O Direito Fundamental à Saúde e a Judicialização no Brasil. A Saúde como Direito Humano e sua Tutela Processual.

June 19, 2017 | Autor: Murillo Sapia Gutier | Categoria: Human Rights, Direito Processual Civil, Direitos Humanos, Direito à Saúde, Civil Procedural Law
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O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A JUDICIALIZAÇÃO NO BRASIL. A SAÚDE COMO DIREITO HUMANO E SUA TUTELA PROCESSUAL. Murillo Sapia Gutier1 Rubens Correia Junior2 Carla A. Arena Ventura3

INTRODUÇÃO A interseção entre o Direito e a Saúde nos dias atuais é o resultado formal de diálogos entre o biológico, o social e o cultural a partir da construção de mecanismos próprios de interação. Nessa perspectiva, o direito à saúde reflete a dinâmica de interação social utilizada para a regulação das ações e serviços de interesse das pessoas com relação à sua saúde. Assumir que a saúde é um direito fundamental implica considerar as transformações a que têm passado durante as últimas décadas as concepções do que é saúde e, em particular, a ampliação do conceito de saúde (NUNES, 2013). Nesse sentido, os esforços da Organização Mundial da Saúde (OMS) em aumentar mais efetivamente a implementação do direito à saúde, por meio de programas diversos, têm conseguido significativo avanço. Entretanto, podese ainda afirmar que há generalizada exclusão social em saúde no globo (SCHRECKER, 2011). Nesse cenário, a ênfase no sistema de proteção de direitos humanos pode constituir um direcionamento importante no sentido de diminuição das grandes lacunas existentes no exercício do direito à saúde na maioria dos países do mundo, inclusive os países desenvolvidos. O início deste processo, com certeza, deve envolver a adoção de legislações nacionais para a implementação do direito à saúde (VENTURA, 2011). Dessa forma, os governos possuem responsabilidades pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas 1

Advogado. Professor de Direito Processual em Cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Mestre em Direito pela PUC-MG. Graduado em Direito pela Universidade de Uberaba. 2 Advogado. Professor de graduação e pós-graduação em Criminologia, Direito Penal, Direito e Saúde e Instituições de controle. Graduado em Direito pela Universidade de Uberaba. É Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade de Franca, Pós-graduado em Criminologia pela PUC/BH. Aluno regular do mestrado do Programa de Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. 3 Advogada, Professora Associada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

sanitárias e sociais efetivas. O direito à saúde exige a interação entre o Estado e a sociedade, voltada ao desenvolvimento das condições que permitirão o acesso à saúde (LAFER, 1988). Dessa forma, quando se vislumbra a incapacidade de se consolidar e democratizar os serviços de saúde, ocorre a judicialização como saída (MACHADO, 2008) e as dificuldades do Estado em garantir os serviços básicos de saúde fica evidenciada pelo aumento das demandas judiciais nos últimos anos (CHIEFFI, BARATA, 2009). Os problemas vivenciados no acesso aos serviços de saúde ficam ainda mais evidentes na assistência farmacêutica, mais especificamente em relação ao acesso da população aos medicamentos essenciais em doenças como de Crohn, a hepatite viral crônica C, a doença renal em estágio final, a hipertensão arterial e a doença isquêmica crônica do coração (MESSEDER, OSORIO-DECASTRO, LUIZA, 2005). Com a não concretização das políticas públicas de saúde previstas no artigo 196, tivemos a inserção de grupos da sociedade civil provocando o Judiciário, por meio da cláusula da inafastabilidade do controle jurisdicional, assim como a abertura constitucional4 para o controle externo por parte do Ministério Público e Defensoria Pública, fazem com que haja

uma

ressignificação do paradigma de cidadania5, qual seja, antes relegado somente à definição pelo Poder Público, para uma participação ativa e direta da sociedade nas políticas públicas (MACHADO, 2008). No entanto, em uma reflexão sobre a participação ativa dos cidadãos nas políticas públicas de saúde, salienta-se que o Ministério Público tem dado prevalência às ações de cunho individual de medicamentos, frente à ações que conduzam necessariamente a uma revisão direta das condutas e políticas públicas (MACHADO, 2008). A judicialização se torna, portanto, relevante frente à inércia do Estado em proporcionar e garantir o acesso à saúde a todo cidadão. Outrossim, é impreterível que se destaque o direito à saúde como um bem coletivo acima 4

Por meio da consagração institucional de funções de controle por meio da propositura de ações coletivas. Para fins do presente artigo, adota-se o conceito arendtiano de cidadania exposto na obra “Origens do Totalitarismo”, qual seja, cidadania como direito de ter direitos (2013). Piovesan (2014) ressalta que “hoje se pode afirmar que a realização plena e não apenas parcial dos direitos da cidadania envolve o exercício efetivo e amplo dos direitos humanos, nacional e internacionalmente assegurados”. 5

