O direito de autor diante do novo mercado da informação

May 26, 2017 | Autor: M. Sousa Alves | Categoria: Information Society, Copyright, Digital Copyright, Informational Capitalism, Direito de autor
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O DIREITO DE AUTOR DIANTE DO NOVO MERCADO DA INFORMAÇÃO Marco Antônio Sousa Alves1 1 INTRODUÇÃO São bastante conhecidos os desafios que a internet impôs ao modelo de proteção autoral que herdamos do século XVIII, baseado, quanto ao seu aspecto patrimonial, na concessão de um direito exclusivo e temporário de exploração comercial. Após décadas de era digital, vemos emergir mais claramente novos modelos que parecem deslocar o foco da regulação: da propriedade legal sobre o conteúdo das obras em direção a um novo tipo de controle sobre a informação e os meios de acesso. Mais do que jurídica ou estatal, essa nova forma de regulação é controlada geralmente por grandes corporações privadas e funciona em larga medida ao arrepio das determinações legais. O objetivo deste trabalho consiste em investigar essa transformação em curso e colocar em questão o futuro do direito de autor. Mais do que uma questão de evolução jurídico-doutrinária, entendendo que esse processo pode ser compreendido de modo mais adequado a partir de outra perspectiva, como o resultado de um conflito entre diferentes modelos de apropriação comercial, que opõe as grandes majors da indústria cultural do final do século XX às novas corporações do mercado da informação do século XXI. A crescente ampliação do escopo e dos prazos de proteção autoral, que marcou todo o século XX, parece ter perdido fôlego nos últimos anos. O direito de autor talvez esteja com seus dias contados, mas não em razão do mero avanço tecnológico ou dos movimentos de resistência (compartilhamento P2P, software livre, hackers, etc.), como muitos tinham imaginado. Não se trata de uma mera imposição tecnológica, como se o mundo digital simplesmente seguisse sua marcha inexorável, e nem de uma idílica vitória dos usuários e da cultura do compartilhamento sobre o mercado e suas estratégias de apropriação comercial. Ainda que as alterações tecnológicas sejam indispensáveis para o funcionamento da nova economia da informação, elas não constituem razão suficiente. Também a pirataria e as resistências ao avanço da mercantilização do mundo digital, por mais que tenham minado o antigo modelo comercial baseado na proteção do direito de autor, também não constituíram uma força suficiente para mudar o rumo da internet. Em suma, para compreender a erosão do direito de autor, entendo que é preciso olhar especialmente para as novas práticas de circulação e apropriação que acompanham o desenvolvimento da sociedade da informação, focalizando o novo modelo de exploração comercial e seus algoritmos. 2 O DECLÍNIO DO DIREITO DE AUTOR: INFORMAÇÕES E CÓDIGOS Gostaria de defender neste trabalho que o processo de erosão do direito de autor está intimamente associado a uma mudança no modelo de exploração comercial, que traz consigo novas práticas de produção, circulação e consumo. Procurando esclarecer esse processo, dois aspectos desse novo modelo emergente serão analisados. Em primeiro lugar (2.1), a foco recairá sobre a emergência de uma nova economia da informação, que faz frente à antiga indústria dos bens intelectuais. Em um segundo momento (2.2), abordar-se-á a maior eficácia da regulação por meio dos códigos ou algoritmos, ao invés das leis ou do direito. 1

Doutor em Filosofia pela UFMG, Pesquisador-Bolsista de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, [email protected].

