O DIREITO HUMANO À LIVRE IDENTIDADE DE GÊNERO E SUAS CONSEQUÊNCIAS: mudança de nome e sexo 1 Patrícia Cristina Vasques de Souza Gorisch 2

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O DIREITO HUMANO À LIVRE IDENTIDADE DE GÊNERO E SUAS CONSEQUÊNCIAS: mudança de nome e sexo1 Patrícia Cristina Vasques de Souza Gorisch2 Ana Carolina Borges3 À Ariadna, que não nasceu Ariadna, tornou-se. RESUMO O presente estudo visa integrar os tratados de direitos humanos e princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, direito de personalidade, igualdade, liberdade, dentre outros, especialmente na questão de livre identidade de gênero dos transexuais e suas consequências, com relação a retificação no registro civil no que tange o nome e sexo biológico.Para tanto, utilizaremos os princípios constitucionais e os tratados internacionais como base para tais retificações. Utilizaremos, ainda, a Resolução da ONU que considerou pela primeira vez na história, que os direitos LGBT são direitos humanos, e sendo direitos humanos, são universais. Passaremos ainda pelo entendimento de Immanuel Kant, que o homem é o fim em si mesmo, e não o contrário. O princípio da felicidade, já utilizado pelo nosso STF é a finalidade da vida humana. A lei não pode impedir expressões de foro íntimo e que são base para o direito à personalidade, incluindo o da identidade de gênero. Sem felicidade, não há vida digna. PALAVRAS-CHAVE: identidade de gênero, retificação de nome e sexo, LGBT, direitos humanos, transgênero, transexual. ABSTRACT The present study aims to integrate the International Human Rights treaties and the Constitutional Principles of human dignity, right of personality, equality, freedom , among others , especially in the matter of free gender identity of transsexuals and their consequences with respect to rectification on civil record regarding the name and biological sex . For that so, Constitutional Principles and International Treaties are used as basis for such rectifications. Furthermore, we use the UN resolution that considered for the first time in history, that LGBT rights are human rights, and as a consequence, universal .

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Artigo apresentado no 1º. Congresso de Direitos Humanos da UNIESP/Guarujá em 2014. Advogada; Mestre em Direito Internacional (Direitos Humanos LGBT) pela Universidade Católica de Santos; Professora de Direitos Humanos da Universidade Paulista (UNIP/Santos); Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Vulnerabilidades da Universidade Católica de Santos; Coordenadora da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/Santos; Membro da Comissão Municipal de Diversidade Sexual de Santos/SP; Diretora e fundadora do GADVS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual; Professora do Curso de Cidadania e Políticas Públicas LGBT da Secretaria da Justiça e Cidadania do Governo do Estado de São Paulo/FUNDAP; Presidente Nacional da Comissão de Direito Homoafetivo do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família; Associada ao The LGBT Bar Association e ao American Bar Association, EUA. 3 Advogada; Coordenadora da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/Bauru; Membro da Comissão Estadual de Direito Homoafetivo do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família/SP e Coordenadora da Comissão de Direito Homoafetivo do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família/Bauru. 2

We also had quoted Immanuel Kant, who affirmed that the Mankind is an end in itself , and not the opposite . The principle of happiness, already used by our Supreme Court is the purpose of human life. The law cannot prevent expressions of an intimate nature and based on the right of personality, including gender identity. If there is no happiness, there isn’t dignity. KEYWORDS: gender identity, name and sex rectifications, LGBT, human rights, transgender, transsexual.