dos interesses individuais e, nesse sentido, a judicialização deve ser ponderada

frente

à

coletivização

das

demandas,

visando

solucionar

preferencialmente ameaças ou lesões de massa. Essa coletivização da judicialização e a consequente garantia dos direitos fundamentais de todo cidadão passa necessariamente pela reflexão sobre a tutela processual coletiva do direito à saúde, e como o Supremo Tribunal Federal interpreta o direito fundamental à saúde, entendendo a busca desses direitos como um importante passo ao pleno exercício da cidadania. Não obstante, ressalta-se que o excesso de demandas individuais pode contribuir para que políticas públicas de saúde sejam obstadas e inibidas, para que o poder público cumpra ordens judiciais pontuais. Nesse contexto, o presente artigo apresenta como objetivo discutir a judicialização e a sua relação com a efetividade do direito fundamental à saúde. Para tanto, discorrerá sobre a fundamentalidade do direito à saúde, no contexto constitucional e internacional de direitos humanos, enfatizando-se que a não implementação desse direito, em um Estado Constitucional e Democrático, acarreta efeitos indesejáveis, justificando a judicialização. Em seguida, serão descritos alguns parâmetros de atuação demarcados pelo Supremo Tribunal Federal acerca da judicialização da saúde, assim como será enfatizada a importância da tutela coletiva desse imprescindível direito social. Para a elaboração do artigo, os autores embasaram-se na análise da literatura jurídica brasileira e estrangeira, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A abordagem metodológica6 apresenta aspecto essencialmente dogmático, em que se divide nas dimensões analítica, por meio da análise conceitual de inúmeros pontos fundamentais. Há uma dimensão empírica da dogmática, por meio da análise do direito vigente no plano interno e internacional e sua aplicabilidade pela Corte Suprema Brasileira. O presente artigo, portanto, não se esgotando em si mesmo, apresenta uma prescrição normativa de soluções, de modo a propiciar uma tentativa de abertura à discussão e operacionalização acerca da efetividade dos direitos fundamentais sociais, notadamente a saúde.

6

Acerca das diferenças entre metodologia e abordagem metodológica em Direito, vide SILVA, 2005, p. 25-26.

A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

O constitucionalismo contemporâneo consagra os direitos fundamentais como dimensão substancial da democracia (FERRAJOLI, 2003) e afirma que hodiernamente a Constituição não é apenas o “estatuto jurídico do político”, mas, visa resguardar – proteger e promover – os direitos fundamentais que têm como

núcleo

axiológico

a

dignidade

humana

(SARLET,

2009;

FENSTERSEIFER, 2008). A dignidade da pessoa humana foi erigida como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e, dentre os objetivos fundamentais enunciados ressaltam-se a necessidade de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III) e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). O grande desafio consiste em delimitar o conteúdo jurídico da dignidade humana e relacioná-lo com os objetivos prescritos na Magna Carta Brasileira, de modo que se erijam os contornos fundamentais do direito à saúde. O Constitucionalismo decorrente do pós-guerra mudou o paradigma do Estado, que deixou de ser “Legislativo”, para ser considerado Estado Constitucional. Esta nova realidade Constitucional, avessa ao modelo totalitário, aproximou Direito e moral. No modelo contemporâneo de democracia, tracejado por Constituições rígidas, para a configuração de validade formal e substancial das decisões políticas, as Leis e atos normativos devem

guardar

coerência

substancial

com

os

direitos

fundamentais

estampados no texto constitucional (FERRAJOLI, 2003, p. 230). O Estado Constitucional Democrático é considerado mais que Estado de Direito, apresentando uma tripla legitimidade como característica fundamental: a) assenta na legitimidade do direito, b) dos direitos fundamentais e c) do processo de formação das leis. Dentes essas perspectivas, a carta de direitos fundamentais presente na Lei Maior representa o ponto de legitimação para o exercício do poder político (CANOTILHO, 2002, p. 100).

A afirmação de que o exercício do poder político é legítimo se pautar na efetividade dos direitos fundamentais é de crucial importância, uma vez que a Constituição do Brasil estabelece textualmente que a saúde é direito de todos e prescreve que consiste em dever do poder público implementá-lo (art. 196). A democracia e os direitos fundamentais são os “fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes do Estado democrático de direito” (BINEMBOJM, 2008, p. 49), expressando – os direitos fundamentais – a dimensão substancial da democracia, de modo que “há entre direitos fundamentais e democracia uma relação de interdependência ou reciprocidade” (BINEMBOJM, 2008, p. 50), ou seja, há “íntima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais e as noções de Constituição e Estado de Direito” (SARLET, 2009, p. 59). Os direitos fundamentais são, neste diapasão, “conditio sine qua non do Estado constitucional democrático” (SARLET, 2009, p. 59). Ao se conjugar direitos fundamentais e democracia, em uma relação de reciprocidade, surge o Estado democrático de direito, “estruturado como conjunto de instituições jurídico políticas erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e promover a dignidade da pessoa humana” (BINEMBOJM, 2008, p. 50-51), isto é, a dignidade humana consiste no epicentro axiológico, razão última de sua própria existência (FENSTERSEIFER, 2008, p. 32). Assim sendo, a perspectiva atual do Estado é fundada no princípio da Constitucionalidade, em que a Magna Carta é a norma suprema do ordenamento, vinculando o legislador e as manifestações estatais aos preceitos constitucionais, “estabelecendo o princípio da reserva da constituição e revigorando a força normativa da constituição” (SOARES, 2001, p. 304). O surgimento dos direitos fundamentais tem como pretensão o reconhecimento de uma multiplicidade de elementos que integram o conceito de dignidade humana, podendo-se afirmar que apresenta várias dimensões (SARLET, 2008; GUTIER, 2013). A vida, liberdade, igualdade, solidariedade, reconhecimento, segurança – social e jurídica – apresentam-se como núcleos axiológicos da dignidade humana.

