotomia ao público e ao privado, pela adoção franca de uma teoria das esferas, pela abordagem hermenêutica por meio do discurso prático e jurídico, revela não somente uma admiração ao que é universal, mas reconhece que apenas pela representação igualitária, em relação ao corpo político, é possível chegar-se à ideia de liberdade e de dignidade por um ponto de vista particular. Só há garantia à preservação do que é íntimo e privado na medida em que se acolhe, abstratamente, uma premissa universal e por ela testa-se a conduta particular. Como descreve Rouanet (1993), é preciso dar chance à coruja para que possa racionalizar sobre determinada conduta sem que, com isso, se veja obrigada a desfazer-se de suas paixões, de seus desejos e de suas opiniões. Ao contrário, tais impulsos se tornam essenciais no mundo contemporâneo para que se possa compreender o próprio indivíduo. Do contrário, se estaria a instituir uma banalização do conhecimento às avessas, permitindo a conduta má não pelo exagero do «querer» individual, mas pela ausência do pensar (ARENDT, 1999). Quer-se, portanto, provar à razão que ainda há espaço à universalidade na sociedade contemporânea. E tal se verifica porque se reconhecem espaços próprios ao privado e ao público, à essência e à aparência, à reserva e à transparência ou visibilidade. Espaços estes que são distintos, mas complementares para análise e compreensão da relação de complexidade inerente às relações sociais do mundo contemporâneo. Duas abordagens, neste contexto, aparecem como essenciais: Primeiro, discutir a questão da universalidade e do espaço público destinado a ela. Em seguida, evidenciar a esfera da privacidade e do espaço que a reserva mantem à dignificação da essência e de uma premissa de liberdade. Separa-se o privado e o público para permitir o conhecimento do fenômeno social e jurídico. Juntam-se, após, as esferas,

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em situação de complementariedade, para revelar que, enfim, só permitem a separação porque complementares para a compreensão das coisas do mundo.

2. O estar público Ao introduzir o texto de “A Vida do Espírito” (1993), Hannah Arendt explica que passou a se preocupar, de forma especial, com a atividade espiritual do homem quando assistiu ao julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. O trabalho rendeu não apenas a cobertura do julgamento para a Revista New Yorker, entre fevereiro e março de 1963, mas o livro “Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal” (ARENDT, 1999). Neste há a descrição de como um homem, nada especial em relação a todos os outros, permitiu que, sob seu comando, fossem praticados atos de crueldade inimagináveis até então. De onde viria o requinte de maldade capaz de permitir a alguém comandar atos de crueldade contra o próximo sem, ao menos, ter a intenção dirigida a tanto? A resposta, em outras palavras, estaria não no excesso de um “querer” individual, mas na ausência absoluta do ato de “pensar”. Esse destaque da obra de Hannah Arendt, passa a interferir, significativamente, na construção que se pretende oferecer ao espaço reservado para as esferas do público e do privado na sociedade contemporânea. O primeiro – espaço público – resguarda, na modernidade, aquilo que é comum à coletividade, tanto por ser um fenômeno que afeta a todos – podendo ser visto e ouvido por todos –, como por ser um fenômeno acessível a todos – devendo ser estendido a todos (LAFER, 1988). Isso representa dizer que o espaço público tem uma afinidade muito próxima à ideia de universalidade, porque nela se identifica. O espaço público é aquele em que importa a socialização, o compartilhamento de experiências, a busca do consenso. É o onde o indivíduo se movimenta pelo agir, bastando, para tanto, o simples “estar aí” no mundo. É também o mundo que exige convenções, porque aguarda uma organização social capaz de evitar a contaminação exagerada pelo que é inesperado do mundo das paixões, dos sentimentos, dos desejos. Por isso se reconhece que, neste espaço público – do que é comum – o princípio regrador é o da igualdade. Ou seja, é um espaço em que se configura possível o desenvolvimento de políticas públicas tendentes à promoção de uma igualdade. O Estado, pelas políticas a que se compromete desenvolver, se preocupa igualmente com todos, e, na condição de cidadão, todo o indivíduo tem o direito de exigir um tratamento igualitário.

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Há, por um lado, a esfera política, em que se encontra um espaço propício para a discussão sobre a atuação de um princípio de igualdade jurídica, num nível abstrato. Por outro lado, existe a situação encontrada na esfera social, reservada que é à área de comunicação daquilo que é comum aos indivíduos no sentido de identificá-los por grupos, por interesses, por afinidades. Nesta, há o espaço para a diversidade cultural, marcada que é, segundo Hannah Arendt (1959), pela possibilidade da discriminação. Mas, aqui, entenda-se: a discriminação que é tutelada pelo Direito é aquela que corresponde à hipótese de observar a diversidade, para a promoção de uma igualdade fática. No dizer de Robert Alexy (2001), a igualdade no sentido de compreender que quem deseja criar uma igualdade de fato tem de aceitar a possibilidade de acolher uma desigualdade jurídica. Isto não importa em contaminar a esfera política - abstrata em relação à esfera social – com a discriminação. A máxima capaz de universalizar é a que corresponde a um princípio de igualdade jurídica – “há que se tratar igual o igual e desigualmente o desigual” (ALEXY, 2001, p. 396 ) –, e nunca a premissa que corresponda à situação particular de análise. Diferente não é o que acentua Rouanet (1993) ao encaminhar também uma resposta à razão pelos elementos da Modernidade: Seria uma aberração ver no universalismo iluminista um programa de dissolução terrorista da diversidade. Ele não preconiza o genocídio das particularidades existentes. O que ele recusa é a criação ideológica das particularidades fraudulentas, ou o uso ideológico de particularidades reais, como álibi para a dominação ou como pretexto para silenciar a crítica (ROUANET, 1993, p. 43).

A pergunta que se impõe à sociedade contemporânea, portanto, é dirigida a saber como conviver em liberdade na medida em que se exige partilhar interesses, em sociedade, do ponto de vista político – e diria, jurídico –, com base num princípio de igualdade. Ou seja, investigar-se de que forma é possível viver a diferença numa sociedade que tem, como premissa universal, a igualdade jurídica. A resposta vem com a perspectiva da racionalidade pelo discurso. Porque se impõe conviver no mundo das aparências – ou seja, no mundo público que impõe socialização e consenso –, é preciso que se reconheça que o espaço público é aquele que é comum a todos e no qual todos e cada um têm, ao menos abstratamente, o mesmo direito de expressar seus desejos, suas paixões, suas opiniões. Sendo essa a realidade do mundo comum, é preciso que se garanta, também abstratamente, a mesma oportunidade de expressão de uma liberdade individual. O que só se torna possível a partir de um direito geral de igualdade (ou desigualdade) jurídica.

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Por isso a preocupação com a composição de liberdades colidentes no espaço público. Não se pode pretender que entre o que é comum a todos haja espaço para, arbitrariamente, preferir-se um agir a outro com base numa valoração entre o melhor e o pior. Imprescindível é que se volte ao exame da razão prática evidenciada pelo problema concreto que envolve direitos fundamentais, não por meio do critério do que é bom, mas a partir da premissa do que é correto. E a correção propugnada não é aquela que corresponda a um ideal de validade incondicional ou absoluta: Trata-se, frente à perspectiva do discurso, de uma pretensão de correção disposta de forma ideal, mas sempre condicionada e aberta às circunstâncias próprias do discurso particular. Como refere Jürgen Habermas nos seus “Comentários à ética do discurso” (HABERMAS, 1991): As normas válidas são apenas válidas prima facie. Todos os direitos e deveres desempenham o mesmo papel em discursos de aplicação, nomeadamente o papel de razões. Em caso de colisão de normas, só uma descrição tão completa quanto possível de todas as características relevantes de dada situação poderá revelar qual das normas concorrentes é adequada a determinado caso particular (HABERMAS, 1991, p. 39).

É preciso que o espaço público seja orientado, a partir de uma ideia de igualdade, por esta ideia de correção. Ou seja, de que se atua em liberdade, movido pelo querer tornar público o que é individual, mas repartindo, no espaço comum, a mesma expectativa individual do outro. Por isso, a possibilidade de falar-se em restrições à liberdade, na medida em que se torna imprescindível tornar compatíveis liberdades subjetivas. Por isso também a relevância de um princípio de proporcionalidade capaz de permitir, a partir das situações concretas que se apresentem – os conflitos de liberdades –, que princípios sejam ponderados e que liberdades sejam conformadas no agir social. Nessa medida, fundamental é que se reconheça o papel relevante desempenhado por uma teoria da argumentação jurídica (ALEXY, 1997), que assim como auxilia a compreensão de um problema jurídico posto, encaminha o intérprete a uma decisão com pretensão de correção. Primeiro, porque o discurso tem como premissa básica um dever jurídico de decidir corretamente. Segundo, porque o discurso confere ao intérprete o papel destacado na reconstrução do próprio Direito, oferecendo-lhe instrumentos à construção do juízo a partir da argumentação. Na medida em que impõe regras à argumentação, o discurso tanto oferece instrumentos de crítica a quem se opõe à solução jurídica adotada – e nisso possibilitando a abertura ao argumento novo –, como permite ao próprio intérprete a sustentação

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de uma base segura à pretensão de correção pela decisão. O ponto chave de busca de uma racionalização por meio do discurso jurídico é, por consequência, a ponderação exigida frente ao caso concreto. Oferecendo um caminho à solução jurídica por meio da argumentação, o discurso jurídico permite o estudo da particularidade, ainda que busque, indiretamente, um padrão de juízo – a partir da construção jurisprudencial. Tal afirmativa corresponde ainda a visão prospectiva (de futuro) que é ínsita ao espaço público. Na medida em que é no mundo das aparências que se organiza a sociedade e estruturam-se as normas do viver, a finitude não pode ser a regra da forma de organização abstrata pressuposta no espaço comum. O que quer dizer que pressupõe este (o mundo comum) uma abertura permanente para o futuro, não se limitando ao caso particular e não permitindo qualquer máxima que não possa se traduzir numa premissa universal - disposta a todos e qualquer um.

3. O ser privado Hannah Arendt, em “A Vida do Espírito” (1993, p. 15), apresenta uma epígrafe creditada a Heidegger sobre o alcance do pensamento: “O pensamento não traz conhecimento como as ciências; o pensamento não produz sabedoria prática utilizável; o pensamento não resolve os enigmas do universo; o pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir”. Se não alcançamos pelo pensamento e realização da vita activa no espaço social, impõe-se responder à indagação do por que, então, existe tanta preocupação com a vida privada e com a reserva, quando somente o mundo das aparências se configura como o espaço de efetiva realização da atividade humana. A resposta é o que move Hannah Arendt à construção do primeiro livro de “A vida do espírito” (1993) sobre o “Pensar”. A ideia é de que o pensar se traduz como a primeira ponte entre a essência do ser e o mundo das aparências, na medida em que, por meio de uma atividade de construção metafísica, o indivíduo representa a sua individualidade e se prepara a tornar-se visto no mundo comum. Daí a importância do espaço de reserva ao pensar a toda humanidade. Uma vez que o pensar representa o primeiro momento de transfiguração da linguagem da essência ao mundo externo (o primeiro filtro), por vezes assume ele a característica essencial de frear o impulso e de evitar que o agir humano seja atingido por uma conduta inadequada ao mundo externo – inadequada porque não pensada em relação ao Outro ou porque dominada por uma paixão individual que não resiste a um direito geral de liberdade em sociedade.

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Por isso a importância de se resguardar uma esfera privada que permita ao homem exercitar a sua individualidade de forma plena. A esfera do privado é aquela que, pela singularidade, vai exigir informação por um princípio distinto da esfera pública, pela atuação do princípio da exclusividade. Tal princípio permite, desde logo, capacitar o intérprete com a compreensão de que existe um espaço em que se faz possível ao indivíduo viver aquilo que o diferencia dos demais em sua intensidade mais severa, justamente porque assegura, pela atuação de um direito de livre desenvolvimento da personalidade, o espaço de reserva não compartilhado com os demais. Este viver a individualidade de forma plena, porém, ainda não contamina a esfera pública. A relação promovida entre a esfera privada e o princípio da igualdade – voltada à revelação de uma desigualdade de fato – é no sentido de assegurá-lo no âmbito público. Ou seja, de garantir que, no mundo das aparências, haja espaço para a compreensão da universalidade. O princípio da exclusividade, seguindo Celso Lafer (1988, p. 33), tem como marca a “briga com o conformismo social”. Revela à pessoa a possibilidade de resguardar aquilo que tem como íntimo e privado e que, inclusive, é capaz de, no âmbito público, ser motivo de discriminação. Na medida em que se mantenham reservados, o íntimo e o privado evitam a banalização do espaço público e potencializam, ao indivíduo, o desenvolvimento livre de sua personalidade. A importância de tal construção filosófica para a compreensão dos espaços destinados ao público e ao privado no ordenamento jurídico se torna essencial na medida em que se inaugura, pela Lei 10.406 de 2002, um capítulo exclusivo aos direitos de personalidade no Código Civil brasileiro. Traduzindo o artigo 21 do Código Civil um efetivo direito subjetivo à proteção da intimidade e da vida privada, permite reconhecer que o ordenamento jurídico brasileiro oferece hoje uma estrutura suficiente à configuração de uma proteção à esfera privada, não apenas por oferecer as ferramentas essenciais para a proteção desta esfera no âmbito específico das relações jurídico-privadas, mas por criar uma cláusula geral ao juiz, para ver aplicada a tutela específica ao caso concreto. O que inclui não apenas a solução indenizatória tradicional, como a possibilidade de exame de uma tutela preventiva. E nisso assume papel essencial a leitura conjunta do artigo 21 ao artigo 187 do Código Civil brasileiro. Mesmo que uma primeira doutrina (THEODORO JR., 2003) tenha descrito, na apreciação do art. 187, a manifestação jurídica do instituto do abuso do direito, quer-se, aqui, defender premissa diversa, no sentido de que o direito subjetivo à intimidade e à vida privada é, em sua essência, ilimitado quanto à liberdade que tutela. O que não quer dizer que não possa sofrer restrições. Estas, porém, partem não de uma configuração abstrata (no conceito), mas das condi-

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ções fáticas e jurídicas que são impostas pelo caso concreto. Porque, mantendo o pensamento de Hannah Arendt (1993), o ilícito não está no exagero de um agir no mundo das aparências (o querer), mas está na ausência da atividade do pensar. Nessa medida, a ideia de boa-fé, como um dos elementos da conduta lícita do indivíduo pelo art. 187, aproxima-se da concepção de confiança, visando assegurar a relação do particular com o universal, não dispensando relevância ao princípio da igualdade na esfera pública. Há a pretensão de afirmar um princípio de igualdade do ponto de vista formal em relação ao exame das liberdades em conflito, permitindo o conceito de boa-fé que a ideia de confiança seja avaliada a partir das particularidades do caso concreto proposto à discussão. A boa-fé estabelece uma ponte entre o discurso real e o ideal para que, em última análise, o imperativo categórico, reconhecido na característica universal da norma, sirva como cânone à testagem de uma máxima de ação particular. A ligação estrita entre confiança e boa-fé para a caracterização de eventual ilicitude civil é revelada pela necessidade de que se identifique, frente à situação particular, a relação de confiança antes pressuposta no plano formal. Como proposto no art. 187, o conceito de boa-fé identifica a relação de confiança (interna ou externa) estabelecida em face do caso particular, conectando-a à universalidade de conduta exigida do ponto de vista formal e assim possibilitando que se identifique eventual situação de ilicitude em relação ao caso concreto. A conexão promovida pelo elemento da boa-fé, por consequência, é dirigida tanto à relação do particular com o universal – e à forma como o discurso proposto no enunciado dogmático se abre ao discurso proposto pelo caso real –, como, na mesma medida, à relação da exclusividade (esfera privada) com a igualdade (esfera pública), de forma a tornar possível uma avaliação do tipo de confiança depositado pelos indivíduos nas suas relações de convívio. Pela ideia de boa-fé pode-se analisar a extensão da auto exposição promovida pelo indivíduo e medir como quer a pessoa aparecer no espaço público, tornar-se vista. Tal condição é relevante para a própria compreensão da necessidade ou não de se restringir uma liberdade subjetiva, a fim de tutelar a intimidade ou a vida privada de alguém. Em relação ao conceito de bons costumes, compreende-se que o conceito abrange tanto o que é peculiar a uma determinada experiência empírica como o que é consensual para uma situação concreta de vida. Em outras palavras, corresponde àquilo que é passado pela tradição e que justamente nisso tem por fundamento “a sua validez” (GADAMER, 1999). Na concepção de bons costumes, por consequência, pode-se encontrar, segundo Gadamer (1999), o que atingiu autoridade pela “herança histórica” e o que se tornou perpetuado pela experiência, resistindo

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ao tempo, conservando-se. É o contraponto ao elemento do fim econômico ou social, precisamente porque o conceito de bons costumes preocupa-se com aquilo que atingiu uma maturidade histórica e que não pode ser descartado de uma investigação histórica sem uma argumentação relevante. O elemento do fim econômico ou social preocupa-se, por sua vez, com o dado empírico atual, com a situação real de tempo e de espaço na qual se insere a situação concreta de análise. É o “fim” que traça a ideia de finitude ao discurso real proposto e que permite ao intérprete conectar a experiência empírica a uma situação de tempo e espaço particular, mas que busca, ao mesmo tempo, associação à tradição (bons costumes) e ao universal (confiança). E mais: do ponto de vista hermenêutico, seguindo Gadamer (1999), é o dado capaz de traçar uma ideia de finitude também a partir das expectativas criadas em torno da situação concreta discutida frente ao enunciado normativo, sem descuidar da compreensão de que esta expectativa é capaz de influenciar a própria interpretação do texto. Daí a expressão inequívoca de Gadamer (1999) de que quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido (GADAMER, 1999, p. 395).

Para que se compreenda, então, o sentido de tutela à exclusividade e à situação de experiência singular pressuposta ao indivíduo, é fundamental que os elementos da boa-fé, dos bons costumes e do fim econômico ou social sejam analisados, do ponto de vista externo, como condicionantes à própria possibilidade de restrição a uma liberdade subjetiva, quando visualizado o conflito prático de interesses. O que o art. 187 do Código Civil determina é que, para a caracterização de uma ilicitude, torna-se essencial examinar em que medida restou ameaçada a confiança depositada pelo indivíduo numa relação de convivência, pela análise de seu impulso de auto exposição e da extensão do seu querer aparecer (boa-fé). É uma confiança que se fará determinada, igualmente, por dados empíricos da tradição (bons costumes) e das características especiais e determinadas pelo caso concreto trazido à apreciação do intérprete (fim econômico ou social). A leitura complementar do artigo 187 ao artigo 21 do Código Civil, então, impõe-se como forma de garantir a efetiva tutela à exclusividade, resguardando o que é próprio à esfera privada. Essa imposição não é porque se tenha em vista,

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unicamente, a necessidade de caracterização de uma ilicitude civil que promova o ressarcimento. Acima de tudo, tal leitura oferece ao intérprete, de forma ampla, uma abertura ao discurso jurídico, à argumentação, permitindo que cada nova situação empírica, pela experiência, contribua não apenas para tornar compreensível o caso particular – e, assim, permitir o compreender do indivíduo –, como para também possibilitar compreender o íntimo e o privado de forma universal.

4. Conclusão Afirma-se, em resumo, que, diferentemente do que se possa esperar de outros temas jurídicos, tratar do que é público e privado, sob a ótica do Direito, não é tarefa que possa se traduzir num movimento automático de um abrir e fechar de gavetas, dispostas em institutos jurídicos previamente estabelecidos e suficientemente acondicionados em conceitos e expressões de linguagem seguras. Cada abrir e cada fechar de gavetas é uma ação dirigida à compreensão, que revela uma infinidade de segredos e exposições, para os quais cabe ao pesquisador, em certa medida, não apenas selecionar o que realmente se torna interessante, mas reconhecer um certo limite em relação ao que importa tornar visto ou manter oculto. É fundamental estabelecer uma distinção entre o privado e o público da mesma forma que se lhes reconhece uma complementariedade necessária. A pretensão é permitir tornar racional ao intérprete, numa situação de conflito, uma resposta que se pretenda correta em relação à necessidade, ou não, de tutela a uma situação específica de privacidade. Nesse sentido, argumenta-se a existência de uma circunstância concreta e finita – no tempo e no espaço – a respeito do íntimo e da vida privada de determinada pessoa. Para a avaliação do tipo de tutela necessária – e se é ela necessária –, imprescindível é que se opte pela adoção de uma teoria das esferas (que espelhe uma concepção formal-material ao direito geral de liberdade) e por uma interpretação fundada em princípios. Tal exercício só se torna possível ainda porque acolhida uma argumentação fundada no discurso prático-jurídico, preocupada com a racionalidade da decisão, com uma pretensão de correção e com a composição entre o que é universal e o que é particular. Por isso, inclusive, o entendimento de que o art. 187 do Código Civil brasileiro passa a representar o padrão de abertura, a priori, imposto ao direito subjetivo de tutela (artigo 21) à intimidade e à vida privada frente à moral. Um padrão de abertura para o qual contribuem os elementos da boa-fé, dos bons costumes e do fim econômico ou social. Imagina-se que o voo da coruja tenha rendido ao “animal com horários no-

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tívagos diferentes dos horários matinais dos demais pássaros” (ROUANET, 1993, p. 46) material de sobra para querer abandonar o projeto inacabado da modernidade – de tornar compatíveis universalidade e particularidade. Mas quer-se crer ter visto a coruja a rondar os pensamentos mais íntimos de alguns intérpretes da modernidade, ansiosos por levar a cabo o projeto da Ilustração. É a salvaguarda da sociedade contemporânea a partir de um critério de universalização do conhecimento, da manifestação ampla do direito geral de liberdade e da consagração do direito de desenvolvimento pleno da personalidade humana. Por isso, termina-se, como no início, com Sérgio Paulo Rouanet (1993): Salvo mutações genéticas inesperadas, homens e mulheres continuarão tendo uma anatomia própria. As epidermes continuarão sendo brancas e pretas e as tradições culturais serão mantidas em sua variedade. Não se exclui a diferença, mas se exclui a diferença como ideologia. A diferença é um fato, não uma virtude, e nem sempre esse fato merece ser idealizado (ROUANET, 1993, p. 88).

Referências ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. _____. Teoría de los derechos fundamentales. 2.ed. Madrid: CEPC, 2001. ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. 2.ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. _____. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. _____. Reflections on little rock. Dissent, New York, v. 6, n. 1, 1959. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ROUANET, Sérgio Paulo. O mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. THEODORO JR., Humberto. Comentários ao novo Código Civil, vol. III, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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Abrindo fissuras nas paredes da Matrix: A revisitação da compreensão doutrinária do prazo visando à correção dos vícios do produto no sistema consumerista Marcos Catalan

1. Quatro tons de incerteza: a intelecção do prazo para a reparação do vício do produto na percepção da doutrina brasileira O Direito – esse artefato humano – é bem mais que um simples conjunto de regras – criadas e previamente ordenadas – visando à solução dos problemas que afligem – cotidianamente (ou não) – a vida de cada pessoa imersa no imaginário social (DEBORD, 2012, p. 135):1 ele está contido na resposta a ser amalgamada (BOBBIO, 2007, p. 40) no entrechoque das regras e princípios – formalmente erigidos (ou não) –, que formam – e informam – um determinado sistema jurídico, orientado pela inafastável necessidade de promoção do ser humano, da realização do bem comum – e, assim, do bem de todas as pessoas, tenham elas nascido (ou não) em berço esplêndido – e da distribuição efetiva de justiça social, utopias que devem imantar, inexoravelmente, toda ação – racional (?) – do intérprete em cada situação em que ele deva atuar. A fusão dessas premissas – obtidas, aqui, em um processo controlado por uma matriz epistemológica de viés crítico, alinhada às correntes pós-positivistas de compreensão do fenômeno jurídico – orientou a formulação do corte metodológico que informa este opúsculo que visa a investigar qual o prazo correto para solução do vício do produto – ou do serviço – no sistema consumerista; apontando-se, desde cedo, que foram propositalmente excluídas das reflexões adiante alinhavadas eventuais – mas não menos relevantes, por óbvio – hipóteses nas quais a concessão de prazo para correção do vício possa ser considerada teleologicamente inócua.2 Uma vez apresentadas ao leitor as bases epistemológicas que sustentam este estudo, faz-se possível, também, chamar-lhe a atenção para o encanto contido na incerteza que permeia o retumbar da miríade de manifestações doutrinárias acerca do prazo legal para que o vício que, eventualmente – e isso não é um paradoxo –, e em uma infinidade de ocasiões, afete o produto – ou serviço3 – seja sanado. O problema que move esta pesquisa, portanto, está alocado no centro de uma encru-

zilhada que exsurge no conflito de (a) teses apontando ser inadmissível que o direito do consumidor possa conter regras teleologicamente desfavoráveis aos vulneráveis, quando são esses quem dão suporte para a diuturna construção de um sistema – um microssistema (?) (ARONNE, Inédito)4 – que busca promover a proteção do consumidor no Brasil, com (b) reflexões tecidas em fios que conduzem a um rumo hialinamente distinto, levando o pensamento à compreensão de que o prazo de trinta dias previsto no Código de Defesa do Consumidor5 é de titularidade exclusiva do fornecedor. A questão ganha complexidade quando se identifica que a dicotomia que cartesianamente informa – e contamina (?) – algumas das reflexões acerca do assunto em pauta, certas vezes, parecem desprezar a existência de infinitas possibilidades e de incontáveis respostas – antecipadas, aqui, apenas em potência (ARONNE, Inédito)6 – que poderão conduzir o encaminhamento da solução de cada problema que concretamente clame pela intervenção do Direito no contexto do corte formulado como premissa metodológica da investigação ora em curso. Uma encruzilhada, quatro caminhos. A (a) primeira dessas estradas – mapeada por Cláudia Lima Marques – conduz à compreensão de que o trintídio legal haverá de ser observado apenas naquelas situações que possam ser qualificadas como especiais (2011, p. 1212) e, nesses termos, tem por destino a tutela do vulnerável. Idêntico percurso é desenhado por Leonardo Roscoe Bessa (2005, p. 288-291). Ocorre que, apesar dessa projeção cartográfica conter trilhas claras e indicações deveras precisas, quando se enfrenta o território por ele representado nem sempre é fácil ler as placas que apontam para as hipóteses especiais. A (b) segunda das rotas mapeadas – na percepção doutrinária do tema – corre em sentido paralelo à anterior e foi construída pelo trabalho de Alberto do Amaral Júnior (1993, p. 282), Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (1991, p. 89-90),7 Cristiano Heineck Schmitt e Fernanda Barbosa (2010, p. 74-75) e Paulo Lôbo (1996, p. 75),8 dentre outros (CARVALHO, 1997, p. 33; CAVALIERI FILHO, 2010, p. 297-299; LIMA, 2004, p. 117; RODRIGUES, 2008, p. 240; STRENGER, 1992, p. 79) e tem início na premissa de que o fornecedor tem o prazo máximo de trinta dias para a correção do vício. A partir daí, entretanto, não contém mais nenhuma placa orientando sobre quando (ou como) tal prazo será (ou não) percorrido em cada situação havida na fenomenologia social, fato que pode conduzir o raciocínio até a proximidade de precipícios recheados de perigos como nas teses que destacam que o prazo “pode”

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(ou não) ser respeitado, bastando que o “bom senso” informe a conduta do consumidor (GRINBERG, 2000, p. 158). A (c) terceira das vias é precedida de uma placa gigantesca contendo letras coloridas com os dizeres: temos o prazo de 30 dias para a solução do vício e, nesse contexto, ela supostamente remete à percepção de que, durante o transcorrer do apontado lapso cronológico, o consumidor estará “à mercê do fornecedor” (GAMA, 1999, p. 58). E aquele que eventualmente optar por percorrê-la – acreditando ser esse o caminho para o Eldorado – aparentemente terá a companhia de parte substancial da doutrina brasileira, merecendo lembrança, dentre outros (BERTOLDI, 1994, p. 135; CATALAN, 2007, p. 67; CINTRA, 1993, p. 124; FINKELSTEIN e SACCO NETO, 2010, p. 74; GAMA, 1991, p. 62; SAAD, 1999, p. 270; ZENUN, 1998, p. 36),9 Bruno Miragem (2010, p. 416), Flávio Tartuce (2012, p. 133-135),10 João Batista de Almeida (2003, p. 71), José Fernando Simão (2003, p. 101-103),11 Odete Novais Carneiro Queiroz (1998, p. 115), Paulo Jorge Scartezzini Guimarães (2007, p. 234), Rizzatto Nunes (2011, p. 314-318)12 e Zelmo Denari (2011, p. 224).13 O (d) quarto e último dos itinerários que se propõe a conduzir à solução da dúvida quanto ao prazo para a correção do vício do produto adquirido no mercado de consumo, na verdade, conduz a lugar nenhum, permitindo, no máximo, que o transeunte caminhe em círculos. Em outras palavras, nele, o prazo para correção da imperfeição denunciada ao fornecedor é desprezado (BITTAR, 1991, p. 38).14 Agora, uma vez percorridas as quatro rotas identificadas anteriormente e da aferição dos destinos aos quais elas poderão conduzir aqueles que se proponham a trilhá-las, parece possível defender que o ato de exercitar-se no último dos caminhos apontado não auxiliará, sequer minimamente, no processo de construção das reflexões visando a atender às premissas metodológicas que informam esta pesquisa. Também parece razoável inferir que se arriscar pela terceira dessas vias – descrita em (c) – implica percorrer um caminho que ignora a literalidade do texto que serve de suporte para a intelecção do prazo para a solução do vício denunciado ao fornecedor, que despreza que o exercício da livre-iniciativa há de conformar-se, inexoravelmente, à proteção dos consumidores15 e, enfim, que se afasta da percepção de que o sistema de tutela do consumidor está estruturado na necessidade de promoção de alguém que é – reconhecidamente – vulnerável, e, não, visando a saciar o apetite da Hidra criada como animal de estimação pelo Mercado.

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Apesar dessa conclusão, os dois caminhos restantes – eles se encontram descritos em (a) e (b) –, ao mesmo tempo em que apontam o trintídio legal como uma alternativa excepcional, não têm indicações suficientemente claras para que se possa apontar o prazo no qual deva ser solucionado o vício do produto adquirido no mercado de consumo. Antecipe-se que não se busca enaltecer aqui a adoção de uma postura exegética lastreada na alusão aos signos – prazo máximo – contidos na regra que servirá como bússola toda vez que o intérprete tenha que trilhar o percurso que o levará a desatar (ou não) o nó górdio identificado anteriormente. Aliás, tal atitude implodiria a ponte que liga o presente às utopias e aos encantos contidos no porvir (OST, 2005, p. 41). Busca-se somente apontar o início de um caminho que compreende e absorve (ARONNE, Inédito.) todas as rotas mapeadas doutrinariamente e que leve o intérprete a um destino que não pode ser conhecido senão depois de arriscar-se a caminhar. E isso, dentre outros fatores, porque, entre a quimera que informa a imediata correção do vício e o decurso do prazo legal máximo, no mínimo, existe a possibilidade de serem vividas 720 horas, 43.200 minutos ou 2.592.000 segundos, havendo, portanto, nesse cenário, algo próximo de dois milhões e meio de possibilidades de tentar retomar um tempo que não existe mais, pois transformado em passado, e que talvez nunca possa ser resgatado. E é nesse contexto, exatamente por estar imerso – e quase sempre, sem percebê-lo – nesse complexo campo de possibilidades, que, no mais das vezes, o consumidor é privado da possibilidade de fruir adequadamente o bem por ele adquirido. Aliás, não apenas um único consumidor – abstrata e individualmente considerado –, mas todo aquele que, no universo de 200.000.000 de brasileiros, ocasionalmente – e, paralelamente, com invulgar frequência –, tenha adquirido um produto viciado e esteja a esperar, pacientemente – e, em regra, por incontáveis trinta dias, lapso temporal que informa o imaginário social –, a correção do defeito. Tantas possibilidades, tão poucas chances... (DEBORD, 2012, p. 18).16

2. Do interior da tempestade avistam-se luzes a brilhar Atualmente, é inolvidável que o desvelar de qualquer processo obrigacional haverá de ser imantado pela cooperação, vetor que conforma e corrige (se e quando necessário) a conduta de cada um dos atores que nele atua, tendo em vista tanto a necessidade de promoção do (a) adimplemento – aqui compreendido como o de-

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sempenho da prestação prometida de tal modo que isso conduza à satisfação dos legítimos interesses do accipiens –, como a inafastável (b) necessidade de preservar a integridade psicofísica e patrimonial de todos aqueles com quem é possível ter contato durante o transcorrer do aludido processo. A cooperação, na qualidade de elemento conformador da conduta humana, em cada instante em que informa o curso de um processo obrigacional (MARQUES, 2002, p. 219) qualquer, aponta, no sistema jurídico tupiniquim, como um dever gestado pelo princípio da boa-fé objetiva e moldado pelos influxos oriundos do inconstante e imprevisível contato social e, na qualidade de elemento normativo, dentre outros papéis, visa a conformar o comportamento das partes – e, eventualmente, também de terceiros – funcionalizando-o à necessidade de proteção daqueles com quem se negocia, e isso, independentemente da obtenção (ou não) do sucesso esperado em cada um desses projetos. Apesar de ser evidente que o aludido dever se manifesta – como os quadros que retratam a singularidade da coexistência humana – com tons e cores distintas (NANNI, 2008, p. 311) em cada uma das histórias que mereçam ser retratadas no cenário jurídico, é inegável que impõe a todos os atores envoltos pelo processo obrigacional o dever de pautar sua(s) conduta(s), tendo por premissa, além dos seus, os interesses do(s) outro(s) (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p. 33). Assim, sendo irrefutável que a cooperação imanta o comportamento de todos os contratantes, independentemente do fato de um deles ocupar a posição de credor ou de devedor, de solvens ou de accipiens ou, ainda, de consumidor ou de fornecedor, torna-se patente por que, quando se denuncia a existência de vício que impede a adequada fruição de um produto adquirido no mercado de consumo – toda vez que, como antecipado, seja possível saná-lo –, (a) o consumidor deve cooperar, aguardando o decurso do interregno temporal necessário – e somente do prazo estritamente necessário – para a solução do problema noticiado, e (b) o fornecedor deve providenciar, paralelamente, no menor intervalo cronológico em que possa fazê-lo, a correção da patologia que infecta a prestação imperfeitamente adimplida. Agora, talvez, o leitor possa perceber qual a importância de se aceitar – entre as mais de dois milhões de possibilidades outrora apontadas – que a solução do problema deflagrador da investigação ainda em curso somente poderá ser encontrada – em cada situação concretamente estabelecida – quando da aferição da interferência recíproca havida entre cada um dos múltiplos elementos relevantes na correção da imperfeição que contamina o adimplemento17, como resultado esperado – e inafastável – de um processo imantado pelo dever que impõe ao consumidor aguardar – apenas – o transcurso do prazo minimamente necessário para a supressão do

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defeito que impede a fruição do bem de consumo por ele adquirido e, concomitantemente, pela vinculação do fornecedor à obrigação de fazê-lo no menor interregno temporal possível. O desafio, portanto, é encontrar o máximo divisor comum em cada hipótese que clame a atuação do Direito. Mas não é só. A identificação de que, entre os escopos que imantam – para muitos, aliás, o mais importante (COUTO E SILVA, 1976, p. 5) dentre todos aqueles que teleologicamente a informam – qualquer relação obrigacional, se encontra a necessidade de satisfação dos legítimos interesses do credor (GOMES, 1994, p. 10) conduz, inexoravelmente, à valorização da confiança – devendo ser, ulteriormente, qualificada (ou não) como legítima – que o atuar de cada ator social poderá despertar (ou não) no outro com quem tem contato. Em tal cenário, a confiança deixa de ser apenas o vetor que outrora somente possuía utilidade no processo de aferição de vícios que afetavam (ou não) uma declaração negocial volitiva, passando, hodiernamente, a tutelar (ou não) a(s) expectativa(s) daquele(s) que confia(m) na conduta prometida – expressamente (ou não) – pelo(s) outro(s) (D´AZEVEDO, 2007, p. 293) com quem se relaciona no palco da cidadania sob as luzes do Direito. Esse palco é retratado em painéis – destacando as singularidades da vida humana – nos quais (a) a cooperação imposta àqueles que possam participar de um processo obrigacional está presente nas faces e no coração de pessoas sorridentes, vestidas com cores vibrantes – dentre outras tantas formas e tons que podem ser usados para identificar os comportamentos considerados de boa-fé no sistema jurídico brasileiro – e, (b) a confiança – regra, princípio, valor, pouco importa nesse momento18 – é esboçada em desenhos preenchidos com matizes vivos e cambiantes que permitem identificar, em cada situação concretamente estabelecida, a legitimidade (ou não) da expectativa surgida no alter por ocasião da interação negocial (MARTINS-COSTA, 2006, p. 94-99). É evidente que o despertar (ou não) da confiança alheia haverá de ser aferido valorando-se a integralidade do comportamento do alter (MARTINS-COSTA, 2005, p. 167-168)19 e seu grau de inserção no ambiente no qual se encontra imerso e é por isso que palavras e ações devem ser levadas a sério somente quando possam efetivamente despertar a confiança daqueles a quem foram dirigidas (MARTINSCOSTA, 2002, p. 231). Por tudo isso, parece impossível refutar que todo aquele que induz – voluntariamente, ou não, é imperioso apontar – o nascimento da confiança alheia, obriga-se a respeitá-la minuciosamente e, no corte formulado na pesquisa,

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agora quase concluída – ainda que, é deliciosamente evidente, enquanto investigação científica, somente provisoriamente prestes a ser concluída –, a respeitá-la ao corrigir o vício que infesta o produto adquirido pelo consumidor no menor prazo possível, de modo a, paralelamente, promover-se a cidadania de todos os atores sociais, e, não, apenas daqueles que podem pagar pelo acesso aos palcos erigidos por cenógrafos contratados, a preço de ouro, pelo Mercado (BAUMAN, 2007, p. 37).20

3. Surgem as primeiras fissuras nas paredes da Matrix O adimplemento que não observa a forma projetada no cenário no qual se desenrola a relação jurídica obrigacional concretamente estabelecida pelas partes, frustrando as legítimas expectativas do accipiens, é tratado classificado pela doutrina que se propõe a estudá-lo como cumprimento imperfeito (ANTUNES VARELA, 1997, p. 65), adimplemento insatisfatório (LÔBO, 2005, p. 260), cumprimento inexato (MENEZES CORDEIRO, 1986, p. 440), adimplemento ruim (PONTES DE MIRANDA, 1959, p. 15) ou cumprimento defeituoso (ANTUNES VARELA, 1978, p. 163-164). Qualquer quadro que tente retratá-lo transitará por uma miríade de hipóteses nas quais o pagamento, apesar de materialmente desempenhado, por não coincidir com aquele que foi outrora prometido – ou seja, com o pagamento concretamente devido –, não carrega, em sua tela, nenhum desenho que faça alusão à liberação do devedor do vínculo obrigacional que o ata ao credor. Ao contrário, ele identifica um devedor que cumpre, mas que, por não cumprir adequadamente – ao deixar de observar, ponto por ponto, o programa obrigacional que deveria informar sua conduta (BUSSATTA, 2007, p. 25) –, não consegue desatar a obrigação que o liga ao accipiens, continuando atado a ela, embora, agora, em princípio, de forma distinta daquela que o obrigava a adimplir. Em tais ocasiões – que, no ambiente consumerista são identificadas pela alusão aos vícios do produto – sempre que possível, parece irrefutável, o solvens deverá corrigir o defeito (DIEZ-PICAZO, 1996, p. 670), solução que, além de conformar-se aos deveres que lhe são impostos pelo princípio da boa-fé objetiva e pela necessidade de respeitar a confiança alheia, densifica o favor negotii, homenageando, consequentemente, os valores sociais vigentes (PERLINGIERI, 2002, p. 120-121).21 Ocorre que, ao contrário do que parece imperar no senso comum imaginário, o fornecedor não tem – nem poderia ter – o prazo de trinta dias para fazê-lo, sendolhe concedido, em cada situação que o exija, nada mais que o menor lapso temporal necessário para a solução do vício que infecta o objeto da prestação. Um objeto que

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em vez de estar na assistência técnica ou ambiente similar, deveria ser fruído por um consumidor – sempre e cada vez mais – vulnerável. E eis que surgem algumas fissuras nas paredes da matrix...

Notas 1

Em uma “sociedade em que ninguém pode já ser reconhecido pelos demais, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer a sua própria realidade”. 2

Assim, são excluídas desse opúsculo quaisquer considerações acerca de situações nas quais (a) o produto viciado possa ser considerado essencial, (b) em razão da extensão do vício, a substituição da parte viciada comprometa a qualidade ou as características do bem de consumo ou, ainda, (c) em nosso sentir, as ocasiões nas quais o vício seja classificado como de inadequação por desinformação, e tudo isso, é evidente, sem prejuízo de outras hipóteses não visualizadas por conta de nossas limitações. 3

A fim de não tornar enfadonha a repetição da expressão e do serviço, opta-se por não mais a empregar a partir de agora, o que não a afasta das reflexões adiante construídas, sempre que sua inclusão for pertinente.

4

“A unidade do sistema é axiológica e não mais axiomática, como nos modelos exegéticos, positivistas ou mesmo na ampliação da Teoria Pura. Essa unidade, que rejeita a fragmentação do discurso dos microssistemas, importa na vertência direta dos valores constitucionais, potencializados pelos direitos fundamentais, em todos os recantos do sistema. Isso se reflete na aplicação do Direito, em todos os recantos do tecido normativo. O núcleo de sentido de tutela das relações de consumo, não deve ser buscado no Código de Defesa do Consumidor. [...] O mesmo se dá com o Código Civil, rejeitando-se o discurso das cláusulas gerais, disfarçado de novo, mas proveniente do encerramento do Séc. XIX, buscando apropriar o sentido da aplicação do Direito na sociedade do Séc. XXI”.

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Código de Defesa do Consumidor. Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. § 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de

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trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. [...] 3° O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1° deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial. § 4° Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1° deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1° deste artigo. § 5° No caso de fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente seu produtor. § 6° São impróprios ao uso e consumo: I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos; II - os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação; III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam. 6

“Tudo em potência, na imanência do sistema. Ganha transcendência e sentido, apenas nos casos concretos, através [sic] do discurso que o move e [promove] as hierarquizações axiológicas tópicas, solvendo antinomias, colmatando lacunas e relativizando princípios.” Um diálogo intersubjetivo que “cimenta a paradoxal coerência conflitiva da normatividade contemporânea, incompatível com a racionalidade tradicional do positivismo moderno”. 7

O detalhe é que, no mesmo parágrafo, afirma que “o prazo padrão é de trinta dias” com o escopo de demonstrar a antijuridicidade imputada à conduta do fornecedor que fixe como regra prazo maior que esse na elaboração das condições gerais de contratação que informam os contratos utilizados para a comercialização de seus produtos e/ou serviços. 8

Sob os argumentos de que conclusão contrária (a) seria incompatível com o comando que determina a facilitação da defesa dos direitos daquele que é vulnerável e de que (b) a teleologia que deve informar a compreensão da regra conduz a pensá-la como um mecanismo de estímulo à fuga do Judiciário. 9

Em nosso texto sustentamos idêntica perspectiva, que, entretanto, é alterada neste estudo, consoante poderá aferir o leitor que nos der o prazer de sua atenção até o último dos parágrafos grafados nesse texto.

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10

Sendo um dos poucos autores a realmente dedicar atenção ao objeto recortado para fins de investigação neste opúsculo, Flávio Tartuce defende sua posição afirmando que se trata de “um direito fundamental do fornecedor de produtos”, alusão feita, certamente, tendo em conta tão somente o corpo de regras e princípios orientados à solução de problemas na Sociedade de Consumo, e, não, certamente, à ideia dos direitos fundamentais, constitucionalmente garantidos. 11

Em um belo estudo acerca do tema, o autor aponta que “o consumidor não poderá exercer sua opção sem o cumprimento do pré-requisito” e só depois de “decorridos os 30 dias, e, não sanado o vício, o consumidor poderá optar” pela solução que entender ser mais interessante para o equacionamento do problema.

12

Saliente-se, entretanto, que o autor destaca que esse prazo “geralmente é muito elevado”.

13

Apesar de recorrer, inicialmente, à expressão “prazo máximo”, a posição do autor parece ser a de que o prazo de 30 dias é de titularidade do fornecedor, ainda que, concomitantemente, afirme que “o prazo legal de saneamento dos vícios, no entanto, somente deve ser observado em se tratando de produtos industrializados dissociáveis [ou seja] que permitem a dissociação dos seus componentes”.

14

Em verdade, o autor parece confundir o prazo decadencial estabelecido para o exercício dos direitos previstos para a hipótese da não correção da vicissitude que afeta a prestação com aquele que é objeto do corte metodológico aqui efetuado para fins de investigação científica.

15

Constituição Federal. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] V - defesa do consumidor [...].

16

“A alienação do expectador em proveito do objeto contemplado exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo”.

17

Podendo ser aventados, em caráter exemplificativo, no cômputo desse prazo, questões ligadas ao tempo necessário para (a) o transporte, (b) a aquisição de peças de reposição, (c) a montagem, desmontagem, colagem ou limpeza de peças ou partes do produto viciado, ou mesmo, do tempo necessário visando (d) à realização de com o intuito de aferir se o resultado esperado foi efetivamente obtido. 18

Por extrapolar o corte metodológico formulado para fins de investigação no presente

186

estudo essa questão é aqui propositalmente afastada. 19

Embora, como o próprio título demonstre, a reflexão exarada pela autora tenha sido construída a partir da análise de uma figura bastante pontual (o venire), parece perfeitamente plausível que tenha maior abrangência. 20

“As balsas que trafegam entre a margem do “indivíduo de iure” e a do “indivíduo de facto” cobram caro pelos bilhetes, além do dinheiro necessário para reservar um espaço e acampar na outra margem. [...] Ser um indivíduo numa sociedade de indivíduos custa dinheiro, muito dinheiro. A corrida pela individualização tem acesso restrito e concentra os que têm credenciais para participar. Como nos sucessivos capítulos do programa Big Brother, as fileiras dos eliminados tendem a engrossar a cada rodada”. 21

Consoante ensina o autor, “o perfil mais significativo é constituído pela obrigação, ou dever, do sujeito titular do direito de exercê-lo de modo a não provocar danos excepcionais a outros sujeitos, em harmonia com o princípio da solidariedade política, econômica e social [o que] incide de tal modo sobre o direito subjetivo [e também sobre os direitos formativos] que, em vez de resultar como poder arbitrário, acaba por funcionalizá-lo e por socializá-lo”.