INTRODUÇÃO O tema diversidade sexual, nos últimos anos, tem sido amplamente visto e debatido nos jornais, telejornais, novelas e em salas de aula. Se por um lado conquistamos direitos historicamente resguardados por uma elite heteronormativa e aprofundamos o debate público sobre a existência de outras formas de ser e se relacionar, por outro assistimos a aterradora reação desta mesma elite em sua pretensão de perpetuar o alijamento desses sujeitos e seus afetos4. A população LGBT5, por sua vez, nunca foi tão maltratada. Os crescentes casos de homofobia 6 e transfobia 7 vem crescendo vertiginosamente, como relata o GGB – Grupo Gay da Bahia, bem como a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal – SDH. A cada 21 horas um LGBT é morto no Brasil. Até o dia 08 de março de 2014, ou seja, após 67 dias do ano de 2014, 74 pessoas foram mortas por motivos de homofobia ou transfobia8. Estes números são similares aos mostrados pela Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, já que no ano de 2011, foram 278 mortos. No ano de 2012, 52% das vítimas de homicídios eram travestis ou transexuais9. Este fato se repete pelo mundo. As mulheres transexuais e os homens transexuais10 são os que mais sofrem preconceito, pois muitos11 são expulsos de suas casas e humilhados por seus familiares, somente pelo motivo de identidade de gênero12 e orientação sexual. A oportunidade de emprego, para as mulheres e homens transexuais é escassa, pra não dizer mínima. Para a sociedade, os únicos empregos permitidos a essas pessoas são os de cabelereira ou profissional do sexo. Muitas não tem habilidade para tais profissões, caindo assim, na marginalidade. 4

http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012. Acesso em 08/03/2014. Sigla para definir lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. 6 A homofobia é observada como um comportamento crítico e hostil, assim como a discriminação e a violência com base na percepção de que a orientação não heterossexual é negativa. www.webster.com 7 É a condição onde a expressão de gênero e/ou identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquelas 1 atribuídas ao gênero designado no nascimento. Mais recentemente o termo também tem sido utilizado para definir pessoas que estão constantemente em trânsito entre um gênero e outro. O prefixo trans significa "além de", "através de". 8 http://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/ 9 http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012 página 48 Acesso em 08/03/2014. 10 MORENO, Yolanda B. Bustos.La Transexualidad (de acuerdo a la Ley 3/2007, de 15 de marzo).Madri: Dykinson, 2008, p.27 cit. GONÇALVES, Camila de Jesus Mello. A Transexualidade sob a Ótica dos Direitos Humanos: uma perspectiva de inclusão. Tese de doutorado da USP/2012, orientador Celso Lafer. 11 Há cerca de 700.000 transexuais nos Estados Unidos da América. Não há dados no Brasil. http://williamsinstitute.law.ucla.edu/wp-content/uploads/Gates-How-Many-People-LGBT-Apr-2011.pdf acesso em 08/03/2013. 12 WOLFF, Tobias Barrington. Civil Rights Reform and the Body. Penn Law, University of Pensilvania Law School, Harvard Law and Public Review, vol.6, No. 1, p. 201, 2012 5

A questão da identidade de gênero e orientação sexual e suas fobias correlatas é urgente e necessária, com base nos relatórios da SDH e também tendo como base nos comunicados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, condenando o Brasil pela homofobia e transfobia existentes no país.13 O direito personalíssimo de ter a livre identidade de gênero, bem como ao nome e ao sexo civil, serão abordados no presente estudo pela ótica da transexualidade. Como a ONU14 declarou que os Direitos LGBT15 são Direitos Humanos, através da Resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de n. L9, na Assembleia Geral16 de 2011, trataremos do assunto também com base nos Direitos Humanos LGBT. DELIMITANDO O OBJETO DE ESTUDO Trataremos da transexualidade e do uso do nome e sexo de acordo com a identidade de gênero e não de acordo com a identidade registral. Consoante o ensinamento de Mariana Chaves17, a transexualidade emergiu no ano de 1949, utilizada por Caul Dewlz, e sua utilização no meio médico se propagou em virtude do prestígio de Harry Benjamin, que publicou no ano de 1966, a obra The Transexual Phenomenon, classificando-o como disforia de gênero. Com propriedade, a autora afirma que “no caso do transexualidade, a questão é predominantemente psicológica, já que o indivíduo não se aceita como é, não acata seu sexo, se identifica com o sexo contrário, sendo considerado assim, um hermafrodita psíquico, cuja única solução para seu sofrimento é a cirurgia de reversão sexual, único meio para que seu corpo reflita exteriormente o que intimamente ele é e deseja ser” (grifo nosso). E reforça: “Para a Associação Paulista de Medicina, transexual é aquele com identificação sexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de transformá-los”. Nesse diapasão, (DIAS)18 brilhantemente explica: “A falta de coincidência entre o sexo anatômico e o psicológico chama-se transexualidade. É uma realidade que está a reclamar regulamentação, pois reflete na identidade do indivíduo e na sua inserção no contexto social. Situa-se no âmbito do direito da personalidade e do direito à intimidade, direitos que merecem destacada atenção constitucional”. Já nome é entendido como elemento individualizador da pessoa natural, segundo o qual é empregado em sentido amplo e integra a personalidade do indivíduo