A DIGNIDADE HUMANA, OS DIREITOS SOCIAIS E A SÁUDE

A dignidade é qualidade intrínseca da pessoa humana e por ser o núcleo de fundamentação dos direitos humanos – posto que só existem para promover e proteger a dignidade humana – é reconhecida, contemporaneamente, sua irrenunciabilidade e inalienabilidade, posto ser “elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado” (SARLET, 2009, p. 20). O reconhecimento jurídico dos direitos sociais passa pela constatação de que a justiça social é imprescindível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, livre de qualquer forma de exclusão. A matriz liberal consagrou direitos fundamentais de cunho negativo (status negativus), permeados por direitos de oposição ou resistência contra o Estado (SARLET, 2009, p. 47). Neste modelo, o núcleo moral do liberalismo consistiu na “afirmação de valores e direitos básicos atribuíveis à natureza do ser humano – liberdade, dignidade, vida – que subordina tudo o mais à sua implementação” (STRECK e MORAIS, 2010, p. 58). Dimoulis e Martins salientam que os direitos individuais, que norteiam este modelo são também conhecidos como dimensão subjetiva dos direitos fundamentais (2007, p. 67, 117 e 118).7 Entretanto, a história mostrou que não basta garantir formalmente a liberdade e a igualdade aos indivíduos se estes não dispõem de um mínimo existencial. A ideia de justiça social começou a ser reivindicada a partir da industrialização dos meios de produção, que acarretou graves problemas sociais, de modo que a mera previsão de liberdade e igualdade não eram suficientes para que os indivíduos fossem, de fato, livres e iguais (SARLET, 7

Sob o prisma geracional ou dimensional, que divide os direitos fundamentais em eras, o modelo liberal consagrou o que a doutrina chama de direitos fundamentais de primeira dimensão (Bonavides, 2002, p. 516). No que concerne ao “núcleo político-jurídico”, consagrou direitos políticos, salientando, conforme Streck e Morais (2010, p. 59), o consentimento individual como origem dos poderes estatais e da autoridade política e a representação do povo por meio do poder legislativo, a quem competia tomar as decisões. No que tange ao constitucionalismo, elaborou-se um documento formal escrito limitador e divisor do poder político, prevendo um sistema de freios e contrapesos entre os poderes, bem como consagrou direitos fundamentais para o indivíduo (Streck e Morais, 2010, p. 59). Especificamente quanto à seara privada, o Direito torna-se disciplinado pelo Estado, por meio de codificação, uma vez que previsto e sistematizado pelo legislador, o que antes era relegado aos costumes, aos ensinamentos doutrinários ou ao direito canônico, no que concerne ao casamento, família, filiação e sucessões (Facchini Neto, 2003, p. 17). Outro viés que se verifica é que o Direito Privado se impregnou da ideologia burguesa dominante à época, de modo que refletiu os desejos desta classe sócio-econômica, regulando a sociedade civil, assim, sob os valores do liberalismo, delineados pela propriedade, como valor primordial, e a “liberdade contratual como instituto auxiliar para facilitar as transferências e a criação de riqueza” (Facchini Neto, 2003, p. 18). Explica Facchini Neto que o primado da segurança jurídica fez com que o direito privado se sobrepusesse ao público e a técnica legislativa era representada normativamente por regra jurídica, “contendo fattispecie completa (preceito e consequência jurídica)”, de modo que princípios expressos e cláusulas gerais eram rarefeitos e “parcimoniosos os conceitos indeterminados” (2003, p. 21).

2009, p. 47). O Estado Social de Direito ou Welfare State consagrou direitos de status positivo, ou seja, direitos a prestações por parte do Estado, de modo que os indivíduos possam “exigir determinada atuação do Estado no intuito de melhorar as condições de vida” (DIMOULIS e MARTINS, 2007, p. 67). No prisma internacional, igualmente relevante, no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde, houve o reconhecimento expresso na sua base principiológica de que a saúde constitui um direito fundamental de todos os seres humanos, sem qualquer distinção (Ventura, 2011),8 constituindo um núcleo heterogêneo de posições jurídicas, tal qual afirmadas pela Carta Maior Brasileira, assim como na ordem jurídica internacional, de modo a contribuir para resguardar um contrabalanço das desigualdades fáticas, que ocorre por meio da instituição de direitos fundamentais que assegurem direito a prestações por parte do Estado (SARLET, 2009). O grande propósito dos direitos fundamentais sociais consiste na busca pelo reequilíbrio existente nas múltiplas condições de vida material existentes no seio social, seja individual ou coletivamente. Dessa forma, afirma-se que estão ligadas com o princípio da igualdade, de viés marcadamente inclusivo (FIGUEIREDO, 2007). A fundamentalidade do direito social à saúde pode ser explicada por duas frentes: (a) formal e (b) material. A primeira se justifica pela previsão expressa no texto constitucional do rol dos direitos sociais (art. 6º) e no capítulo atinente Conforme Ventura (2011, p. 48), “a Organização Mundial da Saúde (OMS) constitui uma organização universal e técnica, pois atua diretamente na área da saúde. Integrante do sistema ONU, iniciou funcionamento em 1948, segundo as regras previstas em seu tratado constitutivo. Desse modo, o art. 1º de sua Constituição prevê que o papel da OMS é possibilitar para todos os povos o melhor nível de saúde possível. No preâmbulo da Constituição da OMS, os Estados partes declaram que, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, os seguintes princípios são básicos para a felicidade, relação harmoniosa e segurança de todos os povos: a) saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doenças ou enfermidades; b) o gozo do maior padrão de saúde desejado é um direito fundamental de todos os seres humanos, sem distinção de raça, religião, opção política e condição econômica e social; c) a saúde de todos os povos é fundamental para a consecução da paz e segurança e depende da cooperação dos indivíduos e dos Estados; d) o sucesso de um país na promoção e proteção da saúde é bom para todos os países; e) o desenvolvimento iníquo em diferentes países para a promoção da saúde e controle de doenças, especialmente as contagiosas, é um perigo comum; f) o desenvolvimento da saúde da criança é de importância básica; g) a extensão para todos os povos dos benefícios advindos dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir a saúde; h) opinião informada e cooperação ativa do público são de importância crucial na melhoria da saúde da população; i) governos têm responsabilidade pela saúde de seus povos, que pode ser garantida apenas por meio da adoção de medidas sociais e de saúde adequadas. Esses princípios são os grandes pilares que regem o Direito Internacional da Saúde (OMS, 1946) e reforçam a relevância estratégica da saúde para o desenvolvimento”. 8