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A pesquisa científica com seres humanos e o direito internacional Selma Rodrigues Petterle

1. Considerações introdutórias Se, por um lado, a pesquisa científica na área da saúde tem contribuído para aprofundar o conhecimento sobre os mecanismos de desenvolvimento de várias doenças, buscando ampliar as medidas preventivas, os meios de diagnósticos e de tratamento das enfermidades humanas (a exemplo do desenvolvimento de novos medicamentos, para diminuir o sofrimento e melhorar a quantidade e a qualidade de vida humana), por outro lado, paradoxalmente, com horizontes abertos por essas pesquisas aprofunda-se também no âmbito da realidade científica das pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos, a discussão a respeito dos benefícios e dos riscos para a pessoa humana, já que podem representar reais ameaças à vida, à integridade física, à dignidade e aos direitos fundamentais em geral. Acrescente-se, ademais, outro elemento ao bojo da discussão, que é saber que a pesquisa científica é cada vez mais dependente de recursos privados (a exemplo das pesquisas financiadas pela indústria farmacêutica e biotecnológica), senão integralmente financiada pelos mesmos, estando cada vez mais presente o risco de se reduzir a pessoa a mero objeto, inclusive para fins notadamente comerciais e econômicos. Delineada tal problemática, destaca-se que o objetivo geral deste estudo é analisar os parâmetros protetivos delineados no plano do direito internacional no que diz com a pesquisa científica envolvendo seres humanos, que representam um grande avanço em termos de consenso no âmbito internacional, no que tange à proteção dos direitos humanos na esfera das pesquisas na área da saúde. Mais especificamente, o estudo objetiva apresentar as contribuições aportadas pela UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, através de três declarações de âmbito universal sobre o tema. Neste ponto, dá-se destaque à Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, à Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos e à Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Considerando os instrumentos mais específicos sobre a matéria existentes no âmbito europeu, examina-se a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina e seu Protocolo Adicional sobre Pesquisa Biomédica,

assim como, no âmbito da União Europeia, a harmonização, via diretivas comunitárias, das legislações nacionais europeias sobre a pesquisa científica com seres humanos. Nesse contexto há que apresentar uma justificativa, ainda que sucinta, da opção pelo contexto europeu, que se deve especialmente à existência de uma Convenção Internacional específica sobre o tema e também ao interesse na experiência portuguesa e espanhola. Além destes países contarem atualmente com legislação específica sobre a matéria, a ordem constitucional brasileira em muito se inspirou nos modelos lusitano (SARLET, 2004; CANOTILHO, 2004; MIRANDA, 2000) e espanhol, inclusive por tal razão elevando o princípio da dignidade humana à condição de princípio fundamental, optando por não incluí-lo no catálogo de direitos fundamentais, modelos que também guardam simetria no que diz com a proteção dos direitos de liberdade e da proteção constitucional da liberdade de investigação científica.

2. As contribuições da UNESCO No ano de 1997, em Conferência Geral da UNESCO, foi adotada a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, que estabeleceu princípios básicos relacionados à pesquisa científica em genética humana e à aplicação de seus resultados. Abstraídos os demais conteúdos abordados (a exemplo do dever de respeito à dignidade de todo indivíduo, independentemente de suas características genéticas, dentre outros), declarou que a pesquisa, tratamento ou diagnóstico que afetem o genoma humano devem ser realizados apenas após avaliação rigorosa e prévia dos riscos e benefícios, com consentimento prévio e na forma da lei. Quanto às pesquisas científicas sobre o genoma humano, reafirmou a liberdade de investigação científica, devendo prevalecer o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana (art. 10). Relativamente à clonagem, tema que foi posteriormente objeto de outra declaração, a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana, em 2005 (PETTERLE, 2007), afirmou que não deve ser permitida, por ser contrária à dignidade humana. Tamanha é a abrangência e o alcance do instrumento declaratório (ROMEO CASABONA, 2003) que adotou-se um sistema voltado para o acompanhamento da implementação da mesma, pelo Comitê Internacional de Bioética da UNESCO. Seis anos após, no ano de 2003, a UNESCO aprovou, por unanimidade, a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos que, além de reafirmar princípios já consagrados na Declaração Universal sobre o Genoma Humano (1997) enfatizou, especialmente, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão (aqui

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compreendida a liberdade de investigação científica), a privacidade e segurança da pessoa, em que deve basear-se toda coleta, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos humanos. Estabeleceu que as finalidades das coletas de dados serão somente as estipuladas na Declaração, que são: para diagnóstico e cuidados de saúde (testes genéticos inclusive); para investigação médica e outras formas de investigação científica, compreendidos os estudos epidemiológicos, em especial os de genética das populações, bem como estudos antropológicos e arqueológicos, todos designados, no seu conjunto, como “investigação médica e científica”; para medicina legal e para instrução de processos; para quaisquer outros fins compatíveis com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ademais, quanto aos dados genéticos e às amostras biológicas afirmou que não devem ser utilizados com finalidade distinta daquela prevista quando do consentimento informado. Todavia, será possível fazê-lo se não for possível obter o consentimento informado (ou se os dados ou amostras estiverem irreversivelmente dissociados de uma pessoa), nos termos estabelecidos pelo direito interno em conformidade com os aspectos procedimentais previsto na Declaração. Devem ser estipulados procedimentos transparentes e eticamente aceitáveis no que diz com a coleta, o tratamento, a utilização e a conservação de dados genéticos humanos e dados proteômicos humanos (informação relativa às proteínas de uma pessoa). Imperioso que a tomada de decisão se dê com a participação da sociedade, o que significa que o Estado deverá fomentar debate público responsável nesse sentido. Já no plano organizacional, o instrumento declaratório conclama à instauração de comitês de ética independentes, pluridisciplinares e pluralistas, estruturados em vários níveis (nacional, regional, local), como já preconizava a Declaração sobre o Genoma Humano (1997), bem como o respeito às normas éticas e jurídicas adotadas pelos Estados envolvidos. Aos comitês de nível nacional atribuiu-se funções mais gerais, de manifestação ante a inexistência de lei interna e de discussão das propostas de regulamentação legal. A manifestação acerca dos projetos de investigação científica, propriamente ditos, entende-se que caberá aos comitês locais ou institucionais. Na parte especial, tratou do consentimento prévio, livre, informado e expresso no caso de coleta (de dados genéticos, de dados proteômicos e de materiais biológicos humanos) para fins de investigação médica e científica, admitindo eventual restrição ao princípio do consentimento informado, via legislação interna. O consentimento poderá ser retirado, ressalvada a possibilidade de que os dados possam ser irreversivelmente dissociados da pessoa envolvida. Esta tem o direito de decidir ser quer ser informada, ou não, sobre os resultados das investigações (art.

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10), o que não se aplica às investigações sobre dados irreversivelmente dissociados das pessoas, nem mesmo a dados que não permitam tirar conclusões particulares sobre as pessoas que tenham participado em tais investigações. Os Estados e a sociedade internacional também foram conclamados a regulamentarem os aspectos relativos à circulação, inclusive transfronteiriça, dos dados e amostras, bem como a fomentar a cooperação médica e científica internacional. Tendo em conta que o objetivo maior é a difusão internacional do conhecimento cientifico, com o aproveitamento compartilhado dos benefícios por toda a sociedade, foram delineadas, no art. 19, algumas modalidades de partilha de benefícios,, como a assistência especial às pessoas e grupos que participaram na investigação, bem como o fornecimento de novos meios de diagnóstico, instalações e serviços para novos tratamentos, ou medicamentos resultantes da investigação, dentre outros. Está prevista, ainda, a possibilidade de o Estado supervisionar e ser o gestor desses dados e amostras (art. 20), levando em consideração o disposto na Declaração bem como os princípios de independência, multidisciplinariedade, pluralismo e transparência. Quanto à promoção e aplicação da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, há previsão de que o Comitê Internacional de Bioética e o Comitê Intergovernamental de Bioética encarregar-se-ão de acompanhar a aplicação e formular propostas para dar maior eficácia à Declaração, isso em linhas bem gerais. Mas os aportes da UNESCO não se encerraram por aí, já que apenas dois anos após, ou melhor, no ano de 2005, foi aprovado um novo instrumento declaratório: a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Com o escopo de tratar das questões éticas relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias aplicadas aos seres humanos, reafirmou-se a estreita ligação existente entre direito à saúde e a pesquisa científica na área da saúde. Dentre os vários objetivos arrolados, está o de oferecer um marco universal de princípios e procedimentos que orientem os Estados quando da formulação de legislação, de políticas públicas ou outros instrumentos no âmbito da bioética, bem como o de reconhecer a importância da liberdade da pesquisa científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, evidenciando, ao mesmo tempo, a necessidade de que tais pesquisas se realizem conforme os princípios éticos contidos na Declaração. Quanto aos princípios universais que devem orientar a prática médica quando da aplicação (e fomento) do conhecimento científico, e que devem também nortear os Estados, são, dentre outros, os seguintes, aqui destacados apenas os relacionados à pesquisa científica: 1º) maximização de benefícios e minimiza-

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ção de possíveis danos; 2º) consentimento prévio, expresso, livre e informado da pessoa interessada em participar de investigação científica (admitas exceções, nos termos dos parâmetros éticas e jurídicos aprovados no âmbito dos Estados); 3º) especial proteção estatal, via legislação nacional, às pessoas sem capacidade para dar o consentimento, destacando-se que devem ser promovidas apenas as investigações científicas que resultem em benefício direto, nos termos previstos em lei (pesquisas sem potencial benefício direto apenas excepcionalmente, nos termos da lei, expondo o indivíduo apenas a um risco e um desconforto mínimos e, ademais, quando se espera que o estudo contribua com o benefício à saúde de outros indivíduos na mesma categoria); 4º) compartilhar os benefícios resultantes de qualquer pesquisa científica e suas aplicações com a sociedade e especialmente com países em desenvolvimento, sob o alerta de que benefícios não devem constituir indução inadequada à participação em investigações; 5º) considerar o impacto das ciências da vida nas gerações futuras. Tratando das práticas transnacionais e do problema das atividades desenvolvidas, financiadas ou conduzidas, no todo ou em parte, em diferentes Estados, recomenda-se que as instituições públicas e privadas empreendam esforços para assegurar a observância da Declaração. Há balizadores quanto às práticas das investigações científicas transnacionais. Quando a pesquisa for empreendida ou conduzida em um ou mais Estado(s) hospedeiro(s) e financiada por fonte de outro Estado, tal pesquisa deve ser objeto de um nível adequado de revisão ética tanto no(s) Estado(s) hospedeiro(s) quanto no Estado no qual está localizado o financiador. A pesquisa transnacional em saúde deveria responder às necessidades dos países hospedeiros e deveria ser reconhecida sua importância na contribuição para a redução de problemas mais urgentes e globais. Na negociação dos acordos para pesquisa deveriam ser estabelecidos os termos da colaboração e a concordância sobre os benefícios da pesquisa com igual participação de ambas as partes. Reforça-se a ideia de que os Estados deveriam adotar medidas (legislativas, administrativas ou outra) adequadas à implementação da Declaração, inclusive com ações nas esferas da educação, formação e informação ao público. Além de estimular acordos, bilaterais e multilaterais entre os Estados, para cooperação e compartilhamento do conhecimento científico e tecnológico, especialmente com países em desenvolvimento, reafirmou-se a tarefa de promoção e disseminação dos princípios contidos na declaração, sob responsabilidade dos já referidos comitês. Sem dúvida um traço comum emerge de todos os textos da UNESCO relativamente às pesquisas científicas na área da saúde: o de que a sociedade internacio-

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nal busca definir normas que estejam em consonância com o respeito aos direitos dos homens, especialmente nessa seara do conhecimento humano (OTERO, 1999). Todavia, em que pese toda a principiologia consagrada nos referidos instrumentos e os importantes aportes referenciais interpretativos fornecidos pelo direito internacional, pelo caráter predominantemente declaratório, acabam por deixar em aberto tal efetivação às futuras convenções internacionais sobre o tema e às futuras legislações nacionais, questões que, no contexto europeu, foram enfrentados com instrumentos de conteúdos mais delimitados, o que será examinado a seguir.

3. As contribuições do Conselho da Europa A Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, assinada em Oviedo, em abril de 1997, é um instrumento particularmente importante, por vários aspectos. Em primeiro lugar pela sua natureza jurídica, da qual decorre uma força especial, vinculante e obrigatória para os Estados que a ratificaram, assim como pela vocação para a universalidade, na medida em que está aberta a Estados não membros do Conselho de Europa (mediante procedimento próprio). Ademais, por ser também uma Convenção marco para as temáticas relacionadas à proteção dos direitos humanos face aos avanços da biomedicina (CASADO, 1998), deixando os detalhamentos mais específicos para tratar em protocolos adicionais, o que lhe confere potencialidades ilimitadas de desenvolvimento (ROMEO CASABONA, 2002). Terceiro, porque países de culturas bem diversas ratificaram a Convenção e, portanto, devem ajustar suas legislações internas, no sentido de efetivá-la (HARICHAUX, 1997; MATHIEU, 2000). Quarto, porque são aportadas normas jurídicas específicas para algumas pesquisas científicas na área da saúde, e, ademais, porque no ano de 2005 complementou-se a convenção, através de protocolo adicional específico sobre a matéria. Impõe-se destacar, de outra banda, que esta Convenção não objetivava dar resposta unitária a todos os novos problemas postos pela biomedicina, e sim chegar a acordos mínimos no que tange à proteção do ser humano em face de novas ameaças, tratando-se, portanto, de um “Convenio de mínimos” (CAPELLA, 2002, p. 55). Enfatize-se que durante o processo de elaboração da Convenção (ROMEO CASABONA, 2003) a ideia geral esteve centrada na necessidade de que o conteúdo não ficasse limitado à mera declaração de princípios gerais, adentrando em algumas matérias de grande importância. Em síntese, o respeito ao indivíduo se traduz, na Convenção de Oviedo, a partir de três princípios retores (LEBRETON, 2001): exigência de consentimento, direito à informação e não instrumentalização do corpo humano.

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Em linhas gerais, a Convenção de Oviedo reafirmou, dentre outros conteúdos, o primado do ser humano sobre os interesses exclusivos da sociedade ou da ciência e o princípio do consentimento, estabelecendo medidas protetivas aos que não tenham capacidade para tanto. Dentre os vários temas abordados (informações sobre a saúde da pessoa, discriminação em razão do patrimônio genético, testes genéticos preditivos, intervenções no genoma humano, seleção do sexo na assistência médica à procriação, coleta de órgãos e tecidos para transplante) a Convenção também tratou da investigação científica. Esta deverá ser efetuada livremente (art. 15), sob as reservas do disposto na Convenção e em outras disposições legais que assegurem a proteção do ser humano, já que ainda que possam ser enormes os progressos advindos à saúde e ao bem estar do ser humano, tal liberdade não é absoluta, “encontrando-se limitada pelos direitos humanos fundamentais” (SILVA, 1997, p. 57). Cabe lembrar que seu campo de aplicação é mais amplo do que o dos ensaios clínicos com medicamentos (GONZÁLEZ-TORRE, 2002), englobando pesquisas na área da psicologia, questão menos explícita no texto da Convenção, mas que está delimitada por esta. Estabeleceu, ainda, uma série de medidas protetivas das pessoas submetidas à investigação científica, que apenas poderá ser empreendida se todas as seguintes condições estiverem reunidas (art. 16): falta de alternativa à investigação sobre seres humanos (de eficácia comparável); avaliação de riscos que a pessoa possa estar correndo (que não podem ser desproporcionais aos potenciais benefícios da investigação); aprovação do projeto de investigação pela autoridade competente, após análise de sua aceitabilidade ética e do mérito científico da investigação, por órgão independente e multidisciplinar (DUPRAT, 2010); informação sobre direitos e garantias previstas na lei para a proteção das pessoas submetida à investigação; consentimento (voluntário) para participar da pesquisa, dado expressa e especificamente, por escrito, podendo revogado a qualquer momento (consentimento também previsto no Pacto de Direitos Civis e Políticos, que proíbe que uma pessoa seja submetida a uma experimentação médica ou científica sem o seu livre consentimento), admitindo-se excepcionalmente a pesquisa no caso de pessoas que não tenham capacidade para consentir (art. 17), aqui agregando, o benefício direto e real, embora admitindo exceções. Se por um lado, a Convenção de Oviedo parece conciliar interesses diversos e “antagonistas” (proteção das pessoas, segurança sanitária e pesquisa científica), por outro, pelas exceções admitidas, há quem advogue (BELRHOMARI, 2010, p. 295) que, sub-repticiamente, acabou-se por derrogar normas que até então jamais se pensaria em fazê-lo. O exemplo bem concreto é o de legitimar a pesquisa cientí-

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fica com incapazes. Destaque-se que as normas constantes no art. 17 da Convenção de Oviedo delineiam a proteção jurídica das pessoas sem capacidade para consentir, admitindo tal possibilidade, como dito, se atendidas as condições elencadas. Todavia, com relação às pessoas sem capacidade expressar o seu consentimento (CAPELLA, 2002) resta mais aguda a problemática de saber quem vai definir, ao fim e ao cabo, relativamente à inexistência de outra alternativa à pesquisa (condição prevista no art. 16) ponto extremamente impreciso e difícil para ser deixado unicamente sob julgamento dos pesquisadores, questão que está em aberto e que merece um tratamento pelas legislações nacionais (BRIVET, 2010). Ressalte-se, então, que a Convenção de Biomedicina, que traça distinção entre pesquisa terapêutica e não terapêutica, autoriza, excepcionalmente, pesquisas envolvendo pessoas incapazes de consentir inclusive quando não há benefício direto, autorizadas (art. 17.2), estabelecendo uma proteção especial: conhecimento significativo, risco e desconforto mínimos, direito de veto (ROSENAU, 2004). De outra banda, proibiu expressamente a criação de embriões humanos para fins de investigação (art. 18), e, quando a investigação em embriões in vitro for admitida pela lei, afirmou que esta deverá assegurar uma proteção adequada ao embrião (SILVA, 1997). À interdição de constituição de embriões para pesquisa, sob esta fluida condição (LEBRETON, 2001), some-se a proibição de clonagem de seres humanos (a partir do protocolo adicional de 1998). Há vários Protocolos adicionais à Convenção de Biomedicina, o Protocolo que proíbe a clonagem de seres humanos (1998), o Protocolo relativo ao transplante de órgãos e tecidos de origem humana (2002), o Protocolo relativo à Investigação Biomédica (2005) e o Protocolo Adicional sobre Testes Genéticos para Fins Médicos (2008), que não entrou ainda em vigor. Há quem refira que está em fase de elaboração um protocolo sobre testes genéticos para fins de emprego e segurança (LATOURNERIE, 2010). Dentre esses protocolos adicionais à Convenção de Biomedicina, impõe-se examinar o Protocolo relativo à Investigação Biomédica (SERRÃO, 2010), do ano de 2005 e que já está em vigor. Quanto ao seu âmbito de aplicação, inclui as atividades de investigação no campo da saúde envolvendo intervenções em seres humanos (físicas e outra intervenção que envolva risco à saúde psicológica), inclusive investigação sobre embriões e fetos in vivo (excluída, portanto, a investigação em embriões in vitro). Esse Protocolo adicional, após reafirmar a primazia do ser humano sobre os interesses da sociedade e da ciência, estabelece que nenhum projeto de pesquisa poderá ser realizado se não houver a prévia aprovação pelas instâncias competentes, após análise independente e multidisciplinar sobre a aceitabilidade ética e sobre o

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mérito científico do projeto, respeitadas, ainda, a adequada qualificação do pesquisador e os parâmetros para sua atuação profissional, bem como se não houver uma alternativa de eficácia comparável e se não apresentar risco desproporcionado para os humanos em relação aos potenciais benefícios da pesquisa. Ante a inexistência de um potencial benefício direto à saúde da pessoa envolvida na pesquisa, esta somente poderá ser realizada se não oferecer riscos ou restrições inaceitáveis aos envolvidos, sem prejuízo da aplicação das normas protetivas de pessoas incapazes de consentir. Quanto à organização e ao procedimento de avaliação dos projetos de pesquisa perante os Comitês de Ética em Pesquisa (arts. 9 a 12), os convenentes devem assegurar que estes órgãos sejam multidisciplinares, congregando diversos profissionais e também leigos no assunto, bem como devem garantir a independência no desempenho da função de proteger as pessoas que participam na investigação, livre de injustificadas influências externas. Ademais, devem ser adotadas medidas que garantam a revisão do projeto de pesquisa, se ocorrer algum evento ou desenvolvimento científico futuro que justifique um procedimento revisório para (re)definir os rumos da investigação biomédica. Da mesma forma, as pessoas convidadas a participarem das pesquisas devem receber informações adequadas, compreensíveis e documentadas sobre o estudo (arts. 13 e 14), abrangendo o objetivo geral do projeto de pesquisa, os riscos e potenciais benefícios da pesquisa, o parecer do comitê de ética em pesquisa e algumas outras informações delimitadas. Contemplados esses aspectos, pode-se falar em consentimento informado, livre, expresso, específico e documentado, que também poderá ser revogado livremente a qualquer momento, sem prejuízo do direito aos cuidados médicos. Relativamente à proteção das pessoas que não tenham capacidade para consentir, assegura-se (art. 15 a 17) que as pesquisas só poderão ser efetuadas se estiverem reunidas várias condições. Primeira, se com o resultado da pesquisa se espera um benefício real e direto à saúde das pessoas recrutadas para o estudo, garantia que, excepcionalmente e na forma da lei, poderá ser afastada se aportar riscos mínimos à pessoa em causa (definidos como aqueles que causam ligeiros e temporários impactos negativos na saúde) e se houver significativa melhora do conhecimento científico sobre enfermidade que assola não somente a pessoa em causa como também outras pessoas com as mesmas características e que partilham o mesmo sofrimento. Segunda, se a pesquisa não puder ser efetuada em sujeitos capazes de consentir. Terceira, que o participante tenha sido informado sobre os seus direitos, garantidos por lei, a menos que ele não esteja em condições de receber tal informa-

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ção. Quarta, autorização por escrito do representante legal ou de outra pessoa ou autoridade prevista por lei (procedimento que se aplicará também aos maiores que estejam sem capacidade para consentir, a depender da situação concreta específica) e que levará em conta a opinião dos menores, observada a sua idade e o grau de maturidade para participar da decisão. Quinta, que a pessoa não se oponha a participar da pesquisa. Há normas para pesquisa biomédica em situações bem particulares da vida, como as pesquisas durante o período da gravidez ou da amamentação. Outra situação especial é a pesquisa biomédica envolvendo pessoas em situações de emergência clínica (art. 19), temática que o protocolo remete à lei, que determinará se será possível, e sob quais condições será possível realizar pesquisa biomédica quando a pessoa é incapaz de dar o seu consentimento e quando a própria urgência impossibilita a obtenção, em tempo hábil, de qualquer autorização prévia. Eis os pontos previamente delimitados no Protocolo, quanto à lei que vier a regulamentar a pesquisa biomédica envolvendo pessoas em situações de emergência clínica: a) que a pesquisa não possa (com eficácia comparável) ser realizada em pessoas que não estejam em situações de emergência; b) que o projeto de pesquisa tenha sido aprovado especificamente para situações de emergência; c) que sejam respeitadas as objeções que foram previamente manifestadas pela pessoa (fato que deve ser levado ao conhecimento do pesquisador); d) se a pesquisa não resultar em benefício direto para a saúde da pessoa, mas aporte contribuição significativa ao conhecimento científico com relação a outras pessoas (na mesma condição de emergência), que os riscos sejam mínimos e que se dê conhecimento (à pessoa ou seu representante legal), tanto quanto seja (razoavelmente) possível, sobre essa participação na pesquisa. Para não deixar dúvidas de que há situações muito particulares a demandar normas jurídicas específicas, o protocolo estabelece que quando a lei permitir a pesquisa biomédica com pessoas privadas de liberdade, estas não poderão participar de pesquisas sem benefício direto para sua saúde, salvo se atendidas as condições adicionais estabelecidas no protocolo adicional. Relativamente à segurança e à supervisão da investigação biomédica (arts. 21 a 24), deverão ser tomadas todas as medidas razoáveis tanto para garantir a segurança quanto para minimizar os riscos e incômodos para os envolvidos na investigação, prevendo ainda vários mecanismos de supervisão. O protocolo adicional (arts. 25 a 28) trata de outra questão central, a da informação gerada a partir dessas pesquisas. Neste ponto há especial enfoque na proteção dos dados pessoais dos participantes dos estudos. Já no que concerne ao acesso aos resultados das pesquisas biomédicas, há uma tímida, senão inexistente, proteção do conhecimento obtido a partir dessas

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relevantes pesquisas científicas. É por demais vaga e fluida a mera menção de que o pesquisador, em prazo razoável e através dos meios adequados, tornará público o resultado da pesquisa, inexistindo qualquer referência a registros (públicos) dessas pesquisas biomédicas. Ressalte-se que o protocolo abrange também investigações biomédicas idealizadas pelas Partes convenentes em território de Estados que não sejam parte. Assim, ainda que o projeto de pesquisa não seja realizado nos Estados Parte, estes comprometem-se a tomarem as medidas para assegurar o respeito às normas constante no Protocolo, sem prejuízo das normas aplicáveis naqueles Estados. Por derradeiro, as partes convenentes devem assegurar um nível de proteção jurisdicional adequada tanto para prevenir quanto para fazer cessar a violação dos direitos protegidos através do Protocolo.

4. A pesquisa científica com seres humanos no âmbito da União Europeia A investigação científica e a inovação tecnológica na área da saúde humana têm ocupado um lugar de destaque na União Europeia. Isso se verifica sob um duplo viés, tanto no que diz com a criação de programas para financiamento dessas pesquisas quanto no concerne às preocupações em reforçar o sistema de proteção das pessoas envolvidas nos estudos. Abstraídas as questões relativas aos diversos níveis de desenvolvimento científico, que não são objeto deste estudo (SAINT-SERNIN, 2008) e apenas a título de exemplo, pode-se mencionar o Sexto ProgramaQuadro de Investigação (2003-2006) e o Sétimo Programa-Quadro de Investigação (2007 a 2013). Mais recentemente, em dezembro de 2013, foi adotado o Programa Horizonte 2020, Programa-Quadro de Investigação e Inovação 2014-2020 (Regulamento 1.291/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho). Recorde-se, nesse contexto, que no panorama da União Europeia a preocupação com o reconhecimento de “novos” direitos (SARLET, 2004; CANOTILHO, 2004; GOUVEIA, 1995), como o direito à integridade física e mental em face da medicina e da biologia, como a proibição da clonagem humana reprodutiva e das práticas de eugenia, dentre outros, se deu com a proclamação da Carta Europeia de Direitos Fundamentais, em Nice, no ano de 2000. Esta não deixou dúvidas quanto à intenção de adotar um texto amplo e completo, a contemplar a necessidades bem atuais (LEBRETON, 2001). Confirmou-se a tendência evolutiva no sentido de se obter, no âmbito da União Europeia, um sistema autônomo de proteção das liberdades, reafirmados pela referida Carta, em 54 artigos, organizados em 6 capítulos

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(dignidade, liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça), como já estava assegurado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Como se sabe, a Carta Europeia de Direitos Fundamentais foi formalmente encartada no projeto de Constituição Europeia, de 2004. Todavia, esta não entrou em vigor, face ao duplo não à ratificação, dos cidadãos franceses e holandeses, no ano de 2005. À derrocada da ideia de uma Constituição para a Europa foram pensadas alternativas de reforma, discutidas durante a Conferência Intergovernamental de Lisboa, que desembocou na assinatura do Tratado de Lisboa, em 2007, que entrou em vigor em dezembro de 2009. Embora a íntegra da Carta Europeia de Direitos Fundamentais não tenha constado formalmente no texto do Tratado de Lisboa, ela foi expressamente guindada (MACHADO, 2010) ao mesmo plano normativo do Tratado da União Europeia e do Tratado Funcionamento da União Europeia. Já no que tange ao direito comunitário derivado, também se pode referir a emergência de um direito comunitário da biomedicina (HENNETTE-VAUCHEZ, 2009). Várias são as diretivas que estabelecem parâmetros comuns para nortear as legislações nacionais europeias relativamente às pesquisas envolvendo seres humanos. É o caso dos ensaios clínicos com medicamentos, que parecem concentrar parcela significativa (DUPRAT, 2010) da pesquisa na área da saúde. A Diretiva Comunitária no 2001/20/CE está direcionada especificamente aos ensaios clínicos com medicamentos, não se aplicando a ensaios sem intervenção. Quanto à proteção das pessoas convidadas a participar de ensaios clínicos com medicamentos (art. 3), a diretiva estabelece que esses ensaios somente poderão ser realizados se houver uma avaliação do binômio risco-benefício (riscos ao participante em comparação com o benefício individual para o mesmo e para outros pacientes, atuais ou futuros), se um Comitê de Ética (e/ou a autoridade competente) concluir que os benefícios justificam os riscos, questão que deverá ser permanente supervisionada, se o participante (ou seu representante legal), após receber todos os esclarecimentos pertinentes ao estudo, prestar o seu consentimento, na forma escrita, admitindo-se, excepcionalmente e na forma da lei, o consentimento oral, na presença de no mínimo uma testemunha, consentimento que poderá ser revogado a qualquer tempo, sem qualquer prejuízo ao participante. E também, por derradeiro, se existirem disposições relativas a um seguro ou indenização que cubra a responsabilidade do investigador e do promotor. No caso de ensaios clínicos envolvendo menores, além da observância de uma série de aspectos (benefícios diretos para o grupo de pacientes; necessidade da investigação; relação direta entre a investigação e a condição clínica do menor; riscos minimizados; aprovação prévia por Comitê de Ética que atue em pediatria,

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dentre outros), a diretiva estipula que os menores deverão receber informações adequadas sobre o ensaio clínico com medicamentos, seus riscos e benefícios, o que requer pessoal qualificado para fornecer tal informação, acrescida da obtenção do consentimento (esclarecido) dos pais. Em se tratando de adultos incapazes (aqueles que não tenham dado ou recusado o consentimento antes do início da incapacidade), os ensaios clínicos também deverão atender exigências similares às estipuladas para os menores, salvo com relação ao benefício direto, que não se exige nos ensaios com incapazes, devendo-se considerar a legítima expectativa de que a administração do medicamento em experimentação não acarrete riscos para o paciente incapaz ou que os benefícios de tal administração superem os riscos. Relativamente aos Comitês de Ética, determina-se que os Estados-Membros adotem medidas quanto à criação e funcionamento destes, já que eles deverão, no prazo máximo de 60 dias do pedido, emitir parecer prévio e fundamentado, ao requerente e à autoridade competente do Estado-Membro, sobre os projetos submetidos (no caso de projetos multicêntricos deverão ser concebidos procedimentos no sentido de que seja exarado, no Estado-Membro, apenas um único parecer). Há previsão de apenas uma hipótese de suspensão do prazo máximo de 60 dias para apreciação do ensaio clínico, pelo Comitê de Ética: o pedido de complementação das informações inicialmente fornecidas pelo requerente. Há proibição de prorrogação do prazo de apreciação dos ensaios clínicos pelos Comitês de Ética, com algumas exceções. No caso de alguns ensaios clínicos de medicamentos específicos (envolvendo terapias genéticas e organismos geneticamente modificados) admite-se a prorrogação por 30 dias, perfazendo o total de 90 dias e também mais uma prorrogação por mais 90 dias, para consulta a comitê específico, nos termos dos procedimentos estabelecidos pelos Estados-Membros. Evidencie-se, de outra banda, que relativamente à terapia celular xenogenética não há qualquer limitação de prazo. Os Comitês de Ética devem analisar (HENNETTE-VAUCHEZ, 2009) não apenas a concepção geral do ensaio como também os aspectos concernentes ao contrato entre promotor, centro de pesquisa e investigador, os montantes (e modalidades) de retribuição, assim como as formas de reparação dos participantes, pelos danos decorrentes de sua participação no estudo, inclusive a contratação de seguro de responsabilidade civil do investigador e patrocinador. Quanto ao início de um ensaio clínico, os Estados-Membros deverão adotar medidas assecuratórias para que se dê em conformidade com o procedimento previsto nesta diretiva comunitária, que requer, em síntese, antes do início destas investigações, seja exarado parecer favorável por um Comitê de Ética e que não

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exista objeção por parte da autoridade competente do Estado-Membro. Descortinase, assim, um duplo panorama no plano procedimental, tanto no que tange à apreciação dos projetos pelos Comitês de Ética, quanto no que se refere à manifestação da autoridade competente, que poderá ser uma autorização tácita, se esta não se manifestar no prazo de 60 dias. Salvo em casos especiais, a diretiva comunitária não exige autorização da autoridade estatal competente para que os ensaios clínicos tenham início. Exige-se, como regra geral, a inexistência de manifestação estatal contrária ao estudo. De tal sorte, o procedimento estará centrado na forma e nos prazos dados à autoridade estatal, para que esta apresente suas objeções. Estas deverão ser comunicadas ao promotor no prazo máximo de sessenta (60) dias, admitida imposição de prazo menor. Abre-se, a partir de objeção da autoridade estatal ao ensaio clínico com medicamentos, uma única oportunidade para que o promotor responda, em atendimento à objeção oposta pela autoridade estatal, sob pena de rejeição do pedido. Portanto, a regra geral constante na diretiva é a da autorização tácita dos ensaios clínicos pela autoridade estatal, pelo simples decurso de prazo sem manifestação de objeções por parte desta. Concomitantemente, há previsão de todo um sistema de fiscalização dos ensaios clínicos. Enfatize-se, todavia, que em alguns casos especiais poderá ser exigida a autorização da autoridade competente, prévia e por escrito, como requisito para início dos ensaios clínicos, como no caso dos medicamentos sem autorização no mercado (Diretiva 65/65/CEE e Regulamento 2309/93/CEE) e dos medicamentos que contenham ingredientes biológicos, sejam eles de origem humana ou animal. Há alguns ensaios clínicos para os quais a própria diretiva exige autorização estatal, antes do início do estudo: ensaios clínicos com medicamentos envolvendo terapia genética, terapia celular somática, terapia celular xenogenética e de medicamentos contendo organismos geneticamente modificados (sem prejuízo das diretivas comunitárias de 1990, Diretiva 90/219/CEE, sobre uso confinado de microrganismos geneticamente modificados, e Diretiva 90/220/CEE, sobre a liberação de organismos geneticamente modificados no ambiente). De outra banda, são proibidos quaisquer ensaios clínicos que acarretem modificações na identidade genética (germinal) do sujeito. Relativamente ao intercâmbio de informações, a Diretiva 2001/20/CE (art. 11) determinou aos Estados-Membros que incluam as informações, sobre os ensaios clínicos com medicamentos realizados em seus territórios, na base de dados europeia de ensaios clínicos (EudraCT, acessível em ), criada por esta diretiva e acessível inicialmente apenas às autoridades competentes dos Estados-Membros, à Agência Europeia de Medicamentos e à Comissão

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Europeia. Posteriormente, alguns regulamentos (Regulamento 726/2004 e Regulamento 1901/2006) levaram a Agência Europeia de Medicamentos a tornar público parte dos dados armazenados na base de européia de informações relativas a ensaios clínicos, disponibilizada ao público em geral, via internet no endereço . Note-se que algumas pesquisas científicas na área da saúde têm um perfil bem particular, envolvendo intervenções (diretas) na pessoa, como no caso dos ensaios clínicos com medicamentos. Acrescente-se agora que o panorama dessas investigações é mais amplo e abrange também as pesquisas clínicas com dispositivos médicos. Estas também foram objeto de uma diretiva comunitária (Diretiva comunitária 2007/47/CE, sobre dispositivos médicos implantáveis ativos, sobre dispositivos médicos e sobre a colocação de produtos biocidas no mercado) que alterou três diretivas anteriores (Diretivas 90/385/CEE, 93/42/CEE, e 98/8/CE). São estabelecidos, primeiramente, vários critérios para classificação dos dispositivos, enquadrando-os em grupos. Eis alguns dos parâmetros norteadores, dentre outros: a) quanto à duração, ser de uso contínuo, ser temporário (uso inferior a 60 minutos), de curto prazo (uso inferior a 30 dias) ou de longo prazo (uso superior a 30 dias); b) ser dispositivo não invasivo ou invasivo (seja por orifício natural ou por intervenção cirúrgica), inclusive dispositivo implantável, total ou parcialmente; c) instrumental cirúrgico reutilizável; d) dispositivos ativos, que dependem de uma fonte de energia para o seu funcionamento, tenham eles finalidades terapêuticas ou diagnósticas. Enquanto sob o regime anterior estabelecia-se que todos os dados relacionados aos dispositivos médicos e às investigações clínicas com dispositivos médicos eram confidenciais (art. 20 e Anexo X), a Diretiva atual, de 2007, está calcada na necessária transparência. Nesse contexto, já foi instituído o Banco de Dados Europeu sobre Dispositivos Médicos (EUDAMED, European Databank on Medical Devices, acessível em ), obrigatório para os Estados-Membros, isso desde maio de 2011. Todavia, atualmente o acesso é restrito e não há um módulo público de consulta, o que indica tratar-se, ao menos por ora, de um projeto piloto. No Anexo X da referida diretiva determina-se como se procederá no caso de investigações clínicas com dispositivos médicos, que objetivam medir o nível de desempenho funcional, avaliar os riscos e a aceitabilidade da relação risco/benefício. Determina-se que todas as etapas dessas investigações observem os parâmetros da Associação Médica Mundial (constantes na Declaração de Helsinque) e são estabelecidas algumas exigências quanto aos aspectos metodológicos da investigação clínica com dispositivos médicos.

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Como se sabe, as diretivas comunitárias devem ser transpostas para os ordenamentos jurídicos internos, via legislações nacionais, o que não é objeto do presente estudo, interessando-nos, no que diz com o aprofundamento futuro desse estudo, saber em que termos se deu a transposição dessas diretivas comunitárias no caso de Portugal e da Espanha, pelas razões já explicitadas. Por ora, apenas informa-se que Portugal, além de ter internalizado as diretivas mencionadas (PEREIRA, 2009), também conta com legislação que trata dos biobancos com finalidades de investigação biomédica, a Lei no 12/2005 (MONIZ, 2008), e que no caso espanhol tal internalização também já aconteceu (ANTÚNEZ ESTÉVEZ, 2009), bem como a Lei 14/2007, uma lei geral sobre investigação biomédica na Espanha.

5. Considerações finais Não há como deixar de verificar que se busca definir normas jurídicas internacionais para as pesquisas científicas na área da saúde, normas que estejam em consonância com o respeito aos direitos humanos, e mais especialmente ainda para aquelas pesquisas com seres humanos. Cabe destacar que, no plano do direito internacional, a evolução da proteção jurídica da liberdade de investigação científica concomitantemente com a proteção dos direitos das pessoas que ingressam em estudos científicos evidencia a necessidade de dar maior concretude aos conteúdos delineados nas três grandes declarações internacionais da UNESCO relacionadas ao tema. Essas declarações, em várias oportunidades, inclusive remetem à garantia da lei (ou, em um sentido mais amplo, do direito interno). As questões relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias aplicadas aos seres humanos são enfrentadas com maior concretude, no âmbito do direito internacional, no plano da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina. Enfatize-se, que não dispensa a necessidade de complementação normativa, através de Protocolos Adicionais, como o Protocolo Adicional sobre Pesquisa Biomédica. Ademais, essas concretizações (como a situação especial da pesquisa biomédica envolvendo pessoas em situações de emergência clínica, que o Protocolo Adicional remete à lei, que determinará se será possível, e sob quais condições complementares será possível realizar pesquisa biomédica quando a pessoa é incapaz de dar o seu consentimento e quando a própria urgência impossibilita a obtenção, em tempo hábil, de qualquer autorização prévia) não excluem a necessidade de que os Estados legislem sobre o tema. Aliás, confirmam. O panorama na busca da harmonização das legislações nacionais sobre a pesquisa científica com seres humanos no âmbito da União Europeia também não é distinto no que diz com

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a espécie normativa eleita para regular tais questões: diretivas comunitárias específicas sobre ensaios clínicos com medicamentos e ensaios clínicos com dispositivos médicos, e atos normativos específicos de internalização. No complexo contexto apresentado agrega-se agora a questão de saber se os mecanismos de resposta existentes no Brasil se articulam (e em que medida se articulam) com a proteção delineada no âmbito do direito internacional, questão que está a merecer análise aprofundada, já que o modelo regulatório brasileiro está lastreado basicamente em Resoluções exaradas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão atrelado ao Ministério da Saúde. Impõe-se verificar também a compatibilidade do modelo regulatório brasileiro com o ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, notadamente face à inexistência de norma jurídica, ao menos expressa, com previsão de poderes normativos tão largos para o referido órgão, nem mesmo na lei que organiza a Presidência da República e seus Ministérios (Lei 10.683/2003, que laconicamente refere como atribuição do CNS as “pesquisas médico-sanitárias”), nem mesmo no Código Civil ou na Lei de Biossegurança, e nem mesmo nas duas grandes Leis do SUS, que replicam norma constitucional de competência dos entes da Federação brasileira e preconizam a gestão participativa no Sistema Único de Saúde, e não um controle social das pesquisas científicas via parâmetros definidos pelo Conselho Nacional da Saúde, questões que ficam em aberto para outras investigações.

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Do idealismo abolicionista ao realismo político-criminal: considerações sobre a potencialidade da justiça restaurativa para a administração de conflitos criminais1 Daniel Achutti

1. Introdução Em 1976, Nils Christie estabeleceu importante posicionamento crítico em relação ao sistema penal em conferência ministrada na inauguração do Centro de Criminologia da Universidade de Sheffield, na Inglaterra. Publicada no ano seguinte sob o título Conflitos como Propriedade (CHRISTIE, 1977), tornou-se referência acadêmica internacional, e pode-se dizer ainda que, apesar dos mais de trinta anos desde a sua publicação, mantém-se um texto atual, que continua merecedor de maior atenção por parte da criminologia brasileira. Publicado em importante momento para a criminologia crítica, inúmeros outros trabalhos e pesquisas foram iniciados a partir do conhecido artigo de Christie, focados na busca de um novo modelo de justiça criminal que pudesse se preocupar menos com os prejuízos estatais decorrentes de um delito e se voltar de forma mais efetiva às pessoas envolvidas no conflito e aos danos a elas causados. O nome desse novo modelo de justiça criminal viria a se consolidar como Justiça Restaurativa. Ainda que tal discussão tenha se iniciado a partir do final dos anos 1970, pouco ou quase nada se produziu a respeito no Brasil. Raras são as referências ao tema na maioria dos trabalhos e manuais criminológicos à disposição do público brasileiro. Importante salientar que não se trata, aqui, de buscar “alocar” a justiça restaurativa em um ponto exato dentro do conteúdo programático de uma disciplina acadêmica, seja ela jurídica ou criminológica. Antes disso, procura-se verificar se a proposição de adoção de um modelo de justiça restaurativa pode ser considerada vinculada às críticas abolicionistas e às suas propostas de política criminal (ou seria não criminal?), e até que ponto é possível considerá-la distanciada da intenção última desta corrente criminológica – a abolição do sistema penal.

Para tanto, será feita uma pequena revisão bibliográfica de importantes textos abolicionistas, com a finalidade de apresentar a forma como foram construídas as suas críticas ao sistema penal, para em seguida ser apresentada a justiça restaurativa, com suas principais propostas e delineamentos. Ao final, buscar-se-á questionar a possibilidade de adoção da justiça restaurativa como política criminal no Brasil, ainda que não visando à extinção completa do sistema penal.

2. Da criminologia crítica aos discursos críticos contemporâneos Após um longo período de domínio do paradigma criminológico positivista e de utilização massiva das escolas de criminologia como fornecedoras privilegiadas de mão-de-obra especializada para o Estado (final do século XIX à segunda metade do século XX), a ruptura cultural dos anos 1960 nos Estados Unidos proporcionou a emergência de novas formas de percepção sobre o fenômeno criminal. Apesar das diferenças que carregavam entre si, a partir do início dos anos 1970 tais pensamentos “foram agrupados sob a denominação de ‘criminologia crítica’, ‘nova criminologia’, ‘criminologia radical’ ou também ‘criminologia marxista’”. Por “criminologia crítica” passaram a ser conhecidas “várias posições distintas, que iam desde o interacionismo até o materialismo, e que se assemelhavam mais naquilo que criticavam do que naquilo que propunham” (ANITUA, 2008, p. 657). O livro A Nova Criminologia: para uma teoria social do desvio (1973), de Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young foi especialmente importante para o desenvolvimento dessa nova forma de pensar a questão criminal. A obra apresentou um balanço crítico dos pensamentos criminológicos até o ano de sua publicação, numa clara tentativa de se desvincular do que se considerava como “criminologia oficial” àquela época (DEKESEREDY, 2011, p. 16). A proposta dos autores era construir uma nova criminologia – radical, crítica e materialista – que deveria se comprometer “com a abolição das desigualdades de riquezas e de poder a partir de uma perspectiva marxista, à qual se propunham completar com a percepção do delito como uma consequência da estrutura social na qual acontece,” visualizando “as origens estruturais e superestruturais do desvio, assim como as reações mais imediatas das instâncias oficiais e do público” (ANITUA, 2008, p. 666). Para Larrauri e Moliné (2001, p. 226), a criminologia crítica pode ser dividida em duas fases: a primeira, denominada de nova criminologia marxista, que se caracterizaria pela forte ênfase na economia para explicar a delinquência e o Direito penal, e a segunda, resultado da revisão dos próprios criminólogos críticos,

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denominada criminologia crítica propriamente dita, em que se soma à economia o contexto sociológico, político e cultural na explicação da delinquência e do Direito Penal. Porém, pelas palavras de Anitua (2008, p. 687), “quando parecia que o terreno já estava pronto para redigir uma agenda alternativa à criminologia tradicional, começou-se a perceber que a criminologia crítica estava em crise”. Os desdobramentos das propostas oriundas da criminologia crítica expõem a divisão em que estavam envolvidos os criminólogos críticos – face às diversas orientações e propostas que sustentavam. Segundo van Swaaningen (1999, p. 15), na Europa a criminologia crítica se tornou uma vítima de seu próprio sucesso: muitos dos temas abordados por acadêmicos críticos nos anos 1960 e 1970 tiveram respaldo legislativo nas duas décadas seguintes, fazendo com que parte do projeto crítico passasse a integrar o discurso e a política oficial do Estado. É possível dizer, além disso, que tal crise estava inserida dentro de uma crise maior, que abrangia grupos e indivíduos no final do século XX, que diante de uma quantidade nunca antes possível de informações tornavam-se cada vez mais conscientes da dificuldade de mudar as coisas ou fazer algo como se planeja (ANITUA, 2008, p. 684). Nesse contexto, a criminologia crítica apresentou diferentes respostas à questão penal, cujas distintas bases epistemológicas naturalmente proporcionariam diferentes propostas. Em um primeiro momento, três distintas correntes podem ser apontadas como as mais importantes dentro da criminologia crítica: o abolicionismo penal, o realismo de esquerda e o garantismo penal. No entanto, a partir de então, tal divisão foi ampliada, de forma que em um único artigo seria impossível analisar todas as novas divisões. Apenas a título de exemplo, vale citar a criminologia feminista, a criminologia cultural, a criminologia pós-moderna, a peacemaking criminology (criminologia pacificadora), a convict criminology (criminologia do apenado), dentre outras. (DEKESEREDY e PERRY, 2006; LILLY, CULLEN e BALL, 2007; DEKESEREDY, 2011). Dentro da proposta deste trabalho, apenas alguns textos abolicionistas serão analisados, a fim de possibilitar a posterior análise de seus conteúdos e seus reflexos na estruturação da justiça restaurativa.