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http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2012/089.asp http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2012/084.asp http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2012/079.asp http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2012/051.asp Acesso em 08/03/2014. 14 Organização das Nações Unidas 15 LGBT – sigla mais usual para LGBTTIS – lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, intersexus e simpatizantes. 16 th A/HRC/17/L.9 General Assembly of UN, Human Rights Council. 17 session, Follow-up and implementation of the Vienna Declaration. http://pt.scribd.com/doc/58106434/UN-Resolution-on-Sexual-Orientation-andGender-Identity. Ultimo acesso em 24.07.2011. 17 CHAVES. Mariana – Homoafetividade e Direito – 2ª Edição atualizada – 2012 - p. 46-47. 18 DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito de Família. 9ª Edição atualizada e ampliada, 2013 – p. 150

não somente durante a vida, mas também após a morte. É através do nome que as pessoas se distinguem umas das outras tanto nas relações civis quanto nas jurídicas. Nos dizeres de (GONÇALVES),19 “nome é a designação ou sinal exterior pelo qual a pessoa identifica-se no seio da família e da sociedade”. Quando tratamos de “nome” não devemos esquecer que este possui aspectos públicos e individuais 20 . O Estado exige que as pessoas tenham um nome para que possam ser corretamente identificadas, razão pela qual são públicos. Neste sentido, o legislador editou a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) a fim de tornar indispensável o uso do nome e proibindo a alteração do prenome, salvo em situações excepcionais permitidas na referida lei. Por outro lado, o aspecto individual se traduz no direito ao nome como o poder de ser reconhecido bem como de reprimir todo e qualquer ato cometido por terceiros, sendo portanto, direito personalíssimo. Todo nome vem acompanhado do prenome e sobrenome, tal como determinação legal do artigo 16 do Código Civil, in verbis: “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”. Em suma, prenome é o nome próprio de cada pessoa e serve para distinguir membros da mesma família, por exemplo, João ou José, escolhido pelos pais quando de seu nascimento, não podendo ser modificado, salvo em situações excepcionais. E sobrenome, nos dizeres de GONÇALVES 21 é “o sinal que identifica a procedência da pessoa, indicando a sua filiação ou estirpe”, por exemplo, da Silva ou Souza. De acordo com a redação original do artigo 58 da Lei de Registros Públicos o prenome era considerado imutável, entretanto, atualmente o prenome pode ser alterado por outro apelido público e notório, conforme que veremos adiante. O que a lei não veda, presume-se permitido. Primeiramente, há lei expressa que autoriza a mudança de nome de qualquer pessoa que prove ter um apelido público e notório (obviamente) distinto de seu prenome civil (artigo 58 da Lei de Registros Públicos supracitado), assim, não havendo na letra da lei qualquer proibição relativamente a transexuais – e, como se sabe, onde a lei não discrimina, não cabe ao interprete discriminar, consoante a melhor hermenêutica. Logo, a existência de permissivo legal expresso (e, ainda que assim não fosse, a ausência de proibição expressa) torna o pedido juridicamente possível22. Ora, se a pessoa é conhecida por todos pelo apelido público e notório diverso daquele constante em seu registro de nascimento, a alteração pode e deve ser requerida em juízo, pois segundo entendimento dos tribunais, prenome imutável é aquele que foi posto em uso e não o que consta do registro23. Da mesma maneira entende Silvio de Salvo Venosa24: “A possibilidade de substituição do prenome por apelido público notório atende à tendência social brasileira, abrindo importante brecha na regra que impunha a imutabilidade do prenome, que doravante passa a ser relativa”. Referido dispositivo legal torna indubitavelmente possível o pedido, sendo a procedência dele aferível pelas declarações testemunhais arroladas pela parte autora em 19

GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral, vol. 1, p. 148. Ide item 14. 21 Ob.Cit.14 22 VECCHIATTI. Paulo Roberto Iotti - Tese de defesa em Apelação 23 RT, 537/75. 24 VENOSA. Silvio de Salvio. Direito Civil. Vol. 01, p. 228. 20

uma ação de retificação de prenome, que comprovam que o apelido público e notório da transexual que pretende ver seu prenome retificado. A despeito, a não realização de cirurgia de transgenitalização não mais pode ser considerada causa impeditiva para a alteração/retificação no registro civil, uma vez que há inúmeros julgados nesse sentido25, de forma tal que não há que se falar em falta de interesse de agir, nem em impossibilidade jurídica do pedido. Ademais, como defende Paulo Iotti em sua tese, toda a principiologia constitucional nos rechaça de proteção segundo os quais justifica o direito de pessoas transexuais alterarem seu prenome independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização. Outrossim, desnecessário se faz discutir se a transexual fez ou não, ou se fará futuramente a intitulada cirurgia de resignação sexual, posto que não é o procedimento cirúrgico em si que definirá a sua sexualidade, mas sim, o sexo psicológico. Se vai se submeter à realização de cirurgia de transgenitalização ou não é decisão que cabe somente à pessoa. Ressalta-se que a exigência da realização desta cirurgia como pré-requisito declara evidente afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88), que deve ser respeitado. O Estado não pode impor como condição sine quo non que o indivíduo primeiro realize esta cirurgia para somente depois ter direito à alteração de nome. Por meio do princípio da dignidade humana, há vedação expressa impedindo que a pessoa seja instrumentalizada para a consecução de outros fins (notória doutrina kantiana), ao passo que negar à pessoa transexual a retificação de seu prenome implica em impor-lhe uma visão heterossexista cisgênera de mundo26, que prega que somente um prenome coerente com o sexo biológico original (ou, ao menos, de acordo com um corpo operado para se equivaler ao de pessoa do outro sexo biológico) seria válido, inviabilizando ainda o direito fundamental implícito à busca da felicidade, reconhecido pelo STF (ADPF n.º 132, voto do Min. Celso de Mello). Não obstante, haveria também violação aos direitos da personalidade pelo qual resta caracterizada a identificação pessoal, social e sexual do indivíduo: A transexualidade pode ser analisada igualmente sob o prisma da liberdade em sentido positivo, relacionada à autodeterminação na escolha entre as alternativas de modos de vida ampliadas na modernidade, fundamentando, no plano jurídico, o direito ao desenvolvimento da personalidade.27

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“Para a transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, donde “afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” (STJ, REsp n.º 1.008.398/SP, DJe de 18.11.2009) “...o que independe da realização de cirurgia de transgenitalização, pois a real identidade da pessoa transexual independe de cirurgia, mas apenas de sua identidade de gênero, relativa ao prenome pelo qual é conhecida, decorrente de seu sexo psicológico e de seu sexo social, o sexo como socialmente reconhecido (cf. TJ/RS, Apelação Cível n.º 70030504070, 08ª Câmara Cível, Relator: Desembargador Rui Portanova, julgada em 29/10/2009). 26 Idem item 14. 27 GONÇALVES, Camila de Jesus Mello. A Transexualidade sob a Ótica dos Direitos Humanos: uma perspectiva de inclusão. Tese de doutorado da USP/2012, orientador Celso Lafer.