à seguridade social, reconhece o texto constitucional a saúde como direito que anseia pela consagração de segurança social a todos, indistintamente, fixando ao poder público o dever geral de proteção (art. 196). O caráter fundamental, na acepção material, é retratada pela sua correlação essencial para a conservação digna da vida humana, de modo que é condição fundamental para usufruir dos demais direitos, sejam fundamentais ou não (FIGUEIREDO, 2007). Um ponto de especial relevância consiste na possibilidade de controle da implementação dos direitos sociais, por se enquadrarem nos direitos fundamentais, por parte do Poder Judiciário, por meio da cláusula de inafastabilidade do controle jurisdicional estampada no art. 5º, XXXV da Constituição do Brasil. Em se considerando que o Estado Constitucional Brasileiro tem por fundamento a promoção e proteção dos direitos fundamentais e sendo a saúde essencial para a satisfação de interesses e necessidades fundamentais, conforme ressaltado, o direito fundamental à saúde é erigido ao centro dos valores reivindicados atualmente como de validade universal, uma vez que no seu ponto de convergência está a promoção e proteção da vida, para propiciar a existência com dignidade. Isto significa que a afirmação do direito à saúde permeia o imaginário axiológico social como condição mínima para que as pessoas possam construir sua vida com dignidade, liberdade e igualdade (HEINTZE, 2009, p. 22). Nessa perspectiva, o processo de internacionalização dos Direitos Humanos, dentre eles o direito à saúde, não passou despercebido pelo Constituinte de 1988, de modo que houve a identificação da fundamentalidade de tal direito, soerguido ao patamar constitucional no artigo 196, por meio da constitucionalização de direitos e deveres em matéria deste imprescindível direito social, em que reconheceu-se a importância de uma especial proteção normativa. Dada a ideia de supremacia das normas constitucionais, fez com que todo o ordenamento infraconstitucional deva guardar compatibilidade com a norma maior. Ao se falar em constitucionalização dos direitos sociais, notadamente a saúde, “a ideia mestra é a irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais (SILVA, 2005, p. 39)” para todo o ordenamento jurídico, vinculando o Legislativo, Executivo e Judiciário.

Como o constitucionalismo contemporâneo é marcado pela valorização dos princípios jurídicos e, com a ampla concepção de que possuem força normativa e aplicabilidade plena na solução dos casos, a constitucionalização do direito à saúde, abriu o espaço para o uso da argumentação constitucional para o controle das omissões dos Poderes Legislativo e Executivo.

O PORQUÊ DA JUDICIALIZAÇÃO

No modelo de Estado Constitucional contemporâneo, que apresenta estruturas democráticas, há a afirmação e valorização de princípios jurídicos, que possuem, como característica primordial, força normativa e aplicabilidade plena na solução dos casos, notadamente os casos difíceis9, valendo-se de métodos abertos para a solução dos casos, como a ponderação e teorias da argumentação jurídica como método de solução (BARROSO, 2009). Igualmente, apresenta o Estado Democrático como característica marcante a constitucionalização dos direitos, pela previsão de pontos centrais dos diversos ramos do direito na Magna Carta ou pela irradiação dos seus efeitos para os diversos ramos, uma vez que é a norma suprema do ordenamento interno e o corpo normativo infraconstitucional deve guardar consonância com seus postulados (BARROSO, 2009; GUTIER, 2013). Outro aspecto importante consiste na aproximação entre Direito e moral, que são estudados como objetos compartilhados, o que culmina com a abertura filosófica nos embates jurídicos (SARMENTO, 2009, p. 9-10). Guastini (2007, p. 271-293) elucida, de modo pormenorizado, as condições para a constitucionalização do ordenamento: 1) Previsão de uma Constituição Rígida; 2) Garantia jurisdicional da Constituição; 3) Força vinculante da Constituição; 4) 9

Partindo do pressuposto corrente na jurisdição constitucional contemporânea que estabelece uma díade hard cases (casos difíceis) e easy cases (casos simples). Casos difíceis seriam os que envolvem o balanceamento de bens jurídicos envolvidos e que apresentam alguma ou grande repercussão. BARROSO (2013) ressalta que “De fato, Kelsen reconheceu que a decisão judicial é um ato político de escolha entre as possibilidades oferecidas pela moldura da norma. E Hart proclamou que, além dos casos simples, solucionados com base no texto legal e nos precedentes, existem os “casos difíceis” (hard cases), que envolvem o exercício de discricionariedade judicial”. No item 6.3., ressalta BARROSO (2013) que “Os elementos mencionados – ambiguidade da linguagem, desacordo moral e colisões de normas – recaem em uma categoria geral que tem sido referida como casos difíceis (hard cases). Nos casos fáceis, a identificação do efeito jurídico decorrente da incidência da norma sobre os fatos relevantes envolve uma operação simples, de mera subsunção”.