3. O Abolicionismo Penal: crítica e extinção do sistema penal O abolicionismo penal – corrente teórica cuja própria denominação indica

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as suas pretensões – tem seu foco voltado para a construção de uma crítica capaz de deslegitimar de forma radical o sistema carcerário e a sua lógica punitiva (ANITUA, 2008, p. 697). Serão utilizados três trabalhos de autores fundamentais do abolicionismo, que delineiam as críticas do sistema formal de justiça criminal e expõem as principais pretensões do movimento: “As Políticas da Abolição” (The Politics of Abolition – 1974), de Thomas Mathiesen; “Conflitos como Propriedade” (Conflicts as Property – 1977), de Nils Christie; e “Criminologia Crítica e o Conceito de Delito” (Critical Criminology and the Concept of Crime – 1986), de Louk Hulsman. Vários outros artigos e livros poderiam ser citados, mas estes três são suficientes para as pretensões do presente trabalho.

3.1 Ideias gerais: Hulsman, Mathiesen e Christie De forma resumida, o abolicionismo defende a ideia de que o castigo não é o meio mais adequado para reagir diante de um delito, e por melhor que possam ser, eventuais reformas no sistema criminal não surtirão efeito, pois o próprio sistema está equivocado ao estabelecer que com uma resposta punitiva (pena de prisão) o “problema” do delito estará solucionado. No âmago da sua argumentação, o abolicionismo – através principalmente de Hulsman – propõe-se a desconstruir a definição de delito: o delito não seria o objeto, mas o produto de uma política criminal que pretende justificar o exercício do poder punitivo, e não possuiria realidade ontológica. De acordo com o autor (HULSMAN, 1986, p. 67), a partir de então seria possível reorganizar o debate da criminologia e da política criminal, e tal postura apontaria para a abolição da justiça penal, uma vez que “o delito como realidade ontológica” seria a pedra fundamental deste tipo de justiça. Pelas palavras de Anitua (2008, p. 698), Hulsman queria indicar que se a comunidade aborda os eventos criminalizados e os trata como problemas sociais, isso permitiria ampliar o leque de respostas possíveis, não se limitando à resposta punitiva, que, ao longo da história, não somente não resolveu nada, como também criou problemas.

Uma das maneiras para concretizar a desconstrução da categoria delito e viabilizar a adoção de outros mecanismos de controle social seria a adoção de um novo vocabulário para abordar a questão criminal e as engrenagens oficiais: a linguagem

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delimita o sistema e mascara a realidade, de forma a (a) excluir qualquer tentativa de utilização de mecanismos diversos aos oficialmente existentes; e (b) de definir os conflitos não a partir do ponto de vista dos envolvidos, mas a partir da prévia estruturação legal desses conflitos, tidos oficialmente como delitos. Tais definições, uma vez que realizadas anteriormente à ocorrência do conflito, não permitem a construção coletiva acerca da situação e de suas circunstâncias: a única leitura possível é a leitura jurídico-penal. Em um contexto de organização formal em que a própria definição preliminar do caso (geralmente, realizada pela polícia e pelo Ministério Público) não está à disposição das partes, as consequências do julgamento, naturalmente, também não serão colocadas em discussão (HULSMAN, 1986, p. 77-78). Para Hulsman (1986, p. 77), a estruturação legal de conflitos como delitos pouco ou nada poderia coincidir com a visão do problema que teriam as partes diretamente envolvidas: “Na justiça penal geralmente se decide de acordo com uma realidade que existe apenas dentro do sistema, e raramente encontra a sua contrapartida no mundo exterior”. Consequentemente, Hulsman (1997, p. 101 e 96) propõe uma mudança significativa de linguagem, uma vez que o crime não possui existência ontológica e, portanto, não necessariamente deve ser chamado dessa forma. A proposta do autor remonta à expressão “situações problemáticas”, e a pretensão era reduzir ou anular a estigmatização oriunda do sistema penal e devolver a resolução do conflito às partes. Tal mudança teria o poder de romper o binômio crime-castigo e oferecer uma gama infindável de possibilidades para encerrar e resolver a situação sem precisar recorrer à tradicional pena de prisão. Suas críticas ao sistema penal, como se sabe, não estavam isoladas: Thomas Mathiesen, na obra As Políticas da Abolição, apresentava três propostas principais para a efetivação do abolicionismo penal. Em primeiro lugar, a abolição das prisões era considerada como um objetivo de uma política criminal radical. Tal proposta foi reafirmada em 1986 (MATHIESEN, 1986, p. 84), em artigo de mesmo nome no qual o autor revisou o trabalho original e, constatando a expansão considerável do uso da prisão no mundo ocidental, reiterou que o objetivo apresentado vinte e dois anos antes se encontrava revigorado: quanto mais as pessoas são colocadas atrás das grades, mais importante ainda se tornou o mencionado objetivo. Em segundo lugar, era necessário ter cuidado com as conhecidas “alternativas” à prisão, uma vez que isso poderia facilmente implicar na criação de estruturas prisionais semelhantes, com funções igualmente muito parecidas. Diante de

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tal situação, Mathiesen propôs a sua conhecida “política do inacabado” (unfinished policies), que preza pela constante atenção dos abolicionistas para jamais deixar de lutar pela abolição da prisão ou, pelo menos, para questionar todas as formas de alternativas que pudessem ser propostas oficialmente à prisão. Dessa forma, a “luta abolicionista” não tem fim aparente, e é necessário estar sempre pronto para confrontar toda proposta possível de ampliação da malha prisional (MATHIESEN, 1986, p. 81). Por fim, propunha o autor que, para a realização do objetivo principal, era necessária “uma estratégia muito bem trabalhada, e acima de tudo uma análise da relação entre as reformas de curto prazo e a abolição a longo prazo”. Em relação às reformas de curto prazo, o adequado seria adotar uma postura “negativa”, no sentido de sempre se posicionar contrariamente a qualquer proposta que pudesse incrementar ou aumentar o sistema prisional (MATHIESEN, 1986, p. 82). Nils Christie, por sua vez, no clássico Conflitos como Propriedade (1977), igualmente faz uma severa crítica ao sistema penal, mas estabelece o centro da discussão na apropriação estatal dos conflitos. Diante da constatação de que aqueles que lidam com os conflitos são pessoas alheias às partes (juízes, promotores e advogados), Christie opõe ao modelo tradicional de justiça criminal uma outra forma de trabalhar os conflitos, de estrutura descentralizada e cujos atores principais não seriam terceiras pessoas – ou profissionais da administração de conflitos – mas as próprias partes (direta ou indiretamente) envolvidas no conflito. Elas mesmas deveriam, de forma a buscar reparar o dano causado à vítima, buscar as soluções possíveis para os conflitos em que estiverem envolvidas. Segundo o autor, os conflitos foram furtados das partes e entregues ao Estado, para que este pudesse determinar a responsabilidade e a punição ao ofensor. Os conflitos deveriam, segundo Christie, ser vistos como valiosos, que não poderiam ser desperdiçados e mal utilizados, uma vez que o potencial maior dos conflitos reside justamente em oportunizar aos cidadãos a administração de seus próprios problemas. Consequentemente, é fácil notar que os cidadãos adquirem uma maior autonomia em relação ao poder estatal, e a forma profissional de lidar com os conflitos abre espaço para um enfrentamento não massivo e particular da situação (CHRISTIE, 1977). A importância do artigo de Christie, para além da contundente crítica que estabelece ao sistema de justiça criminal, remonta de forma especial ao retorno da vítima na participação da resolução de seu caso. Conforme o autor, as vítimas precisam compreender a situação, mas a justiça criminal as trata como “uma não-pessoa em uma peça de Kafka” (CHRISTIE, 1977, p. 8).

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A seguir, o autor coloca que o modelo de justiça em questão deve possuir como foco não o ofensor, mas a vítima e as necessidades que surgiram com o conflito. Além disso, o sistema idealizado por Christie seria constituído por tribunais comunitários (neighbourhood courts), de forma a estarem mais próximos aos valores da comunidade em que estiverem inseridos. O procedimento se constituiria em quatro etapas consecutivas: na primeira, seria averiguada a plausibilidade da acusação, a fim de evitar que terceiras pessoas possam ser responsabilizadas pelos atos de outros e que os direitos do acusado sejam violados; a segunda envolveria a elaboração de um relatório completo das necessidades da vítima, a ser formulado por ela própria, considerando o dano que lhe foi causado e as formas como ele pode ser restaurado ou minimizado; na terceira, seria realizada uma análise pelos tribunais comunitários acerca de uma possível punição ao ofensor, independentemente do que ocorrera a etapa anterior; por fim, uma discussão sobre a situação pessoal e social do ofensor seria realizada pelos mesmos participantes das etapas anteriores, com a finalidade de averiguar as suas eventuais necessidades. Através destas etapas, estes tribunais locais “representariam uma mistura de elementos de tribunais civis e penais, mas com uma forte ênfase nos aspectos civis” (CHRISTIE, 1977, p. 11). Juntas, as argumentações dos três mais conhecidos autores do abolicionismo penal fornecem forte material crítico para avançar a discussão sobre o papel da justiça criminal contemporânea, assim como para questionar aquilo que, há pouco tempo atrás, parecia inquestionável: o direito e o processo penal fornecem ferramentas realmente suficientes para a administração dos conflitos criminais? O afastamento das partes é algo realmente desejado ou confunde-se com a necessidade de legitimação do sistema penal?

4. Do idealismo crítico ao realismo político-criminal: a justiça restaurativa como proposta para a administração de conflitos Em um primeiro momento, a argumentação abolicionista, apesar da sua intensa força crítica, parece fadada a desaparecer naturalmente, dado o idealismo de suas principais proposições. Entretanto, a contestação do conceito de delito (Hulsman), as posturas negativas em termos de política criminal (Mathiesen) e a defesa de uma justiça mais participativa e descentralizada (Christie) permitem entrever a possibilidade de uma política criminal concreta, realista, cuja estrutura agora encontra respaldo no modelo conhecido como justiça restaurativa. Como refere Vicenzo Ruggiero (2010, p. 01), “certamente há na postura abolicionista na proposição de que a administração da justiça penal por um Estado centralizado deve ser

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substituída por formas descentralizadas de regulação autônoma de delitos”. Ao passo que a crítica ao posicionamento abolicionista opta estrategicamente por, de antemão, considerá-la “idealista demais”, é possível pensar justamente o contrário: que o abolicionismo, ao invés de ser apenas um punhado de críticas ao sistema penal com uma proposição utópica sobre o seu destino (abolição), é uma postura política, “uma forma de abordagem, uma perspectiva, uma metodologia e, acima de tudo, uma forma de enxergar” a evidente incompatibilidade entre a teoria e a prática do sistema de justiça criminal (RUGGIERO, 2010, p. 01). Mas essa não é uma questão apenas de “recolocar os textos abolicionistas de volta às estantes de referência das bibliotecas universitárias”, mas de “vincular o ‘radicalismo e o utopismo’ abolicionistas com visões do crime e da lei incorporadas na tradição cultural ocidental e suas opções concretas e razoáveis que se destinam a redução de dor” (RUGGIERO, 2010, p. 201). Por esses motivos, e partindo do pressuposto de que por trás das críticas abolicionistas é possível estabelecer uma política criminal concreta, passa a ser importante começar a pensar a respeito do mencionado modelo conhecido como justiça restaurativa.

4.1 Justiça Restaurativa: principais noções e propostas A justiça restaurativa surge a partir da década de 1970 como alternativa à falência estrutural do modelo tradicional de sistema criminal, e trouxe consigo a promessa de uma maneira mais construtiva de fazer justiça. Para alguns acadêmicos, representa também uma maneira de se posicionar contrariamente ao punitivismo popular característico das políticas criminais das últimas décadas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha (HOYLE, 2010, p. 31), e tem como desafio retrabalhar os dogmas da justiça criminal a partir de uma abordagem voltada precipuamente para a vítima, e não para o ofensor. Frontalmente associada, em seu início, ao movimento de descriminalização, Mylène Jaccould (2005, p. 04) refere que a justiça restaurativa deu passagem ao desdobramento de numerosas experiências-piloto do sistema penal a partir da metade dos anos setenta (fase experimental), experiências que se institucionalizaram nos anos oitenta (fase de institucionalização) pela adoção de medidas legislativas específicas. A partir dos anos noventa, a justiça restaurativa conhece uma fase de expansão e se vê inserida em todas as etapas do processo penal.

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Talvez o conceito mais citado de justiça restaurativa seja o de Tony Marshall (1996, p. 37), que a define como “um processo através do qual todas as partes envolvidas em uma ofensa particular se reúnem para resolver coletivamente como lidar com a consequência da ofensa e as suas implicações para o futuro”. Na justiça restaurativa, (a) a vítima poderá participar dos debates envolvendo o conflito; (b) o procedimento poderá não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele venha a admitir que praticou o delito e provas robustas corroborem a confissão; (c) há a possibilidade de realização de um acordo entre as partes; e (d) os atores jurídicos especializados deixarão de ser os protagonistas, abrindo espaço para um enfrentamento interdisciplinar do conflito; dentre outras características. Vale o registro de André Gomma de Azevedo (2005, p. 6), para quem a Justiça Restaurativa apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta da chamada Justiça Tradicional ou Justiça Retributiva. A Justiça Restaurativa enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade ao mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do fato) são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas, restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões.

Segundo Melo (2005, p. 7), os motivos que demonstram a emergência de um novo paradigma a partir da Justiça Restaurativa para o enfrentamento dos conflitos criminais são: primeiramente, ela oportuniza uma outra percepção da relação entre o indivíduo e a sociedade “no que concerne ao poder: contra uma visão vertical na definição do que é justo, ela dá vazão a um acertamento horizontal e pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos numa situação conflitiva”; em segundo lugar, salienta que a justiça restaurativa foca “na singularidade daqueles que estão em relação e nos valores que a presidem, abrindo-se, com isso, àquilo que leva ao conflito”; em terceiro lugar, se o foco está mais voltado para a relação do que para a resposta punitiva estatal, o próprio conflito e a tensão relacional adquirem outro estatuto, “não mais como aquilo que há de ser rechaçado, apagado, aniquilado, mas sim como aquilo que há de ser trabalhado, laborado, potencializado naquilo que pode ter de positivo, para além de uma expressão gauche, com contornos destrutivos”; em quarto lugar, “contra um modelo centrado no acertamento de contas meramente com o passado, a justiça restaurativa permite uma outra relação com o tempo, atenta também aos termos em que hão de se acertar os envolvidos no presente à vista do porvir”; e, em quinto lugar, “este modelo aponta para o rompimento dos limites colocados pelo direito liberal, abrindo-nos, para além do interpessoal, a uma percepção social dos problemas colocados nas situações conflitivas.”

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Para Antoine Garapon (2001, pp. 253 e 251), a justiça restaurativa2 proporciona um verdadeiro “deslocamento do centro de gravidade da justiça”, pois “atribui um rosto novo à justiça: reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto. Tem como vizinhos homens de carne e osso, não a lei!” Com a quebra da centralidade da justiça criminal no acusado, a vítima passa a ter papel fundamental neste novo cenário, de forma a intimar “o direito penal a reorganizar-se”: “quando nos concentramos na vítima e já não no autor, a malvadez como vontade má deixa de ser central, o que exerce uma influência considerável sobre o sentido da pena. Esta já não pode pretender apontar uma intenção culpada” (GARAPON, 2001, pp. 255 e 257). Ainda segundo Garapon (2001, p. 262), a vítima cessa o frente a frente secular entre o criminoso e o príncipe no qual ela fazia figura de convidada e sobrepõe-lhe um outro entre ela e o criminoso. Ela obriga assim a repensar a justiça como o local de articulação não entre dois (o criminoso e o príncipe), mas três protagonistas.

Nesse contexto de enfrentamento do crime, a abordagem do agir criminoso – aquele atribuível apenas ao humano absolutamente racional, como uma ação intencionalmente praticada – pode deixar de isolar os demais integrantes do cenário social do sujeito e, assim, permitir que não se o responsabilize exclusivamente como culpado pelo crime. Não se pretende desvincular uma ação de seu autor, mas apenas ampliar a abordagem, de forma a tentar compreender o delito como algo maior e mais complexo do que apenas uma conduta humana livre e consciente direcionada a determinado fim. Importante esclarecer que tampouco se pretende punir seus familiares ou demais pessoas que convivem diariamente com o ofensor. Isso não significa que tudo será permitido, antes pelo contrário: a identificação de um determinado contexto para a ocorrência de situações problemáticas complexifica a situação e permite o abandono de modelo de atribuição de culpa que se quer puro e auto-suficiente, na busca de outra maneira de pensar tais situações. E é nesse momento que se torna possível questionar a tradicional diferenciação entre ilícito civil e ilícito penal: a percepção, desde outros olhares, sobre o significado atribuído a determinadas condutas é, talvez, um dos pontos centrais a ser ponderado. Como possível consequência de uma redução do sistema penal e da ampliação da utilização de uma justiça restaurativa, em que o foco não é o enquadramento de uma conduta em determinado tipo penal, mas no dano efetivamente causado, Ezzat Fattah (2000, p. 42) é taxativo: o foco principal de um sistema restaurativo será a reparação e a compensação do dano, e afirma que “a distinção arbitrária entre cortes criminais e civis irá desaparecer e (...) as fronteiras artificiais que foram erigidas ao longo dos anos entre cortes criminais e civis serão removidas.”

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A superação das fronteiras artificiais entre as cortes cíveis e criminais, como refere Fattah, somente poderá ocorrer caso haja um novo olhar sobre a própria classificação das condutas danosas – de ilícitos penais para outro tipo de ilícito, precipuamente o civil. Tal superação permitiria, se bem estruturada, constituir-se em um freio à rotulação do ofensor como delinqüente; resultar em uma decisão menos danosa individual e socialmente (diminuiria drasticamente as possibilidades de uma pessoa ser enviada à prisão); e, ainda, desencadear, ao final, não mais em meras sentenças condenatórias como respostas ao crime, mas em ações coletivas voltadas para a reparação do dano causado. A Justiça Restaurativa pretende, como se percebe, apoiar-se “no princípio de uma redefinição do crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o estado ou como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e consequências” (JACCOULD, 2005, p. 07), focando a atenção na possível solução do problema através do diálogo entre as partes (direta ou indiretamente envolvidas: agressor, vítima, amigos, parentes, pessoas importantes para as partes, etc.). A infração, então, deixa de ser um mero tipo penal violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de origens complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito. Importante apontamento traz Garapon (2001), quando refere que a justiça restaurativa não se funda nem exclusivamente no ato delitivo (violação da lei – modelo retributivo), nem na pessoa do autor visando a sua educação (modelo reabilitativo), mas no evento do seu encontro, gerador em si mesmo de créditos e débitos novos. O encontro não se reduz ao ato, que é o evento visto do agente, tal como não se confunde com o sofrimento, a sua vivência pelo paciente da ação, ou com a transgressão que lhe é a qualificação abstrata. Nenhuma dessas abordagens lhe esgota totalmente o sentido. Com a sua parte de sorte, de imprevisto, de transcendência, com o acidente, a catástrofe, o encontro transcende a intenção de quem lhe tomou a iniciativa. Tal como as suas consequências para a vítima ultrapassam a unidade do tempo, de lugar e de ação na qual se queria contudo encerrá-la. Um encontro transborda sempre sobre si mesmo: é tão imprevisível para a vítima quanto, em certa medida, o é para o autor. A injustiça nasce aí, nesse mal-entendido da vida, nesta diferença entre a ação desejada e o drama calhado em sorte, entre duas versões do vivido que não podem conciliar-se. A justiça saberá encontrar equivalências satisfatórias para saldar esta conta que o acaso estabeleceu? (GARAPON, 2001, p. 269)

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Invariavelmente, refere Garapon (2001, pp. 313 e 318), a ideia central da justiça restaurativa está na pretensão de atribuir aos principais interessados – vítima, autor e grupo social diretamente afetado pelo delito – os recursos suficientes para reagir à infração. Já que não é mais possível “pretender saber a priori melhor que os próprios interessados o que é bom para eles”, melhor então “despertar as suas competências particulares, adormecidas pelo paternalismo das instituições”. O que se quer, portanto, é oportunizar que se construa “uma resposta inteligente ao pluralismo moral próprio de toda a sociedade democrática” (GARAPON, 2001, p. 313), ou seja, que esse novo modelo de justiça criminal permita pensar a questão para além do anacrônico modelo causal do crime-castigo.

5. Considerações Finais Segundo Jacques Derrida (2007, p. 30 e 44-45), “o direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável”. Ainda segundo o autor, “cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada pode nem deve absolutamente garantir. Pelo menos, se ela a garantir de modo seguro, então o juiz é uma máquina de calcular”. Para Garapon (2001, p. 261), o importante não é tanto estabelecer os erros do passado quanto preparar o futuro, isto é, permitir a cada um refazer ou continuar a sua vida. Estas duas leis preferem, de seguida, o acordo à decisão imposta, sempre que possível. O juiz retira-se na ponta dos pés de certos conflitos, concebendo de futuro a sua intervenção como subsidiária. A intervenção do terceiro, dramatizada pelo processo, torna-se secundária em relação a uma justiça do frente a frente.

A mofada pré-determinação via códigos do que é considerado crime e a antecipada definição da pena de prisão como resposta estatal majoritária à conduta delituosa diluir-se-iam aos poucos, dando espaço, tempo e lugar às partes para que decidam o que fazer sobre o seu caso, impedindo que “terceiros” tomem os seus lugares e as suas dores e digam, a partir de seus locais de vida – evidentemente outros – o que deve ser feito em relação ao episódio. A análise abolicionista ressalta, conforme Ruggiero (2010, p. 203-4), que a definição “do que constitui crime, a intervenção da lei e a aplicação de penas ocorrem em cenários institucionais distantes das situações abordadas”. Com a devolução do conflito às partes, rompe-se com condutas proibidas a priori para repensá-las

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apenas a partir da interpretação dos envolvidos no episódio, de forma a se permitir a participação ativa dos envolvidos e suas variáveis subjetivas que, na justiça penal tradicional, não encontram espaço de valorização. Ainda segundo o autor (RUGGIERO, 2010, p. 205), outro fator que distingue o abolicionismo das demais correntes críticas é justamente a ênfase na participação e na autonomia das partes na resolução de seus problemas, exatamente como propõem os teóricos da justiça restaurativa. A partir destas considerações, tem-se que os diferentes enfoques dos abolicionistas penais, em especial de Hulsman e Christie, conduzem ao delineamento de passos fundamentais a serem considerados para a criação e a estruturação de um sistema de justiça restaurativo, o que permite concluir que os autores apresentam, por meio das suas críticas, importantes elementos propositivos-construtivos, atento às interferências criminalizantes do sistema penal tradicional. A forma como construíram as suas críticas permite que se percebam os primeiros passos para a caracterização de um modelo informal de administração de conflitos desvinculado do tradicional paradigma do crime-castigo. Deste modo, a lição de Luiz Antônio Bogo Chies (2002, p. 187) é precisa, ao mencionar que as teorias e as críticas abolicionistas se constituem como “oposição às perversidades proporcionadas pela ‘racionalidade’ burocrática do sistema jurídico-penal moderno”, seja enquanto orientação e reflexão significativamente críticas e desmistificadoras dos paradoxos do sistema penal, seja “enquanto proposições de formas alternativas e extrapenais de resolução de conflitos”. Salo de Carvalho (2010, pp. 251-252), com razão, refere que um modelo de justiça que se pretenda democrático não pode impor um procedimento que tem nos operadores jurídicos – representantes do Estado – os únicos interessados na resolução do conflito. Para o autor, a concentração do poder nas mãos do juiz tende a sobrevalorizar a sua função e a reforçar a ideia de que o magistrado é, de fato, o personagem principal no ritual processual. O conflito é das pessoas, e a elas deve ser devolvido, para que não vire mera burocracia sem sentido, fim em si mesmo. Conclui-se, portanto, no mesmo sentido de Carvalho (2010, p. 252), para quem os procedimentos de justiça restaurativa podem ser utilizados para a promoção da participação ativa das partes, o que pode potencializar, por sua vez, o incremento da democracia no sistema de justiça brasileiro. Com a interferência direta das partes na formulação das decisões, uma verdadeira construção coletiva da justiça se torna possível e, com isso, viabiliza-se um efetivo acesso à justiça aos interessados.

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Visualiza-se, com isto, uma possibilidade efetiva de democratização no gerenciamento de conflitos: enquanto no sistema penal a resposta vem de cima – é imposta pela norma e aplicada pelo juiz –, na justiça restaurativa a resposta emerge dos próprios envolvidos, dado que não há uma solução prévia para todos os casos, e as mesmas deverão ser construídas conforme as peculiaridades de cada situação. Ao caminhar nesse sentido, a justiça restaurativa poderá colaborar para o fortalecimento da base dos direitos de cidadania e democracia, como refere Raffaella Pallamolla (2011, p. 375), mas também para a redução das desigualdades oriundas do sistema de justiça criminal, especialmente em relação aos menos favorecidos social e economicamente, que constituem a sua maior clientela, como lembra Leonardo Sica (2007, pp. 154-155). Não se pretende, com isto, a abolição imediata da justiça penal, mas, quiçá, a sua significativa redução. A justiça restaurativa, justamente por não ser um produto pronto e acabado, ainda não tem condições de ter uma pretensão puramente abolicionista, mas nada impede que seja utilizada com a finalidade de redução da atuação do sistema penal e de toda a dor que este proporciona às partes. Além disso, pode se constituir em importante ferramenta para a estruturação de um sistema de justiça criminal que propicie a instauração, entre os envolvidos, de um verdadeiro encontro (SOUZA, 2004).

Notas 1

O presente trabalho é fruto parcial de projeto de pesquisa (2009-2012) financiado pela CAPES (bolsa de doutorado sanduíche – processo n. 3770/10-9) e pela PUCRS (Probolsa). Atualmente, encontra-se em desenvolvimento com financiamento do Unilasalle (Canoas/RS). 2

Na tradução portuguesa, o termo justiça restaurativa foi traduzido como justiça reconstrutiva. Em inglês, restorative justice. O autor prefere a tradução “reconstrutiva” à “restaurativa” em virtude da ideia de busca de reconstrução de uma relação destruída, por um lado, e pelo espírito no qual ela deve fazer-se, por outro, no sentido de originarse da noção de “construtivo”. Ainda, salienta que o adjetivo “restauradora” traz consigo a noção de “um retorno ao idêntico que (...) não está conforme a ambição desta forma de justiça” (cf. nota n. 1, p. 250) Não desconhecemos essa diferença, mas, para não utilizar dois termos distintos, utilizaremos o termo mais conhecido, qual seja, justiça restaurativa.

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Policontexturalidade, risco e direito: abismos superáveis para o delineamento da criminalidade contemporânea Renata Almeida da Costa

1. Introdução A partir do surgimento das sociedades pós-industriais, desenvolveu-se uma nova perspectiva social, calcada nas situações de complexidade e de risco. Em função dessa transformação social o Estado contemporâneo tem assumido um perfil punitivo expansivo-caótico, caracterizado pelas crises conceitual, estrutural, funcional e institucional que, em função da policontexturalidade, determinam o exercício de novas formas de poder. Nesse contexto, práticas desviantes ditas organizadas (como formas de poder, inclusive) implementam-se interna e externamente aos domínios do Estado soberano, determinando o reconhecimento de regras sociais lícitas e ilícitas que condicionam as condutas humanas contemporâneas. Nesse compasso, o desenvolvimento da sociedade de risco (caracterizada pelo fim das certezas e pela produção de complexidade) fomentou os sentimentos (individuais e sociais) de insegurança, de desproteção e de debilidade frente à criminalidade gerada pelo expansionismo das relações sociais. Neste panorama, a criminalidade organizada passou a figurar como elemento central do sistema jurídico-penal (nacional e internacional) que, à mercê das crises conceitual, estrutural, funcional e institucional, insiste em pleitear a manutenção da segurança perdida através da edição de normas jurídicas. Nesse sentido, emergem os questionamentos: a) no que consistem as crises enfrentadas pelo sistema jurídico-penal contemporâneo? b) qual é a delimitação das novas formas de poder (nacionais e transnacionais) surgidas nesse contexto? c) quais as relações entre as crises do sistema jurídico-penal e o surgimento das novas formas de poder? d) qual é a eficácia das teorias nascidas nessa realidade para a solução desses impasses?

2. Possibilidades de enfrentamento As diversas formas de poder exercidas em torno da temática da criminalidade organizada (nacional ou transnacional) são originadas a partir de um só con-

ceito: o da legitimidade, ou, da legalidade do poder. Ou seja, a partir da noção da licitude, surgem outros atos decisórios lícitos ou ilícitos. Mas, de qualquer forma, estruturados em algum postulado organizacional. Assim, desenvolve-se a noção de policontexturalidade, em que o sistema jurídico-penal não é apenas o objeto passivo da desconstrução, mas sujeito ativo dessa desconstrução. A autodesconstrução do sistema acarreta o surgimento de outras formas de postestades normativas e/ou punitivas. A passagem da sociedade moderna para a sociedade contemporânea (também definida por diversos autores como: pós-moderna, alta modernidade, modernidade da modernidade ou sociedade de risco – os autores não são unânimes nesses conceitos) é caracterizada pelo surgimento do risco, do fim das certezas e da geração da complexidade. As características da contemporaneidade desencadearam uma nova perspectiva social, assentada na busca da redução das complexidades e no aprimoramento das expectativas de segurança. Nesse contexto, a ameaça de realização do mal à sociedade, caracterizado pelo expansionismo das relações sociais, da troca de culturas, do exercício da liberdade, da independência das relações sociais e da mobilidade das camadas sociais, passou a ser entendida como o “risco”. Esse contexto, associado ao pânico social e à exigência de respostas rápidas à problemática criminal, tem contribuído para que o sistema jurídico-penal, através do direito penal, seja utilizado como o principal fator de construção, ou pelo menos, de busca de estabilidade, fundamentada na predisposição de vínculos para o futuro, através da criação das estruturas normativas. Nesse âmbito, política criminal tem se confundido com política de segurança pública, negligenciando a segurança das liberdades individuais e perpetuando a manipulação do medo coletivo difuso. Como exemplo do atuar estatal, no que concerne a matéria criminal organizada, pode-se mencionar a edição, no Brasil, da Lei de número 9.034/95, destinada a combater as ações decorrentes das quadrilhas ou bandos e identificadas como comissivas do “crime organizado”. Esse instrumento jurídico-penal atesta as crises do perfil assumido pelo Estado contemporâneo, a saber, as crises: conceitual, estrutural, constitucional, funcional e política (MORAIS, 2002). A crise conceitual, caracterizada pelo exercício do poder como soberania, diante do exercício da criminalidade organizada torna-se evidente. O Estado, instituição central da modernidade, diante da contemporaneidade, não exerce com exclusividade e eficiência a sua potestade punitiva a partir do momento em que são erigidas outras formas de poder, à margem da licitude, com códigos próprios de

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valores e de regras. A crise estrutural se conecta diretamente ao caráter finalístico do sistema jurídico-penal do estado social, quer seja: promover a segurança dos bens jurídicos sociais [Welfare State], mesmo às custas do sacrifício de bens individuais. Tal crise se evidencia quando se percebe tal tendência no Estado democrático de direito que, diante de sua ineficiência em promover o estado de bem-estar social, promove legislativamente (atitude interventiva), o sacrifício de bens individuais através de ações criminalizadoras e punitivas máximas. A crise constitucional também é verificada em função da edição da Lei de número 9.034/95. A partir da constatação da ausência de constitucionalidade de vários dos seus dispositivos legais, percebe-se o descompasso entre as pretensões legislativas hodiernas e os postulados ideológicos constitucionalizados. Em função do reconhecimento da existência de poderes descentralizados do Estado, porém eficazes para as organizações sociais criminosas, verifica-se, também, a crise funcional do Estado, calcada na perda de sua exclusividade normativa e potestatória. No processo de ruptura do poder normativo e potestatório estatal, a representação política também assume outra imagem. O deslocamento do processo decisório para outras formas de poder (criminosas organizadas) revela-se como meio hábil para solução de conflitos locais sem a participação legítima estatal, na medida em que impõe seu próprio código normativo e que encontra, nos indivíduos componentes da organização, receptividade axiológica. Nessa realidade, há um deslocamento das ideologias individuais dos postulados estatais para os postulados organizacionais, o que acarreta maior aceitabilidade e cumprimento das normas organizacionais do que das estatais, por parte dos indivíduos associados, de forma a pseudo-legitimar aquela nova forma de poder. O quadro marcado pela possibilidade de autodesconstrução determina no plano dogmático-penal o surgimento de novas teorias que procuram justificar os atos legislativos e/ou solucionar os problemas dogmáticos criados pela atuação legislativa. Nessa esteira, postulados funcionalistas (que procuram inserir no tipo penal, como seu elemento constitutivo, a figura do “risco”) e movimentos criminológicos de lei e ordem (ou tolerância zero) adquirem espaço.

3. Interlocução acadêmica: abismos entre o direito (penal) e a sociologia A incidência da policontexturalidade (como fenômeno sociológico) como

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responsável pela desconstrução do sistema jurídico-penal e construtora de outras formas de potestades normativo-punitivas (i)lícitas é uma possibilidade pouco estudada pelos juristas. Contudo, a necessidade de se associar o implemento das ações criminosas, ditas penalmente como organizadas, aos fatores de transnacionalização e de globalização, é fio condutor para a compreensão do fenômeno. Ao mesmo tempo, o entendimento de que o risco, decorrente da complexidade social, é fator determinante do processo legislativo criminal hodierno e, por isso, fator indissociável do operar interpretativo sociólogo-jurídico. Ademais, indissociável, também, nessa perspectiva, o enfrentamento da crise do Estado contemporâneo. A criminalidade organizada, muito embora não se constitua em um crime no Brasil porquanto a conduta humana ainda não tenha sido tipificada pelo legislador brasileiro nos estatutos repressivos penais em vigor, reflete uma série de características das sociedades pós-industriais. Ao mesmo tempo, o seu constante implemento demonstra as crises vivenciadas pelos Estados soberanos, de forma que não se pode deixar de reconhecer as novas formas de poder nacionais ou transnacionais, lícitas ou ilícitas, surgidas nesse contexto. Em tal âmbito, continua figurando o direito penal como o principal responsável pela solução do problema dessa crescente criminalidade. Entretanto, as formas repressivo-punitivas estatais não têm obtido êxito no desempenho de suas funções e novas teorias têm sido formuladas para a tentativa de redução dessa complexidade. A compreensão dessa realidade e o apontamento de possíveis soluções para tal forma de criminalidade, demanda a análise dos fatores contemporâneos a esses fatos e delimitadores da ineficiência do monopólio estatal-penal frente ao crime organizado. Cumpre, então, analisarem-se as influências da policontexturalidade, da transnacionalização e do risco, agregados às crises conceitual, estrutural, constitucional, funcional e política do Estado contemporâneo.

4. Do desvio à criminalidade organizada na (e pela) legislação penal brasileira Hodiernamente, a matéria relacionada ao crime organizado encontra-se disciplinada na Lei 9.034/95. O contexto de edição desse instrumento jurídico, destinado a “combater” as ações decorrentes de quadrilhas ou de bandos, em 03 de maio de 1995, traduz-se pelo que alguns doutrinadores mais críticos insistem em afirmar ser ele o “caos” da dogmática legal. Conforme Castanheira (1998), nos anos 70, o Direito Penal seguia a tradição academicista, baseada em fundamentos teóricos,

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que postulava uma criminalização ampla para a manutenção dos interesses do Estado e da moralidade. O objeto da ciência penal, mais do que determinar a tutela dos bens jurídicos essenciais, fundamentava-se na manutenção da ordem geral, baseada na “prevenção geral positiva”. Graças ao desastre retributivo (CASTANHEIRA, 1998) da função da pena, desenvolveu-se o campo da política criminal, baseado em um processo crítico do sistema. O tema principal da reflexão penal passou da abstração justificativa do sistema penal para a justificação dos fins desse sistema. Nesse contexto, Castanheira refere o surgimento de duas tendências opostas: a busca de legitimidade para o Direito Penal e o caráter abolicionista. Esses dois discursos são antagônicos porque, enquanto o primeiro tem como metas a proteção de bens jurídicos, a prevenção geral negativa e a ressocialização; o outro buscou desmitificar as ideias de ressocialização, de cura e de intimidação, o que evidencia a crise paradigmática enfrentada pelo sistema penal, em decorrência dos mais amplos fatores sociais. Afinal, como conceber num mesmo sistema o mais (caracterizado pela possibilidade de intervenção máxima do direito penal) e o menos marcado pela tendência abolicionista de menor intervenção do poder estatal punitivo? Como conciliar a aplicação dessas duas tendências? Nesse quadro, não há como negar que o bem jurídico tutelado, objeto justificador da individualização e da tipificação das condutas humanas, transitou pelas duas tendências. Por vezes, embasou uma postura legitimadora de intervenções penais arbitrárias, com muito mais veemência do que alicerçou a ideia deslegitimadora. Em decorrência, o que se pode comprovar na atualidade, é que a noção de bem jurídico continuou a abranger conceitos abstratos, não delimitáveis, nem sequer palpáveis, como “saúde pública” (SCHWARTZ, 2001), “paz pública”, “condições funcionais do mercado de capitais”, “economia popular”, dentre outras (CASTANHEIRA, 1998). Por derradeiro, tornou-se evidente a implementação do processo de criminalização, deveras exacerbado, que hoje pode ser muito bem traduzido pela existência das leis dos crimes hediondos, dos crimes ambientais, do crime organizado, da responsabilidade fiscal, entre outros. Como ressalta Castanheira, “tal processo crescente teve início nas décadas de 80 e de 90, quando o Estado de Direito se afirmou nas sociedades industriais contemporâneas, sendo que tal Estado de Direito é centrado nas relações sociais marcadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico” (CASTANHEIRA, 1998, p. 105-106). Cumpre complementar esse pensamento com a delimitação dada pela Constituição Federal de 1988 ao Estado de Direito, quer seja, Democrático.

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Todas essas “inovações” contribuíram para o desenrolar de um sentimento de “caos social”, derivado da transformação da estrutura política adequada às características da sociedade. Essa nova realidade, por sua vez, passou a verbalizar a necessidade de criação/implementação de um fictício “Estado de Segurança”, em detrimento à sociedade de risco. Nesse sentido, segundo Bitencourt, houve uma mudança semântico-dogmática no combate à criminalidade moderna, como resultante da complexidade social atual. Assim, tem-se “perigo em vez de dano; risco em vez de ofensa efetiva a um bem jurídico; abstrato em vez de concreto; tipo aberto em vez de fechado; bem jurídico coletivo em vez de individual, etc.” (BITENCOURT, 1997, p. 101). Aliado a tal mudança, há, ainda, o fato de que os indivíduos dos grupos sociais das últimas quatro décadas (sob o ponto de vista sistêmico de Luhmann e Parsons) têm-se comunicado e interagido numa intensidade e frequência cada vez maiores, constituindo-se em um risco evidente ao Estado no mundo globalizado. Tal fenômeno contribuiu para o “desespero” do legislador em buscar solucionar a problemática da criminalidade organizada através de algum instrumento legal. Esse intento findou ao jurista a árdua tarefa de interpretar e de aplicar a legislação que foi criada diante desse pálio. Afinal, como refere Schwartz, “os operadores do direito, por seu turno, também devem-se adaptar à complexa realidade social moderna, em que o número de sistemas e subsistemas aumentam a olhos vistos diante da inevitável diferenciação resultante da forçosa comunicação entre os sistemas sociais” (SCHWARTZ, 2001, p. 93). Diante do contexto existencial da sociedade de risco proposta pelos sistêmicos, na qual o indivíduo “nada mais é do que parte de um sistema, não raro parte perigosa e ameaçadora desse sistema” (CASTANHEIRA, 1998, p. 103), acredita-se que se tenha utilizado a justificativa para o caráter preventivo máximo, claramente embutido no texto da Lei 9.034/95. Em resposta à necessidade de prevenção por intimidação, obteve-se o Direito Penal da atualidade: preventivo ao extremo. Evidentemente, que não se trata de um Direito Penal destinado à proteção dos bens jurídicos definidos de forma clara pelo ordenamento, cuja possibilidade de ofensa se demonstre realmente gravosa. Tal raciocínio conduz à assertiva de Lima acerca da Lei 9.034: “trata-se de mais uma lei elaborada sob o pálio da política criminal, equivocadamente, que, como demonstramos, acaso seja interpretada erroneamente, afrontará princípios constitucionais e processuais penais” (LIMA, 1996, p. 59). Embora comungando da opinião do autor acima referido, impõe-se ressaltar que como também pela interpretação “errada”1 da legislação acerca do crime or-

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ganizado estar-se-ia afrontando os princípios constitucionais e processuais penais. Afinal, diante das inúmeras falhas existentes nos dez primeiros artigos da legislação em comento, verifica-se a premência do afrontamento aos princípios jurídicos. Nesse sentido, Carvalho menciona a existência, tanto na Lei do Crime Organizado quanto na Lei dos Crimes Hediondos, de uma série de violações à principiologia constitucional (penas desproporcionais, prisões cautelares que ferem a presunção de inocência, regime prisional cerrado ‘et coetera’), estruturadas a partir do modelo garantidor do penalismo clássico, não resolvendo o problema a que se propuseram e destruindo, por fim, os direitos cidadãos (CARVALHO, 1996, p. 129). Diante das considerações até aqui esboçadas, através das quais se buscam evidenciar a priori os aspectos negativos da edição da Lei de combate à criminalidade organizada, extrai-se uma dúvida iminentemente prática: o que a sociedade tem a ver com o crime organizado? Tal questão é o título do artigo publicado no ‘site’ da Internet pelo Deputado Estadual Paulo Pimenta, Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito do Crime Organizado, instaurada na Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul, em 15 de março de 2000. Ao efetuar essa pergunta, o presidente da CPI inicia o artigo afirmando que, de forma geral, o contato do cidadão comum com o crime organizado se dá através das páginas dos jornais e das películas cinematográficas. No mesmo documento, outra questão é proposta pelo próprio deputado: a CPI pretende acabar com o crime organizado? E mais uma resposta é fornecida à sua própria indagação: “Seria ingenuidade de nossa parte responder afirmativamente”. Também compõe o escrito o reconhecimento de que: “Nestes 500 anos, o Brasil se desenvolveu de forma desigual. A concentração de rendas se avoluma nos bolsos de alguns poucos, enquanto a grande estrutura do estado brasileiro se encontra em franca decadência, abrindo, dessa forma, brechas para ações ilícitas” (PIMENTA, 2003, s/p). Paralelamente, Hassemer assevera que a sociedade em si, tem muito pouco ou quase nada a ver com a criminalidade organizada. Para ele, há que se diferenciar entre essa modalidade criminosa e a criminalidade de massas que, em suas palavras, é a responsável pela manipulação do medo difuso. Temor que é praticado com o escopo de obter meios e instrumentos de combate à criminalidade violenta mediante a restrição das liberdades e que constitui uma conhecida tática de Política Criminal populista que não traz respostas aos problemas diários das pessoas (HASSEMER, 1994b, p. 66). A demanda por políticas criminais “duras”, eleitas pelo Estado como a res-

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posta mais rápida e eficiente ao combate à criminalidade em crescimento no Brasil pode ser traduzida por “três fases”. Como menciona Toron, ao prefaciar a obra de Gomes e Cervini (1997, p. 10-11), e citando o primeiro autor, inicialmente, “foi o ‘combate’ ao tráfico, depois aos crimes violentos e agora o grande inimigo (da era pós-industrial, alguns afirmam) é o crime organizado”. Essas três fases mencionadas podem ser referendadas como: a de combate ao tráfico, aos crimes violentos e, finalmente, ao crime organizado. Já em âmbito de observação das cláusulas criminalizantes, essas fases podem ser apontadas como a consolidação legislativa da intolerância. Carvalho (1996) analisa a edição das Leis de número 8.072/90 e 9.034/95 (Lei dos Crimes Hediondos e do Crime Organizado, respectivamente) revelando que a edição da Lei do Crime Organizado encontra suporte legal e político-criminal na Lei dos Crimes Hediondos. Para tanto, utiliza-se, entre outros, dos modelos repressivos antidrogas, trabalhando a questão da criminalização e da repressão do tráfico de entorpecentes. Para Carvalho (1996, p. 113), a criação da Lei dos Crimes Hediondos configurou a “primeira grande avaria que o Sistema Penal brasileiro recebeu após a promulgação da Carta de 1988”, encarada pela opinião pública, entretanto, como uma ilusão de que os problemas da criminalidade estariam, assim, resolvidos. Com relação ao tráfico de entorpecentes, a Lei 8.072/90 restringiu os direitos de seus sujeitos ativos à anistia, à graça, ao indulto, à fiança e à liberdade provisória, além de determinar a impossibilidade de progressão de seus regimes prisionais, bem como aumentou o prazo da prisão temporária a eles destinada. Desse modo, o autor justifica a criação da Lei 9.034/95 que, além de constituir uma forma de “incremento repressivo em matéria legislativa” (CARVALHO, 1996, p. 116-117), veio a revigorar a já existente Lei dos Crimes Hediondos. Sob essa perspectiva, não há como negar o entendimento de que, de fato, essa norma é o suporte legal e político-criminal da Lei do Crime Organizado. Afinal, enquanto uma primeiramente restringe direitos executórios penais, a outra é criada com o escopo de, além de agravar a punição (finalidade repressiva), evitar a prática das condutas tidas como oriundas da criminalidade organizada, através de medidas de prevenção. Decorre daí o entendimento de que essa “evolução2 legiferante” se dá no sentido da consolidação da intolerância dos legisladores, respaldados pela mídia e pelo senso popularesco de uma solução rápida para o problema da criminalidade. Assim, o ‘fim utilitarista’ e racional-funcional dos instrumentos legais mencionados acabam por transformar o meio (prevenção) em fim (repressão). Com isso,

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desaparece a proteção dos bens jurídicos (primeiro alvo da criação dos tipos legais) e desenvolve-se a intervenção penal máxima, como mencionado por Castanheira (1998) e Hassemer (2001).