A liberdade, no aspecto da vida privada da pessoa, tem que ser plena, sem ingerência estatal, já que são exclusivamente para a sua própria realização pessoal. A escolha da aparência e modo de vida típicos do outro sexo, que caracteriza a transexualidade, guarda proteção e amparo jurídico sob o direito de liberdade, naquilo que assegura a pessoa uma ampla margem de opções dirigidas a sua autorrealização.28 Ademais, o princípio da autonomia tem que ser respeitado, de acordo com a concepção kantiana de autonomia com pressuposto de liberdade. Pelo imperativo categório de Kant, o ser humano é sempre o fim e si mesmo, e nunca o meio. Assim também é o entendimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, logo no seu art.1º.: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade. A mulher e ao homem transexual são garantidos o direito a autonomia e liberdade. A identidade é, da mesma forma, essencial, pois a identidade corresponde, ao mesmo tempo, à essência, e à forma de expressão da pessoa, cujo respeito é essencial para a dignidade humana. Pode-se então concluir das lições de Michelangelo Bovero, Charles Taylor, Hannah Arendt e John Rawls que a identidade revelada pela resposta à indagação “Quem sou eu” não se resume ao nome e a genealogia, mas inclui escolhas, referência morais da pessoa e sua orientação, expressadas no convívio em grupo.29 O expressivo Professor Celso Lafer, ao falar sobre o direito à intimidade como sendo um dos integrantes dos direitos de personalidade, afirma que é o “direito do indivíduo de estar só e a possibilidade que deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que ela só se refere, e que diz respeito ao seu modo de ser no âmbito da vida privada.30 Já os direitos da personalidade consistem em proteção do ser humano contra ingerências de terceiros, na salvaguarda de seu eu e funções.31 A proteção aos direitos da personalidade está contida no princípio basilar constitucional da dignidade da pessoa humana, no art.1º., III, da CF. Personalidade são os atributos, particulares físicas e expressões de uma pessoa. Tais características fazem parte não somente da diversidade sexual – fato da vida tratado em questão, mas também diversidade de pessoas. A ilustre professora e membro do IBDFAM32 Giselle Câmara Groeninga, ainda vai mais além: afirma que a integridade psíquica é um dos mais fundamentais direitos da personalidade, pois o psiquismo nos dá a qualidade humana, por meio do direito a ter uma personalidade humana – implicando o “Direito a Ser Humano.”33 Pontes de Miranda, trata do assunto de forma autônoma, considerando o direito à integridade psíquica, como absoluto, ao lado da integridade física, que “corresponde o dever de todos de não causar danos à psique de outrem, e do Estado, ou dos parentes, de velar pelos insanos da mente.34 No Código Civil Brasileiro, o direito de dispor ao próprio corpo é consagrado no art.13: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, 28

Idem. Ibidem. 30 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos; um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 31 CAMPOS, Diego Leite de. Lições de Direitos da Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. 32 Instituto Brasileiro de Direito de Família – www.ibdfam.org.br 33 GROENINGA, Giselle Câmara. O Direito à Integridade Psíquica e o Livre Desenvolvimento 34 Tratado de Direito Privado, Vol.VII, editor Borsoi, 1956. 29

quando importar a diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.” E esclarece o enunciado 6 da 1ª. Jornada do Centro de Estudos da Justiça Federal, que exigência médica contida no art.13 refere-se tanto ao bem estar físico quanto ao psíquico. Ainda que a/o transexual pretenda realizar a cirurgia de transgenitalização, a retificação de prenome e sexo não pode de maneira alguma estar vinculada a um procedimento tão invasivo como é o da transgenitalização. A cirurgia é mera opção, não sendo tal cirurgia considerada mutilação, como há muitos anos atrás. A primeira regulamentação do CFM35no Brasil é a 1482/97, sendo substituída em 2002, pela resolução 1652/2002 e que posteriormente foi totalmente revogada pela resolução 1955/201036, e tem descrito no seu art.3º., fixa os critérios para a cirurgia de transgenitalização: Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de transtornos mentais. O art.4º., regulamenta os parâmetros de diagnóstico pré e pós cirúrgico, já que para tal cirurgia, a mulher ou o homem transexual deverá passar por uma equipe multidisciplinar constituída por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto, devendo ser observados os seguintes critérios: Art.4º.... 1) Diagnóstico médico de transgenitalismo; 2) Maior de 21 (vinte e um) anos; 3) Ausência de características inapropriadas para a cirurgia.

físicas

A mulher transexual e o homem transexual, tem direito ao corpo como subitem do direito à integridade física 37 , ou seja, mesmo após a despatologização da transexualidade, é mera opção haver ou não a cirurgia, para a adequação do nome à identidade sexual. Ademais, a mulher e o homem transexual necessitam desta retificação para evitar ou ao menos diminuir os enormes constrangimentos que ainda sofre em razão de, esporadicamente, ter que apresentar seus documentos de identificação civil quando lhe 35