Sobreinterpretação da Constituição; 5) Aplicação direta da Constituição; 6) Interpretação das leis conforme a Constituição; 7) Questões políticas sendo discutidas no âmbito judicial. Quanto ao primeiro ponto – o da Previsão de uma Constituição Rígida – a questão primaz acerca da análise de um ordenamento constitucionalizado consiste na verificação da existência de uma Carta Constitucional escrita, dotada de mecanismos rígidos quanto ao poder de reforma, de modo que seja protegida quando confrontada com a legislação ordinária (FIGUEROA, 2009, p. 458), apresentando, por oportuno, uma blindagem normativa no processo de mutação formal, se comparado com o modelo adotado pelas leis ordinárias, em que que não pode haver derrogação, modificação ou ab-rogação, a não ser se houver procedimento especial para tanto (GUASTINI, 2007, p. 273). Outro fator que decorre da adoção de uma Constituição Rígida consiste na previsão escalonada do ordenamento jurídico, isto é, a previsão de níveis hierárquicos entre as normas, de modo que a Constituição seja alçada ao patamar superior (GUASTINI, 2007, p 273). No que tange à garantia jurisdicional da Constituição, impende ressaltar que, não obstante vislumbrar uma carta de direitos fundamentais promovendo e protegendo as múltiplas dimensões da dignidade humana, um ordenamento constitucionalizado

deve

prever

um

sistema

de

garantias

igualmente

fundamentais, instituindo um aparato estatal contramajoritário, que visa justamente salvaguardar e declarar o conteúdo essencial dos direitos, fundamentais ou não, e este é um ponto fundamental para a compreensão da judicialização, uma vez que a própria Carta Maior deve ter no seu arcabouço institucional mecanismos de controle de conformidade constitucional das leis e dos atos normativos (GUASTINI, 2007, p 274; FIGUEROA, 2009, p. 458; GUTIER, 2013). A força vinculante da Constituição, igualmente enfatizada, implica que no Estado Constitucionalizado, o texto da Carta Magna seja considerado como “verdadeira norma jurídica e não como simples declaração programática” (FIGUEROA, 2009, p. 459), e este aspecto é crucial para se interpretar o artigo 196 que aduz que “saúde é direito de todos e dever do Estado”. Nesse sentido, é imperioso ressaltar que tal previsão apresenta consequências jurídicas, uma vez que um aspecto essencial do Constitucionalismo Contemporâneo consiste

na “compreensão de que a Constituição é um conjunto de normas vinculantes” (GUASTINI, 2007, p. 275). Isto significa, nesta ordem de ideias, que as normas constitucionais, sem exceção, independentemente do conteúdo ou estrutura, são dotadas de aplicabilidade e obrigam seus destinatários, não sendo simples programas políticos ou relação de recomendações aos poderes e aos particulares (CARBONELL, 2009, p. 203). Alie-se a tal característica o disposto no artigo 5º, § 1º, que estabelece peremptoriamente a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais previstas no texto constitucional, o que enseja, em outros termos, a aplicação direta do conteúdo jurídico exposto no texto constitucional. Uma outra característica apontada por Carbonell (2009) e Guastini (2007) consiste na denominada sobreinterpretação da Constituição. Esta perspectiva consiste em que os intérpretes, sejam quais forem (juízes, órgãos estatais ou juristas), não podem valer-se da interpretação literal da Constituição, mas sim da sua interpretação extensiva, uma vez que a Magna Carta é finita e não abarca todos os aspectos da vida política e social. O texto constitucional abrange uma parte apenas dos aspectos essenciais e, mesmo em questões ligadas à saúde, não contemplou todas as esferas de atuação, de modo que é necessária a interpretação extensiva acerca do conteúdo essencial dos direitos individuais e coletivos e deveres estatais de tutela. Em havendo “falhas normativas” (GUASTINI, 2007), deve-se valer da sobreinterpretação do texto maior, de modo a evitar lacunas, construindo normas implícitas para suprir as omissões, sempre no sentido da melhor promoção e proteção dos direitos fundamentais em apreço. Com relação à interpretação das leis conforme a Constituição, trata-se de método de interpretação da lei e dos atos normativos e não da Constituição (CARBONELL, 2009, p. 205; GUASTINI, 2007). Uma perspectiva interessante é a de não tratar apenas do binômio constitucionalidade (compatibilidade) ou inconstitucionalidade (incompatibilidade) das normas, sendo possível o uso de sentenças intermediárias, interpretativas ou manipulativas, que podem ser redutoras, aditivas ou substantivas na concretização dos direitos fundamentais, que apresentam, como característica, a delimitação do sentido das normas