5. A influência e a apropriação do risco, ou da sociologia ao direito A incerteza é um dos principais marcos da contemporaneidade. Característica ausente na sociedade antiga. O futuro, porquanto previsível e imaginável nas sociedades antiga (romanceado e estimulado pela figura dos mitos) e moderna (em decorrência do conhecimento do perigo), não o é mais na pós-moderna. O conhecimento do perigo gerava a certeza do futuro. Ou, pelo menos, a sua previsibilidade. Veja-se, por exemplo, o fato massivamente narrado pelos doutrinadores acerca da polarização do mundo entre os blocos capitalista e socialista. Na época moderna, em face dessa divisão, sabia-se quem era o “inimigo”. Sabia-se contra quem e o que se lutava. Logo, havia a previsibilidade do perigo, que era, por seu turno, esperado. Com o fim dessa dicotomia, o perigo passou a ser velado. Não existem mais inimigos declarados. E, por óbvio, há o império da incerteza e do risco. Afinal, o futuro não é mais como era antigamente. A sociedade contemporânea surgiu em meio à crise da modernidade, como pondera Morin. Em suas palavras “a crise da modernidade, ou seja, a perda da certeza do progresso e da fé no Amanhã, suscitou dois tipos de respostas” (MORIN, 1996b, p. 12). O neofundamentalismo e a modernidade. Para os seguidores da primeira possibilidade, a solução para a crise da modernidade seria o regresso ao passado. Tal tarefa poderia se dar através da religião, do nacionalismo, da defesa da etnia. Como exemplo, pode-se citar, empiricamente: o movimento dos chamados “Skinheads” na Alemanha; os movimentos separatistas das Repúblicas pelo mundo (a antiga União Soviética que, após a queda do Muro de Berlim teve quinze repúblicas separadas); a invocação do movimento “Peronista” na Argentina; os movimentos locais de reorganização étnica (liderados por grupos terroristas: Basco, na Espanha ou o IRA na Irlanda) e, até mesmo, os grupos religiosos fanáticos do Oriente.3 Por essa maneira, estar-se-ia negando outra tendência atual: a de expansionismo das relações sociais, da troca de culturas, de miscigenação. Seria a negação total do desenvolvimento dos mecanismos de desencaixe.4 Como esse fenômeno não é possível de ser controlado ou impedido, não se pode negar, por sua vez, a operação da segunda resposta: o pós-modernismo. Para Morin, “o pós-modernismo é a tomada de consciência de que o novo não é necessariamente superior ao que o precede” (MORIN, 1996b, p. 12). Daí a caracterização

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da alta modernidade sobre as características modernas. Quer dizer, não se pode negar a liberdade, a independência das relações sociais, a mobilidade das camadas sociais. A tudo isso se soma a inexistência das certezas e o surgimento do risco. O perigo, característica da previsibilidade da sociedade moderna, no pós-modernismo, só existe em função do risco. O risco, e não mais a segurança, gera o perigo. “A perspectiva do risco constitui, enfim, uma referência fundamental na descrição da sociedade moderna” (GEORGI, 1998, p. 199). Para De Giorgi, na sociedade contemporânea, “reforçam-se simultaneamente segurança e insegurança, determinação e indeterminação, estabilidade e instabilidade” (GEORGI, 1998, p. 192). Ou seja, há, na sociedade atual, características modernas e pós-modernas. Em contraponto ao risco, há a possibilidade de estabilização de estruturas de expectativas e o fornecimento de segurança. Para tratar desse tema, De Giorgi refere uma antiga ordem simplificada do mundo, marcada pelas distinções. Em suas palavras, há uma oportuna colocação: “de uma parte, os marginalizados, as mulheres, o terceiro mundo, os países em desenvolvimento, o desvio, a guerra; e de outra parte, o capitalismo, a burguesia, o direito, o Norte, a democracia” (GEORGI, 1998, p. 186). As distinções eram expressões de valores positivos ou negativos, cuja existência é apontada como a responsável pelas situações de equilíbrio. Assim, “mais Estado significava menos mercado; mais riqueza, menos pobreza, menos guerra, mais paz. Diante do risco, podia-se oportunamente pensar em mais segurança” (GEORGI, 1998, p. 188). Nessa perspectiva, o direito e a economia podem ser mencionados como “sistemas sociais que tratam a contingência de modo que esta não adquira valor de estrutura. São sistemas que produzem segurança através do tratamento de expectativas com base em decisões ou também com base no controle de escassez de recursos” (GEORGI, 1998, p. 189). Por último, como já mencionado, a modernidade é, também, sinônimo de sociedade de risco. Logo, faz-se mister dissociar alguns caracteres básicos para melhor compreensão deste tema, tais como: risco e perigo, elementos da sociedade de risco e risco e direito penal, os quais serão tratados nos itens que seguem. Segundo Luhmann (1996, p. 123), o conceito de risco pode ser fornecido por diversas ciências. Dentre elas, a economia tem-se destacado por fornecer cálculos de risco, buscando benefícios empresarias através da absorção das incertezas. Porém,

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Hoy se constata la necesidad de efectuar uma correción importante em el interior de este modelo cuantitaivo de cálculo de riesgo orientado generalmente por expectativas subjetivas de beneficio; definimos a la citada corrección com la expresión el umbral de catátrofe. (...) También las ciências sociales han descubierto el problema del riesgo. Antropólogos de la cultura,de la sociedad, politólogos saben que la valoración y la aceptción del mismo no es unicamente um problema psíquico sino fundamentalmente social (LUHMANN, 1996, p. 125-126).

Para o autor, as origens da palavra são desconhecidas. A cabo das buscas históricas para a definição do termo, “hoy los riesgos se indagan a través de la magnitud y de las probabilidades del dano” (LUHMANN, 1996, p. 136). Significa dizer que o risco trata de uma extensão controlada da esfera de ação racional, algo semelhante com o que ocorre na economia. Trabalha-se racionalmente com as consequências de diversas decisões e com as possibilidades de benefício e de prejuízos. Na mesma esteira de pensamento, Luhmann assevera que no contexto político há diferença evidente entre risco e perigo: “si solo existen peligros en el sentido de catástrofes de la naturaleza, la omisón de la prevención deviene riesgo” (LUHMANN, 1996, p. 152). Citando Luhmann, Brüseke observa que os dois conceitos, risco e perigo, podem ser usados para denominar qualquer tipo de desvantagem, por exemplo a possibilidade de que um terremoto venha a destruir casas, de que alguém seja vítima de acidente de trânsito ou de doença ou, também, de que um casamento se torne desarmônico, ou de que alguém não possa aplicar posteriormente o que estudou (BRÜSEKE, 2001, p. 39-40).

De imediato, compreende-se a distinção que Luhmann propõe: se os danos decorrem da decisão tomada pelo próprio indivíduo então trata-se de risco. Se os resultados danosos forem provocados por outras causas que não dependem da voluntariedade e decisão pessoal tem-se o perigo. Para De Giorgi, “o risco não é nem uma condição existencial do homem, muito menos uma categoria ontológica da sociedade moderna, e tampouco o resultado perverso do trabalho da característica das decisões, uma modalidade da construção de estruturas através do necessário tratamento das contingências” (GIORGI, 1998, p. 197). Significa que o risco é decorrente das contingências que, por seu turno, expressam a existência de mais de uma possibilidade de tomada de decisão. Assim, o risco, de fato, é a expressão da decisão e da conduta humana. Cumpre enfatizar que há riscos decorrentes dos avanços tecnológicos, o que de imediato parece nada ter a ver com decisões individualistas. Sabe-se que “os riscos dizem respeito a danos possíveis, mas ainda não concretizados e mais ou menos

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improváveis, que resultam de uma decisão e, por assim dizer, podem ser ‘produzidos por ela e que não se produziriam no caso de se ter tomada outra decisão’ [...] o discurso do risco começa onde a crença na segurança termina” (FERNANDES, 2001, p. 58-59). Esses fatores são cruciais para se determinarem os elementos da sociedade de risco. Tais elementos são tratados por Fernandes como os caracteres distintivos da dos dois tipos de sociedade em comento. De imediato, pode-se vislumbrar, como fator caracterizador, a ausência de segurança e a presença da contingência. E mais: são elementos da sociedade pósmoderna os novos riscos causados pelos avanços da tecnologia, da ciência5 e da cultura; o tempo (presente, passado e futuro geram outras consequências ou não produzem os mesmos efeitos); a invisibilidade social. Fernandes (2001, p. 56) entende que os riscos, anteriormente inexistentes, foram “causados pela expansão cega da sociedade industrial, e como elemento subjetivo dessa percepção, surge a reflexão sobre os próprios fundamentos desse desenvolvimento desmesurado”. Os efeitos da sociedade industrial e pós-industrial são mencionados de forma muito enfática pelos autores que tratam dessa matéria. Praticamente não há quem negue as mudanças ocasionadas no universo das relações sociais em face do avanço tecnológico e científico. A comunicação e, em consequência, a informação adquiriram uma velocidade tão imediata a ponto de romperem certas barreiras de tempo e de espaço. Nesse contexto, como negar que as impressões visuais e sonoras se tornem presentes e representadas instantaneamente e independentemente do local onde são produzidas? Por óbvio que a noção tempo e espaço se relativizou. Como enfatiza Ost (1999, p. 24), “a verdadeira medida do tempo não é relojeira nem subjetiva”. Nos dias atuais é possível visualizar e conversar com alguém que esteja do outro lado do mundo. Inclusive em um ano diferente. Basta tomar como referência a data de 31 de dezembro. Alguém que esteja no Brasil no ano 2001 pode, facilmente, falar com alguém que esteja na Austrália já no ano 2002, sendo que a conversa e as imagens das pessoas se dão simultaneamente. Fatores contemporâneos, como o citado, referendam o questionamento de Ost (1999, p. 25): “qual é, então, a medida do tempo se ela não reconduz nem à medida quantitativa de um tempo físico dado e homogêneo, nem à experiência subjetiva de uma experiência individual?”. Para ele, tal medida que serve de materialidade do tempo, é representada pelo tempo “social-histórico”, produto das construções coletivas da história. Diante dessas observações, não se pode negar que tais fatos alterem as rela-

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ções sociais e o modo de as pessoas conviverem com as inovações da modernidade e de assumirem e sofrerem os riscos de suas escolhas e de seu tempo. Diante desse quadro, praticamente, não há perigo porque não há previsão. A velocidade é tanta, a quebra de referências é tão imediata, que não se pode prever nada. Apenas a expectativa do acontecimento ou não do risco. A queda das torres gêmeas (World Trade Center de Nova Iorque) é um exemplo disso. Os Estados Unidos da América não tinham noção daquele perigo porque desconheciam a potencialidade do inimigo (no caso, da facção terrorista). Enquanto aquele país buscava se proteger de ataques nucleares ou, quem sabe, espaciais, porquanto era a expectativa que possuíam, o dano gerado fora ocasionado dentro do seu próprio território, por agentes que não eram identificados como inimigos em potencial. Basta verificar a permanência legalizada dos mesmos dentro do território americano. Analisando-se a modernidade e tomando como referência (empírica) a potência mundial econômica, representada pela comunidade dos Estados Unidos, vislumbram-se seus objetivos de previsão do perigo. O inimigo declarado era a União Soviética (no polo comunista). Naquele tempo, o perigo era considerado previsível. Hoje, tão incerto que decorre, justamente, do risco pela ausência da possibilidade de previsão. Não há mais certezas como anteriormente referido. Como enfatizado por Fernandes (2001, p. 59), “o discurso do risco começa ali onde a crença na segurança termina”. Para corroborar esse raciocínio, basta verificar o que assevera Beck (1996, p. 201) acerca da sociedade de risco: “este concepto designa una fase de desarrollo de la sociedad moderna en la que a través de la dinámica de cambio la producción de riesgos políticos, ecológicos e individuales escapa, cada vez en mayor proporción, a las instituciones de control y protección de la mentada sociedad industrial”. Para Beck, há duas fases básicas que caracterizam a sociedade de risco, ou pós-moderna: uma primeira em que as consequências e auto ameaças se produzem de forma sistemática em decorrência da sociedade industrial e uma segunda, em que a própria sociedade industrial se completa e se critica como sociedade de risco. Quer dizer, de um lado, a sociedade industrial produz a sociedade de risco e de outro, é complementada por esta última. Como a sociedade de risco é produzida pela sociedade industrial ao mesmo tempo em que a complementa, gera danos potenciais e possibilita o questionamento sobre as incertezas, então, tem-se que a “ciência e a lei são atingidas pela dúvida, o mercado e a privatização triunfam, ao mesmo tempo que o medo regressa. A sociedade de risco toma então o lugar do Estado-providência, e volta-se a falar de segurança em vez de solidariedade” (OST, 1999, p. 337).

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Dessa forma, como quer Ost, o risco provoca o confrontamento com os questionamentos das promessas e dos instrumentos clássicos de prevenção. Nessa esteira, impossível não mencionar que o Estado (providência) se encontra em declínio da sociedade assistencial. Isso significa que há uma maior privatização das relações sociais. O Estado, através do Direito, não atinge mais os objetivos de prevenção e de controle social. Aí, como se procurará demonstrar nos capítulos seguintes desse trabalho, evidencia-se a ineficácia de algumas legislações (como a destinada ao combate ao crime organizado) em atingir aos fins a que se destina. Segundo Ost (1999, p. 341), os excluídos já não formam uma classe homogênea que poderia ser representada e pesar pelas suas reivindicações nas opções políticas. Em vez de agentes políticos coletivos, a exclusão deixa apenas indivíduos atomizados, expostos sem defesa ao risco social. Passa a haver apenas trajetórias individuais específicas que remetem para histórias singulares: desagregação dos lares sobre endividados, isolamento dos desempregados de longa duração, ruptura familiar das mães solteiras. Nestas condições, é impossível identificar uma categoria social estável susceptível de representação e de proteção abstrata e geral pela via do direito.

Por essa análise dos fatos, pode-se pleitear elencar mais um elemento da sociedade de risco: a incapacidade do Estado, através do Direito, de garantir algum tipo de assistência ou de segurança. E, ainda, a facilitação da exclusão social por seu agir em dadas circunstâncias. Dessa forma, passa-se a pensar nas influências e na relação da sociedade de risco e o Direito.

6. Risco e direito penal: enfim a ponte É de domínio doutrinário que a sociedade caracterizada pela pós-modernidade é marcada pela indeterminação e pela instabilidade, geradas pela falta de segurança e pela possibilidade premente do dano em face do risco inerente às ações. Segundo esse entendimento, De Giorgi conduz ao questionamento: como essa sociedade constrói sua estabilidade? E responde: predispondo vínculos para o futuro. E como faz isso? Criando estruturas normativas. Assim, para ele “o Direito é a estrutura de um sistema que estabiliza expectativas normativas. [...] O sistema do Direito opera sob as condições estruturais da modernidade da sociedade moderna. [...] O Direito produz sociedade através do uso da comunicação em um âmbito especial da diferenciação social” (GIORGI, 1998, p. 27). Afinal, não se pode negar a existência das expectativas diante de um grande

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número de possibilidades de ação. Não eventualmente, as expectativas estão relacionadas a um comportamento diferente do praticado/praticável em certa circunstância. Dessa forma, há a possibilidade de que o esperado não se realize como idealizado. Esse fenômeno se chama contingência. Na linguagem de Luhmann (1983, p. 45), “com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas”. Mais especificamente, o direito penal opera através do estabelecimento das normas e das penas a partir da compreensão comunicativa (JAKOBS, 2000a). Através dessa compreensão, o delito seria a afirmação que contradiz a norma, enquanto a pena seria a resposta que confirma a norma. Para Jakobs (2000a, p. 21), el Derecho penal confirma, por tanto, la identidad social. El delito no se toma como principio de una evolución ni tampoco como suceso que deba solucionarse de modo cognitivo, sino como comunicación defectuosa, siendo imputado este defecto al autor como culpa suya. Dicho de otro modo, la sociedad mantiene las normas y se niega a entenderse a si misma de otro modo.

Nessa realidade, o Direito tenta reassumir sua posição de provedor da segurança perdida na contemporaneidade. A questão da insegurança não é apenas social. Também é jurídica. Assim, relaciona-se com a regulação de condutas – tarefa atribuída ao Direito pelo Estado. Porém, mesmo sobre a carga de normas que pretendem regular a vida em sociedade e garantir a segurança de todos, sofre a incidência do tempo e do risco. Compreender a atuação do risco é essencial para a compreensão do fenômeno jurídico. Basta verificar-se que o Direito atua através de normas, de preceitos reguladores da conduta dos homens em sociedade. Como a conduta é a expressão do agir humano fundado na livre escolha, razoável é que se preveja o descumprimento dos preceitos determinados pelo Direito. Aí está o risco. Descumprida a lei, falhou o Direito em sua tarefa de prevenção. Logo, o Direito não se realiza sozinho. É uma expressão do poder do Estado e só atinge seus objetivos pela aquiescência do indivíduo. Dessa forma assim como não se realiza, o Direito não tem a função de realizar o controle social, de resolver os conflitos ou de produzir a paz. Certamente é possível observar o Direito destes pontos de vista ou da perspectiva da integração social. [...] o que caracteriza o Direito não é a solução destes problemas, mas a canalização dos mesmos, a sua procedimentalização (GIORGI, 1998, p. 27).

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De Giorgi entende que a estrutura do Direito moderno rompe, assim, a antiga unidade entre a validade e o fundamento. Para ele, validade é um símbolo que circula nos sistemas e que vincula contingência dos valores à auto fundamentação da normatividade, enquanto a contingência e artificialidade constituem as únicas garantias que podem dotar o sistema do Direito para o seu tratamento no futuro (GIORGI, 1998, p. 29). Esse autor ainda refere a artificialidade e a contingência de vários produtos da modernidade. Menciona a possibilidade/necessidade da democracia pela possibilidade da tomada de decisões de maneira contínua e de forma a incrementar decisões anteriores. Esses fatores, aliados a outros se constituem em possibilidades plausíveis de realização. Afinal, segundo ele, Estado e Direito sempre foram tratados com referência ao pensamento do direito natural como resultado da diferença entre eternidade e temporalidade. Em suas palavras: “Direito e Estado, de qualquer modo que os entendamos, são ordenamentos, ou seja, representações da ordem que sempre se referem ao passado” (GIORGI, 1998, p. 29). São construções e resultados de construções. São também esboços do futuro. Em suas representações, há uma representação do futuro. Considerando-se que nessa representação de futuro, está, a todo instante, o grito social de segurança e de garantia de direitos individuais (em especial, nos dos relacionados à pessoa e ao patrimônio particular), é que se vê no Direito Penal a expressão máxima dessa ânsia. Segundo Ost (1999, p. 377), o Direito Penal “é, à sua maneira, o guardião de todos os outros direitos”. Como consequência, aponta para o que considera: “o movimento de sobrepenalização, observável em toda parte; (...) a mudança de paradigma interno, com o abandono dos objectivos de tratamento e de reabilitação do condenado em benefício de uma política de gestão do risco criminal com base na segurança”. Em consonância a essa realidade, Fernandes (2001, p. 72) aponta para o perigo de o “direito penal tornar-se um arauto da demanda de segurança numa sociedade fervilhante de riscos e que causa a chamada ‘fuga’ para aquele”. Para exemplificar, cita o exemplo da criação de leis penais simbólicas (como a Lei 9.034). Para o autor, esse fato se dá em resposta a uma excessiva tutela, quer dizer, atua como “um determinado efeito analgésico ou tranquilizante do direito penal” (FERNANDES, 2001, p. 72). Para Ost, o Direito Penal atua como a expressão da moral comum, como referência móvel da inquietude dos tempos atuais e aponta para outros exemplos

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dessa realidade, na mesma linha de Fernandes. São eles: “multiplicação das incriminações, aumento das tarefas repressivas, alongamento da duração média das penas, restrição dos regimes de liberdade condicional, vigilância eletrônica ao domicílio: o controle penal estende-se e a repressão endurece” (OST, 1999, p. 379). Por óbvio que essa atuação do Estado, por intermédio do Direito, é deveras perigosa. De novo, em função do risco, gera-se o perigo. Complementando essa análise, De Giorgi, ao referir o Estado e o Direito, no final do século XX, situa-os em um quadro marcado pela solidão como: isolamento, diferença e separação.6 Faz comparação entre o século XX e os passados. Afirma: (...) vimos séculos de trevas, séculos iluminados, séculos dos princípios e do romantismo de uma razão que afirmava a liberdade das singularidades enquanto refletia na poesia a desilusão do seu fechamento e do seu isolamento. Este último, o século que está por terminar, é o século dos ocasos; (...) Este século foi caracterizado como a era dos direitos. O século anterior realizara os pressupostos iluministas do direito igual, contribuíra para a superação dos privilégios, bem como reconhecera a liberdade dos indivíduos mediante a prática do contrato, a constitucionalização do acesso universal ao direito e a livre circulação da propriedade. Neste século foram afirmadas as individualidades dos indivíduos que levaram à

necessidade de se reconhecer, como já dizia Max Weber, elementos materiais na racionalidade formal do direito (GIORGI, 1998, p. 71). Nessa esteira, os princípios que embasam as noções de Estado e de Direito acabam por se manifestar como paradoxos. É esse, pois, o sentido da fórmula segundo o qual o século XX condensou a era dos direitos. Em suas palavras: Enquanto alternavam-se as gerações de novos direitos, a especificação do sistema do direito produzia uma cada vez maior necessidade de legalidade; enquanto um número cada vez maior de pretensões à igualdade e à dignidade, à autodeterminação e à liberdade de ação, encontravam reconhecimento constitucional, podia-se observar a prática da violência legítima e a produção de desigualdade através do exercício do direito. (...) assim, a era dos direitos manifesta-se como era da exclusão, da marginalização, do isolamento imunizante. É assim que o reconhecimento das diferenças produz novas desigualdades e as amplifica, enquanto a afirmação plena das subjetividades presentes e das possíveis subjetividades futuras aumenta o limiar que impede o acesso ao direito. (GIORGI, 1998, p. 13-14).

Dessas considerações, De Giorgi conduz à significativa dedução de que: mais direito gera mais seletividade que por sua vez, provoca maior discriminação, induzindo à prática do “não-direito” e, portanto, de exclusão. O autor enfatiza que, na

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sociedade de risco, a exclusão se dá pelo direito e não por características pessoais. De uma maneira ou de outra, comprova-se que individualismo é realmente premente na sociedade pós-moderna, de modo que não se vislumbram certas características pessoais para os fatores de exclusão. O autor refere que nesse modelo de representação da ordem (e o grande projeto que pretendia vincular o futuro ao direito) revelavam-se grandes construções de fachada que impediam que se visse a realidade a elas subjacentes. Assim, mudam as concepções acerca das (in)certezas. Não há qualquer certeza no Direito, a não ser a com relação à existência do mesmo – o que por si só já é um paradoxo. Enquanto as possibilidades dos êxitos decisórios e as certezas dos direitos, ficam os mesmos prejudicados. Como já referido, o sentimento de insegurança, de desproteção e de debilidade diante das ameaças e dos perigos desconhecidos, característicos da sociedade atual, conduzem ao pânico social e à exigência, muitas vezes difundida pelos meios de comunicação, de respostas rápidas à problemática dessa criminalidade. Passase a falar no crime organizado, “sem que se saiba ao certo o que é e quem o produz, sabe-se que é altamente explosivo, pensa-se até que pode devorar-nos a todos” (HASSEMER, 1993, p. 62). Nesse âmbito, não há como negar que a política criminal se torna política de segurança e, então, negligencia-se o aspecto da segurança da liberdade, enquanto não se vislumbra, efetivamente, uma proposta progressiva de segurança pública. Com o efeito do desenrolar da criminalidade, perpetua-se a manipulação do medo coletivo difuso, praticado com o escopo de se obterem meios e instrumentos de combate à criminalidade violenta, mediante a restrição das liberdades. Tal situação leva ao evidente reconhecimento de que esse fato se “constitui em uma conhecida tática de Política Criminal populista que não traz respostas aos problemas diários das pessoas frente à criminalidade de massas” (HASSEMER, 1993, p. 65). Ainda na linha de Hassemer, há a menção de que as alterações e exacerbações do poder de polícia e do próprio Direito Penal, muitas vezes, em desacordo com princípios de direito e com outras regras jurídicas, decorrem do medo da criminalidade organizada. O penalista alemão refere que os princípios fundamentais não valem mais ou valem apenas limitadamente, o que, já de antemão, evidenciaria um contrassenso vendo-se tais fatos de forma isolada. Por esse entendimento, pode-se destacar, dentre os princípios de Direito Penal que não valeriam mais, ou que valeriam limitadamente, os princípios: da ofensividade ou da lesividade; da intervenção mínima ou da subsidiariedade; da culpa-

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bilidade e da proporcionalidade. Conforme, Zeidan (2002, p. 60), “a exigência de que o Direito Penal intervenha exclusivamente para proteger bens jurídicos constitui uma garantia fundamental do Direito Penal moderno, sendo a mais pura manifestação da tensa confluência entre princípios garantísticos da proporcionalidade, da fragmentariedade e da intervenção mínima”. Para o autor, esses princípios e, em especial, o da lesividade, se constituiriam em impedimentos ao Direito Penal de proteger quaisquer interesses, estratégias ou convicções morais. E mais. Para ele, o resultado da violação desses princípios seria danoso para a própria sociedade. Dessa forma, a partir de um entendimento complexo dos sistemas penal e processual penal contemporâneos, aponta-se para a ausência de assentamento principiológico (dentro do próprio sistema) para a violação dos princípios que sustentam o próprio sistema penal. Tal fato, descaracteriza a legitimidade do poder punitivo. Ainda, como referenda Zeidan (2002, p. 63), Seja de qualquer âmbito ou origem, é árdua a legitimação e contenção do poder. Isso implica trabalho e fôlego para envolvermos o poder com instrumentos garantísticos capazes de harmonizar o Direito ao escopo social. (...) A intervenção mínima trata-se de um dos objetivos prioritários das Ciências Penais e Criminológicas de nosso tempo: verificar a racionalidade e contexto social de meios que utiliza o Estado para o controle da delinquência, submetendo a limites rigorosos o emprego da mais devastadora das sanções: a pena.

Nessa esteira, a capacidade do Direito Penal de enfrentar os “novos riscos”, característicos da contemporaneidade, passa a ser objeto de ampla discussão político-criminal. Afinal, de um lado são apresentados os problemas sociais como decorrentes e/ou dependentes de solução penal. Enquanto de outro, procuram interagir a ciência penal e processual assentada em princípios e garantias com a prática legislativa violadora desses postulados. Frente a essa realidade, Mendoza Buergo refere que as adaptações do Direito Penal (na sociedade pós-industrial) “se refiere a la cuestión de la capacidad o adecuación del Derecho penal como instrumento eficaz de conducción de comportamentos” (MENDOZA BUERGO, 2001, p. 52). Para a autora, o Direito Penal na sociedade de risco (caracterizada pela mudança no potencial dos perigos atuais em relação aos de outras épocas, os quais podem atingir dimensões maiores, e que possui complexidade organizativa das relações de responsabilidade) deve conter a atribuição de responsabilidade penal a partir das categorias dogmáticas e das regras de imputação que sejam adequadas aos princípios teóricos do sistema. Assim, o que

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não se adeque ao sistema (e seus princípios), deve ficar “fora do Direito Penal” e buscar outras formas de intervenção legítima. Nesse sentido, Mendoza Buergo (2001, p. 192) enfatiza que: (...) la finalidad de protegerse frente a los riesgos y procurar más seguridad a través del Derecho penal puede mantenerse en la medida en que sea compatible con los principios básicos del Derecho penal de un Estado de Derecho y con aquellos principios y categorías dogmáticas que posibiliten y aseguren en mayor medida una atribución de responsabilidad adecuada y coherente con tal modelo.

Em consonância à discussão acerca das características da sociedade contemporânea, caracterizada pelo fim das certezas e pelo predomínio do risco, que é implementado pela complexidade das relações sociais, o Direito Penal, legitimado pelo Estado Democrático de Direito, apresenta-se, dogmaticamente, capaz de atender às expectativas de segurança desde que sustentado pelos postulados básicos norteadores de seu sistema.

7. Uma outra contextualidade penal: a teoria da imputação objetiva Procurando agregar a figura do risco aos elementos típicos do Direito Penal, surge, no contexto da sociedade de risco, a Teoria da Imputação Objetiva, anunciada por Claus Roxin e por Gunther Jakobs. Conforme Luís Greco (2002) imputação objetiva consiste no conjunto de requisitos que modificam o conteúdo do tipo objetivo e que tem como requisitos: a) a criação do risco juridicamente desaprovado e b) a realização do risco no resultado. Em resumo, para a Teoria da Imputação Objetiva, o tipo penal antes composto apenas pelo tipo objetivo (cujos elementos eram: a ação humana e a sua relação de causalidade com o resultado) e pelo tipo subjetivo (dolo mais os elementos subjetivos especiais), passa a sofrer uma alternação no conteúdo descritivo do tipo objetivo. Ou seja, passam a integrar a conduta, o nexo causal e o resultado, as condutas de criação do risco desaprovado e de realização desse risco. O fator “risco” para esta nova forma de Teoria do Delito, pode ser entendido como: risco juridicamente desaprovado, risco censurado, risco proibido, risco não permitido, risco não tolerado, além de exigir a sua realização, materialização, concretização no resultado. Segundo Greco (2002, p. 02), essa Teoria se apresentou com “a pretensão de reformular por completo o tipo, com base na ideia central do risco”. Tais considera-

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ções são estritamente positivistas. Ou seja, procuram situar a Imputação Objetiva diretamente na Teoria do delito, sem que se perquiram as suas origens. Uma série de autores referenciam a elaboração da Imputação Objetiva sob os postulados sistêmico-funcionalistas. Nesse sentido, a Teoria comporta uma alteração na noção de bem jurídico a ser tutelado. Através da Teoria Finalista da Ação, os bens jurídicos tutelados se referem diretamente aos indivíduos. Daí, serem protegidos pelo Direito Penal a vida, a liberdade, o patrimônio, os costumes, a saúde pública, entre outros. Invertendo a ordem de proteção, a Imputação Objetiva assevera que o objeto de proteção do Direito Penal deva ser a norma em si. Ou seja, deve-se proteger com o prenúncio da sanção criminal, a estabilidade normativa. Esta, sim, passa a ser o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Daí, originar-se a máxima: “ a pena é a negação da negação”. Compreendendo-se a prática do delito como um processo comunicacional, em que o sujeito ativo do crime, ao realizar a conduta típica, estaria contradizendo a norma, negando-a. A resposta comunicacional oferecida pelo Estado é a pena. Nesse sentido, a pena representa a negação estatal à conduta individual de negação da norma jurídica imposta. A alteração nessa noção de fins do Direito Penal, consubstanciada pelo intento de proteção do sistema jurídico e não, de forma imediata do indivíduo, é alvo de críticas e de pensamentos díspares na doutrina. De qualquer sorte, traduz a crise do sistema jurídico-penal contemporâneo e merece ser analisada juntamente ao contexto da criminalidade organizada.

8. Considerando os policontextos... Concluindo, a policontexturalidade representa a existência de complexidade. Ou seja, a multiplicidade de circunstâncias. Demonstra uma série de tomada de decisões diferentes e construtoras de realidades. Porém, esse processo criativo, pode ter a mesma origem. No âmbito jurídico, a existência de várias formas de poder decorre justamente da noção de poder. Em outras palavras, toda tentativa de exercício de poder decorre da existência de um poder principal. Através desse pensamento, não soa errôneo creditar-se ao próprio Estado, o surgimento de formas paralelas de poder e de uso da força. Assim, as diversas formas de poder exercidas em torno da temática da criminalidade organizada (nacional ou transnacional) são erigidas a partir de um só conceito: o da legitimidade, ou, da legalidade do poder. A partir da noção da licitude, surgem outros atos deci-

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sórios lícitos ou ilícitos. Mas de qualquer forma, estruturados em algum postulado organizacional. Dessa forma, segundo Teubner, desenvolve-se a noção de policontexturalidade a partir do entendimento de que o sistema jurídico-penal não é o objeto passivo da desconstrução, mas sujeito ativo dessa construção. A autodesconstrução do sistema acarreta o surgimento de outras formas de potestades normativas e/ou punitivas. Em suas palavras, “i sistemi non sono solamente oggetti passivi di procedimenti destruttivi, ma sono anche soggetti attivi della desconstruzione” (TEUBNER, 1999, p. 76). E mais: para Teubner (1996), a desconstrução revela a fundação do Direito, a origem da sua autoridade. A lei é gerada nela mesma, baseada na violência arbitrária que não possui. Assim, a partir de uma norma originária, pode-se desenvolver um “Direito policontextual”. Ou, regras policontextuais. Estas últimas, por sua vez, serviriam aos vários subsistemas sociais: lícitos ou ilícitos. Constituíram o conjunto normativo das associações humanas, criminosas ou não. Neste contexto, a questão central se relaciona à manutenção do Código de regras legítimas, ou legitimadas pela legalidade. Em outra linguagem, o problema consiste em assegurar o império da norma estatal diante das normas dela geradas e possuidoras de força coercitiva também. Daí, a premência da dúvida: como harmonizar os regramentos nascidos nos muitos contextos: Estado, sociedades, associações? Conforme Bolzan de Morais, “falar em crise(s) tornou-se referência ao longo das últimas décadas do Século XX, supostamente frente a desconstrução dos paradigmas que orientam a construção dos saberes e das instituições da modernidade”. Como se quis afirmar, esse pensamento se conecta às noções de sociedade de risco e de policontexturalidade e são, por isso mesmo, indissociáveis de qualquer estudo que se pretenda sobre uma “criminalidade contemporânea, do risco, ou organizada” (MORAIS, 2002, p. 23).

Notas 1

Interpretação errada; entendimento iminentemente subjetivo.

2

No sentido temporal.

3

Em 11 de setembro de 2001 o mundo teve o exemplo vivo disso: a queda do World

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Trade Center em Nova York, causada por um atentado terrorista da facção de Osama Bin Laden. 4

Os mecanismos de desencaixe são os responsáveis, segundo Giddens, pela retirada da atividade social dos contextos localizados, reorganizando as relações sociais através de grandes distâncias tempo-espaciais. 5

Sobre a influência da tecnologia e da ciência, autores como Luhmann, Beck e Fernandes são veementes em enfatizar os danos ao meio ambiente.

6

Interessante referência à obra “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques, como contenedora da narrativa das ideias acerca do direito e do Estado desenvolvidas no século XX. Há naquele romance a narrativa de separação e a descrição de isolamento (GIORGI, 1998, p. 67).

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Sobre a criminalização da homofobia: perspectivas desde a criminologia queer Salo de Carvalho

1. Introdução: a homofobia como tema central das teorias queer Jovem gay submetido a sessão de ‘cura’ em Igreja foi eletrocutado, queimado e perfurado. Após meses de tortura, jovem [norte-americano Samuel Brinton] considerou o suicídio, subindo no telhado de casa. Sua mãe, que também apoiava a tentativa de ‘conversão’, tentou dissuadi-lo dizendo: ‘Eu vou te amar de novo, mas só se você mudar’ [notícia veiculada pela agência Pragmatismo Político, no dia 07 de outubro de 2011].

O objetivo deste estudo é problematizar, desde os pontos de vista normativo (direito penal) e empírico (criminologia), a legitimidade do projeto de criminalização da homofobia no Brasil. O tema tem adquirido importante espaço nos meios de comunicação e, justificadamente, tem sido objeto de inúmeras pesquisas no campo das humanidades. No entanto, em razão de uma série de investigações que tenho realizado nos últimos anos sobre as novas tendências do pensamento criminológico, sobretudo as inovações no campo da criminologia crítica e pós-crítica, entendo ser adequado inserir, de forma introdutória, o tema (criminalização da homofobia) no contexto político do movimento social que representa gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e simpatizantes (movimento LGBTs) e no âmbito acadêmico das teorias queer. Nas lições de Kepros, é possível identificar as teorias queer como um movimento acadêmico com forte inclinação política que tem como foco central de análise a maneira pela qual a heterossexualidade manteve-se, silente mas salientemente, como norma dominante, estabelecendo privilégios, desigualdades e opressões. Inseridas neste horizonte, as teorias queer objetivam, “promover mudanças sociais mantendo o status de uma teoria indefinida, de uma técnica pós-moderna, de uma associação aberta” (KEPROS apud FINEMAN, 2009, p. 05). Ao revisar a literatura da área no âmbito nacional, foi possível verificar a

inexistência de diálogo entre teoria queer, direito (penal) e criminologia (crítica). A ausência de intersecção do discurso jurídico e criminológico com uma área de saber consolidada nas ciências sociais acabou motivando o desenvolvimento de um estudo mais amplo que procurou tensionar ao máximo o direito penal e a criminologia a partir da teoria queer (e da teoria feminista), de forma a indagar as possibilidades de afirmação de uma nova perspectiva criminológica (queer criminology). Em uma série de artigos sobre a temática (CARVALHO, 2012a; CARVALHO, 2012b), optei por manter o termo queer no vernáculo inglês em razão de sua consolidada adoção pelas ciências sociais na tradição ibero-americana. Como adjetivo, o significado de queer se aproxima de estranho, esquisito, excêntrico ou original. Como substantivo normalmente é traduzido como homossexual; mas o seu uso cotidiano e a sua apreensão pelo senso comum denotam um sentido mais forte e agressivo, com importantes conotações homofóbicas: ‘gay’, ‘bicha’, ‘veado’, ‘boneca’. Criminologia queer poderia, então, ser traduzida de várias formas: criminologia estranha, criminologia excêntrica, criminologia homossexual, criminologia gay, criminologia bicha. Deixo, porém, ao critério do leitor atribuir o sentido que melhor lhe convier. Inclusive porque penso que este exercício de tradução consiste, por si só, em um interessante processo hermenêutico que permite verificar, em nós mesmos, os níveis de preconceito e de discriminação. Ressalto, portanto, que apesar de este texto estar inspirado pelas teorias queer e pelo feminismo, o debate sobre as possibilidade de uma criminologia queer (questão epistemológica; inserção no campo das ciências criminais; objeto de investigação e pressupostos de análise), foi realizado em estudos autônomos (CARVALHO, 2012a; CARVALHO, 2012b), sobretudo em razão da necessidade do aprofundamento dos seus marcos teóricos referenciais (FERREL e SANDERS, 1995; FOUCAULT, 1998; FOUCAULT, 1996; GROOMBRIDGE, 2001; MESSERSCHMIDT, 2012; SMART, 2005; SORAINEN, 2003). Um pastor americano causou indignação na Internet nesta terça-feira, depois de sugerir às pessoas que prendam homossexuais em um cercado elétrico como gado e esperem que morram (...). Diante dos fiéis, declarou: “Construam um grande cercado (...), ponham todas as lésbicas dentro, voem acima delas e atirem-lhes comida. Façam o mesmo com os homossexuais e garantam que a cerca seja elétrica, para que não possam sair... e em alguns anos morrerão (...) não podem se reproduzir”, diz o pastor em um vídeo no Youtube, que nesta terça-feira tinha 305 mil acessos [notícia veiculada no Portal Terra, no dia 22 de maio de 2012].

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Como seria esperado em um tema sensível que envolve questões de sexualidade, o debate sobre a criminalização da homofobia tem radicalizado posições. A demanda do movimento LGBTs recebeu apoio de importantes movimentos sociais com similar perspectiva emancipatória, como o movimento de mulheres e o movimento negro, que consideram legítima a inclusão dos temas relativos à orientação sexual e à identidade de gênero na Lei que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei 7.716/89). Em sentido oposto ao da criminalização, distintas perspectivas políticas, muitas vezes orientadas por posições ideológicas absolutamente antagônicas – por exemplo, as representações políticas evangélicas e os atores jurídicos identificados com o direito penal mínimo e o abolicionismo –, acabaram convergindo. No entanto, como preliminar necessária ao debate sobre os ônus e os bônus de uma eventual criminalização das condutas homofóbicas, entendo ser possível diagnosticar uma certa superficialidade dogmática do debate. Ao revisar a literatura jurídico-penal, foi possível notar que o enfrentamento da questão normalmente se pulveriza (e se dicotomiza) em certos argumentos de consenso, teses genéricas e pouco palpáveis (senso comum teórico) como, por exemplo, (a) a necessidade de tutela de novos bens jurídicos; (b) a proibição da proteção penal deficiente; (c) a ineficácia da lei penal na prevenção de condutas homofóbicas e (d) a ruptura com a ideia de intervenção mínima. Neste quadro, creio que o diálogo das ciências criminais (direito penal e criminologia) com as teorias queer e o feminismo possibilita ampliar e aprofundar o debate, alterando o sentido deste procedimento de redução dogmática do tema. Apesar de as teorias queer estarem consolidadas academicamente no âmbito dos estudos culturais e integrarem, nos países anglo-saxônicos, como teoria jurídica (queer legal theory), a pluralidade de perspectivas críticas do direito (critical legal theory), as intersecções com as ciências criminais, mormente no Brasil, são incipientes. Aliás, a partir do levantamento e da revisão da literatura nacional foi possível perceber como a criminologia e o direito penal, inclusive suas tendências críticas, situam-se à margem das reflexões sobre os estudos queer. É interessante notar que assim como o movimento de mulheres encontra sustentação na teoria feminista, o movimento verde se consolida a partir da ecologia política, o movimento antimanicomial é fundado na antipsiquiatria e o movimento negro se estrutura no paradigma da afrocentricidade, o movimento LGBTs firma suas bases e constrói suas dinâmicas através dos estudos gays e das teorias queer. A propósito, a maioria dos novos (ou novíssimos) movimentos sociais opera nesta dupla dinâmica: política, como movimento orgânico e representativo, na defesa de

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pautas emancipatórias (positivas e negativas); e teórica, com inserção acadêmica, na construção de um sistema de interpretação capaz de compreender os processos de violência e de exclusão da diferença (intolerância) em suas especificidades (misoginia, homofobia, racismo, degradação ambiental). Nota-se, inclusive, que as pautas políticas e as construções teóricas que fundamentaram inúmeros movimentos sociais contemporâneos foram recepcionadas pelas ciências criminais, desdobrando-se em importantes vertentes da criminologia contemporânea (criminologia feminista, criminologia negra, criminologia ambiental dentre outras perspectivas). Assim, penso que a intersecção das ciências criminais com a teoria queer pode criar novos campos de reflexão e desdobrar novas linhas de pesquisa. Olhar o problema desde fora da dogmática e mergulhar o tema na complexidade do empírico, possibilidade fornecida pelas ciências sociais, permite perceber que o projeto de criminalização da homofobia não representa uma pauta isolada ou voluntarista e muito menos desamparada de uma séria reflexão teórica, como insinuam determinados estudos no campo jurídico.

2. As políticas (criminais) queer: demandas positivas e negativas do movimento LGBTs Projeto de bancada evangélica propõe legalizar ‘cura gay’. O paciente deita no divã e pede: não quer mais ser gay. O psicólogo deve ajudá-lo a reverter a orientação sexual? Parlamentares evangélicos dizem que sim e tentam reverter uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (...). Segundo o projeto do deputado João Campos (PSDB-GO), líder da Frente Parlamentar Evangélica, o conselho “extrapolou seu poder regulamentar” ao “restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional” [notícia veiculada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 27 de fevereiro de 2012].

Existe uma conexão praticamente necessária entre as perspectivas criminológicas e as demandas político-criminais. Assim como os modelos criminológicos, mesmo os autointitulados ‘neutros’ (criminologia positivista), carregam desdobramentos político-criminais inerentes aos seus postulados, as pautas político-criminais são estruturadas em imagens construídas sobre o crime, o criminoso, a criminalidade, a criminalização e o controle social. Não por outra razão é possível verificar que as distintas agendas dos novos movimentos sociais,1 sobretudo aquelas

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em que há pontos relativos à (des)criminalização, criam, incorporam ou compartilham, implícita ou explicitamente, discursos criminológicos. Todavia, é igualmente possível dizer que as agendas destes movimentos sociais emancipatórios que dialogam diretamente com a criminologia não estão restritos ou não privilegiam, ao menos em um primeiro momento, questões políticocriminais. Nota-se, por exemplo, que para os movimentos negro, de mulheres e de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros, a reivindicação primeira é a do reconhecimento dos direitos civis (igualdade formal) para, posteriormente, buscar sua densificação e efetividade (igualdade material). Dois episódios que marcaram a emergência das ações reivindicatórias no século passado são significativos: a luta do movimento de mulheres pelo direito ao voto e a luta do movimento negro contra as políticas segregacionistas. No âmbito dos direitos antidiscriminatórios, tem sido notável o avanço do movimento LGBTs brasileiro nos últimos anos, ampliando significativamente suas conquistas, fato que marca, inclusive, uma ingerência positiva do Judiciário na política. Na ausência de marcos legais regulatórios da igualdade substancial, o movimento LGBTs aportou suas demandas ao Poder Judiciário, encontrando um acolhedor espaço de reconhecimento de direitos – por exemplo, o reconhecimento da união estável e, posteriormente, do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, com reflexos nos direitos sucessório e previdenciário; a realização de cirurgias de mudança de sexo para transexuais no sistema público de saúde; a possibilidade de alteração do registro civil para adoção do nome correspondente à identidade de gênero; a adoção de crianças por casais homossexuais e, em decorrência, o direito à licença natalidade. A construção de mecanismos jurídicos e de práticas políticas de garantia dos direitos civis representa um expressivo avanço na luta pela igualdade e pela diminuição do preconceito, com importantes impactos não apenas nas esferas jurídicas, mas, sobretudo, no plano simbólico. Tais fatores incrementam as ações de resistência e de ruptura com a cultura homofóbica determinada pela lógica heteronormativa.2 Bispo justifica pedofilia: ‘tem criança que provoca’ ‘(...) Há adolescentes de 13 anos que são menores e estão perfeitamente de acordo e, além disso, desejando-o. Inclusive, se ficares distraído, provocam-te’. Na mesma conversa, o prelado apresenta, sem nuances, todos os preconceitos da Igreja católica contra os homossexuais. ‘É algo que prejudica as pessoas e a sociedade’, critica o bispo. ‘Não é politicamente correto dizer que é uma doença, uma carência, uma

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deformação da natureza própria do ser humano’, descarrega Bernardo Álvarez, após se proteger em uma frase feita: ‘As pessoas são sempre dignas do maior respeito’. ‘Ainda assim, o titular da diocese de Tenerife chega a assegurar que, em ocasiões, a homossexualidade se pratica ‘como vício’. ‘Eu não digo que se reprima, mas entre não o reprimir e o promover há uma margem”, acrescenta (notícia veiculada pela agência Pragmatismo Político, no dia 23 de agosto de 2011].

No plano político-criminal, é possível identificar duas pautas distintas do movimento LGBTs: (a) pauta negativa (limitadora de intervenção penal), nas esferas do direito e da psiquiatria, voltada à descriminalização e à desideologização da homossexualidade; (b) pauta positiva (expansiva da intervenção penal), no âmbito jurídico, direcionada à criminalização das condutas homofóbicas. Embora a pauta positiva do movimento LGBTs seja preponderantemente voltada à criminalização da homofobia, é possível identificar outros processos de expansão da intervenção penal a partir do reconhecimento da igualdade de tratamento independente da orientação sexual, como, por exemplo, a possibilidade de a companheira ser processada nos casos de violência doméstica nas relações homoafetivas (art. 5o, parágrafo único, Lei 11.340/06). A pauta negativa diz respeito a repressão história da diversidade sexual através dos dois mais significativos sistemas formais de controle social punitivo: o direito penal e a psiquiatria. Por mais assustador que possa parecer, ainda vigem legislações que criminalizam atos homossexuais consentidos entre pessoas adultas. Segundo relatório apresentado pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexos (ILGA), na atualidade aproximadamente 60% dos membros da ONU (113 de 193) aboliram (e alguns nunca o fizeram) as legislações que criminalizam atos homossexuais consentidos entre pessoas adultas do mesmo sexo, enquanto cerca de 40% (78 de 193) das nações ainda se agarram de forma equivocada – assim como criminosa – na tentativa de preservar suas ‘identidades culturais’ frente à globalização (...). As punições variam de um número de chibatadas (como o Irã), dois meses de prisão (por exemplo, Argélia) a sentença de prisão perpétua (eg. Bangladesh) ou até mesmo a morte (Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iémen) (ILGA, 2012, p. 04).