2.1. A NOVA ECONOMIA DA INFORMAÇÃO A importância da informação no desenvolvimento do capitalismo já vem sendo destacada pelo menos desde os anos 1970, quando uma nova ordem pós-fordista e globalizada passou a ser concebida. Os limites do fordismo, assentado na produção em massa de bens e serviços, fez o capitalismo deslocar-se em direção a recursos imateriais, investindo em novas tecnologias da informação. Esse processo teria ganhado uma nova dimensão com a digitalização e a virtualização da informação, alterando substancialmente a própria atividade econômica.2 Esse processo de transformação do capitalismo em direção à apropriação e à exploração de bens imateriais passou, inicialmente, pela expansão das proteções conferidas à propriedade intelectual. Nas últimas décadas do século passado e nos primeiros anos do século atual, verificamos uma escalada legislativa, em nível interno, regional e internacional, no sentido de estender o prazo protetivo e o escopo de proteção dos bens imateriais e, especialmente, dos direitos de autor. Para exemplificar esse movimento, cito alguns documentos legais: no Brasil, a lei 9.610 de 1998, nos Estados Unidos, o Digital Millennium Copyright Act e o Copyright Term Extension Act, ambos também de 1998, na União Europeia, as Diretivas 2001/29 e 2006/116, e em âmbito internacional, o Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIP’s), aprovado no seio da OMC em 1994, e o WIPO Copyright Treaty (WCT), aprovado no seio da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) em 1996. Em linhas gerais, eles conferiram ao direito de autor uma dimensão bem maior: mais extenso (em geral conferindo uma proteção por setenta anos após a morte do autor), mas amplo (protegendo os softwares, os bancos de dados, etc.), mais restritivo (ampliando a noção de obra derivada e reduzindo o espaço do fair use por meio de mecanismos técnicos) e mais coercitivo (com leis mais severas e novos tipos penais). Em suma, a estratégia consistia em reduzir o domínio público (commons), de modo a explorar os bens intelectuais no mercado por mais tempo e de forma mais exaustiva. É nesse período que vemos se consolidar os grandes conglomerados da indústria cultural, as majors: Time Warner, Disney, Viacom/CBS, Bartelsmann e New Corporation. Na virada do século, essas cinco corporações controlavam mais de 80% da venda de livros nos Estados Unidos, faturando juntas mais de 100 bilhões de dólares.3 O mesmo quadro (ainda mais concentrado) ocorria no domínio da indústria fonográfica e cinematográfica. A força econômica dessas corporações fez nascer um lobby extremamente poderoso, capaz de resistir por um bom tempo à revolução que o meio digital e a internet anunciavam. Em uma época na qual a técnica permitia facilmente a cópia e a difusão a custo bastante baixo, era preciso combater a pirataria e produzir legalmente uma escassez artificial, de modo a gerar valor aos bens intelectuais. Uma nova fase nesse processo consistiu na formação de grandes monopólios privados sobre imensas bases de dados. Podemos citar como exemplo a Lexis-Nexis e a Thomson Publishing, que controlam grande parte das informações jurídicas, a Dow-Jones e a Nasdaq, no que diz respeito às informações financeiras, a Pfizer e a GlaxoSmithKline, quanto às 2

Cf. CASTELLS, M. A sociedade em rede. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 67-118; TAPSCOTT, D. The digital economy: promise and peril in the age of networked intelligence. New York: McGraw-Hill, 1996, p. 43-72; SHAPIRO, C. & VARIAN, H. R. A economia da informação: como os princípios econômicos se aplicam à era da internet. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 1999, p. 13-33. 3 Cf. SCHIFFRIN, A. O negócio dos livros: como as grandes corporações decidem o que você lê. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006, p. 19-23.