constitucionais, outorgando ao Tribunal Constitucional tal perspectiva de atuação. Quanto ao último ponto, tendo em vista o patente cunho moral e político dos princípios constitucionais, a Constituição disciplina as relações políticas, uma vez que a regência das relações de poder do Estado é minuciosamente tratada na Carta Maior (FIGUEROA, 2009, p. 459; CAMBI, 2009). Outro aspecto relevante consiste, no caso brasileiro, ao que a doutrina processualista enuncia de princípio da universalidade de jurisdição, esculpido no artigo 5º XXXV que diz que “a lei não excluirá da apreciação do Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”, de modo que toda lesão ou ameaça pode ser discutida no Judiciário. A denominada judicialização da política, consiste, por oportuno, na apreciação, pelo Poder Judiciário, do cumprimento ou não dos direitos e deveres constitucionais por via do direito de ação. Deveras,

com

a

constitucionalização

do

Direito



fruto

do

constitucionalismo contemporâneo, tivemos com a afirmação dos direitos humanos no texto constitucional, operando-se uma verdadeira ressignificação do que vem a ser uma Constituição, direitos e deveres fundamentais. Tal perspectiva refletiu no trato político e na desconsideração histórica dos direitos e, nunca é demais recordar, que a própria Magna Carta é, hodiernamente, “a maior de todas as criações políticas” (CAMBI, 2009, p. 211). A função contramajoritária da Jurisdição Constitucional consiste em não deixar nas mãos de uma maioria parlamentar os ditames prescritos no texto constitucional. Parcela da doutrina apresenta esta função como sendo o deslocamento do poder de dar a última palavra acerca da interpretação da Constituição das mãos do Executivo e Legislativo, para o Judiciário, no contexto do Estado Contemporâneo, democrático e Constitucional (CAMBI, 2009; BARROSO, 2009). O ponto central das chamadas “political questions” consiste na disciplina jurídico-política no texto maior, bem como a incumbência atribuída ao aparato jurisdicional, em “examinar a argumentação política que está subjacente às normas jurídicas” (FIGUEROA, 2009, p. 459). Assim sendo, no Estado Constitucional há a abertura institucional judiciária, que assume a função de garante das lesões ou ameaças a Direitos (artigo 5º, XXXV), tendo sido o Supremo Tribunal Federal erigido como o guardião da Constituição (art. 102, caput), ou seja, o intérprete autorizado pelo

Constituinte a proferir o conteúdo essencial dos direitos constitucionais, fundamentais ou não.

O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NA PERSPECTIVA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal assentou que a saúde é direito público subjetivo assegurado a todas as pessoas, identificado na perspectiva individual, assim como na dimensão coletiva de proteção da saúde (MENDES, 2012). Há precedentes na Corte Suprema de que deve haver a implementação de políticas públicas que visem promover, proteger e recuperar a saúde, por meio de políticas sociais e econômicas, salientando, ainda, que não há direito absoluto a todo e qualquer procedimento (STF - Recurso Extraordinário n° 271.286 – Relator Ministro Celso de Mello). O julgamento em apreço é tratado pela doutrina como leading case (MENDES, 2012) – apesar de o Supremo Tribunal Federal ter inúmeros outros –, e ressaltou que o conteúdo essencial do direito à saúde abrange (a) Serviços de Saúde; (b) Assistência Farmacêutica e (c) Serviço Médico Hospitalar. Esta conclusão é fundamental para delimitar a significação jurídica a que todos fazem jus, assim como demarcar aquilo que ocupa o conteúdo do dever fundamental estatal, que deve ser efetivado na perspectiva individual, por meio de ações específicas, assim como – e principalmente – por meio da instituição de políticas públicas visando a redução de risco de doenças e outros agravos, que compreendem a dimensão coletiva. Há um acórdão paradigma do Supremo Tribunal Federal que ressalta a fundamentalidade do direito à saúde, e que, ao se falar da saúde, enfatizou que se trata de “direito público subjetivo”, “prerrogativa jurídica indissociável assegurada a todas as pessoas”, “bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público” (AgRg-RE nº 271.286/RS, Relator Ministro Celso de Mello). No que tange à possibilidade de judicialização da saúde, o julgado em apreço ressaltou que “o Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional

de sua atuação no plano da organização federativa, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional”. Um outro ponto fundamental consiste na afirmação categórica do Ministro Relator que a interpretação do direito fundamental à saúde – de sua implementação – “não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente” sob pena de o Poder Público fraudar e frustrar as justas expectativas coletivas, tratando-se – a não concretização do direito à saúde – em “infidelidade governamental”, “gesto irresponsável”, uma vez que o artigo 196 consagra um “impostergável dever” (AgRg-RE nº 271.286/RS, Relator Ministro Celso de Mello).