No Brasil, embora no âmbito da vida civil a descriminalização da homossexualidade tenha ocorrido em 1830, quando o Código Penal do Império revogou o regime inquisitório das Ordenações, convém lembrar que não vivemos uma situação de plena abolição da prática voluntária de ato sexual entre pessoas do mesmo

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sexo, pois o vigente Código Penal Militar estabelece pena de detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, para as condutas de pederastia ou outro ato de libidinagem – “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar” (Art. 235, Código Penal Militar). No discurso e nas normativas médico-psiquiátricas, a despatologização da homossexualidade ocorreu muito recentemente. Apenas na década de 70, a Associação Americana de Psiquiatria (1973) e a Associação Americana de Psicologia (1975) deixaram de considerar a homossexualidade uma doença psiquiátrica (distúrbio ou perversão); e somente em 1990 a Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu a homossexualidade do catálogo das doenças mentais (Classificação Internacional de Doenças – CID), posicionamento que foi antecipado pelo Conselho Federal de Medicina brasileiro em 1985.3 Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia – órgão que possui competência para normatizar a atividade do profissional da psicologia – editou Resolução extremamente relevante que veda qualquer tipo de prática profissional voltada ao tratamento ou à cura da homossexualidade.4 Não obstante, embora sejam nítidos os avanços no processo de despatologização, é pública a informação de que a Associação Americana de Psiquiatria, na quinta edição (2012) do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), manterá a tipificação da transexualidade como transtorno de identidade de gênero.5 O breve relato das pautas negativas do movimento LGBTs indica que a descriminalização e a despatologização da homossexualidade são processos ainda em marcha e que, para além dos avanços na conquista dos direitos civis, em inúmeros casos a diversidade sexual e de identidade de gênero segue considerada como crime ou doença. Neste aspecto, é importante referir que apesar da tradição inquisitiva das práticas do direito penal, é fundamentalmente o discurso psiquiátrico que sustenta, no Ocidente, a patologização da diferença sexual. O saber psiquiátrico indica permanecer assentado em uma lógica (inquisitiva) pré-secularização e, exatamente por este motivo, acaba obedecendo um código interpretativo moralizador que aproxima, senão funde e confunde, os conceitos de doença (natureza) e pecado (moral).

3. A questão da criminalização da homofobia: o debate jurídico-penal Trabalhador homossexual da Sadia foi empalado por ‘colegas’ com mangueira de ar. (...) um trabalhador da Sadia, que não teve o nome divulgado, foi cruelmente empalado por “colegas” de trabalho com uma mangueira de ar

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comprimido, em Chapecó. A agressão teria sido motivada por homofobia. Segundo o presidente do Sitracarnes [Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Carnes], Jenir de Paula, quatro trabalhadores e uma trabalhadora participaram do crime. Os quatro homens imobilizaram a vítima, enquanto a mulher introduziu a mangueira de ar comprimido no ânus do trabalhador, ligando-a posteriormente [notícia veiculada pela agência Pragmatismo Político, no dia 17 de junho de 2011].

Entendo que a primeira questão a ser enfrentada é acerca do significado e da extensão do termo homofobia. Conforme trabalhei em momentos anteriores (CARVALHO, 2012a; CARVALHO, 2012b), entendo viável a construção de uma lente criminológica queer a partir da delimitação de um específico objeto de análise: a violência homofóbica. O estudo desta forma de violência compreende três níveis de investigação, dispostos de forma não-hierárquica ou preferencial: primeiro, a violência homofóbica interpessoal, que implica no estudo da vulnerabilidade das masculinidades não-hegemônicas e das feminilidades à violência física (violência contra a pessoa e violência sexual); segundo, a violência homofóbica institucional (homofobia de Estado6), que se traduz, por um lado, na construção, interpretação e aplicação sexista (misógina e homofóbica) da lei penal em situações que invariavelmente reproduzem e potencializam as violências interpessoais (revitimização) e, por outro, na construção de práticas sexistas violentas nas e através das agências punitivas (violência policial, carcerária e manicomial); terceiro, a violência homofóbica simbólica, que compreende os processos formais e informais de elaboração da gramática heteronormativa. Segundo Welzer-Lang, homofobia seria “a discriminação contra pessoas que mostram, ou a quem se atribui, algumas qualidades (ou defeitos) atribuídos ao outro gênero” (2001, p. 465). Pocahy e Nardi entendem que “representa todas as formas de desqualificação e violência dirigidas a todas e todos que não correspondem ao ideal normativo de sexualidade” (2007, p. 48); Junqueira propõe que a “homofobia pode ser entendida para referir as situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não) cujas performances e ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos etc.) não se enquadram nos modelos hegemônicos postos (2007, p. 153). Interessante notar como os autores excluem do campo conceitual a ideia tradicional de “temor irracional da homossexualidade” – sobretudo porque implica(ria) na reprodução de uma lógica patologizadora7 – e trabalham o tema/problema como uma construção social ancorada no estigma e na discriminação contra a homossexualidade (RIOS, 2007). A proposição dos autores realiza uma espécie

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de delimitação conceitual da violência homofóbica que se expressa no preconceito (estigma e discriminação). No entanto, esta delimitação teórica parece privilegiar as formas mais visíveis de violência homofóbica: a violência real ou simbólica interpessoal. Logicamente que este horizonte conceitual não exclui a priori as dimensões institucionais e discursivas da homofobia (homofobia de Estado e cultura homofóbica), mas é esta concretização da homofobia como um ato concreto (físico) de preconceito praticado por uma pessoa contra outra que passa a ser o referencial político-criminal de criminalização, sobretudo porque permite a individualização da conduta homofóbica e a consequente responsabilização jurídica do seu autor. Nesta perspectiva, seria possível conceituar crime homofóbico como as condutas ofensivas a bens jurídicos penalmente protegidos motivadas pelo preconceito ou pela discriminação contra pessoas que não aderem ao padrão heteronormativo. Significa dizer que, em tese, qualquer conduta prevista em lei como delito poderia ser adequada ao conceito de crime homofóbico desde que resultado da expressão (motivação) de um preconceito ou discriminação de orientação sexual – por exemplo, homicídios, lesões corporais, injúrias, constrangimentos, estupros. A proposta de alteração da Lei 7.716/89 pelo Projeto de Lei 122/06, que se convencionou chamar no Brasil como projeto de criminalização da homofobia, prevê, porém, como ilícitas, as condutas praticadas em virtude de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero que se adequam às seguintes hipóteses: (a) dispensa direta ou indireta do trabalho; (b) impedimento, recusa ou proibição de ingresso ou permanência em ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público; (c) recusa, negativa, impedimento, prejuízo, retardo ou exclusão em sistema de seleção educacional, recrutamento ou promoção funcional ou profissional; (d) sobretaxa, recusa, preterição ou impedimento de hospedagem em hotéis ou similares; (e) sobretaxa, recusa, preterição ou impedimento de locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis; (f) impedimento ou restrição da expressão ou da manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público; (g) proibição da livre expressão e manifestação de afetividade, quando permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs. Outrossim, o projeto redefine o § 3o do art. 140 do Código Penal, inserindo questões relativas à orientação sexual e à identidade de gênero no delito de injúria – “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”. Clínicas oferecem ‘desomossexualização’ de lésbicas com práticas subumanas.

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Mulheres homossexuais são submetidas a castigos físicos e psicológicos que vão desde a humilhação verbal, obrigação de permanecer algemada, dias sem consumir alimentos, espancamentos, diferentes formas de abuso e violência. No Equador, clínicas chamadas de Centro de Reabilitação oferecem serviços de “desomossexualização” de mulheres lésbicas. O que se encontra nesses locais são situações degradantes, segundo denuncia o Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), em comunicado lançado na semana passada [notícia veiculada pela agência Pragmatismo Político, no dia 28 de setembro de 2011].

Questão relevante que merece ser discutida, antes da análise de conveniência e adequação do PL 122/06, diz respeito à legitimidade da criminalização da homofobia desde as perspectivas teóricas que informam o estudo que são as do direito penal mínimo e do garantismo penal. A interrogação que penso mereça uma reflexão séria é a da legitimidade jurídica (constitucional) e política da tutela penal da livre orientação sexual e da identidade de gênero. Em outros termos, indago se é legítimo no Estado Democrático de Direito diferenciar os crimes em geral daqueles praticados por preconceito ou discriminação de orientação sexual ou identidade de gênero. O primeiro plano de análise, portanto, é o da esfera normativa do direito penal. Insisto que, neste primeiro momento, não estou preocupado com os tipos penais que o PL 122/06 pretende criar. Questiono apenas se, por exemplo, seria legítimo diferenciar o homicídio ou a lesão corporal motivados pelo preconceito quanto à orientação sexual de outras formas de homicídios ou lesões corporais. De forma mais específica, a pergunta que gostaria de propor é se do ponto de vista da construção histórica dos direitos humanos esta diferenciação qualitativa estaria adequada e justificada constitucionalmente. Não discuto, repito, os novos tipos propostos. Apenas penso a questão a partir de uma pauta altamente restrita que seria compartilhada desde uma orientação garantista/minimalista.8 Visualizo a questão desde a perspectiva dos delitos que produzem danos reais a bens jurídicos concretos de pessoas de carne e osso, para utilizar a linguagem proposta por Ferrajoli – “o princípio de ofensividade permite considerar como ‘bens’ [jurídico-penais] apenas aqueles cujas lesões se concretizam em uma ofensa contra pessoas de carne e osso” (1998, p. 481 – grifo nosso). Desde este ponto de vista (garantista), não percebo a priori como ilegítima a diferenciação qualitativa dos crimes homofóbicos dos demais crimes. Entendo justificável, do ponto de vista da tutela dos direitos fundamentais, a motivação homofóbica adjetivar9 condutas que implicam em danos concretos a bens jurídicos tangíveis, como a vida (homicídio homofóbico), a integridade física (lesões corporais

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homofóbicas) e a liberdade sexual (violação sexual homofóbica). Inclusive porque estes bens jurídicos invariavelmente integram a restrita pauta de criminalização defendida nos programas de direito penal mínimo. Retomo (e adapto), portanto, uma conclusão que externei em outro momento, relativa ao debate sobre a violência contra a mulher: a mera especificação da violência homofóbica em um nomen juris próprio designado para hipóteses de condutas já criminalizadas não produz o aumento da repressão penal, sendo compatíveis, inclusive, com as pautas políticocriminais minimalistas (CAMPOS e CARVALHO, 2011, p. 150). Justifico a nominação do crime homofóbico porque não vejo diferença nenhuma entre esta espécie de preconceito de outros que atingem grupos vulneráveis que mereceram uma tutela diferenciada, reconhecida pela própria Constituição – por exemplo, o preconceito de raça e cor (art. 5o, XLII); a violência contra a mulher (art. 226, § 8o); o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente (art. 227, § 4o). Do ponto de vista da construção histórica dos direitos humanos, os grupos LGBTs possuem a mesma legitimidade postulatória para efetivação de suas pautas políticas (positivas e negativas) que, por exemplo, o movimento de mulheres e o movimento negro. Aliás, para além do debate dogmático-constitucional dos deveres de tutela e da proibição da proteção insuficiente (STRECK, 2011, p. 100), creio que seria extremamente discriminatório assegurar políticas públicas de igualização e de defesa dos direitos das mulheres e dos afrodescendentes e não observar as reivindicações dos grupos LGBTs. Entendo que é fundamental reconhecer a existência de um passivo histórico na cultura ocidental que legitima formas distintas de tutela jurídica destes grupos vulneráveis. Não apenas pela violência interpessoal, fruto da cultura misógina, racista e homofóbica, que se presentifica e se atualiza no cotidiano, mas, sobretudo, pelo fato de terem sido instituídas formalmente políticas de Estado voltadas à eliminação e à segregação destas diferenças – por exemplo, o controle punitivo violento sobre o corpo feminino no Medievo (misoginia de Estado); as políticas escravagistas na época colonial (racismo de Estado); a criminalização e a patologização da homossexualidade na história recente (homofobia de Estado).10 A questão da legitimidade parece, portanto, indiscutível no que tange (i) à implementação de políticas de discriminação positiva e (ii) à especificação dos crimes violentos praticados em virtude de discriminação ou preconceito (crimes de ódio). A defesa de uma especificação legal (nomen juris) da violência homofóbica decorre da necessidade de nominação e do consequente reconhecimento formal do problema pelo Poder Público, retirando-o da invisibilidade e da marginalização.

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Homossexual decapitado teve seus genitais ‘decepados e introduzidos na boca’. O homossexual de 23 anos de idade, Thapelo Makutle, foi decapitado em sua casa, na cidade de Kuruman, África do Sul, na última segunda-feira. Relatos descrevem detalhes horrorizantes do assassinato de Makutle: ele foi ‘severamente mutilado’ e os seus genitais foram ‘arrancados e inseridos em sua boca’, relatou a Global Post citando ‘a declaração realizada por grupos de defesa dos direitos de gays e lésbicas. Makutle também se identificava como transgênero [notícia veiculada pelo portal The New Civil Rights Movement, no dia 14 de junho de 2012 – tradução nossa].

Todavia reconheço que esta conclusão (legitimidade da nominação da violência homofóbica) não resolve o problema, porque necessariamente devem ser discutidos os instrumentos legais e os efeitos jurídico-penais decorrentes desta diferenciação – por exemplo, criação de novos tipos, aumento de penas, qualificação dos delitos existentes, inclusão de agravantes genéricas, restrições de direitos materiais ou processuais. Na legislação penal brasileira, penso que as experiências promovidas pelas Leis 7.716/89 e Lei 11.340/06 constituem cases que merecem ser refletidos com ponderação e sem preconceito. A Lei 7.716/89, que é o estatuto de referência no projeto de criminalização da homofobia, optou por criar um sistema próprio de criminalização das condutas resultantes de preconceito racial. No entanto, praticamente todas as condutas tipificadas objetivam a responsabilização penal pelo impedimento, recusa ou obstaculização de acesso a oportunidades (cargo, emprego, ascensão funcional), serviços (ensino, transportes) ou locais (estabelecimentos comerciais), em decorrência do preconceito ou discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. De forma episódica, o art. 20 estabeleceu como delito “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, formas típicas conhecidas na legislação e na doutrina do direito internacional dos direitos humanos como crimes de ódio (hate crimes) – “crimes que envolvem atos de violência e de intimidação, normalmente dirigidos contra grupos estigmatizados e marginalizados. Trata-se de um mecanismo de poder e opressão, com objetivo de reafirmar precárias hierarquias que caracterizam uma ordem social posta” (PERRY, 2001, p. 10). Outrossim, seguindo a mesma direção, a Lei 10.741/03 criou o tipo penal de injúria racial, dentre outras especificações de condutas contra a honra de pessoas vulneráveis, com a inserção do § 3o no art. 140 do Código Penal (“injuriar alguém, ofendendo-lhe a honra ou o decoro, através da utilização de elementos re-

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ferentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”). A Lei 11.343/06 procurou uma forma distinta de afirmar os direitos das mulheres e de estabelecer responsabilidade criminal pela violência doméstica. A Lei Maria da Penha procurou criar um sistema jurídico autônomo, regido por regras próprias de interpretação, de aplicação e de execução. Assim, desenvolveu a categoria normativa violência de gênero, redefiniu a expressão vítima (incluindo os casos de relações homoafetivas), estabeleceu uma série de medidas cautelares de proteção e, sobretudo, projetou a criação de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar com competência civil e penal. Não por outra razão é possível afirmar que “a Lei 11.340/06 impõe a criação de um sistema processual autônomo que não pode ser interpretado dentro das categorias ortodoxas da dogmática jurídica, ou seja, não pode ser qualificado exclusivamente com ‘penal’ ou ‘civil’” (CAMPOS e CARVALHO, 2011, p. 150). É interessante notar as distintas configurações dos projetos político-criminais a partir da consolidação normativa das reivindicações do movimento negro e do movimento de mulheres. A Lei 7.716/89 simplesmente nomina as condutas lesivas resultantes de preconceito de raça ou de cor e as insere dentro do tradicional sistema repressivo, ou seja, trata-se de uma inovação de tipos incriminadores no âmbito do direito penal. Em sentido distinto, a Lei 11.340/06 projetou a construção de um novo modelo de gestão dos conflitos, com a intenção de superar e ultrapassar as estruturas dogmáticas que reduzem os problemas às esferas penal e civil. Logicamente que os efeitos práticos e as formas de instrumentalização do sistema implementado pela Lei Maria da Penha podem colocar em dúvida a efetividade do seu projeto – ainda mais porque o impacto que a Lei 11.340/06 produz na dogmática processual torna a matéria extremamente delicada, situação que permite visualizar a dificuldade de superação dos preconceitos enraizados na teoria do direito. Contudo, é inegável perceber como o movimento de mulheres inovou ao propor um novo sistema jurisdicional de compreensão e de resolução dos conflitos de gênero, sobretudo porque a natureza da Lei é eminentemente processual. No que tange especificamente ao debate sobre a criminalização – questão periférica na estrutura normativa, mas transformada em tema central no debate político e acadêmico, fato que acredito ter ocultado as demais proposições não-penais do movimento de mulheres –, a Lei Maria da Penha alterou dois dispositivos do Código Penal: (a) especificou, sob o nomem juris “violência doméstica”, as formas de lesões corporais praticadas por ascendente, descendente, irmão, cônjuge, ou companheiro nas relações domésticas,

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de coabitação ou de hospitalidade, estabelecendo como pena a detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos (art. 129, § 9o do Código Penal); (b) incluiu, nas circunstâncias agravantes relativas ao abuso de autoridade, a violência praticada prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade ou a violência contra a mulher (art. 61, II, f do Código Penal). Neste quadro normativo, entendo que a Lei Maria da Penha, diferentemente da Lei 7.716/89, produziu o menor dano possível no que tange à expansão do sistema de criminalização,11 sendo possível indagar, inclusive, se o fato de nominar (especificar) uma forma de violência contra a pessoa anteriormente criminalizada efetivamente produz uma ruptura insanável ou gera uma contradição insuperável com um modelo político-criminal minimalista (CAMPOS e CARVALHO, 2011, p. 150).12 A questão parece residir muito mais no plano simbólico e discursivo, ou seja, na produção de um significado cultural de expressão de intolerância em relação à violência contra as mulheres, do que efetivamente o aumento das práticas cotidianas de criminalização e de encarceramento. Assim, desde o meu ponto de vista, o problema da criminalização da homofobia no Brasil reside na estratégia utilizada pelo movimento LGBTs. Não vejo problemas de legitimidade jurídica ou de incompatibilidade com o projeto político-criminal garantista se a forma de nominação (nomen juris) do crime homofóbico ocorrer apenas através da identificação de determinados condutas violentas já criminalizadas, isto é, a partir de um processo de adjetivação de certos crimes em decorrência da motivação preconceituosa ou discriminatória quanto à orientação sexual – por exemplo, especificação da violência homofóbica nas estruturas típicas do homicídio, da lesão corporal, do constrangimento ilegal, do estupro. A técnica legislativa poderia ser restrita à identificação desta forma de violência – sem qualquer ampliação de penas, objetivando exclusivamente dar visibilidade ao problema – através da remissão da sanção ao preceito secundário do tipo penal genérico – por exemplo caput do art. 121 do Código Penal: “matar alguém: pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”; inclusão de parágrafo intitulado homicídio homofóbico: “nas mesmas penas incorre quem praticar a conduta descrita no caput por motivo de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero”. No máximo, seguindo o caminho trilhado pela Lei Maria da Penha, a inserção da motivação homofóbica como causa de aumento de pena no rol das agravantes genéricas. Penso que a pauta político-criminal do movimento LGBTs estaria adequada às premissas de um direito penal de garantias se, em primeiro lugar, as condutas identificadas como homofóbicas fossem circunscritas àquele horizonte de crimi-

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nalização da violência contra pessoas concretas de carne e osso e, em segundo, se a criminalização ficasse restrita ao plano simbólico de nominação da violência, sem habilitação do poder punitivo sancionador. Neste sentido, acredito que a via eleita pelo movimento LGBTs, ao optar pela inclusão da homofobia na Lei 7.716/89, foi extremamente inadequada. Primeiro porque dilui a ideia de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero nas questões de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional. Por mais que a homofobia possa ser enquadrada teoricamente nos crimes de ódio (hate crimes) e guarde uma significativa identificação com a xenofobia, o racismo e o antissemitismo,13 cada um destes fenômenos guarda uma complexidade própria que merece ser analisada individualmente. Segundo, porque as condutas tipificadas pela Lei 7.716/89, acrescidas de outras propostas no PL 122/06, referem, em sua maioria, obstaculizações ou impedimentos de acesso a oportunidades, bens, serviços ou locais, situações que, desde uma perspectiva garantista/minimalista, poderiam ser geridas de forma mais adequada fora do âmbito do direito penal, como, por exemplo, nas esferas civil, trabalhista, consumerista ou administrativa. Em terceiro, e de forma mais contundente, porque o PL 122/06 não nomina, como crime homofóbico, as condutas violentas praticadas contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros motivadas por preconceito ou discriminação. A questão parece ser de fundamental análise porque são exatamente estes dados sobre o volume de delitos violentos, impulsionados pela homofobia, que justificam empiricamente a demanda de criminalização. Conforme o último relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), por exemplo, “em 2011 a cada 33 horas um homossexual brasileiro foi barbaramente assassinado” (2012, s/p). Constatam os pesquisadores que foi mantida a tendência dos anos anteriores da identificação de atos praticados através de violência extremada, fato que valida a tese de ser a homofobia um crime de ódio.14 Mott, ao analisar os dados colhidos, sustenta que 99% destes homicídios contra gays têm como motivo seja a homofobia individual, quando o assassino tem mal resolvida sua própria sexualidade; seja a homofobia cultural, que expulsa as travestis para as margens da sociedade onde a violência é mais endêmica; seja a homofobia institucional, quando o Governo não garante a segurança dos espaços frequentados pela comunidade LGBT (GGB, 2012, s/p).

É inegável que os dados sobre a violência homofóbica (contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade sexual), sobretudo extraídos de uma sociedade inserida no contexto de uma cultura punitivista como a brasileira, induzem pensar

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no instrumento mais radical (direito penal) como alternativa para a proteção destas pessoas e grupos vulneráveis. Entendo, inclusive, que seria demasiado romântico e idealista exigir que o movimento LGBTs negasse a via criminalizadora, mormente quando movimentos sociais análogos já trilharam este caminho. Contudo sigo pensando que, por mais legítima que possa ser a demanda de criminalização, no mínimo há um equívoco na estratégia político-criminal eleita (PL 122/06).

4. Considerações finais: o debate criminológico sobre a criminalização da homofobia Escola sem homofobia: menino se suicida e pais culpam colégio. Rolliver de Jesus, 12, se enforcou com cinto da mãe no dia 17 de fevereiro, em Vitória (ES). Ele não suportava mais o bullying que sofria na escola. ‘Eles [os alunos] o chamavam de gay, bicha, gordinho. Às vezes, ele ia embora chorando’, contou uma colega do menino (...). O menino deixou uma carta pedindo desculpas aos pais pelo suicídio e se perguntando por que era alvo de tantas humilhações [notícia veiculada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 29 de fevereiro de 2012].

As provocações realizadas até o momento sobre a criminalização da homofobia centralizaram-se fundamentalmente na análise de legitimidade normativa do projeto, ou seja, até que ponto uma proposta de criminalização estaria adequada aos comandos constitucionais que orientam um modelo de direito penal mínimo ou de garantias. Chamo a atenção, portanto, que o debate proposto até o momento está limitado ao horizonte de projeção do direito penal a partir da discussão da compatibilidade do crime homofóbico no Estado Democrático de Direito e das alternativas normativas (vias possíveis) para o reconhecimento, individualização e nominação desta espécie de crime de ódio (hate crime). Todavia entendi relevante, desde o início deste estudo, avaliar como a criminalização da homofobia se insere em uma pauta político-criminal sustentada por uma teoria geral (queer studies) que se projeta no direito (queer legal studies) e na criminologia (queer criminology). Fundamental, neste sentido, ultrapassar as fronteiras da legalidade penal e ingressar no debate sobre a legitimidade criminológica da criminalização da homofobia. Esta questão é importante porque invariavelmente se percebe que os argumentos contra a legitimidade jurídica (dever-ser) da criminalização da homofo-

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bia são apresentados a partir de dados sobre o funcionamento do sistema punitivo (ser), situação que permitiria afirmar a violação da Lei de Hume, na qual argumentos empíricos não podem ser utilizados para desqualificar premissas normativas e vice-versa. Logicamente que uma das virtudes da criminologia crítica no século passado foi a de ‘revogar’ a Lei de Hume, sobretudo porque constitui um argumento típico do positivismo científico, que sustenta, no direito penal e na criminologia, um pensamento ortodoxo muitas vezes autista, ou seja, um sistema discursivo totalmente dissociado da realidade. No entanto, apesar de aderir expressamente à revogação da Lei de Hume, creio importante que as críticas sejam pontuadas em suas esferas específicas, inclusive para que os argumentos sejam melhor compreendidos. Após o choque de realidade provocado pela criminologia crítica, mesmo aos investigadores que seguem trabalhando a partir de um modelo criminológico ortodoxo, inexiste a possibilidade de se adotar um idealismo ingênuo no sentido de que a criminalização, em si mesma, possua a capacidade de reduzir as violências. Cada espécie de delito tem a sua complexidade e estratégias gerais abstratas como a criminalização pouco auxiliam na resolução do problema. É impossível pensar, por exemplo, que a mesma estratégia (criminalização) produza efeitos significativos na redução de situações de violência tão distintas como homicídios, furtos, roubos, estelionatos, acidentes de trânsito, comércio ilegal de drogas, fraudes previdenciárias, sonegações fiscais, violência doméstica, danos ambientais, práticas racistas e atos homofóbicos. A possibilidade de redução das violências a níveis razoáveis implica em um processo complexo de análise de cada situação-problema em seu local de emergência, na aproximação com os atores envolvidos e em intervenções individualizadas em diferentes planos (individual, familiar, social e econômico). A lei penal é apenas uma – e provavelmente a menos eficaz e mais falha – das estratégias. No interior de uma cultura embriagada pelo punitivismo, porém, é inegável perceber que a criminalização possui um efeito simbólico. Aliás, em inúmeros casos o efeito simbólico é o único que a criminalização possui. Caberia indagar, portanto, desde o ponto de vista criminológico, se a visibilidade que seria possibilitada com a nominação da homofobia como delito, independente da estratégia normativa a ser adotada, poderia produzir um efeito simbólico virtuoso, um impacto cultural positivo no sentido de desestabilizar a cultura homofóbica enraizada no tecido social. Neste aspecto, penso ser conveniente lembrar o case fornecido pela Lei Maria da Penha. Dados sobre a representação da sociedade brasileira acerca da violência doméstica antes e depois da Lei 11.340/06 demonstram que o estatuto provocou importantes mudanças culturais (Ibope/Themis, 2008), inclusive pelas reações que

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o movimento de mulheres e a própria Lei sofreram. Pesquisas evidenciam que o nível de consciência do problema da violência doméstica na sociedade brasileira ganhou densidade, sofisticação (Ibope/Themis, 2008). Sobretudo na forma pela qual os meios de comunicação e de entretenimento passaram a noticiar os atos de violência contra mulheres. E inegavelmente a Lei Maria da Penha desempenhou um papel estratégico central nesta mudança cultural. Evidente que não se pode ser ingênuo no sentido de esperar que a Lei, isoladamente, provoque uma redução nos atos de violência. Os dados demonstram que após a publicação da Lei Maria da Pena houve, inclusive, um incremento gradual do número de registros, decorrência provável das campanhas governamentais e da criação dos centros de atendimento das mulheres vítimas da violência (CAMPOS e CARVALHO, 2011, p. 158). Mas o fato de as mulheres sentirem-se acolhidas nos serviços de atendimento e denunciarem os atos de violência é um importante dado para que se possa mapear o problema e atuar positivamente, através de políticas públicas não-punitivas, para a sua redução. Neste sentido (e apenas neste plano simbólico, sublinho), poderíamos esperar algum efeito virtuoso da criminalização da homofobia, notadamente em decorrência do papel que o direito penal ainda exerce na cultura (punitiva). No entanto, imperativo dizer que qualquer uso do direito penal deve ser avaliado com a máxima cautela, fundamentalmente porque, mesmo em uma ação estratégica controlada, a ingerência violenta do sistema punitivo acaba sendo habilitada, situação que invariavelmente direciona o agir das agências contra os ‘suspeitos’ e os ‘perigosos’ de sempre, ou seja, as pessoas e os grupos vulneráveis à criminalização. Não podemos esquecer que, desde uma perspectiva crítica, o direito penal deve estar sob constante suspeita. Em conclusão, sigo defendendo que o movimento LGBTs poderia superar esta lógica criminalizadora (vontade de punir), demonstrando aos demais movimentos sociais os riscos que a convocação do direito penal gera. E creio que seria possível abdicar do direito penal sem maiores danos às estratégias do movimento, sobretudo porque as políticas antidiscriminatórias não-punitivas de reconhecimento dos direitos civis têm sido eficazes na nominação e na exposição do problema das violências homofóbicas em todas as suas dimensões (violências simbólica, institucional e interpessoal). Trata-se, porém, de uma exigência que talvez esteja para além das reais possibilidades político-criminais do movimento LGBTs neste momento histórico. Todavia, ao negar explicitamente qualquer vínculo com o sistema penal, o movimento

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LGTBs estaria afirmando que a própria lógica punitiva é homofóbica, misógina e racista. Talvez esta fosse a estratégia efetivamente revolucionária em termos de ruptura com a cultura homofóbica.

Notas 1

Wolkmer, a partir da constatação da insuficiência das fontes clássicas do monismo estatal que acaba por gerar um alargamento dos centros geradores de produção jurídica, afirma que os (novos) movimentos sociais constituem-se como novas fontes de juridicidade (1994, p. 137). Neste cenário, inovam em duas modalidades de comportamento político: “a) os novos movimentos sociais, autônomos e inteiramente independentes do Estado, agem para responder às necessidades humanas existenciais e culturais, como a ecologia, pacifismo, feminismo, anti-racismo e direitos difusos; b) os novos movimentos sociais, detentores de uma ‘autonomia relativa’, mantendo relações que envolvem algum grau de dependência (não se caracterizando coo submissão) [com o Estado], agem motivados por necessidades e conflitos vinculados à produção/distribuição de recursos e bens materiais” (WOLKMER, 1994, p. 133). 2

Constata Miskolci que a teoria queer, que emerge nos Estados Unidos no final dos anos 80, compartilha a noção de sexualidade como construção social e histórica, contudo, diferentemente dos demais estudos sociológicos, afirma que as ciências sociais operam a partir de uma lógica heteronormativa constitutiva da sociedade moderna: “o estranhamento queer com relação à teoria social derivava do fato de que, ao menos até a década de 1990, as ciências sociais tratavam a ordem social como sinônimo de heterossexualidade (...). A despeito de suas boas intenções, os estudos sobre minorias terminavam por manter e naturalizar a norma heterossexual” (MISLOLSCI, 2009, p. 151). As teorias queer procuram desestabilizar algumas zonas de conforto culturais criadas pelo heterossexismo, como a polarização entre homens e mulheres e a heteronormatividade compulsória que se instituiu historicamente como um dispositivo de regulação e de controle social (dispositivo de poder). A naturalização da norma heterossexual, ao aprisionar os sujeitos e as subjetividades no binarismo hetero/homossexual, cria, automaticamente, mecanismos de saber e de poder nos quais a diferença é exposta como um desvio ou como uma anomalia (CARVALHO, 2012b). Neste sentido, é possível conceituar heterossexismo como “(...) a discriminação e a opressão baseada em uma distinção feita a propósito da orientação sexual. O heterossexismo e a promoção incessante, pelas instituições e/ou indivíduos, da superioridade da heterossexualidade e da subordinação simulada da homossexualidade. O heterossexismo toma como dado que todo mundo é

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heterosexual” (WELZER-LANG, 2001, p. 467). 3

Na 9a edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-9), publicada em 1980, o homossexualismo figurava no capítulo relativo às ‘desordens mentais’, o qual era composto pelas seções ‘desordens neuróticas, desordens de personalidades e outras não-psicóticas’ e ‘desvios e transtornos sexuais’. Dentre os desvios e transtornos sexuais, eram classificados da seguinte forma (conforme o código): 302.0 homossexualismo; 302.1 bestialidade; 302.2 pedofilia; 302.3 transvestismo; 302.4 exibicionismo; 302.5 transexualismo; 302.6 transtorno de identidade psicossexual; 302.7 frigidez e impotência; 302.8 outros: fetichismo, masoquismo, sadismo; 302.9 não especificados. O Conselho Federal de Medicina excluiu o homossexualismo em 1985, revogando o código 302 do CID-9. Na 10a edição do CID (CID-10) houve profunda alteração na forma de classificação sendo relacionados os ‘transtornos da preferência sexual’ – F65. 0 fetichismo; F65.1 travestismo fetichista; F65.2 exibicionismo; F65.3 voyeurismo; F65.4 pedofilia; F65.5 sadomasoquismo; F65.6 transtornos múltiplos da preferência sexual; F65.8 outros transtornos da preferência sexual; F65.9 transtorno da preferência sexual, não especificado.

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Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. (Conselho Federal de Psicologia, Resolução 01/99).

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O coletivo de entidades que participaram do Diálogo Latino-Americano sobre Sexualidade e Geopolítica (Rio de Janeiro, agosto de 2009), aderiu à campanha internacional Stop Pathologization. Segundo o Manifesto publicado pelo grupo, “a patologização da intersexualidade e da transexualidade está baseada no pressuposto de que os gêneros são determinados pelo dimorfismo dos corpos. A ausência de um pênis e um orifício vaginal seriam condições necessárias para determinar a identidade de gênero feminino, e a coerência do gênero masculino estaria dada pela presença do pênis. Esse determinismo, apoiado no saber/poder médico, como instância hegemônica de produção de discursos sobre sexo e gênero, fundamenta políticas estatais de saúde pública e direitos, estipulando o acesso das pessoas à categoria de humano. Tal noção de humanidade, mediada pelo arbítrio médico, violenta o direito à identidade e ao reconhecimento social da diversidade” (2010, p. 265). Os firmatários do documento justificam que a patologização da intersexualidade e da transexualidade legitima uma série de violações dos direitos humanos, motivo pelo qual postulam: (a) a retirada da transexualidade dos manuais internacionais de diagnóstico; (b) o financiamento estatal do processo transexualizador para as pessoas que aderem autonomamente; (c) o fim das cirurgias genitais

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em meninos e meninas intersexuais, sendo estabelecidos protocolos médico-legais internacionais para tutela dos seus direitos (2010, p. 268). 6

O termo homofobia de Estado foi apropriado do relatório da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexos) sobre as legislações que criminalizam relações sexuais consensuais entre adultos do mesmo sexo (ILGA, 2012). 7

“É importante ressaltar que o termo ‘homofobia’, apesar de ter se constituído em uma palavra de ordem que dá sentido a muitas das violações dos direitos humanos, no entanto não é isento de problemas, pois ‘fobia’ remete o ‘problema’ a instâncias da psique humana ou ao inconsciente, amparado na ordem do não racional” (POCAHY e NARDI, 2007, p. 48). 8

Evidente que o debate não problematiza o tema desde a perspectiva abolicionista, que percebe como ilegítima qualquer espécie de criminalização. No entanto, a orientação abolicionista é incorporada como um recurso crítico de interpretação, sobretudo na discussão acerca dos limites da ingerência através do sistema penal (esfera criminológica). Dentro dos limites propostos para o debate, compartilho com Nils Christie que “nessa situação, o que mais me toca pode ser chamado de minimalismo. Ele está próximo do abolicionismo, mas aceita que, em certos casos, a pena é inevitável. Tanto abolicionistas quanto minimalistas têm como ponto de partida atos indesejáveis, e não crimes. Ambos se perguntam como se pode lidar com tais atos. Compensar o ofendido, estabelecer uma comissão para a verdade, ajudar o ofensor a pedir perdão? O minimalismo proporciona alternativas (...). O minimalismo afasta a visão rígida da pena como obrigação absoluta, mas obriga a motivar a escolha pela pena ou pela impunidade” (CHRISTIE, 2011, p. 131).

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Embora o termo ‘qualificar’ seja linguisticamente mais correto, juridicamente poderia provocar mal-entendidos, pois não proponho, por exemplo, que o homicídio homofóbico seja incluído no rol dos homicídios qualificados. A ideia de ‘qualificação’ do delito significa exclusivamente a sua especificação em decorrência do preconceito ou discriminação de orientação sexual ou identidade de gênero. 10

Os conceitos de misoginia de Estado, de racismo de Estado e de homofobia de Estado, referidos no texto, poderiam ser enquadrados, de forma mais ampla, na ideia de racismo de Estado desenvolvida por Foucault (2002). Trabalho, porém, com específicas políticas punitivas voltadas ao controle, neutralização ou eliminação destes grupos vulneráveis. A concepção de racismo de Estado de Foucault é mais ampla, trata-se de um desdobramento do biopoder, de um modelo político de gestão e de governo no qual, a partir de uma cisão (ruptura) no domínio da vida, determinadas pessoas são eleitas em detrimento de outras. Segundo o autor, “se a criminalidade foi pensada em termos de

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racismo foi igualmente a partir do momento em que era preciso tornar possível, num mecanismo de biopoder, a condenação à morte de um criminoso ou seu isolamento. Mesma coisa com a loucura, mesma coisa com as anomalias diversas” (FOUCAULT, 2002, p. 308). Neste sentido, o racismo “assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população, na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva” (FOUCAULT, 2002, p. 308). 11

Logicamente que não se desconhecem as restrições que a Lei impôs em relação aos institutos processuais diversificacionistas (transação penal e suspensão condicional do processo). Todavia, apesar dos efeitos deletérios do processo, isto não implica necessariamente em ampliação da rede de encarceramento, pois são preservadas as hipóteses de substituição da pena em caso de condenação.

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Em termos criminológicos, a indagação pertinente é se seria adequado rotular o movimento de mulheres, especificamente por esta ação, como um grupo de empresárias morais atípicas (SCHEERER, 1986) ou como um coletivo identificado com a esquerda punitiva (KARAM, 2011). Entendo que a resposta deveria ser negativa pois, desde o ponto de vista fenomenológico e estrutural, o processo de nominação de uma forma de violência contra a mulher como violência doméstica não parece ser um fato significativo no incremento do punitivismo.

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Neste sentido, sustentam Pocahy e Nardi que “a homofobia é, do mesmo modo que a xenofobia, o racismo ou o anti-semitismo, uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como o contrário, inferior ou anormal, referindo-se a um prejulgamento e ignorância que consistem em acreditar na supremacia da heterossexualidade” (2007, p. 48). Em sentido similar Junqueira: “mais do que a homofobia, mas sem dela se dissociar, a heteronormatividade, ao se relacionar à produção e à regulação de subjetividades e relações sociais, parece chamar mais a atenção para os nexos entre um conjunto de eixos que atuam na construção, legitimação e hierarquização de corpos, identidades, expressões, comportamentos, estilos de vida e relações de poder. Especial ênfase pode então ser posta nos fortes vínculos da heteronormatividade com outros arsenais normativos, normalizadores e estruturantes que agem nesses mesmos terrenos, tais como o racismo, o sexismo, a misoginia, a xenofobia, o classismo, a corpolatria, entre outros” (JUNQUEIRA, 2007, p. 155).

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Identifica o Relatório que “70 dos assassinatos foram praticados com arma de fogo, 67 com arma branca (faca, foice, machado, tesoura), 56 espancamentos (paulada, pedrada, marretada), 8 enforcamentos. Constam ainda afogamentos, atropelamentos, carbonização, degolamentos, empalamentos e violência sexual, asfixiamentos, tortura.

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Nove das vítimas levaram mais de 10 facadas e três mais de 10 tiros. A travesti Idete, 24 anos, de Campina Grande, PB, teve sua execução filmada e divulgada na internet, levando 32 facadas; o cantor gay Omar Faria, de Paraitins, AM, 65 anos, foi morto com 27 facadas dentro de sua casa” (GGB, 2012, s/p).

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O mito da sociedade como um projeto jurídico Diógenes Vicente Hassan Ribeiro

1. Introdução A perspectiva da grande maioria dos operadores do direito e da cidadania em geral é de viverem numa sociedade perfeitamente regulada. Parte da responsabilidade por essa situação é da simbologia dos currículos dos cursos jurídicos. E, na mesma linha, os concursos públicos, inclusive o exame de ordem, aquele em que os bacharéis têm de obter aprovação para ser inscritos no quadro de advogados e, então, trabalharem nesta profissão, parecem indicar que existe uma legislação perfeitamente elaborada. O sistema jurídico continental, diversamente do sistema do Reino Unido, da common law, e a doutrina da separação dos poderes também permitiram essa compreensão.1 A primeira frase contém a indagação da qual partiu a pesquisa2 que deu origem a este texto. No nosso imaginário jurídico existem inúmeras ficções ou ilusões de ótica mesmo, em relação às quais, dogmaticamente, não questionamos. Em consequência disso foram sendo criados alguns mitos. Um desses mitos é o da sociedade como um projeto jurídico e, para além disso, como um projeto jurídico perfeito. Poucos, na sociedade atual, de massa, de consumo, do excesso de informação, da busca do lazer, da ocupação total do tempo disponível, param para pensar. Aceita-se, então, dogmaticamente, que a legislação regula a sociedade e que, se a legislação deixa lacunas, o Judiciário põe a solução. Com a crescente complexidade da vida na sociedade, a legislação mostra plenamente a sua deficiência e o Judiciário revela a sua insuficiência.

2. Do caos à sociedade pela comunicação Os primeiros sinais de sociedade, na perspectiva histórica, surgiram do processo comunicativo que evoluiu do caos.3 O surgimento da sociedade, nos seus primeiros momentos, gerou a necessidade de organização. Portanto, a sociedade devia organizar-se. No princípio as regras, muito primitivas, evidentemente não escritas (consensuais), são fundamentadas, racionalmente,4 no uso da força – a lei do mais

forte. Paralelamente, há a criação de um imaginário – construção de imagens afirmativas e dogmáticas fundadas nas divindades – uma explicação racional, mas primitiva, dos fenômenos da natureza, inclusive do exercício e para o exercício do poder. Nesse jogo de linguagem estão presentes os rituais, a sabedoria dos anciões, que transmitem a história e a cultura dos povos, e as habilidades e talentos dos jovens. Na sequência evolutiva, a racionalidade do uso da força individual ou de grupos perde sentido, ganhando espaço o uso da força coletiva, com a permissão do monopólio de uso da violência, para reprimir a violência individual e repor a justiça, nas mãos da coletividade, mas o poder ainda deriva de concepções primitivas: reinado/sucessão/divindade. Passado um espaço de tempo de longa evolução cultural, em que as comunidades menores5 agregaram-se, tornando-se maiores, inclusive com a imposição do domínio6 sobre extensos e desabitados territórios, o exercício do poder passou pelos conceitos de cidades-estados, feudalismo, absolutismo e chegou no modo atual de Estado de Direito, que já sofreu variações e contém novas concepções de sentido. Nesse ponto, o exercício do poder pelo mais forte mudou várias vezes de estatuto. Primeiro o mais forte, depois o divino, em seguida a sucessão pelo sangue, atualmente a representação conforme a deliberação da cidadania. No primeiro polo está o uso da força física, no último o uso da forca da razão, da argumentação. Em qualquer caso, na teoria o poder é exercido pelo mais preparado: no primeiro estágio o mais forte fisicamente ou pelas armas; atualmente o mais “forte” politicamente. Houve um refinamento, uma sofisticação do exercício do poder. Na Teoria dos Sistemas Sociais,7 de Niklas Luhmann, abandona-se essa posição que coloca os indivíduos e os grupos em destaque, inserindo em seu lugar as conexões comunicativas, que se distanciam e se diferenciam de suas estruturas orgânicas e psíquicas. Por outro lado, nos termos dessa teoria, a evolução não se estabelece tendo em vista o progresso, nem se dirige a um determinado fim ou com o objetivo de realizar algum valor. Para a teoria luhmanianna o motor da evolução é a crescente complexidade da sociedade que, então, apresenta variações, que se desviam do modelo estrutural sistêmico e, portanto, exigem seleção (forçada, complexidade) entre várias opções (contingência, tudo poderia ser diferente), seguindo-se a possível estabilização, ou o descarte. No processo evolutivo, nas sociedades diferenciadas segmentariamente, há uma carência de alternativas e, por isso, variação e seleção não sofrem distinção. O passo seguinte, nas sociedades estratificadas, ou hierarquizadas, insere a distinção entre variação e seleção. Nesse espaço de tempo, há a evolução pela escrita, diver-

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samente do que ocorria na fase evolutiva anterior, em que a comunicação ocorria somente entre presentes, mas, mesmo assim, essa evolução sofre pela perda decorrente da estabilidade normativa e dogmática, induvidosa. Nesse momento não há clareza de distinção entre seleção e estabilização, ou reestabilização. E, por fim, na sociedade moderna, há essa distinção, acrescida dos conceitos de hipercomplexidade e diferenciação funcional. Nesta teoria, a unidade elementar da sociedade é a comunicação, não o homem/ser humano, e o seu início se deu com a substituição do ruído pelo sentido – a ordem no caos. Noutro modo de observação da evolução da sociedade, Jürgen Habermas expõe a Teoria da Ação Comunicativa, também chamada teoria do discurso (NEVES, 2008). Na sociedade arcaica não há distinção entre cultura e natureza, entre mundo objetivo, social e subjetivo. As estruturas normativas são confundidas com imagens míticas da natureza. Aqui predominam os rituais e os mitos e uma interpretação lendária e heroica do mundo. Nas culturas ditas avançadas, no segundo estágio, já há distinção entre mundo objetivo, social e subjetivo. Todavia, neste espaço de tempo há uma resistência a separação entre o verdadeiro, o bom e o perfeito, uma vez que ainda predomina a imagem sacra, religiosa, e metafísica do mundo. No terceiro estágio, no início da era moderna, inicia-se a caracterização de pretensão de validade (verdade) com base em critério científico. Então, diante do rompimento iniciado pelas formas modernas de religião com o dogmatismo, estabelecendo uma oposição profana ao transcendente, há a criação de estruturas que diferenciam as pretensões de validade, no plano da ação e no plano do discurso. A arte, a moral e o direito desligam-se da sacralidade. E, na modernidade, Habermas põe o problema da colonização sistêmica do mundo da vida, numa invasão patológica da ação comunicativa (orientada para o entendimento e fundamentada no discurso). Portanto, no estágio atual da sociedade, enquanto Luhmann descreve a hipercomplexidade, conceito com o qual não lida Habermas, que funciona como motor da evolução, numa observação claramente sociológica, Habermas vê, na sua leitura filosófica, uma patologia social, classificada como colonização sistêmica do mundo da vida.