pesquisas médicas e à sequência do DNA humano, e a Reed Elsevier, a Springer e a Wiley, no campo da publicação científica.4 Certamente não faltaram resistências a esse processo, como as redes P2P, o torrent, o PirateBay e, quanto à publicação acadêmica, o Sci-Hub, por exemplo. Essa luta também produziu alguns mártires, como o jovem Aaron Swartz, um ciberativista norte-americano que se suicidou em 2012 aos 26 anos de idade, após ter sido condenado a cinquenta anos de prisão e mais U$ 4 milhões de indenização por quebrar os dispositivos de proteção e difundir artigos científicos da plataforma JSTOR. Mas entendo que, por maiores que tenham sido as resistências e suas conquistas, elas foram incapazes de frear a marcha crescente de comercialização da internet. O fantasma da pirataria, que tanto atormentara a indústria cultural no século passado, começava a ser domado e controlado. Em linhas gerais, o processo de apropriação mercantil do mundo virtual finalmente atingiu sua maturidade a partir da segunda década do século XXI, com a consolidação do mercado da informação e de novas corporações, que até poucos anos atrás não passavam de apostas visionárias, como a Google, o Facebook, e o Netflix. Ao invés de tentar proteger o conteúdo dos bens imateriais, impondo restrições e proteções, a nova estratégia econômica consistiu em permitir que a informação circulasse e fosse acessível. O modus operandi da Google e do Facebook ilustram bem esse ponto. Quanto mais acessos e dados são produzidos, maior a probabilidade de o Page Rank gerar informação relevante. Seguindo a máxima “você é o que você clica”, a Google sabe tanto mais sobre nós quanto mais indicadores de cliques têm a disposição. E o mecanismo do Facebook não é diferente, só que partindo da máxima “você é o que você compartilha”. Quanto mais compartilhamentos, mais temos nossa individualidade tornada transparente. A base de negócio das duas empresas é a mesma: nosso comportamento transforma-se em mercadoria no seio do novo capitalismo da informação.5 Em troca de certos serviços, fornecemos uma enorme quantidade de dados sobre nós mesmos: os sites que visitamos, as compras que realizamos, os amigos que temos, os assuntos que compartilhamos, os filmes que gostamos, os desejos que possuímos, etc. E é esse conhecimento que é vendido pela Google e pelo Facebook. Complexos algoritmos vasculham tudo que os internautas fazem visando, basicamente, conhecer suas preferências e vender publicidade direcionada. Esse novo negócio movimenta hoje bilhões de dólares e é capaz de fazer frente aos antigos modelos de exploração comercial dos bens intelectuais baseados na proteção conferida pelo direito de autor. Ilustra bem esse conflito o caso Authors Guild et al. v. Google, julgado pela New York Southern District Court e movido em 2005 contra o projeto Google Books por grandes entidades que representam os interesses dos autores e dos editores norteamericanos, como a The Author's Guild e a Association of American Publishers (AAP). 6 Embora, naquele momento, o acordo proposto pela Google não tenha prevalecido, creio que esse revés não freou em absoluto a expansão dos projetos da Google e nem o avanço do mercado da informação, de modo que a erosão do direito de autor, ao menos nos moldes como herdamos do século XVIII, parece apresentar-se em um horizonte próximo.

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Cf. GROSS, R. Buy the numbers: publishers seek special database monopoly protections. Multinational Monitor, 7-8, Julho-Agosto, 2004, n.p. 5 Cf. PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 25-46. 6 Cf. ALVES, M. A. S. & RODRIGUES, M. M. O projeto Google Books e o direito de autor: uma análise do caso Authors Guild et al.v. Google. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010, p. 7915-7919.

2.2. OS CÓDIGOS COMO AS NOVAS LEIS Além das mudanças trazidas pelo novo capitalismo da informação, outro eixo importante que também contribui para a erosão do direito de autor diz respeito aos novos modos de regulação da infosfera por meio dos códigos, entendidos aqui como simples regras técnicas ou algoritmos que estabelecem o que pode ou não ser feito no ambiente digital. Segundo o advogado norte-americano Lawrence Lessig, o idealizador do creative commons, o direito sofre um processo de enfraquecimento diante dos códigos que conformam o funcionamento e a arquitetura do ciberespaço.7 Cada vez mais nosso comportamento é regulado por dispositivos que permitem certos usos e impõem diversos limites e bloqueios. Um bom exemplo disso é o conjunto de tecnologias utilizadas em conteúdos digitais para controlar o uso e as cópias, que receberam o nome de DRM (digital rights management ou “gerenciamento de direitos digitais”). Desde 1996 que os DVDs fazem isso desse tipo de mecanismo, o chamado CSS (content scrambling system ou “sistema de embaralhamento de conteúdo”), que impõe restrições de visualização por meio de uma separação arbitrária do mundo em zonas de autorização. E não bastasse o caráter praticamente determinista dessas imposições técnicas, elas vieram ainda acompanhadas de uma severa persecução penal, uma vez que foi criminalizada qualquer tentativa de desbloquear tais dispositivos técnicos, mesmo quando a finalidade de tal “quebra” não contrarie qualquer direito protegido. Em razão de seu funcionamento automático, múltiplo, anônimo e maquinal, os códigos são mais abarcantes e eficientes do que qualquer arcabouço legal. Diferentemente das leis, os códigos não admitem apelação, contra eles não cabem recursos. Quanto aos seus efeitos, estão mais próximos das leis da natureza do que das normas do direito, na medida em que dispensam qualquer consentimento ou legitimação para se tornarem efetivos. Sua falta de transparência serve ainda como um convite para todo tipo de abuso. Em geral, somos reféns de suas determinações, muitas delas voltadas para atender interesses comerciais ou políticos que contrariam liberdades individuais e também direitos assegurados, especialmente aqueles em defesa do consumidor e da proteção da intimidade. Contra tais imposições tecnológicas, situadas aquém ou além das leis, pouco adianta travar uma disputa jurídica ou lutar por alterações legislativas. Coloca-se assim em questão a capacidade de o direito, com seus instrumentos tradicionais, ditar regras no ciberespaço e fazer com que suas garantias sejam respeitadas. Por enquanto, a sensação que prevalece é a de possuímos um direito ultrapassado, que age de forma desastrada e em descompasso com os desafios dos novos tempos. Mas se o direito não parece o terreno propício para travar uma luta contra o domínio dos códigos, vemos então emergir novas formas de resistência, como o movimento hacker, que visa justamente explorar os limites e as possibilidades dos sistemas técnicos de modo a permitir novos usos e experimentações. O movimento hacker se define não por ser uma luta ilegal, contra o direito, mas sim contra os códigos que controlam e limitam a liberdade dos usuários dos meios digitais. Mais do que uma transgressão do direito, a postura hacker consiste em uma subversão de outra lei, imposta pelos códigos, em nome de outra liberdade, que consiste em controlar os programas ao invés de ser controlado por eles. O hacker é, basicamente, alguém que faz os programas servirem aos usuários e não aos interesses mercantis e políticos daqueles que o elaboraram.8 7