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE FRENTE À RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO

Consoante ressaltado, a constitucionalização do direito à saúde não pode ficar relegada à discricionariedade do Poder Público, sob pena de termos uma previsão simbólica desse fundamental direito social. Contudo, como um processo recente, o tema da judicialização da saúde é, ainda, de difícil conceituação (OLIVEIRA, 2010). Para limitar e definir o tema, é necessário fazer referência ao trabalho pioneiro dos autores Tate e Vallinder (1995) que edificaram o conceito de judicialização no artigo “The Global Expansion of Judicial Power”. Neste trabalho, tais autores afirmam que a judicialização é um processo de transferência e convergência das decisões sobre direitos do cidadão em todos os âmbitos para as cortes legais (VALLINDER, 1995). Nesse contexto, observa-se a ampliação da participação do Poder Judiciário nos processos decisórios, nas relações sociais e políticas, em especial na saúde. Representa a implementação do direito constitucional à saúde por intermédio do Poder Judiciário (VALLINDER, 1995). Resta saber como se efetiva tal interferência e ingerência por parte do Poder Judiciário e, principalmente se a judicialização contribui e patrocina uma assimetria de direitos em nossa sociedade, ou pelo contrário, se contribui

para a inclusão de grupos marginais ao sistema de direitos e garantias fundamentais (MACHADO, 2008). Essa expansão das possibilidades de representação do cidadão é sintetizada por Burgos e Viana (2002) como a junção entre a cidadania política e uma cidadania social que culmina com a pluralização da soberania, uma vez que o cidadão não tem mais apenas a possibilidade de representação indireta e eleitoral, mas pode agir e decidir diretamente em seu próprio nome, generalizando-se a representação. Se for feita uma análise fria do acórdão paradigma descrito no item anterior - (AgRg-RE) nº 271.286/RS –, parece-nos que, dos trechos em destaque, o Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento de que, se houver a omissão do Poder Público quanto à implementação do direito à saúde, esta negligência é reprovável e o censor10 das omissões, tutor da sociedade órfã, é o Poder Judiciário.

Tutela processual coletiva do direito à saúde No que tange à tutela processual coletiva dos direitos, na década de 1980 tivemos no Brasil um movimento de estabelecimento e afirmação do acesso à justiça, que teve o condão de criar mecanismos processuais próprios para propiciar a defesa em juízo dos direitos coletivos, entendidos, grosso modo, como direitos pertencentes a toda a sociedade (GUEDES, 2011),11 sendo que, ao pertencer a toda a coletividade, são designados de transindividuais ou metaindividuais (MARINONI; ARENHART, 2012). A perspectiva estatal no controle jurisdicional de lesões ou ameaças a Direitos retratada no artigo 5º, XXXV da Constituição do Brasil passa pela análise de três condições, que são descritas pelos elementos (a) interesse; (b) legitimação para agir; (c) possibilidade jurídica do pedido. O sistema brasileiro

Conforme o Dicionário Eletrônico Houaiss, censor, na antiga Roma, era o “magistrado que recenseava a população, cuidava da arrecadação dos impostos e era responsável pela manutenção dos bons costumes”. 11 Para fins do presente trabalho, não serão feitas digressões sobre as categorias de direitos coletivos delineada no Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), que aduz os direitos coletivos em subcategorias, como direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, consolidando, no senário brasileiro. O denominado CDC consiste, segundo a doutrina pacífica, em microssistema de defesa coletiva dos direitos, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.437/85). 10

de tutela processual coletiva12 (CDC e LACP), diferentemente do sistema individualista do Código de Processo Civil, atribui a legitimação para agir a determinados entes13, que representam os interesses e aspirações coletivas, agindo como interlocutores sociais perante o Judiciário na solução de conflitos de “massa” que afetam a coletividade. Hodiernamente,

o

grau

de

desenvolvimento

demonstrado

pela

sociedade permite dizer que, pela sofisticação e complexidade, vivemos em uma sociedade de massa e de risco (BECK, 1998), “em que os problemas tendem a se coletivizar, exigindo soluções também coletivas” (BELINETTI, p. 666). Tal configuração buscou igualmente prever mecanismos jurisdicionais para a tutela coletiva dos direitos de entes com legitimidade para interceder junto ao judiciário na solução de ameaças ou lesões de massa, uma vez que as atividades desenvolvidas no seio industrial-social-político podem acarretar um risco para o bem estar da coletividade, de modo que esses riscos devem ser levados em consideração na tomada das decisões, políticas, administrativas ou jurídicas. Como apresentam traço distinto das ações individuais previstas no CPC, as ações coletivas apresentam estrutura e postulados diferenciados. Pode-se apontar que a primeira grande diferença consiste no princípio do interesse jurisdicional do conhecimento do mérito, que afirma que o juiz deve fazer o máximo possível para julgar o mérito, ou seja, somente em último caso é possível a sua extinção em resolução do conflito coletivo de interesses (ALMEIDA, 2007). Outro vetor fundamental consiste na prioridade na tramitação, que significa que deve dar-se preferência na tramitação das ações coletivas em detrimento de uma ação individual. Salientam os processualistas que a ação coletiva é marcada pelo princípio da indisponibilidade mitigada (que pode ser extraído do art. 9° da Lei da Ação Popular (Lei n° 4.717/65)14, de modo que é não é possível, ao autor de 12

Para fins do presente trabalho, adotar-se-á a nomenclatura CDC para a Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e LACP para a Lei 7.437/85 (Lei da Ação Civil Pública). 13 Descritos no art. 5º da LACP, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista e a associação que, concomitantemente esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil e inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 14 Doravante denominada de LAP.