3. O direito e a sua evolução - duas observações Paralelamente à evolução da sociedade, o direito evolui para atender as suas demandas. Os grandes ramos de evolução do direito, intensamente tratados na doutrina, estabelecem como primeiro estágio de direito pré-moderno, o direito natural

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(jusnaturalismo) e como segundo estágio, na modernidade, o positivismo. Quanto ao jusnaturalismo,8 basta lembrar de Antígona, a sua heroína, na célebre discussão com o rei Creonte, que mandou matar o irmão dela e, sobretudo, mandou que seu cadáver ficasse exposto, sem permitir os costumes próprios aos mortos, como castigo final. Ela expôs, no diálogo, que havia um direito desde sempre, não posto pelos homens, um direito divino. E o direito positivo, na sua contraposição, é o direito posto pelos homens por um ato de vontade (SCARPELLI apud BARZOTTO, 1999, p. 17). O direito evolui, nas suas estruturas, conforme as necessidades da sociedade. À semelhança da evolução da sociedade, o direito, como seu subsistema, evolui igualmente pela variação, seleção e estabilização, na teoria de Luhmann (NEVES, 2008). Na sociedade segmentária, o seu equivalente é o direito arcaico, em que há autodefesa da vítima ou de seu clã, numa fase primitiva, inexistindo um procedimento normativo de aplicação. Nesse caso, a generalização congruente de expectativas normativas (o direito propriamente dito e suas dimensões temporal, subjetiva/social e material/prática) se manifesta pela represália e pela reciprocidade. Nas culturas avançadas, pré-modernas, desenvolvem-se procedimentos e diferenciação hierárquica, estando presente a dominação política. Mas as normas e os princípios são classificados como imutáveis, equivalentes a verdadeiro.9 Há uma ausência de seletividade diante da crescente variação das expectativas normativas. Os procedimentos decisórios são incapazes de exercer a função de seleção. No estágio do direito positivo, o terceiro estágio, da modernidade, há a distinção entre jusnaturalismo e positivismo. E quando se completa o ciclo de transição, a ideia de um direito inteiramente alterável, por atos de vontade do ser humano, se estabelece, caracterizando a aquisição da evolução do direito positivo. Na observação10 de Habermas, a moral e o direito seguem o mesmo padrão evolutivo, caracterizando o direito revelado na primeira fase, da consciência moral pré-convencional, fundada nos mitos, com solução dos conflitos pela via da autocomposição, autodefesa e retaliação (lei do mais forte). Nesta etapa, não há possibilidade para a imposição do direito, devendo a solução arbitrada ser aceita pelos litigantes. Nas culturas avançadas, a evolução traz uma moral convencional e uma ética da lei, havendo distinção entre os planos da ação e normativo (NEVES, 2008, p. 55). As violações do sujeito são analisadas conforme a sua intenção, não apenas conforme o seu resultado. Contudo, nesta etapa o direito ainda não se encontra diferenciado da moral e da ética. O direito sacro ocupa importante espaço na função política (dá legitimidade ao poder político, que o sanciona). Não há, então reflexão crítica das normas em vigor a partir de princípios.

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Finalmente, com a sociedade moderna, há a plena distinção entre direito, moral e ética, pela via da positivação do direito. Mas, em Habermas, o princípio da positivação é caracterizado no princípio da fundamentação (NEVES, 2008, p. 57), diversamente da compreensão contida na observação de Luhmann. A Teoria da Ação Comunicativa enuncia as seguintes características do direito moderno: positividade, legalismo e formalidade, bem como generalidade ou universalidade e necessidade de justificação moral pós-convencional. Aqui, Habermas insere a concepção de que o direito, como instrumento do poder e do mercado, exige fundamentação em termos de racionalidade procedimental ética e moral. Vistas, portanto, as diversas fases evolutivas da sociedade e do direito, há decisivas conclusões distintas nas observações de Luhmann e Habermas, ainda que possam, em alguns matizes, ser vistas como complementares.

4. A radicalização do positivismo O positivismo, como descrito acima, significou um inegável e importante avanço, uma aquisição evolutiva da sociedade, seja na área estrita da ciência, seja em relação específica ao direito. Hans Kelsen expôs essa distinção no primeiro capítulo da Teoria Pura do Direito, esclarecendo que a sua obra pretendeu apresentar pesquisa sobre a “pureza” do direito, sobre o objeto da ciência do direito, limitando-o da política, não se importando, então, como deve ser feito o direito, ou de como ele, o direito, deve ser. Centrou o questionamento, assim, na ontologia do direito (KELSEN, 1998, p. 01). Analisando a expressão “direito” conforme as várias alterações de idioma, concluiu que em todas direito significa uma ordem, com o sentido de um sistema de normas que derivam do mesmo fundamento de validade, e que as normas regulam a conduta humana. Além dos diversos aspectos da conduta, uma característica clara do ordenamento jurídico é ser ele coativo, coações vistas como sanções cujo exercício é monopolizado pelo Estado, que atribuem segurança coletiva de proteção social. Outro atributo desse ordenamento é que, quando a norma não proíbe uma conduta, isso significa, por outro lado, que aquela conduta é permitida (KELSEN, 1998, p. 33 e ss). Sem fixar o exame noutras doutrinas do positivismo jurídico, como as mencionadas por Luiz Fernando Barzotto (1999), pode-se, desde logo, traçar paralelo entre o que estabeleceu Luhmann, mais recentemente, em especial quando diverge do entendimento de ser o direito um ordenamento que tem como característica essencial a coerção, mas que o direito é uma generalização congruente de expectati-

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vas que possui três dimensões: temporal, institucional/social/subjetiva e prática. Na dimensão temporal, há a normatividade, que produz uma estabilização do direito, na dimensão institucional/social/subjetiva há o recíproco atendimento da norma que deriva para crescente e fictício apoio e consenso esperado. Por fim, na dimensão prática, há uma rede de interrelacionamento de limitações e confirmações recíprocas (LUHMANN, 1983, p. 109 e ss). Em Habermas há o acréscimo de que o princípio da positivação não se dissocia do princípio da fundamentação, daí envolver a questão da legitimação procedimental, no sentido da crítica do direito, e uma racionalidade discursiva de modelo pragmática (estabelecer fins e meios), ético-política (valores) e moral (justiça) (NEVES, 2008, p. 58). Feita essa apresentação das distinções teóricas, a conclusão preliminar é a de que, em Kelsen, estão as características da coerção do direito positivo e da unidade de fundamento de validade, enquanto em Luhmann, não se tem como característica essencial a coação, apresentando-se o direito como um sistema de generalização congruente de expectativas. Habermas, na Teoria do Discurso, retorna ao problema da legitimidade, que diz não poder, o direito, ficar afastado do fundamento de validade.

5. Neopositivismo - a ideia de completitude A primeira observação sobre o neopositivismo, mais recente, é de que manteve a exigência do rigor de uma linguagem analítica, desprendendo-se do positivismo legalista que confundia a lei com o direito, no sentido de que o direito estava todo na lei. Contudo, o neopositivismo, que se detém na perspectiva descritiva e estrutural do direito, ainda permanece na posição de neutralidade, própria do Estado liberal (ROCHA, 1998, p. 82). Nessa linha, Norberto Bobbio expõe a teoria do ordenamento jurídico, enunciando que se assenta em características fundamentais: (a) a unidade, (b) a coerência e, (c) a completitude (BOBBIO, 1995, p. 197 e ss). Relativamente à unidade, fica claro que a distinção entre o jusnaturalismo e o positivismo está na ideia de ordenamento dinâmico, a significar a constante possibilidade de alteração do direito, pois o direito natural também continha a noção de ordenamento estático. E, ainda, funda-se o direito na mesma derivação – a norma fundamental. No aspecto da coerência, nega-se a existência, no direito, de antinomias, o que pode ser solucionado pela retirada do ordenamento de norma inválida ou pela integração pela via da interpretação. Aqui inicia, no neopositivismo, a exigência de rigor da linguagem.

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E, quanto à completitude, Bobbio refere tratar-se do “coração do coração”do positivismo jurídico (BOBBIO, 1995, p. 207). Mas a completitude relaciona-se às lacunas da lei, enfatizando que se trata de lacuna da lei, não do direito. Observando as teorias (a) do espaço jurídico vazio, que nega a existência de lacuna, pois aquilo que não esteja regulado é juridicamente irrelevante, e (b) da norma geral exclusiva, esta que, a seu turno, nega a existência de irrelevâncias jurídicas, pois aquilo que não é proibido é permitido (norma de clausura), e examinando as críticas, Bobbio conclui que o dogma da completitude é conexo ao da completabilidade do direito, pela interpretação, inclusive pela consideração da analogia e dos princípios gerais do direito. Podem-se acrescentar também os costumes e a jurisprudência. O momento atual insere no contexto teórico do pós-positivismo. Segundo Luís Roberto Barroso (2011, p. 269 e ss), o pós-positivismo seria uma terceira via entre o jusnaturalismo e o positivismo, já que se inspira na atualização da razão prática, na teoria da justiça e na legitimação democrática. Embora imprescinda do direito posto, vai além da legalidade estrita, procurando empreender uma leitura moral das leis e da Constituição, sem descer ao terreno da metafísica. Dá importância sobretudo à interpretação, ao reconhecimento da normatividade dos princípios e de sua diferença em relação às regras, reabilita a razão prática e a argumentação, formando uma nova hermenêutica, inclusive desenvolvendo a teoria dos direitos fundamentais conforme o primado da dignidade da pessoa humana.

6. Segurança pela via do direito - complexidade, risco e perigo Nesse espectro semântico dissolvido em séculos de história, cultura e de evolução da sociedade e do direito, percebe-se, claramente, a absoluta relevância que se atribui à noção de segurança, que está impregnada na razão humana, considerando que o homem é um ser gregário por natureza. A ideia de formação do Estado concebida por Thomas Hobbes, em Leviatã, seguida por Jean Jacques Rousseau, em Contrato Social, expõe a origem pela via da ficção da celebração de um contrato11 entre todos os cidadãos, com o fim de proteção e segurança. Importa salientar, então, essa busca da segurança, que resulta, no âmbito do direito, na busca pela regulação inteira da sociedade, como se a sociedade fosse um projeto jurídico, um projeto de regulação inteira. No momento histórico cultural do positivismo, essa busca de regulação inteira da sociedade estava plenamente clara e configurava uma pretensão, um ideal. Atualmente essa busca de regulação inteira da sociedade está desagregada nas fontes e segmentada pela via da especialização. Mas a pretensão persiste.

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Contudo, essa busca pela segurança, por meio da formação do Estado e por meio da legislação, esbarra na complexidade da sociedade e, especialmente, na velocidade das transformações sociais, no mundo contemporâneo. Por complexidade, Luhmann quer dizer a existência de inúmeras possibilidades, além das que podem ser realizadas. Antes havia complexidade simples, em que se poderia conectar todos os elementos, mas atualmente há complexidade complexa, que exige seletividade e impõe a contingência, no sentido de que há sempre o risco de que as possibilidades escolhidas acabem em desapontamento. Nesses termos, a segurança pretendida não é alcançada diante da complexidade, que impõe seleção entre várias possibilidades, e que acarreta o risco de a escolha feita acarretar o desapontamento. Desde 1986, quando editou a sua obra “Sociedade de Risco”, Ulrich Beck adverte para esse modelo/tipo de sociedade. No limiar dessa obra, destaca o autor que o Século XX – e ainda faltavam uma década e meia para iniciar o novo – não foi pobre em catástrofes. Houve duas guerras mundiais. Chernobyl é o símbolo dos riscos das usinas nucleares. O destaque que Ulrich Beck dá é de que não há mais proteção e de que não há possibilidade de segregar esse perigo, o que se fazia com a miséria. Seria, então, “o fim dos outros”, a eliminação da possibilidade do nosso distanciamento desse perigo (BECK, 2010, p. 07). Nesse contexto, a sociedade do risco, na dinâmica de ameaça que desencadeia, dissolve as fronteiras nacionais, federais e dos blocos econômicos. Expõe que as sociedades de classe são organizadas nos Estados Nacionais, mas a sociedade de risco somente pode ser organizada ou abarcada no marco da sociedade global. Desse modo, a utopia de uma sociedade global pode tornar-se “mais real, ou ao menos mais premente” (BECK, 2010, p. 57). Mas, fora do contexto da obra de Ulrich Beck, os fatos que deram base à sua teoria, continuam a confirmá-la. O terrorismo da explosão das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, significa um novo marco do terrorismo mundial: ninguém, nem as potências mundiais, têm segurança. E, há pouco mais de um ano, o terremoto no Japão, que causou o acidente nuclear de Fukushima, em março de 2011, é o novo símbolo do desastre e do risco nuclear do início do Século XXI. Desenvolvendo uma ótica diversa, Luhmann aborda o tema do risco. No princípio o homem enfrentava as incertezas com a adivinhação, evitando provocar os deuses ou outras forças sobrenaturais, assegurando acordos misteriosos com a ordem cósmica das coisas. O complexo semântico do pecado também servia para explicar muitas desgraças. O direito comercial marítimo teve o auxílio, na Idade Média, do seguro das embarcações e dos navegantes. Seguindo nessa observação e expondo algo mais aprofundado e refinado, Luhmann estabelece que há oposição

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entre risco e segurança e que é impossível obter segurança absoluta, pois sempre há algo imprevisto que pode ocorrer. Entretanto, o conceito de segurança, segundo este autor, segue sendo um conceito vazio. Daí, então, parte para outra forma, a de opor o risco ao perigo, distinguindo esses conceitos. Assim, se o possível dano decorre de uma decisão, trata-se de risco, risco da decisão adotada, mas se advém o dano de algo externo, por exemplo, do meio ambiente, deve-se falar de perigo (LUHMANN, 1991).

7. O imaginário geral do mito O mito da sociedade como um projeto jurídico se desvanece. Este mito teve como ponto de partida o jusnaturalismo, aprofundou-se com o positivismo e prosseguiu no neopositivismo, chegando, agora, no chamado pós-positivismo. Desde o jusnaturalismo havia a pretensão de haver um direito imutável existente desde sempre, de caráter divino, afinado com a noção de justiça: se não era justo, não era direito. A seu turno, o direito positivo, que seguiu o jusnaturalismo, na sua característica contrária de constante e frequente mutação do direito, que advém do ato de vontade dos homens, também tem o intento de inserir a sociedade numa regulação inteira, sem espaços lacunosos. O direito não tem lacuna, mas a lei tem e quando a lei tem lacuna, o vazio é preenchido pela interpretação do direito, por meio dos princípios gerais do direito, da analogia, do costume, da jurisprudência, na prestação jurisdicional. No neopositivismo a mudança é sensível, tentando encontrar um sistema rigoroso de linguagem que conduza à solução. Por fim, no pós-positivismo o sentido é o de incluir carga de valor na legislação e na exegese com vistas à elaboração da norma concreta. Esse mito, construído no imaginário geral da cidadania e dos operadores do direito, resulta na edição de extensa legislação que é constantemente alterada, com o fito de regular a sociedade. O parlamento funciona, ainda, como caixa de ressonância midiática, pois a mídia forma a opinião pública, que dita o que se deve e o que não se deve fazer, no ambiente até do que se costuma chamar de politicamente correto, ou seja, no ponto de vista estritamente da moral, dos usos e dos costumes, pela positivação da ética e, até, da própria etiqueta social. Antes havia a penalização do adultério, agora há projeto com o objetivo de penalizar certas discriminações sociais, como a homofobia e o chamado “bullying”. A simbologia dos cursos jurídicos indica que há segurança, porque há lei, porque há Constituição, que para tudo fornecem a solução. Desde o início, o graduando enfrenta uma rede curricular que indica um sistema jurídico coerente,

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completo e que, efetivamente, soluciona os conflitos e problemas e que, ainda, previne muitos outros. Os concursos jurídicos para cargos públicos, o exame de ordem, para a inscrição no cargo de advogado da Ordem dos Advogados do Brasil e outras provas, revelam a dogmática, forma que a sociedade conhece desde a era primitiva para reduzir a complexidade do mundo. A dogmática tem a função de simplificar o mundo e, com relação ao direito, simplificar a complexidade do direito. A dogmática é uma síntese, uma verdade produzida ao longo de inúmeras especulações sobre a solução. A dogmática é um consenso. A lei também é um dogma. A distinção entre o direito continental e o direito dos precedentes da common law, para os limites do presente artigo indica que, com relação aos precedentes, há um grau maior de incerteza. Embora haja uma diferença muito sutil, é acrescentada uma dificuldade a mostrar que nada é perfeito e que nada pode ser regulamentado por inteiro, estando a sociedade, na sua constante e veloz mudança, impermeável a esse ideal de regulamentação. O princípio da separação dos poderes, verdadeiro apanágio do Estado de Direito, que significa uma inigualável aquisição evolutiva do sistema político, nessa visão exposta serve também para possibilitar uma ideia de perfeição. A separação dos poderes, havendo o legislativo para legislar e o judiciário para julgar, em vez de significar uma tentativa de possibilitar soluções no nível político, serve também para a compreensão de que os âmbitos de ação funcionam de maneira perfeita, ou devem funcionar dessa maneira. Havendo uma lacuna, deve ser reformada a lei, ou deve ser editada outra e, dependendo da mídia, esta lei deverá ser editada com celeridade.

8. Conclusão A conclusão a que se chega é a de que, contrariamente a esse mito, a sociedade não pode ser inteiramente regulada e deve conviver com a incerteza, a insegurança e o risco. Isso não significa que não se deva aprimorar a legislação ou o sistema judiciário. Mas deve haver, na base de todo e qualquer esforço, a noção de incerteza. O acadêmico de direito deve saber, também, que o sistema não fornece todas as soluções e que algumas devem ser buscadas mediante severo empenho e esforço intelectual, sem que tenha êxito garantido. Duas últimas menções a Luhmann e a Habermas devem ser feitas neste fecho final. Luhmann, em um trecho da obra (LUHMANN, 1991) versando sobre a so-

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ciologia do risco expôs que um observador de primeira ordem poderia ter a ideia de que, embora a impossibilidade de haver decisões livres de risco, com maior investigação e maior conhecimento, seria possível chegar à segurança, superando todos os riscos. Entretanto, diz que a experiência prática ensina claramente que ocorre o contrário. Quanto mais racionalmente se calcule, e quanto mais completo seja o cálculo, um maior número de prevenções se apresentarão e com isso haverá maior incerteza quanto ao futuro e, em consequência, maior risco. Significativo o rigor da pesquisa de Luhmann, inclusive quando esclarece que não há um risco de morte, porque há certeza da morte, há segurança de que todos os homens morrerão. Há, sim, um risco de encurtamento do tempo de vida e quem considera a vida um bem supremo, faz bem em dizer pretender uma vida longa. Temos certeza da incerteza. Habermas destaca o problema crescente da colonização sistêmica do mundo da vida e adverte para a dinâmica expansão sistêmica e interventora, no sentido de patologia que se estabelece na sociedade moderna. “En principio, la burocratización que se produce cuando la ética queda sustituida por el derecho sólo es señal de que ha quedado la institucionalizacion de un medio de control” (HABERMAS, 2001, p. 451). Nessa perspectiva, os meios não verbais, dinheiro e poder, se introduzem no mundo da vida e acabam substituindo o a comunicação entre os sujeitos. As relações humanas se monetarizam e as decisões se burocratizam. A racionalidade é instrumental, no sentido de apenas contemplar os meios necessários para a consecução dos fins não justificáveis racionalmente. Opera-se uma restrição da autonomia pessoal e coletiva, mediante a introdução dos processos sistêmicos: dinheiro, poder e burocracia (VELASCO, 2003, p. 47-50). Portanto, na advertência de Habermas está a patologia caracterizada na “colonização sistêmica do mundo da vida”, como um processo dinâmico e interventor dos sistemas na sociedade. Na visão de Luhmann, esse processo evolutivo se dá pela necessidade de redução de complexidade, com a evolução do sistema, e consequente alteração da sua estrutura, de modo a continuar o desempenho da sua função. Mas, em Habermas, esse processo é patológico, pois, na direção inversa de Luhmann, caracteriza que a evolução da sociedade estimulada pelos homens, em vez de reduzirem a complexidade, acarretam uma notável perda de autonomia, no sentido de regulação de todos os atos e práticas sociais.12 Nesses termos, por uma ótica, a da sociologia do risco, cumpre conviver com a incerteza, e, pela outra, o prosseguimento dessa inversão, com o aprofundamento dos níveis burocráticos, a par de acarretar a perda de autonomia individual e coletiva, o resultado é uma espécie de efeito patológico, consistente na judicialização da

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política (ou noutro sentido – da politização da justiça), da juridicização da vida em todos os seus aspectos – o controle avança, a burocracia está à espreita, sem qualquer chance de êxito total.

Notas 1

Não se quer dizer com isso que o sistema da common law é melhor, nem que a doutrina da separação dos poderes é equivocada. Em sentido contrário, possivelmente o sistema continental, do direito escrito e posto por ato de vontade, seja melhor, mais previsível, bem como é indiscutível que a doutrina da separação dos poderes representa, verdadeiramente, um avanço inigualável na evolução do Estado. 2

Na verdade a pesquisa com este temário vem sendo desenvolvida há alguns anos, pois faz parte de nossas preocupações. O presente texto é uma das suas facetas, uma parte dos questionamentos. 3

E já se disse que caos não significa o nada, porque dali nada provém, mas que o caos significa, por exemplo, o ruído (noise), quando se fala de comunicação.

4

A expressão racionalidade aqui mencionada é vinculada a uma ideia de razão primitiva, uma razão explicativa, uma razão originalmente instrumental, no sentido de estabelecer mecanismos de organização social. 5

Seres gregários que evoluíram para comunidades gregárias.

6

Esse conceito de domínio territorial também significou uma importante evolução, uma vez que, no princípio, as comunidades eram nômades, não se apegavam a espaços. 7

O desenvolvimento destas considerações, em consideração a todas as leituras já realizadas da obra de Luhmann, partiu, inicialmente de Neves (2008).

8

Jusnaturalismo e positivismo são, efetivamente, os dois grandes ramos de desenvolvimento do direito. No livro “A proteção da privacidade” (RIBEIRO, 2003), expus a noção

de que Antígona também pretendia proteger a privacidade do irmão. 9

Como é próprio, aliás, no ambiente em que vigora o Jusnaturalismo.

10

O termo ‘observação’, aqui mencionado, não tem o sentido comum, mas, sim o de uma releitura, o de uma forma de ver com critério científico.

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É bom dizer que Luhmann diverge dessa noção original do Estado, assim como da sociedade e do próprio Direito, dizendo que não satisfaz, pois a mudança de paradigma

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deve partir da noção da diferença e de que o homem é o ambiente/entorno do sistema social. Assim, o homem não forma, pela sua união, a sociedade, que é constituída de comunicação. 12

Importa dizer que, a parte a controvérsia teórica, em inúmeros pontos são complementares.

Referências BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2011. BARZOTTO, Luiz Fernando. O positivismo contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999. BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. Madrid: Taurus, 2001. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidade Iberoamericana; Universidade de Guadalajara, 1991. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2008. RIBEIRO, Diógenes. Proteção da privacidade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1998. SCHWARTZ, Germano (Org.). Juridicização das esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. VELASCO, Juan Carlos. Para leer a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, 2003.

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Direitos e efetividade: a boa governança no sistema de justiça Jayme Weingartner Neto

1. Introdução A intenção do texto é partilhar uma visão que situa o Sistema de Justiça, núcleo essencial do próprio Estado democrático de direito – construção cultural do tipo finalístico que qualifica a República Federativa do Brasil, – diante do desafio de efetivar direitos e garantias da cidadania em sociedades plurais e complexas. O contexto, claramente, é o de um Estado Constitucional que busca efetivar direitos humanos e fundamentais, inclusive das minorias, em harmonia com o princípio político do governo da maioria. Tal quadro, é consabido, tem sofrido erosão, ao menos no que toca à soberania nacional como desenhada por Bodin ainda no século XVI, a partir do processo de globalização. Os riscos contemporâneos, internos e externos, são variados e insinuam que a democracia, de mera fachada, poderia tornar-se irrelevante, sendo o mais recente e eloquente o exemplo da Grécia, embretada entre a necessidade econômica da nova ordem financeira internacional e o bloqueio, pelos parceiros europeus (dentre os quais nações que, historicamente, fundam o discurso democrático), de um plebiscito que permitisse aos cidadãos gregos deliberar. Talvez outro mundo seja possível, em meio às turbulências globais – ou vários outros, quiçá. O sistema de justiça, na leitura sistemática que faço do quadro constitucional, é formado por vários atores e estruturado por normas de organização agrupadas principalmente nos Capítulos III e IV do Título IV da Constituição Federal, vale dizer, a partir da organização dos poderes, tendo o Poder Judiciário como primeiro protagonista (artigos 92 a 126) e, dentre as “funções essenciais à Justiça”, na precisa e feliz dicção constitucional, pelo Ministério Público (artigos 127 a 130-A), pela Advocacia Pública (artigos 131 e 132) e pela Advocacia e Defensoria Pública (artigos 133 a 135). Destaco, diante da delimitação temática escolhida, decisivo vetor introduzido pela chamada “Reforma do Judiciário” (Emenda Constitucional nº 45/2004), ao criar o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, bem como consagrar a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (artigos 103-B, 130-A e 5º, inciso LXXVIII,

respectivamente). O sistema de justiça, portanto, é a conjugação de um Poder do Estado e outras instituições que a Constituição reconhece como permanentes, essenciais, indispensáveis (à administração da justiça, à função jurisdicional do Estado), mas fora dos três poderes clássicos (estes já consagrados nos primeiros textos constitucionais do século XVIII). Animado, seja como for, por um propósito, conciliar os dois corações do Estado Constitucional, um delicado esforço de equilíbrio: a democracia, vale dizer, o primado da soberania popular; e o respeito à ordem jurídica, um apelo à concretização de princípios e direitos fundamentais, especialmente os sociais, difusos e coletivos. Percebe-se, senão o paradoxo, uma certa tensão. De um lado o governo da maioria, que legitima, diretamente, os Poderes Executivo e Legislativo. De outro, o Poder Judiciário, guardião do Estado Constitucional e que, muitas vezes, na defesa de direitos das minorias, precisa exercer-se de modo contra majoritário. Neste nicho, com dinâmica própria, para atender às demandas de sociedades plurais e complexas, o sistema de justiça, de múltiplas e crescentes tarefas. Ainda que brevemente, deve-se notar que não se pode mais esperar do juiz, de nenhum juiz, que seja a famosa “boca da lei”, na expressão imortalizada por Montesquieu quando se referia, no Espírito das Leis, ao poder técnico, o Judiciário, que estaria submetido ao protagonismo dos poderes políticos, em especial, no século XIX, do Legislativo, papel que gradativamente passou ao Executivo no breve século XX, no qual o Estado passou de Providência a Mínimo e a cidadania restou perplexa. Não, certamente o que se espera do Juiz, hoje, do magistrado do século XXI, é que seja um garantidor de direitos fundamentais, um concretizador de princípios constitucionais. No Estado Constitucional, é tudo isso, com todos os desafios teóricos e práticos correlacionados, que se precisa do Poder Judiciário, para reequilibrar os jogos de poder (WEINGARTNER NETO, 2010, p. 369-383). Uma segunda consideração se impõe, e pode parecer mais técnica, mas talvez seja ainda mais política que a primeira, em termos de futuro do Estado democrático de direito. Desde os finais da década de 80 do século passado, as Reformas do Judiciário estão na agenda política de diferentes governos. Uso a expressão no plural, pensando inclusive nos sistemas de justiça europeus e de common law. A crescente complexidade, a explosão de demandas, a judicialização da política e a politização da justiça, o conjunto dos vários fatores leva a crer que não é o caso de insistir com “mais do mesmo” (reformas processuais e mais infra-estrutura) – entretanto condições necessárias no Brasil, mas, antes, olha para outro horizonte, relacionado com a eficácia, a eficiência e a eficácia do sistema de justiça. Daí que vejo a oportunidade da inserção do sistema de justiça nos movimentos de boa go-

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vernança, que traduzo como gestão responsável dos assuntos do Estado, processos decisórios claros e transparentes e desenvolvimento sustentável centrado na pessoa humana e no primado do direito. No fundo, trata-se de superar o modelo do Estado burocrático, tão caro aos bacharéis, por um modelo gestionário de Administração Pública, que se pauta por resultados efetivos – e é no espaço das reformas que se medem as tensões entre os vários poderes do Estado. Certo que tais dinâmicas só serão legítimas na premissa da defesa dos valores constitucionais mais importantes para a cidadania, dentre os quais avultam a autonomia e a independência dos tribunais. Não menos claro que se devem discutir medidas e mecanismos de gestão e até de distribuição processual, o que toca diretamente no acesso ao direito e à justiça, talvez numa distribuição mais racional e igualitária das cargas de trabalho e garantias de imparcialidade e independência do sistema judicial. Há, hoje, certo consenso quanto aos déficits de organização, gestão e planejamento do sistema de justiça. A alternativa, então, concentra-se numa melhor e mais eficaz gestão de recursos humanos e materiais e dos processos. Em suma, se a burocracia do Estado liberal não dá conta dos anseios sociais por celeridade e eficiência nos serviços públicos, há que investir na profissionalização da gestão, na definição de indicadores de desempenho, focalizando resultados na perspectiva do impacto social e na prestação de contas, vale dizer, na transparência. Tal modelo gestionário orienta-se por alguns poucos princípios: liderança, motivação dos recursos humanos, desenvolvimento de uma cultura organizacional, comunicação e introdução de novas tecnologias. O esforço, via legítima e saudável pressão da cidadania, vai no sentido de desenvolver e consolidar um sistema de justiça orientado para a eficiência e a qualidade, com independência e imparcialidade judicial, garantia do processo justo, duração adequada dos processos, certeza e segurança jurídica, acesso à justiça, eficácia de desempenho. Apenas como exemplo, em 2006, a Comissão Européia para a Eficiência da Justiça publicou um compêndio de boas práticas de gestão do tempo nos processos judiciais, focalizando cinco pontos: estabelecer cronogramas realistas e mensuráveis para a realização dos atos processuais; assegurar a aplicação destes prazos fixados; monitorar e disseminar os dados; avaliar e responder ao volume processual e à carga de trabalho; promover políticas e práticas de gestão processual. Pesquisas empíricas realizadas têm demonstrado que o papel das lideranças é fator fundamental para o bom funcionamento da justiça. Somente líderes dinâmicos e pró-ativos são capazes de adotar perspectivas gestionárias na administração e gestão dos tribunais. Gostaria de ilustrar a recursividade do sistema de justiça, de resto caracte-

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rística dos sistemas complexos. O Ministério Público, por exemplo, tem uma história multissecular como agente de inovação. Desde que surgiu dentre “as gentes do Rei”, bem no início do século XIV, protagonizando um programa claramente modernizador, firmou-se como um sujeito unitário (princípio da unidade), mas marcadamente plural (independência funcional). O Ministério Público é hoje um agente político não tradicional, que se vai configurando, nos moldes atuais, a partir da segunda metade do século XX – no Brasil, mais precisamente, no final dos anos 70 e decorrer dos 80 do século passado, um período que se confunde, fácil perceber, com a própria redemocratização, fruto da pressão social sobre um Estado autoritário. No século XX, o Ministério Público vai se “modernizando” e consolida-se como “fiscal da lei” (leia-se: dos próprios juízes, que tinham que cumprir rigorosamente as leis votadas pelo Parlamento) e autor da ação penal, um órgão público que faria a acusação pública para garantir, em nome da sociedade burguesa, turbada pelos crimes cometidos, uma acusação oficial e obrigatória. De um só golpe, superava-se o medieval sistema inquisitório (ao garantir-se a imparcialidade do juiz) e incrementava-se o controle social sobre as classes perigosas, que teimavam, principalmente, em perpetrar crimes contra o patrimônio da sociedade burguesa. Pois bem, quando o Ministério Público brasileiro resolve, nacionalmente, priorizar, estrategicamente, o consenso como solução de conflitos, e a via extrajudicial, sempre que possível, parece que se trata de positiva contribuição, um caminho para sair de uma situação quase patológica de litigiosidade explodida, que se materializa em multiplicação exponencial de processos e demandas massificadas, num contencioso já na partida invencível mesmo a um Judiciário que se esforça para libertar-se das distorções burocráticas. Nesta quadra, os cidadãos brasileiros estão imersos nas questões de minorias, reconhecimento, diferença, identidade, direitos especiais. Há clara e forte demanda por saúde, educação e segurança pública, toda uma expectativa social de combate à corrupção e às organizações criminosas. O rol de competências e atribuições, de funções e instâncias, mormente num quadro naturalmente complexo em face da Federação, hoje é tão extenso e variado que é preciso fazer escolhas, eleger prioridades – o que redundará em gestão estratégica. Vejo o sistema de justiça, no atual sistema constitucional, com seu peculiar modo de ser, a conjuminar o tradicional Poder Judiciário com os outros atores, agente estatais (Ministério Público, Advocacia Pública, Defensoria Pública) ou particulares, com evidente função social (Advogados privados), todos provocadores, ativadores – inclusive, no limite, para manter a necessária inércia do Judiciário, que é garantia de imparcialidade e cláusula basilar do Estado de Direito. O sistema de

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justiça, assim, consegue inclusive agir na fronteira, entre o sistema político e o sistema jurídico, sensível à iniciativa popular, ao jogo das forças sociais, traduzindo valores comunitários para códigos políticos ou jurídicos mais formais. Neste contexto, abrem-se perspectivas de parceria com a sociedade civil, pautada pelo diálogo, um diálogo livre e inclusivo com todos os segmentos e movimentos sociais, na busca da emancipação da cidadania, que é outra forma concreta de dignidade e, no fundo, vetor de democracia participativa (aliás um direito fundamental de última geração como defende valorosamente Paulo Bonavides). Duas premissas, ainda: por um lado, convivemos num ambiente plural e cada vez mais complexo; por outro, o caldo cultural não esconde sentimentos e matizes intolerantes – proibições desproporcionais, discriminações, naturalização das injustiças, exacerbação do individualismo hedonista – a ponto de especialistas afirmarem que o maior desafio de nossos tempos, na área da educação, é o “aprender a conviver”. Noutra linha, é evidente a interdependência entre: direitos humanos, democracia, paz e desenvolvimento. O cenário adverso é pleno de ameaças: miséria e exclusão (o que toca nas minorias, nas migrações, o “apartheid social” de que fala Boaventura de Sousa Santos); discriminação e intolerância, alimentando os fundamentalismos e certo fascismo societal; terrorismo e, mais perto de nós, o crime organizado e a corrupção. Neste contexto, o Estado – e seus agentes políticos – só se legitima se estiver a serviço das pessoas, numa agenda precisa: respeitar, proteger e promover a dignidade das pessoas, os direitos humanos (inclusive de apelo internacional) e os direitos fundamentais (sistematizados na Constituição). Creio que a dignidade e tais direitos não são dádivas nem qualidades inerentes, antes fenômeno cultural, resultados de lutas e de um processo de atribuição de valor e reconhecimento recíproco regulado pelo direito e pela política. Mas como efetivar os direitos? Seguindo Bobbio, dotá-los de real impacto social? A implementação de condutas que demandam ações governamentais, em especial aquelas que necessitam de uma ação positiva estatal (combate à corrupção, proteção ao meio ambiente, direito à saúde, habitação, educação etc.) depende não apenas de política legislativa, mas de recursos orçamentários, estabelecimento de prioridades e congruência de esforços. Para tanto, a eficiência nas ações pode e deve ser elevada a um dos princípios fundamentais do atual Estado contemporâneo, considerando, inclusive a dicção do caput do artigo 37 da Constituição Federal. E como implementar a eficiência, ou melhor, como os órgãos públicos podem buscar a efetividade em suas ações, no contexto de suas atribuições? Como conjugar efetividade com escassez de recursos disponíveis (crise fiscal do Estado)? Como o sistema de justiça pode, dentro de suas competências e atribuições e consi-

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derando as restrições orçamentárias, atender de modo efetivo as demandas sociais existentes? Não basta a lei, já se aprendeu, tantas vezes é preciso políticas públicas para modificar situações precárias. Este método de trabalho, então, planejado, cooperativo, racional, com objetivos, é digno, por si, de ser perseguido. O sistema de justiça ancora-se bem neste patamar, engajado no paradigma de atuação por meio do planejamento e de gestão estratégica. Antes, porém, é de situar esta linha de força no contexto da Boa Governança.

2. A Boa Governança nas democracias plurais Boa Governança (Good Governance) é um conceito gerado nos anos 90, no âmbito da economia e da política do desenvolvimento, tendo correlação com o Consenso de Washington,1 hoje trabalhado por várias ciências, sendo aplicada tanto em empresas privadas como em órgãos públicos. O Acordo de Cotonou,2 em seu artigo 9º, define “Boa Governança” como sendo a “gestão transparente e responsável dos recursos humanos, naturais, econômicos e financeiros para efeitos de desenvolvimento equitativo e sustentável”. O próprio Fundo Monetário Internacional – FMI possui documentos sobre a temática da Boa Governança, dando conselhos sobre gestão, suporte financeiro e assistência técnica para seus 185 membros,3 a fim de que possam melhorar a eficiência e a credibilidade do setor público.4 Significa, numa compreensão normativa, segundo José Joaquim Gomes Canotilho “a condução responsável dos assuntos do Estado” (CANOTILHO, 2006, p. 327). Não só na direção do Governo/Executivo, mas também de outros poderes como o Legislativo, Judiciário, o Ministério Público e as Advocacias. Acentua-se, ademais, ainda segundo Canotilho, a interdependência internacional dos Estados, colocando questões de governo na agenda multilateral dos países e de regulações internacionais (CANOTILHO, 2006, p. 327). Além disso, o movimento recupera parte do New Public Management ou Nova Gestão Pública,5 na articulação de parcerias público-privadas, sem ênfase exclusiva da dimensão econômica.6 É relevante afirmar que a Boa Governança frutifica e tem terreno fértil em democracias plurais, pois seus valores e bases demandam uma abertura de comportamento dos governantes ao público e a exposição praticamente geral do funcionamento e da dinâmica do setor público, incluídos aí procedimentos legislativos, finanças públicas etc. A Boa Governança enfatiza questões com repercussões politicamente fortes, envolvendo (i) Governabilidade; (ii) Responsabilidade (Accountability); e (iii) legitimação. Se o ponto central é na sua gênese a capacidade do Estado em gerir

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seus problemas financeiros e administrar seus recursos, a Boa Governança toca, também, na essência do Estado, além do desenvolvimento sustentável, centrado na pessoa humana. Baseia-se, portanto, no respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, na democracia do Estado de Direito e no sistema de governo transparente e responsável (WEINGARTNER NETO e VIZZOTTO, 2011, p. 237-328). O grande desafio, partindo-se de tais premissas, é colocar o Princípio da Condução Responsável no centro dos assuntos do Estado, com o aprofundamento do contexto político, institucional e constitucional através da avaliação permanente do respeito pelos direitos humanos, dos princípios democráticos e do Estado de Direito (WEINGARTNER NETO e VIZZOTTO, 2011, p. 328-329). O Princípio da Condução Responsável prega a centralidade do princípio do desenvolvimento sustentável e equitativo que pressupõe uma gestão transparente e responsável dos recursos humanos, naturais, econômicos e financeiros. O Princípio da Condução Responsável prevê esquemas procedimentais e organizativos da boa governança, tais como (i) processos de decisão claros a nível de autoridades públicas; (ii) instituições transparentes e responsáveis; (iii) primado do direito na gestão dos recursos e (iv) reforço das capacidades no que diz respeito à elaboração e aplicação de medidas especificamente destinadas a prevenir e a combater a corrupção (WEINGARTNER NETO e VIZZOTTO, 2011, p. 329). Transparência e controle social, aliás, a par de programa constitucional, são diretrizes atualíssimas no direito positivo brasileiro, como se vê do artigo 3º da Lei nº 12.527/2011. O Estado capaz de assegurar a Boa Governança, conforme Canotilho, é aquele que segue o princípio da justa medida na condução do Estado, baseado em alguns princípios fundantes: (i) sustentabilidade; (ii) racionalização; (iii) eficiência; e (iv) avaliação (WEINGARTNER NETO e VIZZOTTO, 2011, p. 333). Esses princípios se aplicam a todo e qualquer órgão público; certamente, ao sistema de justiça. Como os vários protagonistas do sistema de justiça podem induzir este ethos pleiteado? Dentre outras possibilidades, (i) garantindo as regras do jogo, coibindo a concorrência desleal e induzindo a ética nos mercados; (ii) na promoção e concretização dos direitos fundamentais; (iii) ao rechaçar a corrupção; e (iv) ao tutelar o meio ambiente. Este último ponto, aliás, trata-se de prioridade de todos, verdadeira questão de sobrevivência e proteção para as gerações futuras, parafraseando a expressão utilizada por Jorge de Figueiredo Dias (2003, p. 1123).7 Além disso, os princípios da Boa Governança podem ser referenciais para o próprio governo dos plurais agentes do sistema de justiça, que, neste patamar contemporâneo de efetivação de direitos e demandas sociais cada vez mais complexas,

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aliado a um cenário de restrições orçamentárias, busca a gestão adequada dos seus recursos para o alcance da efetividade social almejada, num contexto de sustentabilidade e transparência. Neste intuito, o Poder Judiciário e o Ministério Público brasileiro têm implantado, principalmente ao longo da última década e instados desde 2005 pelos respectivos Conselhos Nacionais, ferramentas profissionais de administração como o planejamento e a gestão estratégica.

3. Ferramentas de efetividade: planejamento e gestão estratégica Mas seriam o planejamento e a gestão estratégica ferramentas que induzem a Boa Governança no âmbito das instituições públicas? Para responder tal questão devem-se abordar, sem esgotar, alguns conceitos e sua aplicabilidade para a gestão do sistema de justiça. Inicia-se com o planejamento.8 Planejamento é um processo contínuo e dinâmico que consiste em um conjunto de ações intencionais, integradas, coordenadas e orientadas para tornar realidade um objetivo futuro, de forma a possibilitar a tomada de decisões antecipadamente (SAMPAIO, s/d). Já o planejamento estratégico é um instrumento que tem por finalidade apoiar a formulação e formalização das estratégias de uma organização. Ou seja, por meio do planejamento estratégico, as organizações podem, sistematicamente, avaliar suas possibilidades futuras no longo prazo e realizar escolhas, estabelecendo onde querem chegar e qual caminho seguir. Assim, o planejamento estratégico não trata de decisões futuras, e sim do que há do futuro nas decisões do presente (DRUCKER, 1975, p. 135). Além de uma técnica, o planejamento, segundo Fabio Konder Comparato, é uma função política indispensável diante da complexidade do Estado contemporâneo (COMPARATO, 2006, p. 674),9 de modo que “não é preciso invocar o lugar-comum da ‘aceleração da História’ para perceber que um Estado que não sabe aonde vai, porque seus dirigentes são incapazes de enxergar o futuro, navega ao léu, e fica sujeito ao risco de naufrágio” (COMPARATO, 2006, p. 673). Neste contexto, uma instituição que pretende manter-se legítima pela sociedade – num cenário de contingenciamento de recursos e, paradoxalmente, de maior cobrança pelos cidadãos por resultados efetivos – necessita elencar prioridades na sua atuação, de modo a racionalizar a utilização dos recursos e concentrar os esforços naquilo que é mais relevante. Essa é a essência de se formular estratégias, escolher o que fazer e, principalmente, o que não fazer (PORTER, 2006, p. 37). Focando especificamente o sistema de justiça, a estratégia emerge a partir

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da seguinte questão fundamental: qual Justiça queremos no futuro, nos próximos cinco ou dez anos (ou mais)? É a partir deste processo de escolha (que deve ser conduzido das formas mais democráticas possíveis) que se estabelecem as bases para a construção de um futuro comum para as instituições. Apenas para ilustrar, no recente planejamento estratégico do Ministério Público brasileiro, elaborado a partir de iniciativa do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), esta grande escolha está expressa na visão de futuro estabelecida: “Instituição reconhecida como transformadora da realidade social e essencial à preservação da ordem jurídica e da democracia”.10 Em torno desta grande visão é que são definidos os objetivos a serem alcançados e as ações a serem realizadas. Desse modo, não restam dúvidas sobre a importância do planejamento estratégico como ferramenta que auxilia as organizações públicas a estabelecer prioridades, direcionar esforços e racionalizar o uso dos recursos disponíveis. Entretanto, de nada adianta planejar se as ações pretendidas não são efetivamente colocadas em prática. Ou, ainda, se, mesmo colocadas em prática, não gerarem os resultados esperados. Peter Drucker, um dos mais reconhecidos autores das ciências da Administração, já dizia, na década de 70, que “a não ser que objetivos sejam convertidos em ação eles não são realmente objetivos, são sonhos” (DRUKER, 1975, p. 128). Trata-se aqui do tão propalado problema da execução da estratégia, que é comum também em organizações privadas, conforme comprovado em pesquisa empírica (HERRERO FILHO, 2005, p. 23).11 Assim, apenas formular as estratégias não é suficiente, é preciso instituir um processo de gestão estratégica que garanta que as estratégias definidas sejam efetivamente implementadas. A gestão estratégica representa o conjunto de decisões e ações estratégicas que determinam o desempenho de uma organização a longo prazo e inclui, num ciclo contínuo e dinâmico, análise profunda dos ambientes interno e externo, formulação da estratégia, implementação da estratégia, avaliação e aprendizado (HUNGER e WHEELEN, 2002). O foco, portanto, desloca-se do planejamento para a execução, da formulação para a implementação da estratégia. O Balanced Scorecard (BSC), sistema criado por Kaplan e Norton (KAPLAN e NORTON, 1992, p. 71-78) nos anos 1990, tem sido a principal ferramenta de gestão estratégica adotada pelas organizações, tanto públicas como privadas, na última década. O BSC, método criado inicialmente para traduzir a missão e a estratégia das organizações num conjunto abrangente de medidas de desempenho, com vistas ao monitoramento da execução da estratégia (KAPLAN e NORTON, 1997), é atualmente um sistema abrangente de gestão da estratégia, contemplando: transformar a estratégia em termos operacionais, alinhar

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a organização à estratégia, transformar a estratégia em tarefa cotidiana de todos, converter a estratégia em processo contínuo e mobilizar para a mudança (KAPLAN e NORTON, 2000). O primeiro passo para a implementação do BSC é traduzir a estratégia da organização em objetivos, indicadores, metas e iniciativas, tudo claramente definido, considerando as quatro perspectivas do negócio (KAPLAN e NORTON, 2004).12 Também, deve ser construído o Mapa Estratégico, representação gráfica da estratégia de uma organização, que mostra, numa única página, como os objetivos se integram e combinam nas diferentes perspectivas para descrever a estratégia (KAPLAN e NORTON, 2004, p. 57). Trata-se de um verdadeiro guia para a ação, um instrumento que comunica a estratégia da instituição tanto interna, quanto externamente. Porém, este é apenas o começo para uma organização tornar-se efetivamente orientada para a estratégia. Para tanto, é fundamental que a estratégia esteja alicerçada por modelo de gestão que garanta o seu monitoramento, avaliação e aprendizado. O modelo de gestão – ou governança – contempla, dentre outros, a definição de papéis e responsabilidades na gestão estratégica, os critérios para avaliação do desempenho, o formato das reuniões de avaliação e tomada de decisão, bem como a forma de divulgação dos resultados. O salto qualitativo se dá realmente quando o processo de gestão estratégica começa a “rodar” na organização, pautando as decisões tomadas como forma de garantir a efetiva execução do que foi planejado ou a correção de rumos, caso necessário. É por este caminho que tem seguido a grande maioria das unidades e ramos do sistema de justiça brasileiro, elaborando planos, traduzindo-os no BSC, e buscando construir e consolidar mecanismos de governança que assegurem o alcance dos resultados almejados. Notadamente, o CNJ e o CNMP, mais recentemente, têm trabalhado de forma incansável na construção de uma agenda comum para a Justiça brasileira, a partir de cada interface, ao propor a união de esforços em torno dos consensos, sem interferir nas autonomias e peculiaridades de cada uma das instituições. Como primeiros benefícios da implantação de mecanismos de gestão estratégica no âmbito do sistema de justiça, é possível elencar: (i) a construção de uma agenda comum, proporcionando maior foco nas prioridades e sinergia de ações (racionalidade e eficiência); (ii) melhor controle das ações realizadas e dos seus resultados, promovendo a aprendizagem estratégica; (iii) criação de fóruns organizados para a avaliação da estratégia e tomada de decisões (processos de decisão mais claros); e, (iv) maior transparência das ações e resultados institucionais.