Conselho Federal de Medicina http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1955_2010.htm acesso em 13/03/2014. 37 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 36

são solicitados e que lhe identificam com um nome e sexo diverso a despeito de sua aparência e conduta. O mesmo ocorre quando a/o transexual tem que preencher formulários, e afins, apontando o seu prenome de registro, ante seu notório e incontestável interesse em ser identificada(o) juridicamente como vive e é reconhecida(o) socialmente, a saber, como mulher ou como homem. Vale trazer à baila que o direito a escolha do prenome ou nome social da mulher e do homem transexual encontra também assegurado por meio do Decreto Estadual/SP nº 55.558 de 17 de Março de 2010 pelo qual determina: Artigo 1º - Fica assegurado às pessoas transexuais e travestis, nos termos deste decreto, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito da Administração direta e indireta do Estado de São Paulo (grifamos). Se há Decretos e Leis Estaduais 38 regulamentando a forma e o tratamento acerca da escolha do nome, o Judiciário deve também necessariamente seguir esta esteira a fim de acompanhar os anseios emergentes que a sociedade vem suplicando. Está em tramitação no STF39 a ADI 4275 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), proposta pela Procuradoria Geral da República que visa interpretar o art.58 da LRP40, para que seja reconhecido o direito dos transexuais, que assim desejarem, a devida substituição de prenome e sexo no registro civil independentemente da cirurgia de transgenitalização. Tal ação tem como aminus curiae o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Encontra-se em trâmite um Projeto de Lei da Câmara dos Deputados, PL 6655/0641, na qual também foi apensado o PL 70/95, que altera o art.58 da LRP, para justamente possibilitar a substituição do prenome a transexuais. Tal PL está sem tramitação desde 09/01/2007.No Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, existe a Portaria 233/10, que permite o uso do nome social para transexuais funcionários públicos. Existem ainda documentos internacionais que protegem a identidade de gênero, de forma plena, como os descritos nos Princípios de Yogyakarta42, que em 2006 reuniu um grupo internacional de experts em direitos humanos em Jacarta, Indonésia, para fazerem um documento com os princípios relativos a orientação sexual e identidade de gênero. Tal documento tornou-se um guia de direitos humanos, de parâmetro internacional e legal, que os Estados devem respeitar e aplicar43. A OEA – Organização dos Estados Americanos, da qual o Brasil faz parte, editou a Resolução 243544, interpretando a Declaração Universal dos Direitos Humanos e especificando que os direitos à liberdade, à vida e à segurança são relacionados à identidade de gênero e orientação sexual. Em virtude da Comemoração dos 50 anos da 38

Decretos Estaduais 1675/09 – Pará, 35.051/10 - Pernambuco, 43.065/11 – Rio de Janeiro, Decreto Normativo 13.684/13 – Mato Grosso do Sul, Lei 5.916/09 - Piauí 39 http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4275&classe=ADI&origem=AP&r ecurso=0&tipoJulgamento=M 40 Lei de Registros Públicos, n. 6.015/73 41 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=315120 42 Princípio 15, e: Promover programas de treinamento e de conscientização para assegurar que todas as agências relevantes fiquem conscientes e sensíveis às necessidades das pessoas que enfrentam a falta de moradias ou desvantagens sociais, como resultado de sua orientação sexual ou identidade de gênero. 43 MONTAGNA, Anthony Stephen. Transgender Issues as they Relate to Human Rights: where we are now and where we need to be.Berkeley College, Universum University College, fevereiro/2012. 44 http://www.abglt.org.br/port/resol_2435.html acesso em 08/03/2014.