Cf. LESSIG, L. Code: version 2.0. New York: Basic Books, 2006, p. 1-8. Cf. DEIBERT, R. J. Black code: surveillance, privacy, and the dark side of the internet. Toronto: McClelland & Stewart, 2013, p. 217-231; HIMANEN, P. The hacker ethic and the spirit of the information age. New York: Random House, 2001, p. 139-142. 8

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, entendo que o direito de autor está sofrendo um processo de erosão, mais visível desde o início do século XXI, em razão de pelo menos duas importantes transformações: o modelo comercial característico do novo mercado da informação; e as novas ferramentas técnicas de regulação que prescindem do direito e são mais eficazes do que qualquer documento legal. Apesar de ter ressaltado esses dois aspectos, reconheço que esse é um processo complexo e que diversos outros elementos também contribuem para esse fenômeno. E creio também que o termo “erosão”, aplicado aos direitos de autor, pode dar a falsa impressão de que se trata de um processo consumado, de uma batalha praticamente encerrada, da qual sabemos com clareza quais são os vencedores e quais os vencidos. Pelo contrário, trata-se ainda de uma luta viva, repleta de idas e vindas, de alterações de rota e de possíveis retrocessos, cujo resultado tem ainda a forma de um prognóstico. Entendo, contudo, que mais do que morto ou eliminado, o direito de autor deverá sair transformado dessa batalha, de modo que algumas categorias herdadas do século XVIII devem permanecer, ainda que com alguns deslizamentos, no seio da nova regulação que emerge na sociedade da informação. REFERÊNCIAS ALVES, Marco Antônio Sousa; RODRIGUES, Mateus Marconi. O projeto Google Books e o direito de autor: uma análise do caso Authors Guild et al.v. Google. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. p. 7915-7927. Disponível em: . Acesso em: 15/10/16. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. DEIBERT, Ronald J. Black code: surveillance, privacy, and the dark side of the internet. Toronto: McClelland & Stewart, 2013. GROSS, Robin. Buy the numbers: publishers seek special database monopoly protections. Multinational Monitor, vol. 25, n. 7, Julho-Agosto, 2004. Disponível em: . Acesso em: 15/10/16. HIMANEN, Pekka. The hacker ethic and the spirit of the information age. New York: Random House, 2001. LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. New York: Basic Books, 2006. PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. SCHIFFRIN, André. O negócio dos livros: como as grandes corporações decidem o que você lê. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. SHAPIRO, Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação: como os princípios econômicos se aplicam à era da internet. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 1999. TAPSCOTT, Don. The digital economy: promise and peril in the age of networked intelligence. New York: McGraw-Hill, 1996.

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