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Todavia, alguns pontos ainda precisam ser aprimorados, tais como: (i) estabelecer indicadores que meçam adequadamente a eficiência, a eficácia e a efetividade institucional; (ii) consolidar a cultura de gestão por projetos; (iii) modernizar a gestão de pessoas; (iv) aperfeiçoar os mecanismos de vinculação entre estratégia e orçamento; (v) alinhar os órgãos de execução à estratégia; e (vi) criar instrumentos que estimulem um maior controle social por parte da população. O caminho a ser percorrido ainda é longo e cheio de desafios, mas é também bastante promissor. De qualquer sorte, vale sinalar que a gestão estratégica, se bem implementada – e com a devida adaptação às características que compõem o ethos do sistema de justiça – torna-se efetiva ferramenta de concretização da Boa Governança, consoante ao princípio da justa medida na condução do Estado.

4. A justiça como virtude e a luta pós dignidade Hoje dizemos Justiça Social, ao que tudo indica remontando ao velho Aristóteles e sua Justiça Distributiva, de proporção geométrica. Sigo Michael Sandel, que tem debatido com seus alunos de Harvard “O que é fazer a coisa certa” (SANDEL, 2011). Não é, certamente, a maximização do bem estar, como defende o utilitarismo (Kant já demonstrou bem os limites dos seguidores de Bentham); nem pode ser só a liberdade de escolha – o mercado não é nosso fetiche (SANDEL, 2012) e mesmo escolhas hipotéticas que as pessoas racionais deveriam fazer com o véu de ignorância na posição original tendem a unificar, no contrato social que funda a modernidade ocidental, métricas que tendencialmente desconsideram as diferenças (e as preferências dos indivíduos nem sempre são inquestionáveis). Há outro caminho a explorar, a justiça como virtude, preocupação com o bem comum, mas será preciso debater o significado de uma “vida boa” no seio de uma cultura pública que convive com a divergência. Seja como for, fica a provocação: nem governos, nem tribunais, são “moralmente neutros”, num sentido filosófico mais rigoroso. Os valores do sistema de justiça, então, são os valores constitucionais concretizados nos plúrimos Mapas Estratégicos. Amartya Sen, Nobel da Economia em 1998, um dos inspiradores do Fórum Social Mundial e idealizador do IDH, escreveu um grande livro, “A ideia de justiça” (SEN, 2011), no qual se afasta da busca por uma essência da Justiça, descrê de arranjos institucionais “perfeitos” (uma utopia contratualista do direito iluminista). Em vez disso, orienta-se pelas “esperanças e necessidades das pessoas reais”, que coloca no centro do debate público – aliás, democracia, na sua visão ampliada, a par de exercício universal do voto secreto (um contributo ocidental), é vista como o

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“governo pelo debate” (com raízes milenares na tradição persa e indiana, por exemplo). O que importa, aqui e agora, é o programa de intervenção, também teórica, de Amartya: não a justiça modelar (ao estilo de Rawls), e sim ações para coibir as injustiças mais evidentes – as fomes coletivas, a discriminação de gênero, as lacunas de saúde pública e saneamento... É ou não um imaginário convocante suficiente para mobilizar na construção de alternativas? Não parece caber como uma luva na pauta da gestão estratégica? Quero, por fim, sublinhar o fator que deve mobilizar o sistema de justiça, tanto as instituições quanto seus agentes políticos e atores privados, todos comprometidos com a transformação social (aquela apontada pelo artigo 3º da Constituição Federal) e vocacionados a conciliar democracia com respeito à ordem jurídica. É quase um mantra, sua diretriz mais valorosa, seu contributo específico para a argumentação na esfera pública: promover a dignidade das pessoas (SARLET, 2011, p. 73).13 Partindo do que chama de três traços característicos do tempo presente (a “desconstrução” dos valores tradicionais, a impotência pública no bojo da globalização liberal e o “reencantamento” do mundo pelo surgimento de uma nova forma de vida amorosa e familiar), Luc Ferry postula o nascimento de um segundo humanismo, pós-kantiano e pós-nietzschiano, época em que as pessoas, tendencialmente, não aceitam mais morrer por Deus (embora os fundamentalismos), pela pátria ou pela revolução (em que pese o terrorismo). Nem o cosmos grego, nem o Deus monoteísta, nem o “cogito” e os direitos do humanismo republicano, o sentido de nossos dias funda-se na lógica do amor-paixão (do casal que se escolhe livremente), invade o espaço privado e transborda para a esfera pública: “Não é por acaso que agora exigimos que a política sirva primeiramente e antes de tudo não à glória da nação, muito menos à do império, mas ao desenvolvimento de nossa existência pessoal e à preparação da de nossos filhos, que sabemos estar indissoluvelmente ligada à dos outros” (FERRY, 2012, p. 18). Eis, enfim, o que a cidadania espera do sistema de justiça e de seus protagonistas: atitude contra as injustiças, mas sem retórica e promessas vazias; antes com intervenções planejadas e objetivas, cujos resultados podem e devem ser aferidos.

Notas 1

A expressão foi criada pelo economista americano John Willianson, que compilou,

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em 1989, em livro homônimo, um conjunto de medidas necessárias para que os países latino-americanos voltassem a crescer, considerando os péssimos resultados obtidos na década de 80. Dentre tais medidas, podem ser citadas a disciplina fiscal, a reforma tributária, a desregulamentação da economia, a liberalização das taxas de juros, taxas de câmbio competitivas, revisão das prioridades dos gastos públicos, maior abertura ao investimento estrangeiro direto e fortalecimento do direito à propriedade (WILLIANSON, 1989). Recentemente, Willianson e o ex-ministro da Fazenda do Peru, Pedro Paulo Kuczynski, revisaram o Consenso de Washington (WILLIANSON e KUCZYNSKI, 2002). 2

O Acordo de Cotonou é um acordo de cooperação comercial, técnico-financeira e diálogo político entre a União Europeia e os países ACP. Assinado a 23 de Junho de 2000 em Cotonou, Benin, o acordo regulamentará a relação ACP-UE pelo menos até 2020. Afeta mais de 100 estados: os 27 Estados-membros da UE e os 77 países ACP, que é uma associação que congrega países da África, Caribe e Pacífico formada para coordenar atividades. O acordo sucede a Convenção de Lomé. Dados atualizados encontram-se no site do International Monetary Fund, acessível em . 3

4

O FMI, agindo como um determinador de vetores de gestão pública responsável, desenvolveu dois “códigos de transparência”: o Code of good practices in fiscal transparency e o Code of good practice on transparency in monetary and financial policies. O primeiro, elaborado para encorajar um debate público sobre o modo e os resultados de uma política fiscal objetiva, de modo central, o fomento à constituição de governos mais confiáveis. O segundo tem função similar na área da política monetária e financeira, com objetivo final idêntico. O FMI também tem um sistema, direcionado a seus membros, com o objetivo de aumentar a transparência, a qualidade e a atualidade de dados, denominado Special Data Dissemination Standard (SDDS). Documentos acessíveis em . 5

Para um panorama sobre o movimento nacional de Reforma da Gestão Pública de 1995, ocorrido quando da gestão de Bresser Pereira no Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, veja-se Nassuno e Kamada (2002). 6

Para uma exploração mais acurada sobre o Ministério Público no contexto do direito e da economia, vide Weingertner Neto e Vizzotto (2011). O presente texto subsidia-se de parte daquela pesquisa. 7

O autor português alega que atualmente assistimos ao surgimento de uma nova forma de sociedade, trazendo à tona novos e grandes riscos globais, em especial: “(...) o risco atômico, a diminuição da cama da de ozônio e o aquecimento global, a destruição dos

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ecossistemas, a engenharia e a manipulação genéticas, a produção maciça de produtos perigosos ou defeituosos, a criminalidade organizada (...), terrorismo nacional, regional e internacional, genocídio, os crimes contra a paz e a humanidade” (DIAS, 2003, p. 1123). 8

Esse item é resultado direto de pesquisa e competente assessoria de Juliana Rodrigues Marques, Assessora-Administradora MPRS, coordenadora da Unidade de Gestão Estratégica do Gabinete de Articulação e Gestão Integrada, a quem publicamente agradeço. 9

Na visão do autor a função política de previsão e planejamento é tão importante que deveria contemplar um poder de Estado independente: “É indispensável, pois, criar um órgão de planejamento independente dos demais, encarregado com exclusividade de direcionar a ação dos poderes públicos e de toda a sociedade, no rumo do pleno desenvolvimento. A ele, e só a ele, incumbirá a elaboração dos planos e orçamentos-programas de políticas públicas, os quais serão aprovados pelo Legislativo e aplicados pelo Executivo”. 10

Visão de futuro estabelecida no Mapa Estratégico do Ministério Público Brasileiro 2011-2015, acessível em .

11

De acordo com pesquisa realizada em 1999 pela a Revista Fortune, somente 10% das organizações são bem-sucedidas na implementação de suas estratégias, pelos mais diversos motivos: dificuldade de entendimento da estratégia pelos integrantes da organização, a falta de incentivos aos colaboradores relacionados à execução da estratégia, o pouco tempo que os líderes dedicam-se à discussão da estratégia e a falta de vinculação do orçamento à estratégia. 12

Financeira, Clientes, Processos Internos, Aprendizado e Crescimento. Kaplan e Norton consideram que qualquer organização, seja pública ou privada, avalia sua estratégia com base nestas quatro perspectivas fundamentais. A diferença, para os autores, é que as organizações privadas têm seus principais resultados aferidos na perspectiva “financeira”, já que visam ao lucro, e as organizações públicas na perspectiva dos clientes – “cidadãos em geral e usuários dos serviços públicos”, já que sua finalidade é social. 13

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover e sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria

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existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

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311

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A construção de garantias para o direito de acesso Sérgio Urquhart de Cademartori Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori

1. Introdução O segredo como prática de dominação política, ou como instrumento de poder,1 acompanha a trajetória histórica do Estado. Corporificada hoje na noção de “segredos de Estado”, a ação do governo que se oculta ocultando suas práticas, encontra-se presente nas reflexões de quase todos aqueles que erigem a política como campo privilegiado de estudo. De fato, desde o nascedouro daquela instituição conhecida como “forma-Estado”, atravessada por um lento processo de laicização do poder a partir da Baixa Idade Média Ocidental e a subsequente consolidação de governos absolutistas, se encontram práticas secretas dos governantes no centro dos processos de tomada de decisão a respeito do destino de seus subordinados. Neste ensaio, busca-se analisar o percurso que o tema teve através do pensamento de alguns autores do campo político-jurídico, a fim de enquadrá-lo, em momento posterior, no Estado Democrático de Direito, tentando verificar de que forma o segredo imbrica-se ou encontra guarida em suas instituições, práticas e valores e as possibilidades de sua sobrevivência em um regime democrático, seja através de legislações restritivas do acesso a ações e documentos, seja esclarecendo as práticas secretas do Estado que podem apresentar-se como benéficas. Por último, debruça-se o ensaio de forma meramente aproximativa sobre a nova Lei brasileira de acesso às informações governamentais, enfatizando o avanço que a mesma representa na conquista da transparência administrativa. Assim, parte-se do pressuposto de que a transparência do agir estatal – corporificada no princípio/dever de publicidade da administração, reflexo do direito fundamental de acesso das pessoas às informações pessoais e de interesse público – apresenta-se como elemento indispensável à democracia enquanto prática governamental cotidiana. Portanto, trata-se de analisar a tensão entre segredo e Estado de Direito, enfocando ao final a trajetória normativa que o direito fundamental de acesso percorre em nosso ordenamento democrático. Com essa finalidade, por “segredos de Estado” entender-se-á aqui todo co-

nhecimento, informação ou ação que, por ter em vista a manutenção da dominação, é destinada pelos detentores do poder do Estado a manter-se oculta do público. De outro lado, na esteira das definições de Bobbio e Ferrajoli (FERRAJOLI, 1995), entender-se-á por “Estado de Direito” a estrutura jurídico-política de dominação marcada por duas características básicas, sem as quais, independentemente das variações que tal artifício possa adotar, não se poderá falar em Estado de Direito: a) de um lado, trata-se de um poder que age per leges, isto é, um governo que manifesta sua vontade através de normas gerais e abstratas (isto perfaz o aspecto formal do Estado de Direito); b) de outro lado, este é um poder sub lege, é dizer, submetido ao direito em dois sentidos: b1) em sentido fraco, lato ou formal, significa que nele todo poder é conferido ou atribuído pelo direito; e b2) em sentido estrito, forte ou substancial, significa que ali todo poder é limitado pelo direito.

2. A dicotomia segredo/transparência na tradição do pensamento político Na primeira proposta de um governo ideal imaginada no marco da cultura ocidental, Platão postula uma razão própria do governante, que é quem deve manter suas motivações ocultas do povo, já que somente ele sabe, da altura de sua posição de rei-filósofo esclarecido pela verdade, qual é o interesse da pólis.2 O rei-filósofo de Platão é um protetor da pólis. É o único que, graças aos conhecimentos da filosofia, consegue ver a verdade (em seu sentido grego, como aletéia, isto é, como desvelamento, desocultamento daquilo que está escondido na natureza) da finalidade da pólis. O povo, mantido na minoridade, só pode ver de forma parcial. O modelo platônico de Constituição da pólis pressupõe a existência de um soberano autocrático que, munido do conhecimento que lhe proporciona a filosofia, cria estruturas de dominação com uma realidade inacessível à sociedade mantida em situação de minoridade, isto é, impedida de fazer uso público da própria razão. E isto porque, dentro do modelo da República ideal, as diversas classes (artesãos, guerreiros e lavradores) somente podem ter em vista seus interesses particularistas, mantendo-se carentes de uma reflexão universal sobre a pólis. É nesse contexto que deve ser vista a alusão à mentira na citação precedente. E a mentira implica manter secretos os desígnios do governante, no “interesse da sociedade”. É o governo que, ao enganar (mostrando o que não é), oculta-se (não mostra o que é).3

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O rei-filósofo, detentor da verdade, é único, já que “a própria noção de uma ‘nação de filósofos’ teria sido uma contradição em termos para Platão, cuja inteira Filosofia Política, inclusive seus traços expressamente tirânicos, assenta-se sobre a convicção de que a verdade não pode ser obtida nem comunicada entre a massa” (ARENDT, 1972, p. 292). E isso decorre da própria noção platônica de acessibilidade à verdade, explicitada na alegoria da caverna. Eis aqui um conflito importante entre a ética e a política, proposto por um filósofo que, paradoxalmente, é o grande amante da verdade. Se, em Platão, trata-se de um modelo ideal de governo, o qual nunca foi implementado – e, quando tentado em Siracusa, redundou em retumbante fracasso – a história de Roma, por sua vez, oferece riquíssimo material para reflexões sobre os segredos de Estado formuladas por escritores políticos posteriores. Clapmar, referindo-se “[...] a la expresión arcana imperii que emplea Tácito en los Anales (1.2.) para caracterizar la política astuta de Tiberio [...]” estabelecerá toda uma tipologia dos segredos de Estado (CLAPMAR apud SCHMITT, 1968, p. 45). De seu lado, é na história de Roma que Maquiavel (1987) vai buscar o modelo explicativo e comparativo com sua época para estabelecer padrões de dominação que repute válidos a-historicamente. Assim, pois, a história de Roma, rica em conjuras e conspirações, vai servir de fonte para toda uma tradição teórica a respeito da dominação secreta, em que não se descuida das conspirações contra o poder, já que “[...] poder invisível e contrapoder invisível são, em verdade, duas faces da mesma moeda”. Em contrapartida, entre os pensadores políticos romanos não são encontrados grandes teóricos do tema (LAFER, 1988, p. 256). Já a Baixa Idade Média foi um momento muito profícuo para o lançamento das bases teórico-doutrinárias a respeito do assunto dos segredos de Estado. Segundo Kantorowicz La expresión Secretos de Estados como concepto del absolutismo tiene un fondo medieval. Es un tardío brote de aquel hibridismo secular-espiritual que, como resultado de las infinitas relaciones entre Iglesia y Estado, puede hallarse en cada uno de los siglos de la Edad Media (KANTOROWICZ, 1955, p. 55).

O recorte dado pelo autor ao tema propõe a correlação entre a doutrina eclesiástica medieval e o absolutismo precipuamente considerado; contudo essa doutrina encontra-se até hoje fortemente arraigada entre muitos teóricos do Estado contemporâneo. As razões pelas quais esta concepção de segredo de Estado acabou permeando as relações seculares de dominação, foram, dentre outras, que a laiciza-

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ção do poder se estruturou a partir da usurpação das funções pontificais do papa e do bispo.4 Mas, ao fazê-lo o aspecto simbólico do poder real como algo divino, passou a permear o discurso legitimatório da nova dominação. Convém não esquecer que os apelos de legitimação – entendida esta como criação de motivos de justificação interior da dominação, de acordo com Weber (1984) – do poder real faziam-se por remissão à esfera religiosa, naquele especial mecanismo de poder que se convencionou chamar de “monarquia de direito divino”. Esclarece Kantorowicz: El ‘pontificalismo’ real, pues, parece descansar en la creencia legalmente establecida de que el gobierno es un mysterium administrado sólo por el alto sacerdote real y sus indiscutibles funcionarios, y que todas las acciones realizadas en nombre de esos ‘secretos de Estado’ son válidas ipso facto o ex opere operato, prescindiendo incluso del valor personal del rey y de sus seguidores (KANTOROWICZ, 1955, p. 73).

Pelo que se vê, ocorre um mais ou menos longo processo de simbiose entre Igreja e Estado (talvez o termo mais apropriado fosse “troca de papéis”), que vai desembocar nos Estados absolutistas, os quais vão apresentando progressivamente traços de racionalidade e eficiência,5 frutos da árdua tarefa dos burocratas iniciados no direito romano.6 Assim, o segredo de Estado passa a fazer parte da prática política do nascente Estado moderno. Nesta fase da história, faz-se presente a figura de um arguto pensador florentino, cujo pensamento acompanha a formação do Estado nascente: trata-se de Nicolau Maquiavel (BOBBIO, 1985, p. 22). Este dedica o sexto capítulo do Livro III de seus Discorsi7 ao tema da conjura, já que por meio desta “[...] han perdido la vida y el estado más príncipes que en la guerra abierta” (MAQUIAVELO, 1987, p. 302). A conjura constitui-se num contra-poder invisível que deve ser combatido também de forma astuciosa e, sobretudo, secreta.8

3. Segredos de Estado, opinião pública e democracia Pelo que se vê, parece inescapável ao governante, sob algumas circunstâncias, apelar aos arcana para manter-se no poder. Mas ter como rotina tal prática, mesmo para subjugar movimentos sediciosos, pode acarretar efeitos perversos, caso se adote princípios mais consentâneos com uma Democracia.9 Pelo menos na leitura de outro filósofo político um pouco posterior a Maquiavel, quem coloca em termos lógica e eticamente irrefutáveis como negativa a adoção da prática da ação secreta. Trata-se de Baruch Espinosa, que em sua obra póstuma, ao propor um Estado ideal

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sem os vícios que percebia nos principados de então, coloca a dicotomia segredo/ transparência sob a luz de uma ponderação entre a utilidade do segredo para o Estado e a liberdade dos indivíduos.10 Outro não é o pensamento de Jeremy Bentham quando, em 1776, ao discorrer sobre as diferenças entre um governo livre e um despótico, salienta, dentre outras condicionantes, a de que no governo livre exista um “[...] derecho concedido a los súbditos para examinar y analisar públicamente los fundamentos que asisten a todo acto de poder ejercido sobre ellos”. E mais adiante: “[...] la proposición de que la legislatura tiene el deber de hacer accesible el conocimiento de su voluntad al pueblo es algo que estoy dispuesto a subscribir sin reservas” (BENTHAM, 1973, p. 114 e p. 130). A preocupação benthamiana com a transparência das ações estatais e de seus fundamentos é coetânea ao surgimento de um fenômeno chamado de “opinião pública”. Termo de difícil conceituação, dele diz Bonavides que não tem uma definição precisa: dependendo do autor, ela seria a opinião de todo o povo, ou apenas da classe dominante, ou ainda das classes instruídas. Este entendimento encontra raízes em Jellinek, quando este afirma que em grandes linhas a opinião pública é “o ponto de vista da sociedade sobre assuntos de natureza política e social” (JELLINEK apud BONAVIDES, 1986, p. 564-567). Nicola Matteucci lembra o vínculo entre opinião pública e formação do Estado moderno, eis que ocorre ali o monopólio do poder e da esfera pública, com a privação da sociedade corporativa da política, relegando o indivíduo à esfera privada da moral. Historicamente, porém, o conceito teve uma trajetória errática. Se para Hobbes a opinião pública tem uma conotação negativa, por introduzir no Estado absolutista o germe da corrupção e da anarquia, para Locke a “lei da opinião é uma verdadeira lei filosófica, servindo para julgar a virtude ou vício das ações”. De acordo com Rousseau, opinião pública é a “verdadeira constituição do Estado”. Kant, respondendo à pergunta “Que é o Iluminismo?”, diz que consiste em fazer uso público da própria razão em todos os campos; é o uso que dela se faz como membro da comunidade e dirigindo-se a ela. Este uso público tem dois destinatários. Por um lado, se dirige ao povo, para que se torne cada vez mais capaz de liberdade de agir; por outro, se dirige ao soberano, o Estado absoluto, para mostrar-lhe que é vantajoso tratar o homem não como a uma “máquina”, mas segundo a dignidade.11 Já em Hegel, a opinião pública fica situada no mesmo patamar que a sociedade civil, sem o vezo da universalidade, em face da desorganização desta última. Assim a “opinião pública”, para Hegel, é a manifestação dos juízos, opiniões e pareceres dos indivíduos acerca de seus interesses comuns.

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Para Marx, a opinião pública é falsa consciência, ideologia, pois uma sociedade dividida em classes, mascara os interesses da classe burguesa: o público não é o povo, a sociedade burguesa não é a sociedade geral, o burgeois não é o citoyen, o público dos particulares não é a razão. Como visto, para entender quais eram originalmente as funções da opinião pública, deve-se examinar como se dá o nascimento do Estado moderno. Com o desmantelamento da sociedade feudal, a qual era imediatamente política (cada estado se autor-regulamentava, o senhor feudal era detentor do poder econômico e político simultaneamente, não havia um órgão que detivesse o monopólio da violência legítima etc.) surge o Estado moderno, surgimento este que se dá sob o signo da separação da esfera política – o aparelho estatal – da esfera privada dos cidadãos (o conjunto das relações sociais entre proprietários privados). Mas esta esfera privada acaba desenvolvendo uma dimensão “pública” à medida em que começam a surgir algumas instituições – jornais, salões de conferência, assembleias de cidadãos, cafés, etc. – que irão erigir-se em lugares de discussão e polarização das correntes de opinião presentes na sociedade burguesa. Com isso, “[...] a esfera pública política [...] intermedia, através da opinião pública, o Estado e as necessidades da sociedade” (HABERMAS, 1984, p. 96 e p. 46). A opinião pública advém assim como instância política central nas relações entre as esferas política e privada sob o Estado moderno. É através dela que a burguesia tenta impor limites à atuação da autoridade, ao tempo em que combate o segredo como característica da atuação estatal, pois quer submeter essa última à luz da razão ilustrada. Ora, a própria função da opinião pública neste período corresponde à realização, no campo social, do ideal da Ilustração. Esta, por sua vez, corporifica a pretensão iluminista que apresenta, no campo político, a intenção precípua de desvendar os segredos do soberano, assim como no campo da ciência, quer descortinar os segredos da natureza (ADORNO e HORKHEIMER, 1985). De fato, o Iluminismo é uma tendência duradoura, caracterizada por uma atitude racional e crítica, que tem como função o combate ao mito e ao poder, e que Aplicada ao homem e às instituições humanas, [...] significa que não há mais zonas de sombras no mundo social e político. [...] Não há mais interditos, espaços extraterritoriais protegidos pelo privilégio da invisibilidade [...] Não há mais investigações proibidas [...] (ROUANET, 1988, p. 125 e p. 129).

A função desse movimento filosófico tem a intenção política evidente de desnudar as relações de poder no Estado Absolutista e semifeudal.12

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Mas se de um lado as relações entre o império da opinião pública e a luta pela Democracia não são prima facie evidentes nesse período histórico, é certo que algumas das mais importantes liberdades democráticas surgem a partir das reivindicações da Ilustração.13 Assim, as máximas de Espinosa e Bentham a respeito da transparência na relação senhor-súdito serão elevadas a máximas de direito público sob a pena de Kant, em seu “Apêndice” à “Paz Perpétua”. De fato, o filósofo, ao discorrer sobre o desacordo entre a moral e a política procura estabelecer máximas de ação que conciliem as duas áreas, encontrando em uma proposição básica essa conciliação. Nominada por ele de “fórmula transcendental do direito público”, tem essa proposição o seguinte enunciado: “Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não se conciliar com a publicidade são injustas”. E explica a seguir: Este princípio não tem de ser considerado simplesmente como ético (pertencente à doutrina da virtude), mas também como jurídico (concernente ao direito dos homens). Pois uma máxima que eu não posso deixar tornar-se pública sem ao mesmo tempo frustrar minha própria intenção que tem de ser ocultada se ela deve ter êxito e para a qual não posso me declarar publicamente sem que por isso seja levantada indefectivelmente a resistência de todos contra meu propósito, não pode vir esse contra-trabalho necessário e universal, por conseguinte inteligível a priori, de todos contra mim de nenhum outro lugar a não ser da injustiça com que ela ameaça a todos (KANT, 1989, p. 73).

Adiante, é ainda na publicidade que o escritor alemão vai encontrar o ponto de conjunção entre o direito público e a política.14 Vê-se assim como é importante no pensamento kantiano o problema da publicidade: torna-se ela o ponto de imbricação entre moral, direito público e política. Pois, se é possível estabelecer-se fundamentação moral para as ações relativas ao direito público (“direito de outros homens”) como quer Kant, isso somente torna-se viável na esfera da publicidade, dado que o que é “público” (não privado) somente pode ser exercido em “público” (não secreto).

4. A razão de Estado, o “segredo do cargo” e a democracia Já no século XX encontramos em Carl Schmitt (1968) uma aguda análise do segredo de Estado a partir de seus fundamentos teórico-políticos. Diz ele que a partir do esgotamento da visão teológica e patriarcalista do nascimento do reino dos

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homens, no século XV, a política passou a desenvolver-se como ciência, sendo que o conceito básico dessa nova ciência é a Razão de Estado.15 Num grau ainda mais elevado que o conceito de Razão de Estado, encontra-se na literatura surgida nesse período, o conceito de arcanum político; sendo que “[...] el concepto de arcanum político y diplomático, incluso allí donde significa secretos de Estado, no tiene ni más ni menos de místico que el concepto moderno de secreto industrial y secreto comercial [...]”. Consequentemente, isso “[...] demuestra el simple sentido técnico del arcanum: es un secreto de fabricación” (SCHMITT, 1968, p. 45 e ss). Transcrevendo a análise de Arnold Clapmar (1574-1604), Schmitt assevera ainda que cada ciência tem seus arcana e todas utilizam certos ardis para atingir seus fins, embora no Estado sempre sejam necessárias certas manifestações de liberdade para tranquilizar o povo (simulacra, instituições decorativas) ; é assim que os arcana reipublicae são as verdadeiras forças propulsoras internas do Estado (o que move a história universal não são quaisquer forças econômicas ou sociais, mas “[...] el cálculo del Príncipe y su Consejo secreto de Estado, el plan bien meditado de los gobernantes, que tratan de mantenerse a si mismos y al Estado, [...]”). Já dentro dos arcana, é de se distinguir os arcana dominationis, pois se os arcana imperii referem-se às diversas técnicas para manter o povo tranquilo (uma certa participação nas instituições políticas, liberdade de imprensa, de manifestações etc.), os arcana dominationis referem-se à proteção e defesa das pessoas que exercem a dominação durante acontecimentos extraordinários, rebeliões e revoluções, e os meios empregados para sair-se bem nessas circunstâncias. Finalmente, os arcana são “[...] planes y prácticas secretos, con cuya ayuda son mantenidos los jura imperii”, sendo estes por sua vez diferentes direitos de soberania especialmente o direito de promulgar leis (SCHMITT, 1968, p. 45-49). O segredo de Estado é tratado por Schmitt como um conhecimento científico inacessível a não iniciados, tendo em vista a manutenção do status quo. De outra parte, pela transcrição que ele faz das teorias de Clapmar, nota-se que o que está subjacente a esta doutrina é uma visão conspiratória da História (a História é feita por poucos privilegiados: o Príncipe e seus conselheiros é que fazem a História, não as forças sociais). E mais ainda, a praxis de governar é vista aí como ciência, atualizando à risca tradição surgida com Maquiavel. De seu lado, Max Weber (1984), ao analisar a “sociologia da dominação”, abre um parágrafo específico para referir-se à dominação através da “organização”, esta tida por ele como a estrutura social permanente para fins de governo. Este tipo de dominação está embasado na “vantagem do pequeno número [...] es decir, en la posibilidad que tienen los miembros de la minoría dominante de ponerse rápida-

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mente de acuerdo y de crear y dirigir sistemáticamente una acción societaria racionalmente ordenada a la conservación de su posición dirigente” (WEBER, 1984, p. 704). E o valor dessa vantagem repousa justamente na possibilidade da manutenção do segredo.16 Assim, no centro deste moderno tipo de dominação encontra-se o mecanismo do segredo, da ocultação. O segredo, conforme Weber, constitui-se em importante mecanismo de poder no cerne de qualquer estrutura burocrática. Observe-se, a respeito, a seguinte passagem: Toda burocracia procura incrementar esta superioridad del saber profesional por medio del secreto de sus conocimientos e intenciones. El gobierno burocrático es, por su misma tendencia, un gobierno que excluye la publicidad. La burocracia oculta en la medida de lo posible su saber y su actividad frente a la crítica (WEBER, 1984, p. 744).17

Para Norberto Bobbio, o segredo de Estado constitui-se num dos principais obstáculos à implementação de uma Democracia plena. Parte ele da ideia de que atualmente o Estado apresenta aspectos de representatividade ampliada que superam a concepção original do Estado representativo clássico, moldado na ideia britânica da existência de um parlamento que corporificaria os interesses da sociedade.18 Assim, o segredo é característica importante daquilo que Bobbio considera como “Estado administrativo”, que é o conjunto de aparelhos administrativos centralizados e centralizadores. O autor concorda com a afirmação que a Democracia é o governo do poder visível. E ainda, que a Democracia é o governo do poder público em público, já que a palavra “público” pode assumir dois significados: não-privado e não-secreto (BOBBIO, 1986a, p. 83-84). A visibilidade como inerente ao regime democrático vem da reunião dos cidadãos atenienses congregados na ágora ou na eclesia, onde todos os problemas inerentes à cidade eram debatidos à luz do dia (BOBBIO, 1986a, p. 84). Como prova da sobrevivência da ideia da publicidade enquanto constitutiva do regime democrático, traz Bobbio à colação uma passagem de Michele Natale, bispo de Vico, ao tempo da Revolução Francesa: Não existe nada de secreto no regime democrático? Todas as operações dos governantes devem ser reconhecidas pelo povo soberano exceto algumas medidas de segurança pública, que ele deve conhecer apenas quando cessar o perigo (NATALE apud BOBBIO, 1986a, p. 86).19

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Não é apenas o Estado Constitucional ou o Estado de direito que deve ter a publicidade como regra, mas muito mais o Estado Democrático de Direito, pois este é definido por ele como “[...] o governo direto do povo ou controlado pelo povo (e como poderia ser controlado se mantivesse escondido?)” (BOBBIO, 1986a, p. 87). Desta forma, o autor acrescenta mais uma característica à sua definição procedimental de Democracia, a qual contempla a resposta à pergunta: quem controla o poder? A publicidade entra aí como elemento fundamental para possibilitar este controle pelo povo e seus representantes. A publicidade é fundamental para estabelecer distinção entre o regime absolutista e o constitucional “[...] e, assim, para assimilar o nascimento ou renascimento do poder público em público” (BOBBIO, 1986a, p. 87). E na atualidade a publicidade torna-se imperiosa eis que o controle dos súditos por parte do Estado se faz mais total a cada dia.20 E é por isso que o autor destaca o poder invisível, junto à privatização do público e à ingovernabilidade, como os três aspectos notórios da crise da Democracia (BOBBIO, 1985, p. 05-25). Em outra obra (BOBBIO, 1988), ainda, redefinindo a sua noção de Democracia como sendo idealmente “[...] o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle da opinião pública”, revela os mecanismos que o poder autocrático (e, como referido acima, também o Estado administrativo) se utiliza para escapar ao olhar da opinião pública: ocultando-se e ocultando.21 No mesmo ensaio, ao estabelecer uma tipologia das formas de poder invisível, Bobbio resume-as em três: um poder invisível dirigido contra o Estado (máfias, grupos terroristas, etc.); um segundo tipo de poder invisível que age à sombra do Estado (associações secretas como a Loja Maçônica P-2, por exemplo); e [...] finalmente, o poder invisível como instituição do Estado: os serviços secretos, cuja degeneração pode dar vida a uma verdadeira forma de governo oculto. Que todos os Estados tenham seus serviços secretos é um mal, diz-se, necessário. Ninguém ousa pôr em dúvida a compatibilidade do Estado democrático com o uso dos serviços secretos. Mas estes são compatíveis com a democracia apenas num contexto: que sejam controlados pelo governo, pelo poder visível, que por sua vez deve ser controlado pelos cidadãos, de modo que sua ação seja dirigida sempre e apenas para a defesa da democracia (BOBBIO, 1988, p. 210-211).

A esta última forma de poder secreto é que se dá relevo no presente trabalho,

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pois o que interessa aqui é justamente tentar rastrear as relações entre o poder oculto exercido pelo Estado e a Democracia. Assim, se entende a Democracia como “poder visível”, no sentido ampliado que ora lhe dá o autor, vê-se que a vitória desse poder sobre o poder invisível “[...] jamais se completa plenamente: o poder invisível resiste aos avanços do poder visível, inventa modos sempre novos de se esconder e de esconder, de ver sem ser visto”. Por isso, a dicotomia público/privado, no sentido de manifesto/secreto, é para ele “uma das categorias fundamentais e tradicionais, mesmo com a mudança dos significados, para a representação conceitual, para a compreensão histórica e para a enunciação de juízos de valor no vasto campo percorrido pelas teorias da sociedade e do Estado” (BOBBIO, 1987b, p. 30-31). Hannah Arendt, filósofa que assume a dignidade humana como uma de suas preocupações fundamentais, brilhante analista do fenômeno totalitário, também tratou do segredo e suas relações com sociedades e regimes democráticos ou não. De fato, encontram-se esparsas em várias obras suas, referências ao fenômeno do segredo como prática política, dado que, para ela, a visibilidade é parte inescindível do espaço político.22 A preocupação da filósofa com a transparência e a verdade no espaço público torna-se quase obsessiva, acompanhada de uma indignação genuinamente moral com uma prática que, ela reconhece, faz parte da história política do Ocidente: El sigilo – que diplomáticamente se denomina ‘discreción, así como los arcana imperii, los misterios del Gobierno – y el engaño, la deliberada falsedad y la pura mentira, utilizados como medios legítimos para el logro de fines políticos, nos han acompañado desde el comienzo de la Historia conocida. La sinceridad nunca ha figurado entre las virtudes políticas y las mentiras han sido siempre consideradas en los tratos políticos como medios justificables (ARENDT, 1973, p. 12).

Ao tentar uma explicação psicológica para isso, a autora suspeita que “puede que sea natural que quienes ocupan cargos electivos [...] piensen que la manipulación es quien rige las mentes del pueblo, y, por consiguiente, quien rige verdaderamente al mundo” (ARENDT, 1972, p. 26). Assim, ela crê que os governantes possam ter uma visão conspiratória da política, o que tenta demonstrar, com um exame sociológico do caso dos Pentagon Papers durante a administração Nixon nos EUA. Mas o verdadeiro triunfo do segredo e da manipulação sobre a livre circulação de ideias no espaço público dá-se quando este é abolido: sob um sistema totalitário. É aqui que o segredo faz “metástase”, abrangendo em sua totalidade as esferas do poder. Em sua análise sobre o totalitarismo, diz-nos Arendt: durante a fase de

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ascensão ao poder dos movimentos totalitários, estes imitam algumas características de organização das sociedades secretas; quando chegam ao poder, “se instalam à luz do dia”, criando uma “verdadeira sociedade secreta”: a polícia secreta (ARENDT, 1978, p. 542), que assume o papel de Estado dentro do Estado.23 Para Arendt, o segredo é o mecanismo central, a pedra de toque da ação política nos regimes totalitários.24 Em contrapartida, o acesso às informações governamentais numa Democracia é parte inseparável da prática política, como meio de controle do poder por parte dos governados, da conduta dos governantes.25 A publicidade é, para Arendt, a pré-condição para que se possa até mesmo falar em política, já que esta é definida pela autora como “[...] o campo de comunicação e de interação que assegura o poder do agir conjunto”. O que implica em concluir-se que, sob regimes totalitários, desaparece toda e qualquer possibilidade de ação política, tomada nesse sentido; trata-se de um conjunto de práticas de pura dominação (LAFER, 1988, p. 245). Têm-se ainda em Arendt uma reflexão sobre a importância prática da manutenção do princípio da publicidade na esfera pública. Como relata Lafer: Com efeito, na esfera do público, entendida como o comum, os enganados pela mentira reagem aos enganadores minando a comunidade política. É por isso que a prevalência ex parte principis dos arcana imperii provoca, dialeticamente, os arcana seditionis ex parte populi. Estes também são destrutivos do espaço público da democracia, pois podem levar à ditadura anônima dos grupos terroristas clandestinos, que também se valem da mentira e da dissimulação, cientes da clássica lição de Maquiavel: se poucos podem travar uma guerra aberta contra o poder autocrático, a todos é dado conspirar em sigilo contra o Príncipe. Poder invisível e contrapoder invisível são, em verdade, duas faces da mesma moeda (LAFER, 1988, p. 256).

Enfim, o que ressalta das obras arendtianas citadas, é uma preocupação com a ética no espaço público, reivindicando para a prática política uma dimensão moral que muitos autores de ciência política insistem em subtrair. No Brasil, encontramos preocupação com o tema em poucos autores, dentre os quais ressalta João Almino (1986). Para ele, existem segredos fabricados a partir do poder do Estado contra a publicização do espaço privado, contra os quais o único antídoto é a ausência de censura. Diz o autor que o segredo, além de dominante como prática política nos regimes autocráticos, é também peça importante dentro das democracias, como estratégia governamental. Adotando uma perspectiva kantiana, entende que a publicidade deve prevalecer sempre, como imperativo

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categórico da política não importando os motivos ou objetivos para sua exclusão. Mas isto só valeria para uma Democracia “sem adjetivos” “[...] pois uma democracia adjetivada teria que por algum fim acima dos meios – e o segredo e a mentira seriam apenas meios” (ALMINO, 1986, p. 13-16). Almino é enfático ao asseverar que “nenhuma ‘causa nobre’ definida de maneira técnica pelo Estado, pode legitimar o uso do segredo” (1986, p. 17). A constituição de uma esfera pública política legitimamente democrática torna-se, para ele, tarefa a ser construída pela sociedade.26 A preservação dos segredos visa a subtrair o governo ao controle dos cidadãos como forma de se evitar o julgamento de suas ações pela sociedade, ao passo que cria um saber circunscrito a poucos visando o exercício de um poder exclusivo. Para ele as razões invocadas pelos Estados “protetores” para manter o povo na ignorância de suas ações, são as de que essa prática impediria a corrupção do povo bem como o protegeria do inimigo. Alcunha essas práticas de “paternalismo elitista autoritário” (ALMINO, 1986, p. 17-18). O autor ressalva expressamente que em alguns casos a preservação do segredo possa ser entendida como legítima.27 Mas essa legitimidade deve ser negociada socialmente, como pré-condição de sua aceitação pela sociedade (ALMINO, 1986, p. 100). Assim, a questão central em relação ao tema dos segredos de Estado versa sobre a autolimitação pela sociedade de seu direito à informação partindo da discussão prévia sobre os casos – circunscritos e bem delimitados – nos quais deve prevalecer o segredo. A partir dessa discussão, é necessário estabelecer critérios rígidos para a preservação de sigilo, o qual, nunca é demais lembrar, acompanhando Bobbio, deve ser sempre exceção que não faça a regra valer menos.

5. O direito de acesso como direito humano fundamental e a abordagem garantista da transparência Com a consolidação da democracia constitucional nos países ocidentais, o direito a ser informado passa a constituir-se em direito fundamental, em cumprimento ao disposto no art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (o direito “to receive information”).28 No mesmo sentido, o artigo 19 do Pacto Internacional sobre direitos civis e Políticos, o art. 13 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, o artigo 9 da Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos e o artigo 10 da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos.29

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Em reforço a essa tendência, os relatores para a Liberdade de Expressão da ONU, OEA e OSCE, em sua Declaração conjunta de 2004, enfatizaram que: O direito de acessar informações detidas pelas autoridades públicas é um direito humano fundamental que deve ser efetivado no nível nacional através de legislação abrangente (por exemplo, leis específicas sobre liberdade de informação), baseada na premissa da máxima abertura, estabelecendo a presunção de que toda informação é acessível, sujeita apenas a um restrito sistema de exceções (CANELA e NASCIMENTO, 2009, p. 19).

Refletindo esse movimento internacional pela democratização do acesso às informações governamentais, a ONG Artigo 1930 consolidou em 1999 os princípios que devem reger a política de transparência dos governos (CANELA e NASCIMENTO, 2009, p. 21), sendo eles os seguintes: a) Princípio da máxima divulgação, que estabelece a premissa de que toda a informação mantida por organismos públicos deve estar sujeita à divulgação e de que tal suposição só deverá ser superada em circunstâncias muito limitadas; b) Princípio da obrigação de publicar, pelo qual os órgãos e entidades públicas devem espontaneamente publicar as informações e documentos que possuam importância pública. Essas informações devem no mínimo ser as seguintes: b.1) Informações sobre a operação da entidade ou órgão; b.2) Informações sobre solicitações ou queixas a ele relacionadas; b.3) orientações sobre como deve o cidadão proceder para participar com sugestões sobre o órgão e seu funcionamento; b.4) Tipo de informação depositada no órgão; e b.5) Conteúdo das decisões que atinjam o público externo bem, como suas motivações; c) Princípio da promoção de um governo aberto, o que inclui desde educação pública sobre esse novo ethos até o treinamento de pessoal para esclarecimento da política de transparência; d) Princípio do âmbito limitado das exceções, pelo qual estas devem ser clara e rigorosamente desenhadas e sujeitas a rígidas provas de “dano” e “interesse público”. Estas provas foram construídas pela jurisprudência internacional e consolidadas num mecanismo chamado de “três fases”. Este visa a avaliar a relação custo (dano)/ benefício (atendimento ao interesse público) na divulgação de dados em cada caso concreto. Portanto, a manutenção do sigilo num determinado caso só pode ser legí-

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tima se os seguintes três requisitos forem satisfeitos: d.1) A informação solicitada se relaciona a um dos objetivos legais; d.2) A divulgação da informação cause graves danos; e d.3) O prejuízo (custo) trazido pela divulgação possa ser maior que o benefício (interesse público) implicado por ela. e) Processos para facilitar o acesso: os pedidos devem rapidamente ser atendidos, com órgão recursal para analisar eventuais indeferimentos, bem como a preservação da reserva judicial de garantia; f) Custos. Os custos excessivos não podem tolher o direito de acesso; g) Reuniões abertas. As reuniões de organismos públicos devem ser públicas; h) Princípio da primazia da divulgação, por força do qual as leis antinômicas ao princípio da máxima divulgação devem ser alteradas ou revogadas; i) Princípio da proteção de denunciantes: todos aqueles que divulguem (denunciem) irregularidades devem ser protegidos. Como se vê, esse esforço de organismos internacionais está inserido no novo zeitgeist instaurado pela disseminação do modelo de Estado Democrático de Direito, que centra suas funções nos direitos fundamentais das pessoas, com a consequente accountability de seus órgãos e entidades. Tal circunstância leva inexoravelmente a analisar a partir de um viés garantista esse direito, já que se entende aqui que o garantismo é a teoria do Estado e do Direito que dá conta de forma mais adequada da estrutura e da função da forma política do Estado Constitucional de Direito. Empreende-se essa análise examinando as reflexões do grande teórico do garantismo, Luigi Ferrajoli, hoje o principal jusfilósofo italiano. Para Ferrajoli (2007), a informação constitui o objeto de dois direitos distintos: o direito de informação como direito ativo de liberdade (denominado por ele de liberdade de ou faculdade) e como direito social passivo consistente em uma expectativa positiva (direito a receber informações). Restringindo a análise a este segundo sentido – o direito a receber informações – verifica-se que o mesmo é um direito autônomo e coletivo que pertence a todos e a cada um simultaneamente (FERRAJOLI, 2007). Por isso requer o mesmo explícitas garantias constitucionais (sendo as garantias primárias as obrigações dos poderes públicos a prestar as informações, e as garantias secundárias a possibilida-

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de de exigi-las em juízo, ou seja a sua justiciabilidade). Explicitando seu pensamento, Ferrajoli divide a transparência pública em duas dimensões: Em primeiro lugar, ex parte principis, a transparência dos poderes públicos e a informação sobre a sua gestão são uma precondição elementar da democracia, e mesmo antes disso, do direito público (recorda ele a fórmula transcendental do direito público kantiana) (FERRAJOLI, 2007, p. 420). Em segundo lugar, ex parte populi, a informação relativa aos assuntos públicos é a condição necessária para o exercício do direito de voto consciente, isto é, com total conhecimento (FERRAJOLI, 2007). Em reforço, evoca a passagem de Tocqueville na qual este afirma que a soberania do povo e a liberdade de imprensa são duas coisas correlatas. Resumindo, entende ele que “la fondatezza, la correttezza e la completezza dell’informazione pubblica sono dunque essenziali così alla trasparenza, alla legalità, alla rappresentatitività e alla responsabilità dei pubblici poteri, come al controllo popolare e all’esercizio consapevole del diritto di voto” (FERRAJOLI, 2007, p. 420). Por isso, reivindica a constitucionalização das garantias do máximo acesso possível (tanto ativo quanto passivo) à informação e à comunicação políticas (FERRAJOLI, 2007, p. 421). Pode-se concluir então que, a partir de uma perspectiva garantista, o direito fundamental à informação (correlativo à transparência governamental, materializado no princípio/dever de publicidade administrativa) é uma imposição do constitucionalismo democrático que está a exigir a construção do máximo de garantias para possibilitar o pleno acesso dos cidadãos às ações e informações estatais. Vistas as precedentes abordagens teóricas sobre a dicotomia transparência/ segredo, no seio da tradição político-jurídica ocidental, cabe agora examinar o tratamento normativo dessa dicotomia em alguns ordenamentos jurídicos, tomados aqui como referência, bem assim no ordenamento brasileiro, tanto do ponto de vista diacrônico quanto sincrônico.