ONU (Organização das Nações Unidas), foi editada a Declaração A/63/635, que dispõe no item 5, a preocupação com relação à transfobia.45 Quando o Estado limita o uso do nome e da expressão sexual de uma pessoa, este Estado limita os direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, respeito à dignidade humana e à saúde. A saúde, de acordo com a OMS – Organização Mundial da Saúde, também é a psicológica e sexual46. O ser humano é um fim em si mesmo (como bem dita o filósofo Immanuel Kant, em seu imperativo categórico47), ao invés de meio para realização dos fins impostos por terceiros. A lei nunca pode se sobrepor ao homem; ela é feita para ele e não contra ele. Logo, o que não é proibido, é permitido. A transexualidade sob a ótica da abordagem social é realizada através do direito da autodeterminação da pessoa, de afirmar livremente e sem coerção, a sua identidade, como consequência dos direitos fundamentais à liberdade, à privacidade, à igualdade e à proteção da dignidade humana.48 Há ainda, um outro motivo, utilizando-se o art.58 da LRP, combinado com a interpretação dada a ele, que nos permite reforçar a ideia do presente estudo, qual seja, a mudança de nome e sexo no registro civil sem a cirurgia de transgenitalização. No presente artigo, só há a possibilidade de mudança de prenome no caso de apelidos públicos notórios, mas há também, de acordo com a jurisprudência, há a possibilidade na mudança do prenome por motivo de prenomes ridículos ou vexatórios. Para um(a) transexual, o uso do nome de registro, incongruente com a sua aparência física e expressão sexual, é ridículo e vexatório. O intuito da mudança do prenome nesses casos é o de justamente proteger o indivíduo de situações que afrontem o princípio da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, para a (o) transexual, o uso do nome registral causa inúmeras humilhações, constrangimentos e discriminações. E se o meu nome é aquilo de que sou chamado49, impor a manutenção deste nome, é atentatório ao princípio basilar da dignidade da pessoa humana. A mudança do nome, é imperativa e necessária, tendo como consequência, a alteração do sexo registral50. A lacuna legal com relação a esta temática, é dolorida. O nome e o sexo registral tem que estar de acordo com a aparência da pessoa, e não o contrário. A mudança no sexo registral resta-se necessária, pois, apesar do reconhecimento do TRF da 4ª. Região quanto à realização da cirurgia de transgenitalização ser realizada pelo SUS – Sistema Único de Saúde e de ser editada a Portaria MS 1707/2008, que instituiu o Processo Transexualizador pelo SUS, a fila para tal cirurgia é de aproximadamente 8 anos. Além disso, obrigar uma pessoa a se submeter a uma cirurgia para aí então ter o seu direito de uso de nome e sexo compatíveis com a sua identidade de gênero é, no mínimo, ato contra a dignidade da pessoa humana e contra o direito da personalidade, que é intransferível e personalíssimo. O sexo anatômico não é a única forma de sexo. O sexo comportamental, típico dos casos de transexuais, existe e deve ser amparado. Esses meninos XX e essas meninas XY desafiam o sexo anatômico, pois qualquer estudo mais aprofundado sobre

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http://www.abglt.org.br/port/declaracao_conjunta_63_635.html acesso em 08/03/2014. http://www.abglt.org.br/port/oms_dirsex.html acesso em 08/03/2014. 47 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003. 48 ADI 4275/09, pág.8. 49 TAYLOR, Charles. As fontes do self. São Paulo: Loyola. 50 Ap.Civ. 70018911594. 7ª. Cam. Civ., TJRS. Rel.Sergio Fernando de Vasconcelos Chaves. J.25/04/2007. 46

sexo baseado única e exclusivamente na anatomia, vai resultar em descrença, já que há o sexo comportamental e o filosófico.51 Pessoas transexuais não fazem parte do binário XX, XY, pois transcendem seus corpos, ou pelo menos, os sexos de seus nascimentos, e são diariamente patologizadas por isso. Muitas fazem um discurso pronto sobre o seu corpo, identidade e infância, exclusivamente para convencer terapeutas a emitir laudos52com o intuito de apressarem suas cirurgias. O CID (Código Internacional de Doenças) define a transexualidade e a travestilidade como transtorno de identidade sexual/disforia de gênerol53, apontado como doença e que aqui, modificaremos este termo para vivência de identidade sexual, já que transtorno é um termo pejorativo. Não entendemos que travestis e transexuais sejam doentes mentais. Travestis e transexuais simplesmente tem uma vivência de identidade sexual diversa do seu sexo biológico. Os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, apoiam a Campanha Internacional Stop Trans Pathologization-2012 54 , pela despatologização das identidades trans (travestis, transexuais e transgêneros) e a sua retirada dos catálogos de doenças (DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais) da Associação Americana de Psiquiatria e da CID - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, da Organização Mundial de Saúde, que será editado em 2014. O trâmite da mudança de nome e sexo é demorado e burocrático, fazendo com que as(os) transexuais sofram em diversas situações do cotidiano, ao terem que usar o cartão de crédito e débito, apresentação de documentos, crachá, email, etc. Ademais, para muitos juízes, a cirurgia de redesignação de sexo não rende à pessoa que fez o título de masculino ou feminino, mas somente transexual – um status abjeto que exclui o indivíduo dos direitos civis e mais fundamentalmente, à categoria de humano.55 A questão racial está muito ligada à questão binária do sexo. Sistemas binários de raça foram construídos e adotados como lei, tendo sido mantidos em documentos de identidade. Como a população de imigrantes e de pessoas interaciais aumentou, a questão da cor ficou menos importante e confiável56. No início do século XX ou as pessoas eram brancas ou negras. Tal paradigma está totalmente superado57, pois hoje parece-nos absurdo classificar pessoas por cor. Por que então com relação ao sexo isso seria diferente? Levando-se em consideração que há mulheres XX e homens XY que não procriam, o sexo vai muito além disso. O gênero não sexualiza o corpo; a mente sim. O direito à livre identidade de gênero caminha em águas suaves pelos princípios da dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade e vida privada. Os direitos da personalidade são irradiações do princípio da dignidade da pessoa humana. Sem ter como se expressar em matéria de gênero, a pessoa não tem dignidade plena exercida.