uma ação coletiva, a desistência ou o abandono da causa (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013), o que, somente pode ser feito, se houver motivação própria (art. 5° § 3° da LACP). Igualmente, a obrigatoriedade da execução coletiva (art. 16 da LAP e 15 da LACP) é princípio informativo da tutela coletiva, que ressalta que o autor é obrigado a executar a sentença proferida em ação coletiva no prazo de 60 (sessenta) dias, senão o Ministério Público o fará, se este não for o autor da ação (ALMEIDA, 2007). Outro ponto estrutural relevante consiste na ênfase ao máximo benefício da tutela jurisdicional coletiva (art. 103 § 3° do CDC), que tem por postulado a perspectiva de que, se a sentença que soluciona litígio coletivo for julgada procedente, beneficiará todos (efeito erga omnes), ao passo que se for improcedente não prejudicará os afetados, de modo que não haverá perda do direito à ação individual (ALMEIDA, 2007). Um ponto estrutural relevante do sistema processual coletivo consiste no princípio do ativismo judicial ou da máxima efetividade do processo coletivo que ressalta que, dada a relevância dos bens jurídicos envolvidos – de índole transindividual – autoriza-se, nestes processos, ao magistrado em poder produzir provas de ofício (art. 130 do CPC), assim como assiste-lhe a possibilidade de autorizar a modificação do pedido ou da causa de pedir, mesmo depois do saneamento do processo (ALMEIDA, 2007). É possível descrever ainda o princípio da atipicidade ou não taxatividade do processo coletivo (art. 83 do CDC), que permite aos legitimados propor todo e qualquer tipo de ação para a tutela coletiva dos direitos, mesmo que não previstas como coletivas (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013). Dentre os legitimados para interpor ações coletivas perante o Poder Judiciário, a Defensoria Pública foi criada para prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados e, a par de sua missão institucionalmente constitucionalizada (art. 134), apresenta o problema estrutural de não ter sido instituída em todos os Estados-membros da Federação, o que acarreta no não atendimento ao mais sensível grupo de pessoas: os hipossuficientes economicamente. Outro viés relevante consiste no fato de que, mesmo

instituída na maioria dos Estados, cerca de metade das Comarcas não são atendidas pela Defensoria Pública (WANG, 2009). Obtempera Wang (2009) que o Ministério Público apresenta participação diminuta na propositura de ações coletivas tendo como causa de pedir direitos à saúde, de modo que o mais usual ainda consiste na tutela individual e não a coletiva, afirmando que o Judiciário brasileiro apresenta uma resistência à tutela judicial coletiva, se cotejado com as individuais. Ainda, as organizações não governamentais – constituídas como associações –, igualmente têm se mostrado ativas na salvaguarda do direito à saúde, valendo-se do Judiciário para propor ações visando a obtenção de medicamentos (WANG, 2009), e, por vezes, atuando de forma pontual na proteção contra algumas doenças, como a DST/AIDS, que conta com mais de 500 ONGs com este âmbito de atuação, intentando ações judiciais visando proporcionar medicamentos para seu combate e prevenção. Entretanto, conforme Wang (2009), trata-se de uma atuação mitigada e específica, não correspondendo aos anseios de outros setores da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como ressaltado, os modelos internacional de direitos humanos e constitucional de direitos fundamentais enalteceram a valorização do direito à saúde como princípio jurídico basilar e, com a ampla concepção de que possui força normativa e aplicabilidade para assegurar o mínimo existencial e propiciar melhoria na qualidade de vida a todos, sem distinção. Na solução dos casos, a constitucionalização do direito à saúde abriu o espaço para o uso da argumentação constitucional para o controle das omissões dos Poderes Legislativo e Executivo. Diferentemente de outras áreas, não se valeu de métodos abertos para a solução dos casos, uma vez que afirmou peremptoriamente que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”, de modo a propiciar mais do que um caráter declaratório de direitos fundamentais, afirmando que ao Estado foi imposto um verdadeiro dever fundamental de implementar este direito social.

Um ordenamento constitucionalizado não apenas declara direitos e deveres, mas também, prevê um sistema de garantias, isto é, a Magna Carta é dotada de mecanismos de controle de conformidade constitucional das leis e dos atos comissivos e omissivos do Poder Público. Para tanto, a válvula de controle das omissões estatais – e não apenas provenientes do Estado – vem delineada pelo princípio da universalidade de jurisdição, esculpido no artigo 5º XXXV que diz que “a lei não excluirá da apreciação do Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”. Há, então, a afirmação de que a judicialização da política – por vezes em tom pejorativo – nada mais consiste que a apreciação, pelo Poder Judiciário, do cumprimento dos direitos e deveres constitucionais por via do direito de ação. A ideia é relativamente simples, mas sem ser simplista: como se atribuiu ao Estado o dever fundamental de manter o conteúdo essencial da qualidade de vida das pessoas, a partir do momento em que se verifica a omissão, nascerá, para quem estiver na iminência de sofrer lesão ou ameaça, o direito de provocar o Judiciário para tutelar o bem jurídico “saúde”. O Supremo Tribunal Federal ressaltou a fundamentalidade do direito à saúde e a responsabilidade do Estado pela integralidade da implementação, uma vez que a saúde é considerada, para este tribunal, como verdadeiro dever fundamental. O não cumprimento dos compromissos ligados à saúde são considerados como frustração de expectativas coletivas legítimas dos cidadãos, assumindo, a Suprema Corte, como a postura de censor das promessas estatais não cumpridas, julgando a conveniência de sua implementação – individual e coletiva, convertendo-se, contemporaneamente, não apenas em guardião da Constituição, mas como guardião das promessas (so)negadas aos cidadãos.

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