6. O direito de acesso em alguns ordenamentos constitucionais Ao corporificar a norma escrita como máxima de ação impessoal para governantes e governados, o Estado de Direito traçou limites para a ação e abrangência do aparato administrativo, estabelecendo, como acima referido, direitos para as pessoas, consubstanciados esses mecanismos nas Cartas de Direitos e Garantias Fundamentais de cada Constituição.

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No que diz com o direito que aqui interessa, de acesso às práticas estatais por parte dos administrados, é o mesmo requisito de publicidade inafastável de um Estado democrático. Esse direito apresenta uma dupla fundamentação: De um lado, a preocupação que não é nova – uma vez que advém do surgimento das próprias ideias liberais – de fazer do Estado um ser transparente, banindo-se as práticas secretas. De outro, do próprio avanço das concepções de uma democracia participativa. Se cada vez exige-se mais do cidadão em termos de participação na vida pública, natural que a ele também sejam conferidas todas as possibilidades de informar-se sobre a condição da res pública” (BASTOS e MARTINS, 1989, p. 163).

Trata-se de um direito que não apresenta um caráter meramente individual, em que “amalgam-se interesses particulares, coletivos e gerais” (SILVA, 2003, p. 259). Como diz Edilsom Farias, na esteira de pensadores como Corasaniti e Zaffore, a aquisição plena por parte dos cidadãos de informações, em confronto com a Administração Pública, é uma característica capaz de revelar o grau de evolução das democracias contemporâneas. Na relação comunicativa entre cidadão e Estado configura-se o princípio da publicidade dos atos de governo, impresso na gestão republicana da coisa pública, implicando a divulgação e a fundamentação das decisões administrativas: A transparência do Poder Público permite, na prática, ao cidadão acompanhar a organização, os métodos, as formas concretas da ação administrativa e avaliar, em consequência, o cumprimento dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, aos quais a Administração Pública está obrigada a obedecer [CF, art. 37] (FARIAS, 2004, p. 174).

Assim, encontram-se em algumas Constituições democráticas contemporâneas dispositivos que asseguram o sobredito direito fundamental de acesso a informações governamentais aos cidadãos, bem como plasmam suas eventuais limitações. Veja- se, por exemplo, a Constituição espanhola de 27 de dezembro de 1978, a qual preceitua: “Art. 105. A Lei regulará: [...] b) O acesso dos cidadãos aos arquivos e registros administrativos, salvo em matérias relativas à segurança e defesa do Estado, investigação e intimidade das pessoas” (ESPANHA, 1986). De seu lado, a Constituição da República italiana apenas assegura o direito de petição, devendo interpretar-se aí a consagração do direito de acesso aos arquivos oficiais: “Art. 50. Todos os cidadãos podem encaminhar petições às Câmaras para solicitar medidas legislativas ou expor necessidades comuns” (ITALIA, 1987).

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Da mesma forma, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha plasma em seu artigo 17 o direito de petição, não abrindo norma específica ao direito de acesso às informações do Estado: “Art. 17. Qualquer pessoa tem o direito de apresentar por escrito, individual ou coletivamente, petições ou reclamações às autoridades competentes e representação do povo” (ALEMANHA, 19--). Nessa linha, as disposições da Constituição da República portuguesa, de 1976, em seu art. 20.1: “Todos têm o direito de informar e ser informados, sem impedimentos nem discriminações” e no art. 52: “Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridade petições, representações, reclamações ou queixas para defesa de seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral” (PORTUGAL, 1987).31 Já nas Constituições do Estado contemporâneo brasileiro encontram-se dispositivos prevendo o direito de acesso aos documentos oficiais, com o que fica aquele consagrado como direito fundamental, isto é, como direito cujo titular é a pessoa, e do qual emana a pretensão de direito material a ser exercida contra o Estado. Assim, a Carta de 1934, em seu art. 113, nº 35, dispunha: A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e as certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para esclarecimentos dos cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse público imponha segredo, ou reserva (BRASIL, 1934).

Segundo Pinto Ferreira, este dispositivo veio a inovar a matéria, pois “durante muito tempo no Brasil era comum que determinadas autoridades alegassem motivo de sigilo para negarem informações e certidões” (FERREIRA, 1989, p. 136). Ao comentar o mencionado dispositivo, Pontes de Miranda salienta que a lei a que se refere deve ficar adstrita ao controle de constitucionalidade, advertindo que para ele o direito de acesso é meramente político.32 Sobre a auto-aplicabilidade deste parágrafo, relata Pinto Ferreira a existência de uma decisão favorável e uma contrária, ambas do extinto Tribunal Federal de Recursos (FERREIRA, 1989, p. 136-137). A Constituição Federal de 1946 (art. 141, §36), mantêm explicitado o direito de acesso: “§36. A lei assegurará: [...] IV - a expedição das certidões requeridas para

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esclarecimento de negócios administrativos, salvo se o interesse público impuser sigilo” (BRASIL, 1946). Themístocles Cavalcanti (1952, p. 267-268), em comentário, diz que o item relacionado no parágrafo 36 afirma o princípio da publicidade administrativa, visto como preceito de moralidade, sem o qual o serviço administrativo não poderá preencher o fim a que se destina.33 Mas faz ele uma distinção no que tange ao interesse de agir, frisando que, quando seja requerida certidão para o “esclarecimento dos negócios públicos”, há fundamento discricionário para a recusa por parte do Estado (CAVALCANTI, 1952, p. 267). Além disso, posiciona-se contra o entendimento de Pontes de Miranda de que possa a lei encontrar conceitos gerais para definir o “segredo” ou a “reserva”, por serem estes conceitos muito relativos, logo variáveis no tempo, diferindo de acordo com as pessoas e situações.34 É ainda Pontes de Miranda quem salienta, em seu comentário ao dispositivo, que é a autoridade pública que tem de provar interesse público na guarda do segredo ao negar a certidão (PONTES DE MIRANDA, 1986, p. 391). A Constituição ditatorial de 1967 foi mais lacônica no tocante ao tema. De fato, em seu artigo 150, §34 (renumerado com a mesma redação para o art. 153, §35 pela Emenda Constitucional nº l/69), dispôs: “A lei assegurará a expedição de certidões requerida às repartições administrativas, para defesa de seus direitos e esclarecimentos de situações”. Daí entenderem Pinto Ferreira (1989, p. 137) e Pontes de Miranda (1986, p. 615) que a interpretação deveria ser mantida da mesma forma que nas outras Cartas constitucionais, ou seja, com a ressalva para os casos de sigilo. A Carta de 1988 foi mais enfática que as Constituições anteriores a respeito da sagração do direito de acesso às informações estatais por parte dos cidadãos, impondo prazo de lei para sua prestação e cominando pena de responsabilidade; mas, ao par e contrariamente à Carta de 1967, especifica a ressalva para as informações sigilosas, nestes termos: Art. 5º. XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da Lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Acrescenta-se as duas modalidades clássicas de informação – a dos indivíduos externarem livremente seus pensamentos e a de prestar informações através

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de meios técnicos específicos – o direito de exigir informações (direito de acesso às informações públicas). E Celso Bastos comenta: Trata-se, pois, de combater o princípio da arcana praxis ou princípio do segredo que, sendo próprio do Estado de polícia, não deixa, contudo, de manifestar a sua permanência no Estado de Direito, no atuar de uma burocracia que procura encerrar-se em uma prática esotérica de difícil acesso ao cidadão comum (BASTOS, 1986, p. 615).

A passagem merece comentário. Em primeiro lugar, entende se que este “direito de exigir informações” não “nasce” agora, como quer o autor, mas está já consagrado dentro do “direito de petição” ou mesmo normatizado como espécie própria (art. 141, §36 da Constituição de 1946). Em segundo, se é certo que as práticas secretas são próprias do Estado de polícia, é verdadeiro paradoxo sustentar-se que um Estado de Direito possa comportar práticas secretas, porque se o fizer, já não é mais Estado de Direito (que se caracteriza pela rejeição a qualquer poder incontrolável). O inciso em análise prevê lei regulamentadora do prazo para que o Estado preste informações, silenciando sobre a necessidade de uma lei regulamentadora das matérias “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.35 Assim, vem à luz uma série de dispositivos encartados numa Lei de Arquivos (Lei 8159, de 08 de janeiro de 1991, a qual dispõe sobre “a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências”). Note-se, prima facie, que não se trata ainda de lei específica de acesso às informações, documentos e arquivos públicos, mas sim de uma norma genérica, que trata em poucos artigos do assunto. Veja-se as normas específicas: CAPÍTULO V Do Acesso e do Sigilo dos Documentos Públicos Art. 22. É assegurado o direito de acesso pleno aos documentos públicos. Art. 23. Decreto fixará as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos públicos na classificação dos documentos por eles produzidos.

§1º Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos. §2º O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da

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sociedade e do Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período. §3º O acesso aos documentos sigilosos referentes à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de produção. Art. 24. Poderá o Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação pessoal da parte. Parágrafo único. Nenhuma norma de organização administrativa será interpretada de modo a, por qualquer forma, restringir o disposto neste artigo.

Pelo que se pode depreender da leitura dos poucos artigos a tratar da garantia constitucional de acesso, pode-se concluir que: a) a lei remetia a Decreto (que não poderia limitar, pelo estabelecimento de prazos mínimos, o direito de acesso, dado o princípio da legalidade do inc. II do art. 5º, embora a própria lei estabelecesse um dos prazos – 30 anos prorrogáveis por mais 30); b) ao Judiciário era franqueado o acesso sempre que indispensável. Para regulamentar a referida Lei, foi publicado, em 27 de dezembro de 2002, ao apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso, o Decreto 4553, o qual dispunha sobre critérios de classificação e prazos de desclassificação em seus artigos 5º e 7º,36 onde se vê que, além de aumentar os prazos previstos anteriormente para desclassificação, o Decreto institui a possibilidade, estampada no § 1º do art. 7º, do sigilo eterno, através da renovação por prazo indefinido do sigilo, situação evidentemente inconstitucional por ferir os princípios da publicidade da Administração e da soberania popular. Ante o escândalo suscitado entre historiadores, jornalistas e demais interessados no acesso aos documentos públicos – tais como os parentes dos desaparecidos durante a ditadura de 1964-1985 – o novo governo tentou contornar a situação pela edição de novo Decreto, de nº 5301, de 2004, que dá nova redação ao art. 7º, tendo resultado no seguinte enunciado: Art. 7º. Os prazos de duração da classificação a que se refere este Decreto vigoram a partir da data de produção do dado ou informação e são os seguintes: I – ultrassecreto: máximo de trinta anos; II – secreto: máximo de vinte anos;

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III – confidencial: máximo de dez anos; e IV – reservado: máximo de cinco anos. Parágrafo único. Os prazos de classificação poderão ser prorrogados uma vez, por igual período, pela autoridade responsável pela classificação ou autoridade hierarquicamente superior competente para dispor sobre a matéria.

Ainda, cria o Decreto uma Comissão específica para manejo de documentos classificados, conforme dispõe o seu art. 35, erigindo-a em guardiã do acesso a tais papéis, como estabelecido em seu inciso V: Art. 35. As entidades e órgãos públicos constituirão Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos (CPADS), com as seguintes atribuições: [...] V – autorizar o acesso a documentos sigilosos, em atendimento ao disposto no art. 39.

A questão ainda viria a sofrer reviravoltas inesperadas: em 5 de maio de 2005, o Congresso promulga a Lei (de conversão de Medida Provisória) nº11.111, que anulou os progressos obtidos rumo à transparência administrativa pelo último Decreto citado. Com efeito, dispõe a nova Lei: Art. 6º. O acesso aos documentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2º do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991. §1º Vencido o prazo ou sua prorrogação de que trata o caput deste artigo, os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público. §2º Antes de expirada a prorrogação do prazo de que trata o caput deste artigo, a autoridade competente para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo poderá provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaçará a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País, caso em que a Comissão poderá manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular.

Em resumo, a Lei previa a criação de uma nova “Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas” – instituída no âmbito da Casa Civil, pelo que se lê do art. 4º – a qual recebia competência para, discricionariamente, estipular o tempo de classificação. Com isso, mantinha-se a possibilidade de sigilo eterno dos documentos ultrassecretos, remanescendo a patente inconstitucionalidade do dispositivo legal.

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Di Pietro (2009, p. 73) adverte que a lei não definia o que se considerava como segurança da sociedade e do Estado, sendo que a única indicação dada pelo legislador aparece no art. 6º, § 2º que determina que a sobredita Comissão poderia ser convocada para que “avalie se o acesso ao documento ameaçará a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do país”. Logo, conclui a autora paulista que não havia qualquer critério mais claro fixado em lei. Lembra que José Afonso da Silva conceitua segurança do Estado como “a garantia de sua inviolabilidade especialmente em face de governos estrangeiros: questões militares, questões de relações externas que envolvam interesses externos e o bom relacionamento do Brasil com outros povos, por exemplo” (DI PETRO, 2009, p. 73). Nesse contexto, em 24 de novembro de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos debruçou-se sobre o assunto, instando o governo brasileiro a solucionar essa situação, ao julgar o caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia): El Tribunal también ha establecido que el artículo 13 de la Convención, al estipular expresamente los derechos a buscar y a recibir informaciones, protege el derecho que tiene toda persona a solicitar el acceso a la información bajo el control del Estado, con las salvedades permitidas bajo el régimen de restricciones de la Convención. Consecuentemente, dicho artículo ampara el derecho de las personas a recibir dicha información y la obligación positiva del Estado de suministrarla, de forma tal que la persona pueda tener acceso y conocer esa información o reciba una respuesta fundamentada cuando, por algún motivo permitido por la Convención, el Estado pueda limitar el acceso a la misma para el caso concreto. Dicha información debe ser entregada sin necesidad de acreditar un interés directo para su obtención o una afectación personal, salvo en los casos en que se aplique una legítima restricción. Su entrega a una persona puede permitir a su vez que la información circule en la sociedad de manera que pueda conocerla, acceder a ella y valorarla. De esta forma, el derecho a la libertad de pensamiento y de expresión contempla la protección del derecho de acceso a la información bajo el control del Estado, el cual también contiene de manera clara las dos dimensiones, individual y social, del derecho a la libertad de pensamiento y de expresión, las cuales deben ser garantizadas por el Estado de forma simultánea. Al respecto, la Corte ha destacado la existencia de un consenso regional de los Estados que integran la Organización de los Estados Americanos sobre la importancia del acceso a la información pública. La necesidad de protección del derecho de acceso a la información pública ha sido objeto de resoluciones específicas emitidas por la Asamblea General de la OEA, que ‘[i]nst[ó] a los Estados Miembros a que respeten y hagan respetar el acceso de todas las personas a la información pública y [a promover] la adopción de las disposiciones legislativas o de otro carácter que fueren

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necesarias para asegurar su reconocimiento y aplicación efectiva’. Asimismo, dicha Asamblea General en diversas resoluciones consideró que el acceso a la información pública es un requisito indispensable para el funcionamiento mismo de la democracia, una mayor transparencia y una buena gestión pública, y que en un sistema democrático representativo y participativo, la ciudadanía ejerce sus derechos constitucionales a través de una amplia libertad de expresión y de un libre acceso a la información. Por otra parte, la Corte Interamericana ha determinado que en una sociedad democrática es indispensable que las autoridades estatales se rijan por el principio de máxima divulgación, el cual establece la presunción de que toda información es accesible, sujeto a un sistema restringido de excepciones.37

É assim que o governo que assume em 2010 decide apresentar projeto de lei visando a resolver os problemas evidenciados pela legislação então em vigor.

7. A lei de acesso de 2011 Em consequência, em novembro de 2011 é publicada a Lei 15.527, que especificamente regula e garante o direito fundamental de acesso. Esta Lei apresenta inovações importantes, tais como: a) constitui em sujeitos passivos – obrigados portanto a oferecer informações – não só as entidades da Administração direta e indireta no âmbito dos três poderes, como também as entidades privadas sem fins lucrativos que recebam verbas ou subvenções do poder público, na proporção desses recebimentos (art. 2º, par único); b) determina a divulgação espontânea, ou seja, independentemente de solicitação, de informações de interesse público, pelas mesmas entidades acima referidas (art. 3º, II), o que se denomina de “transparência ativa”; c) enfatiza a utilização dos meios eletrônicos de comunicação (internet), para a divulgação das informações, obrigando os órgãos a disponibilizar suas informações na rede mundial de computadores (art. 8º, §2º); d) estabelece procedimento singelo para obtenção das informações pelos administrados, erigindo a CGU em órgão recursal, e ainda dispondo que, das decisões denegatórias por parte desta última, caberá recurso à Comissão Mista de Reavaliação de Informações prevista no art. 35, cuja composição ficará delineada em Regulamento. Já no que diz respeito às informações sigilosas, cuida a lei de:

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a) vedar a denegação de prestação de informações que digam respeito à proteção de direitos fundamentais; b) estabelecer como passíveis de classificação informações que possam: I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicas das Forças Armadas; VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional; VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações (art. 23). c) estabelecer como graus de sigilo e respectivos prazos de desclassificação as espécies de informação: I – Ultrassecreta, com prazo máximo de desclassificação de 25 anos, renovável motivadamente pela Comissão Mista antes referida por prazo igual uma única vez; II – secreta, com prazo de desclassificação de 15 anos; e III – reservada, com prazo de 5 anos (art. 24, §1º). d) determinar revisão periódica, por parte da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, das informações sigilosas, pelo prazo máximo de 4 anos. Após esgotado o prazo, as informações serão automaticamente desclassificadas (art. 35, §3º e 4º).

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e) prever a reavaliação, por parte de órgãos e entidades públicas, dos atuais graus de sigilo dos seus documentos, no prazo máximo de 2 anos a contar do início da vigência da lei (Art. 39). Por último, estabelece a lei uma vacatio de 6 meses, passando a entrar em vigor no mês de maio de 2012. Nesse mesmo mês, o Governo Federal edita o Decreto 7724/12, que regulamenta a Lei de Acesso, detalhando as ações a serem empreendidas para maximizar a garantia do direito fundamental de que trata. Dentre as ditas ações, merece destaque a determinação para que os órgãos públicos estampem a remuneração de seus servidores (Art. 7º, §3º, VI), o que causou alguma divergência no Judiciário, com a prolação de algumas liminares visando ao impedimento de tal publicação, sob o argumento de violação da intimidade dos agentes públicos.38 Outro aspecto do Decreto que merece destaque, dessa vez negativo, diz respeito à Comissão Mista de Reavaliação de Informações. Com efeito, a norma determina que a mesma seja composta exclusivamente por Ministros de Estado ou titulares de Secretarias com status equivalente (Art. 46). Em face do fato de ser a Comissão o órgão máximo em matéria de classificação/desclassificação documental, bem como na decisão de recursos nessa área, melhor seria ter decidido o Governo por uma comissão composta também por membros do Ministério Público, Legislativo e representantes de setores acadêmicos, tal como historiadores. De qualquer sorte, tanto a Lei de Acesso quanto seu Regulamento vieram a representar um tremendo avanço rumo à transparência administrativa, ao determinar uma nova relação entre governantes e governados. Reafirma-se assim a visão instrumental do Estado de Direito, subordinado que deve estar aos valores, bens e interesses julgados superiores pela sociedade.

8. Conclusão Examinado o segredo na política a partir de alguns de seus teorizadores e críticos, desde a Idade Média até os dias atuais, passa-se, nesta parte final, a tecer algumas considerações a partir das reflexões que a pesquisa realizada ensejou. No quadro de monopolização de poder dos Estados Moderno e Contemporâneo, opera-se um processo de separação do público e do privado. Por um lado, a vida cotidiana do cidadão passa a dizer respeito somente a ele próprio, desde que no recesso de sua intimidade. Daí consagrarem-se os direitos de liberdade, tais como os estampados na Constituição brasileira no seu art. 5º.

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Paralelamente, e como reflexo da maior participação dos cidadãos na formação da vontade política governamental, dá-se o processo de publicização do poder. Agora, o que é público (não privado), deve ser exercido no meio do público (não secreto). O controle do poder, regra paradigmática das modernas Democracias representativas, somente pode ter lugar quando os cidadãos têm acesso às práticas governamentais. Assim, o acesso do grande público ao conhecimento das ações do governo constitui-se em pilar fundamental para a estruturação de um regime democrático. Desta forma, ações consequentes com o princípio da publicidade na política têm sido implementadas através de normas jurídicas em diversos países democráticos. Embora o processo de publicização encontre limites – nas legislações encontrase a barreira dos “Segredos de Estado em nome da Segurança Nacional” – é inegável que um tremendo esforço está em desenvolvimento em busca da transparência. Assim, no Brasil, têm surgido normas como as antes referidas e mecanismos como os Portais da Transparência e organizações como a Transparência Brasil, dirigidas ao combate à opacidade. Mas essa luta está longe de ser vencida. Na verdade, a tendência de generalização do segredo na Administração Pública parece derivar da resistência do poder tradicional, entendido como aquele que vê a política como coisa privada. A própria ideia habermasiana de “Estado neomercantilista” parece indicar essa forte tendência (HABERMAS, 1984, p. 269). De qualquer forma, a ideia de “Razão de Estado”, apontada acima por Schmitt, enquanto doutrina que embasa a ação paternalista do governo sobre os súditos, solapa a idéia democrática. Enquanto consequência de uma separação entre a ética e a política (os “imperativos morais” do Estado são distintos daqueles dos cidadãos) tornou-se nefasta pela sua hipertrofia. Assim, a luta pela transparência representa, em última análise, uma tentativa de recuperar uma dimensão ética para a política, afastando a ideia de que a finalidade do Estado seja outra que não a de propiciar o estabelecimento de garantias para os direitos fundamentais estampados em suas Cartas fundacionais.39

Notas 1

Adota-se aqui uma definição relacional de poder. De acordo com Bobbio (1987, p. 78): “A mais conhecida e também a mais sintética das definições relacionais é a de Robert Dahl: ‘A influência [conceito mais amplo, no qual se insere o de poder] é uma relação

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entre atores, na qual um ator induz outros atores a agirem de um modo que, em caso contrário, não agiriam”. 2

Observe-se a seguinte passagem (PLATÃO, 19--, Livro III, p. 67):

SÓCRATES – [...] a verdade deve sobrepor-se a tudo, porque se não nos enganamos, ao dizermos que a mentira é inútil aos deuses mas útil aos homens sob a forma de remédio, claro é que esse uso deve ser confiado apenas aos médicos e não a todas as pessoas. ADIMANTO – Isso é verdade. SÓCRATES - Aos magistrados também, de preferência a todos os demais, cumpre mentir, enganando aos inimigos ou aos concidadãos, no interesse da sociedade. ADIMANTO – Perfeitamente. SÓCRATES – Por esta razão, se o magistrado surpreender em flagrante delito de mentira qualquer cidadão, quer de vida privada, quer adivinho, médico ou arquiteto, puni-lo-á com severidade por introduzir no Estado, como num navio, um mal capaz de levá-lo à destruição e à ruína. PLATÃO. 3

Segundo Hannah Arendt isto se dá porque “às flexíveis opiniões do cidadão acerca dos assuntos humanos, os quais por si próprios estão em fluxo constante, contrapunha o filósofo a verdade acerca daquelas coisas que eram por sua mesma natureza sempiternas e das quais, portanto, se podiam derivar princípios que estabilizassem os assuntos humanos. Por conseguinte, o contrário da verdade era a mera opinião, equacionada com a ilusão; e foi esse degradamento da opinião o que conferiu ao conflito sua pungência política; pois é a opinião, e não a verdade, que pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder” (ARENDT, 1972, p. 289 – grifo nosso). 4

“Con el Papa como princeps y verus imperator el aparato jerárquico de la Iglesia romana [...] mostró tendencia a convertirse en el prototipo perfecto de una monarquía absoluta y racional sobre una base mística, mientras que simultáneamente el Estado mostró una creciente tendencia a convertirse en una semi-Iglesia, y, en otros respectos, en una monarquía mística sobre una base racional” (KANTOROWICZ, 1955, p. 66).

5

“O Absolutismo apresenta-se-nos em sua forma plena como a conclusão de uma longa evolução, a qual, através da indispensável mediação do cristianismo como doutrina e da Igreja romana como instituição política universal, conduz, desde as origens mágicas do poder, até a sua fundação em termos de racionabilidade e eficiência”. Conferir o verbete “absolutismo” (BOBBIO et al, 1986c, p. 02 – grifo nosso). 6

“La afirmación de una plenitudo potestatis del papa dentro de la Iglesia estableció el precedente para las pretensiones posteriores de los príncipes seculares, realizadas a menudo, precisamente, contra las desorbitadas aspiraciones religiosas. Por otra parte, y

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del mismo modo que los abogados canonistas del papado fueron los que construyeron e hicieron funcionar sus amplios controles administrativos sobre la Iglesia, fueron los burócratas semiprofesionales adiestrados en el derecho romano quienes proporcionaron los servidores ejecutivos fundamentales de los nuevos estados monárquicos” (ANDERSON, 1982, p. 23). 7

O capítulo dedica-se a analisar contra quem as conjuras são feitas (contra a pátria ou contra um príncipe), bem como suas causas (MAQUIAVELO, 1987).

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Veja-se a seguinte passagem: “No quiero sin embargo dejar de advertir al príncipe o la república contra los que se haya conspirado que, cuando descubran una conjura [...] si encuentran que es grande y poderosa, no la desenmascaren hasta que estén dispuestos a aplastarla con fuerzas suficientes, pues si obra de otra manera, verán su propia ruina. Por eso, deben utilizar toda su habilidad para el disimulo, ya que los conjurados, al verse descubiertos, acuciados por la necesidad, pierden todo respeto” (MAQUIAVELO, 1987, p. 324 – grifo nosso). 9

Este ensaio adota o conceito de Democracia esposado por Norberto Bobbio (1986) e reconceituado por Ferrajoli (2007). Para o primeiro, a única maneira de se compreender a Democracia enquanto contraposta a outras formas autoritárias de governo, é aquela que a considera como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem ‘quem’ está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais ‘procedimentos’” (BOBBIO, 1986, p. 18). Para que a decisão seja considerada decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras que estabelecem quais os indivíduos autorizados a tomar as decisões que irão vincular todos os membros do grupo e quais os procedimentos. Bobbio acrescenta três condições para a existência da Democracia. A primeira diz respeito aos sujeitos que irão tomar as decisões coletivas: “um regime democrático caracteriza-se por atribuir este poder (que estando autorizado pela lei fundamental torna-se um direito) a um número muito elevado de integrantes do grupo. É preciso um juízo comparativo com base nas circunstâncias históricas para saber o número necessário daqueles que têm direito ao voto, a fim de considerar um regime democrático ou não. A segunda condição relaciona-se às modalidades de decisão. Neste caso a regra fundamental é a da maioria. Finalmente, pela terceira condição as alternativas postas aos chamados a decidir deverão ser reais e os mesmos devem ser colocados em posição de escolher entre uma ou outra. Como corolário, tem-se que o Estado liberal é um pressuposto histórico e jurídico do Estado democrático, já que deverão ser garantidos aos chamados a decidir os direitos de liberdade (de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, etc.)” (BOBBIO, 1986, p. 19-20). Resumindo, a democracia é “um conjunto de regras [...] para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue”. O bom governo democrático é aquele que respeita rigorosamente as regras, donde se conclui, “tranquilamente, que a democracia é o governo das leis por excelência” (BOBBIO,

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1986, p. 170-171). Já para Ferrajoli, o aspecto meramente formal esposado por Bobbio, apesar de necessário, não é suficiente para esgotar o sentido da democracia contemporânea, ou seja, a democracia constitucional. Com efeito, ao lado da dimensão formal, que nos diz quem decide (o povo) e como decide (por maioria), encontra-se a dimensão substancial ou substantiva da democracia, que aponta para o que é lícito decidir ou deixar de decidir, qual seja, o âmbito dos direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2007, cap. 13). 10

“Reconheço, aliás, que não é muito possível manter secretos os desígnios de semelhante Estado. Mas todos devem reconhecer comigo que, mais vale que o inimigo conheça os desígnios honestos de um Estado, que permaneçam ocultos aos cidadãos os maus desígnios de um déspota. Os que podem tratar secretamente dos negócios do Estado, têm-no inteiramente em seu poder e em tempo de paz, estendem armadilhas aos cidadãos, como as estendem ao inimigo em tempo de guerra. Que o silêncio seja frequentemente útil ao Estado, ninguém o pode negar; mas ninguém provará também que o Estado não pode subsistir sem o segredo. Entregar a alguém sem reserva a coisa pública e preservar a liberdade é completamente impossível, e é loucura querer evitar um mal ligeiro para admitir um grande mal. O mote daqueles que ambicionam o poder absoluto foi sempre que é do interesse da cidade que os seus negócios sejam tratados secretamente, e outras sentenças do mesmo gênero. Quanto mais estas se cobrem com o pretexto da utilidade, mais perigosamente tendem a estabelecer a escravidão” (ESPINOSA, 1983, p. 338). 11

Essas e as próximas considerações encontram apoio no verbete “Opinião Pública” (BOBBIO et al, 1986c, p. 842-843). 12

“Se a Ilustração quer liberar um espaço de visibilidade irrestrita, é principalmente para desmascarar os opressores. [...] Descrevendo as engrenagens incompreensíveis do ancien régime, Michelet escreve: ‘O que havia de mais tirânico na velha tirania era sua obscuridade [...]’. O poder é essa zoologia imunda que pulula no pântano e rasteja na noite. Sua força está em sua invisibilidade. É a partir dela que o poder estende seus tentáculos, vendo tudo e não sendo visto por ninguém [...]” (ROUANET, 1988, p. 129). 13

Como afirma Schmitt, “Los filósofos de la Ilustración del siglo XVIII eran partidarios de un despotismo ilustrado, pero veían en una opinión pública ilustrada el control de toda la actividad estatal y una segura garantía contra cualquier abuso del poder del Estado. Libertad de manifestación del pensamiento y libertad de Prensa se convirtieran así en instituciones políticas. De ahí reciben el carácter de derechos políticos y dejan de ser secuela como en el proceso americano, de la libertad de consciencia y de religión. El ejercicio de la libertad de Prensa, de la libertad de manifestación de opiniones políticas, no solo es un ejercicio dentro de la esfera privada de la libertad, sino actividad pública, desempeño de una cierta función pública, el control público” (SCHMITT, 1982, p. 242).

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E diz mais: “eu proponho um outro princípio transcendental e afirmativo do direito público, cuja forma seria esta: ‘Todas as máximas que necessitam da publicidade (para não malograr em seu fim) concordam com o direito e a política unido’. Pois, se elas podem alcançar seu fim somente pela publicidade de seu fim, então têm elas de ser conformes ao fim geral do público (a felicidade), concordar com o qual (fazê-lo satisfeito com seu estado) é a tarefa própria da política. Se, porém, este fim deve ser alcançável somente pela publicidade, isto é, pelo afastamento de toda desconfiança contra as máximas da política, então estas têm de estar em concórdia também com o direito do público, pois unicamente nele é possível a união dos fins de todos” (KANT, 1989, p. 79). 15

Este conceito também pode ser entendido como a tradição doutrinária que “afirma que a segurança do Estado é uma exigência de tal importância que os governantes, para a garantir, são obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que consideram imperativas quando essa necessidade não corre perigo. Por isso, ...os governantes dos Estados não devem descurar nenhum meio – mesmo o da mais despiedada violência e do engano – para atingir [seus fins]. (...) Pense-se na diplomacia secreta, nos segredos de Estado...que constituem uma violação latente dos princípios democráticos mais comuns, mas que, não obstante, sempre foram e continuam sendo prática constante nos Estados democráticos. Conferir o verbete “Razão de Estado”, em (BOBBIO et al, 1986c, p. 1066-1073). 16

“La ‘ventaja del pequeño’ número adquiere su propio valor por la ocultación de as propias intenciones por las firmes revoluciones y saber de los dominantes. Todo esto se hace más difícil e improbable a medida que aumenta su número. Todo aumento del ‘secreto del cargo’ constituye un síntoma de la intención que tienen los dominadores de afirmarse en el poder o de su creencia en la amenaza creciente que se cierne sobre el mismo. Toda la dominación que pretenda la continuidad es hasta cierto punto una dominación secreta” (WEBER, 1984, p. 704). 17

E adiante, ao tratar da publicidade administrativa, Weber pondera: “[...] la mayor fuerza del funcionalismo consiste en la conversión, a través del concepto del ‘secreto profesional’, del saber relativo al servicio en un saber secreto, o sea en un medio, en última instancia, para asegurar a la administración contra los controles”. 18

Tome-se, para exemplificar, o seguinte trecho: “Aquilo que nós, para resumir, chamamos estado representativo teve sempre que se confrontar com o Estado administrativo, que é um Estado que obedece a uma lógica de poder completamente diferente, descendente e não ascendente, secreta e não pública, hierarquizada e não autônoma, pendente ao imobilismo e não dinâmica, conservadora e não inovadora etc.” (BOBBIO, 1983, p. 72 – grifo nosso). 19

E continua Bobbio: “Este pequeno trecho é exemplar porque enuncia em poucas

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linhas um dos princípios fundamentais do estado constitucional: o caráter público é regra, o segredo a exceção, e mesmo assim é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos, já que o segredo é justificável apenas se limitado no tempo”. 20

“A medida que aumenta la capacidad del estado para controlar los ciudadanos debería aumentar la capacidad de los ciudadanos para controlar al estado. Pero este crecimiento paralelo está muy lejos de verificarse. Entre las diversas formas de abuso del poder está, actualmente la posibilidad, por parte del estado, de abusar del poder de información” (BOBBIO, 1985, p. 24). 21

“O poder autocrático foge do controle público de duas maneiras: ocultando-se, ou seja, tomando suas próprias decisões no ‘conselho secreto’ e ocultando, ou seja, através do exercício da simulação e da mentira, considerada como instrumento lícito de governo” (BOBBIO, 1988, p. 208).

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“Se a função do âmbito público é iluminar os assuntos dos homens, proporcionando um espaço de aparições onde podem mostrar, por atos e palavras pelo melhor e pelo pior, quem são e o que podem fazer, as sombras chegam quando essa luz se extingue por ‘fossos de credibilidade’ e ‘governos invisíveis’, pelo discurso que não revela o que é, mas o varre para sob o tapete, com exortações morais ou não, que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, degradam toda uma trivialidade sem sentido” (ARENDT, 1987, p. 08). No mesmo sentido, o comentário da autora em (ARENDT, 1972, p. 293).

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“Os serviços secretos já foram rotulados correctamente de um Estado dentro do Estado, e isto não se aplica apenas aos despotismos, mas também aos governos constitucionais e semiconstitucionais. A simples posse de informações secretas sempre lhes deu nítida superioridade sobre todas as outras agências do serviço público, e constituiu franca ameaça aos membros do governo” (ARENDT, 1978, p. 530).

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“Hannah Arendt tem uma percepção muito clara da relevância do direito à informação como meio para se evitar a ruptura totalitária. Com efeito, uma das notas características do totalitarismo é a negação, ex parte principis, da transparência na esfera pública e do princípio da publicidade (LAFER, 1988, p. 242). 25

“É por essa razão que, no mundo moderno, a representação política democrática, que substitui a ágora da polis, só pode ter lugar na esfera do público, e um Parlamento só pode ser representativo, como aponta Carl Schmidt, se existe a crença de que sua atividade específica reside na publicidade. Neste sentido, numa democracia a publicidade é a regra básica do poder e o segredo a exceção, o que significa que é extremamente limitado o espaço dos arcana imperii, ou seja dos segredos de Estado” (LAFER, 1988, p. 243-244). 26

“Só a prática política poderá fazer o segredo de Estado desvendar-se ante o direito à informação. O sujeito do direito à informação é o cidadão. [...] O direito à informação,

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seja exercido pelo jornalista ou por qualquer cidadão, não deve sofrer formalmente restrições de qualquer natureza, embora na prática possa curvar-se ante o segredo empiricamente aceito como legítimo (ALMINO, 1986, p. 17-18). 27

Embora o autor não apresente seu conceito de “legitimidade”, infere-se do texto que ela pode ser entendida como “adequação” da ação estatal aos valores da sociedade”. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho: “[...] a própria sociedade aceitará os limites a seu direito à informação se estes forem legítimos” (ALMINO, 1986, p. 100). 28

Art. 19. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer a interferência e de procurar, receber e divulgar informações e ideias por quaisquer meios, sem limite de fronteiras. 29

Em 2008, mais de 70 países haviam adotado leis de acesso à informação (MENDEL, 2008, p. 03). 30

Que tem a seguinte definição para o termo informações públicas: “Todos os dados e registros em poder de órgãos públicos, com a identificação da fonte (quem produziu o dado ou registro) e da data em que foi produzido. Esses dados incluem todo e qualquer formato: documento impresso ou eletrônico, vídeo, áudio etc.”.

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Ressalte-se na Carta portuguesa a forma minuciosa em que o direito à informação é previsto, pela leitura do art. 268: “1. Os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas. 2. Os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registros administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas. 3. Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos. 4. É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos. 5. É igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. 6. Para efeitos dos números 1 e 2, a lei fixará um prazo máximo de resposta por parte da Administração (PORTUGAL, 1987, p. 26, p. 40 e p. 136-137). 32

“A lei pode definir esse interesse público e mencionar as espécies em que se deve guardar segredo ou reserva. Porém a fixação legal não exclui a apreciação judicial da constitucionalidade dos preceitos legais referentes à matéria, nem, em certas circunstâncias, o procedimento do Senado Federal quando lhe pareça que a atitude do Poder executivo destoe da Constituição ou da lei [...] A 5ª parte do art. 213, parágrafo 5º. contém um

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direito público subjetivo de caráter político, susceptível, portanto, de suspensão e de perda (PONTES DE MIRANDA, 1937, p. 272). 33

São [os preceitos do § 36] também pressupostos do regime democrático, que considera a administração pública, instrumento da coletividade e não uma organização fechada, insensivel aos cidadãos.A publicidade dos atos administrativos e um regime amplo de informações, importam igualmente em assegurar, a todos os indivíduos, os direitos daí decorrentes, direitos públicos subjetivos, a que correspondem as garantias judiciais adequadas (CAVALCANTI, 1952, p. 267-268). 34

“Por isso mesmo, costuma-se afirmar que é a administração o juiz do interesse público, fundado na apreciação discricionária do merecimento de seus atos. Nada impede, entretanto, que a lei ordinária procure limitar a ação discricionária, restringindo o arbítrio da autoridade – o que se chama de ‘acte discritionnaire reglé par la loi’” (CAVALCANTI, 1952, p. 268).

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“Embora não seja feita aqui uma referência expressa à lei, a verdade é que ela é inteiramente cabível e, mais do que isto, até mesmo indispensável. Deixar à apreciação discricionária do administrador o saber quando uma informação diz ou não respeito à segurança da sociedade e do Estado é conferir uma margem tão ampla de discrição que acaba por, praticamente, descaracterizar o direito individual. Dada a natureza deste, a sua regulamentação há de ser levada a efeito pelo legislador” (BASTOS e MARTINS, 1989, p. 164).

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Nos seguintes termos: “Art. 5º Os dados ou informações sigilosas serão classificados em ultrassecretos, secretos, confidenciais e reservados, em razão do seu teor ou dos seus elementos intrínsecos. §1º São passíveis de classificação como ultrassecretos, dentre outros, dados ou informações referentes à soberania e à integridade territorial nacionais, a planos e operações militares, às relações internacionais do País, a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico de interesse da defesa nacional e a programas econômicos, cujo conhecimento não-autorizado possa acarretar dano excepcionalmente grave à segurança da sociedade e do Estado. §2º São passíveis de classificação como secretos, dentre outros, dados ou informações referentes a sistemas, instalações, programas, projetos, planos ou operações de interesse da defesa nacional, a assuntos diplomáticos e de inteligência e a planos ou detalhes, programas ou instalações estratégicas, cujo conhecimento não-autorizado possa acarretar dano grave à segurança da sociedade e do Estado. §3º São passíveis de classificação como confidenciais dados ou informações que, no interesse do Poder Executivo e das partes, devam ser de conhecimento restrito e cuja revelação não-autorizada possa frustrar seus objetivos ou acarretar dano à segurança da sociedade e do Estado. §4º São passíveis de classificação como reservados dados ou informações cuja revelação não-autorizada possa comprometer planos, operações ou objetivos neles previstos ou referidos. [...] Art. 7º Os prazos de duração da classificação a

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que se refere este Decreto vigoram a partir da data de produção do dado ou informação e são os seguintes: I - ultrassecreto: máximo de cinquenta anos; II - secreto: máximo de trinta anos; III - confidencial: máximo de vinte anos; e IV - reservado: máximo de dez anos. §1º O prazo de duração da classificação ultrassecreto poderá ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado. §2º Também considerando o interesse da segurança da sociedade e do Estado, poderá a autoridade responsável pela classificação nos graus secreto, confidencial e reservado, ou autoridade hierarquicamente superior competente para dispor sobre o assunto, renovar o prazo de duração, uma única vez, por período nunca superior aos prescritos no caput. 37

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros [Guerrilha do Araguaia]. Volume Brasil. Acessível em .

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Estatui a norma referida: “§3o Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1o, [internet] informações sobre: (...) VI - remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão”. Pelo que se lê, totalmente legítima a interpretação que valida o acesso aos nomes dos servidores, pois que outra não é a intenção da lei senão propiciar o conhecimento da remuneração dos funcionários de maneira individualizada. 39

Sobre uma concepção instrumental do Estado como aparato político a serviço dos valores, bens e interesses considerados superiores pela sociedade, conferir Luigi (1995, capítulos 13 e 14).

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Sobre os autores

Daniel Silva Achutti possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS, 2004), mestrado em Ciências Criminais (PUCRS, 2006), doutorado em Ciências Criminais (PUCRS, 2012), com doutorado sanduíche na Universidade de Leuven, Bélgica, e estágio pós-doutoral na Universidade de Leuven, Bélgica. Atualmente é coordenador do curso de graduação em Direito, professor do PPG em Direito do Unilasalle e membro da Comissão Especial de Mediação e Práticas Restaurativas da OAB/RS. Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori possui graduação em Direito (UFSM, 1986), especialização lato sensu em Fundamentos de Epistemologia (UNISC, 1985), mestrado em Direito (UFSC, 1993) e doutorado em Direito (UFSC, 2001). Atualmente é professora do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro possui graduação em Direito (UNISINOS, 1987), mestrado em Direito (UNISINOS, 2001) e doutorado em Direito Público (UNISINOS, 2006). Atualmente é professor do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e desembargador junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS, 1998), mestrado em Direito (PUCRS, 2001), doutorado em Direito (UFSC, 2009), com doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente é professora do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, professora da PUCRS e da Fadergs. Germano André Doederlein Schwartz possui graduação em Direito (UNICRUZ, 1995), mestrado em Direito (UNISC, 2000), doutorado em Direito (UNISINOS, 2003), com doutorado sanduíche na Université Paris X – Nanterre, e estágio pósdoutoral na University of Reading, Inglaterra. Atualmente é professor do curso de Direito e do Mestrado em Direito do Unilasalle, professor do Instituto Internacional

de Sociologia Jurídica de Oñati, secretário do Research Committe of Sociology of Law, líder do grupo de trabalho Social and Legal Systems do Research Committe of Sociology of Law, segundo vice-presidente da Associação Brasileira dos Pesquisadores em Sociologia do Direito, membro do comitê executivo do World Consortium of Law and Society, membro do Collaborative Research Network on Law and Health da Law and Society Association, vice diretor científico da World Complexity Science Academy e avaliador institucional do INEP/MEC. Jayme Weingartner Neto possui graduação em Direito (UFRGS, 1990), mestrado em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (2000) e doutorado em Instituições de Direito do Estado (PUCRS, 2006). Atualmente é professor do curso de Direito e do Mestrado em Direito do Unilasalle e desembargador junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Leonel Pires Ohlweiler possui graduação em Direito (PUCRS, 1987), especialização lato sensu em Direito Civil (UNISINOS, 1996), mestrado em Direito (UNISINOS, 1999) e doutorado em Direito (UNISINOS, 2004). Atualmente é professor do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, desembargador junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Marco Felix Jobim possui graduação em Direito (ULBRA, 2000), especialização lato sensu em Saúde e Trabalho (UFRGS, 2002), especialização lato sensu em Direito Civil (UNIRITTER, 2004), especialização lato sensu em Direito Empresarial (PUCRS, 2005), mestrado em Direitos Fundamentais (ULBRA, 2009), doutorado em Direito (PUCRS, 2012). Atualmente é professor do curso de Direito e do PPG em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Marcos Jorge Catalan possui graduação em Direito (UEM, 1996), mestrado em Direito Negocial (UEL, 2004) e doutorado em Direito Civil (USP, 2011). Atualmente é professor do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, professor na Unisinos e em diversos cursos de especialização lato sensu. Maria Cláudia Mércio Cachapuz possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS, 1993) e Doutorado em Direito Civil (UFRGS, 2004). Atualmente é professora do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, professora da Escola

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Superior de Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e juíza de direito com atuação perante a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Paula Pinhal de Carlos possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (UNISINOS, 2005), mestrado em Direito (UNISINOS, 2007) e doutorado em Ciências Humanas (UFSC, 2011), com período sanduíche no Institut National d’Études Démographiques de Paris, França. Atualmente é professora do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle e professora do Centro Universitário Ritter dos Reis. Renata Almeida da Costa possui graduação em Direito (UPF, 1998), mestrado em Ciências Criminais (PUCRS, 2002) e doutorado em Direito (UNISINOS, 2010), com doutorado sanduíche na Universidade de Reading, Inglaterra. Atualmente é professora do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle e professora do Centro Universitário Ritter dos Reis. Salo de Carvalho possui graduação em Direito (UNISINOS, 1993), mestrado em Direito (UFSC, 1996), doutorado em Direito (UFPR, 2000), estágio pós-doutoral na Universidad Popeu Fabra, Barcelona, Espanha, estágio pós-doutoral na Universitá di Bologna, Itália e estágio pós-doutoral na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, professor colaborador da Universidade Federal de Santa Maria e professor visitante da Universidad Pablo de Olavide, Sevilha, Espanha. Selma Rodrigues Petterle possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS, 2003), mestrado em Direito (PUCRS, 2006) e doutorado em Direito (PUCRS, 2012), com doutorado sanduíche na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente é professora do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle e professora na Fargs/Estácio de Sá. Sérgio Urquhart de Cademartori possui graduação em Direito (UFSM, 1976), mestrado em Direito (UFSC, 1990) e doutorado em Direito (UFSC, 1997). Atualmente é professor do curso de Direito e do PPG em Direito do Unilasalle, professor visitante do doutorado da Universidade de Granada, Espanha, e da Universidade Técnica de Lisboa, Portugal.

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