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EZIE, Chinyere. Desconstructing the Body: Transgender and Intersex Identities & Sex Discrimination – the need for a strict scrutiny approach. Columbia Journal of Gender and Law, Forthcoming, 2010. SSRN: http://ssrn.com/abstract=158951 52 SPADE, Dean. Resisting Medicine: re/modeling gender. Berkley Women’s LJ, 2003. 53 CID-10 64.1 54 http://www.stp2012.info/old/pt acesso em 19.01.2013 55 Id.32, Cit.Keller, Susan Etta. Operations of Legal Rhetoric: examining transexual and judicial identity. Harvard CR, 1999. 56 AMÉLIE-GEORGE, Marie. The Modern Mulatto: a comparative analysis of the social and legal positions of mulattoes in the antebelium South and the intersex in Contenmporary America.Columbia Journal of Gender and Law, Forthcoming, 2006. 57 SPADE, Dean. Trans Formation. Seattle University of Law School, Los Angeles Lawyer, outubro/2008.

No campo dos Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos, ECHR, julgou o caso B. v. França58, onde a Corte mandou retificar (e não modificar) o registro civil, respeitando, desta forma, integralmente a condição de uma transexual de que o documento civil estava errado e não a sua identidade de gênero. Reconheceu a Corte, pela primeira vez, a identidade de gênero como um direito fundamental do indivíduo, não podendo o Estado negar-se a retificar o registro civil. O relator do caso ainda deixou a seguinte mensagem que passamos a transcrever59: É humanamente necessário esclarecer que as pessoas (transexuais) não são pervertidas, mas são vítimas ... e finalmente estão aptas a viver em harmonia consigo mesmas e com a sociedade. 60 Interessante analisar que neste caso em questão, o julgador interpreta que o registro civil é que está errado, e não a identidade de gênero da pessoa. Mais uma vez, a tese kantiana de que o homem é o fim em si mesmo, e não o contrário. A identidade de gênero não é somente genital, mas de sensibilidade61, de olhar para si e de se expressar. Não há terceiro sexo. Pessoas podem migrar tanto de um para outro, várias vezes na sua vida. Vimos aqui no presente estudo que tanto a sexualidade quanto a expressão da identidade são livres e garantidas por tratados internacionais e pela nossa Constituição Federal. Não há limites para a expressão humana...colocar como terceiro sexo já discriminar; é afirmar que é diferente, que é algo inventado, anormal. Não existe patologia, nem anormalidade. Existe sim, diversidade. A adequação do nome e sexo à identidade de gênero é urgente, pois o Estado sendo omisso nesta questão atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana irradiando os direitos de personalidade, liberdade, igualdade, direito ao corpo e vida privada.

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http://www.humanrights.is/the-human-rightsproject/humanrightscasesandmaterials/cases/regionalcases/europeancourtofhumanrights/nr/442 acesso em 18/11/2013. 59 GORISCH, Patricia C. V.S. A identidade de Gênero sob a Ótica da Corte Europeia de Direitos Humanos e sua Aplicação nas Cortes Brasileiras. Capítulo de livro ainda no prelo, de organização de Maria Berenice Dias. 60 Tradução livre. 61 CABRAL, Camile http://pt.wikipedia.org/wiki/Camille_Cabral, acesso em 13/03/2013.

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