O Direito Internacional Privado das Sucessões e as Perspectivas Brasileira e Argentina

June 3, 2017 | Autor: Michael Lawson | Categoria: Private International Law
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“O Direito Internacional Privado das Sucessões e as Perspectivas Brasileira e Argentina”

Michael Nunes Lawson1

Introdução

O presente trabalho enfoca a “sucessão internacional”. Essa difere da sucessão que se pode dizer “convencional” por possuir pontos de contato com mais de um Estado. Ou seja, (i) o de cujus, (ii) aqueles aptos a suceder ou (iii) os bens que fazem parte do acervo encontram-se localizados em diferentes jurisdições. Embora baste, para que reste configurada a sucessão internacional, que qualquer um dos três elementos esteja situado em jurisdição estrangeira, este artigo irá privilegiar uma hipótese em particular, qual seja, a sucessão cujos bens a serem partilhados encontram-se em Estados distintos. A seara jurídica em que se insere o artigo é o Direito Internacional Privado (doravante DIPr). O DIPr é considerado um “sobre-direito”, pois suas normas não visam a regular condutas; seu escopo é resolver conflitos de leis que surgem quando relações privadas colocam-se em contato com a ordem jurídica de mais de um Estado. A sucessão internacional seria um típico caso desse tipo de

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Mestrando em Direito Internacional – UFRGS. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). [email protected]

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relações. Como na sucessão convencional, várias questões devem ser resolvidas, como a ordem da vocação hereditária, a legítima, a quota dos herdeiros necessários etc. A matéria, porém, ganha em complexidade devido aos bens estarem situados em mais de um Estado, suscitando indagações sobre o juízo competente e a lei aplicável. O DIPr, por conseguinte, constitui o ângulo a partir do qual se examinará a sucessão internacional. No primeiro capítulo do trabalho, serão tecidas considerações gerais sobre o DIPr das Sucessões, com foco nos dois princípios que centralizam o estudo da matéria. No segundo, buscar-se-á examinar se, e de que maneira, esses princípios foram adotados pelas normas de DIPr do Brasil e da Argentina. Com isso, se estará demonstrando como o direito desses países aborda a sucessão internacional. Convém sublinhar que o trabalho se cinge a enfrentar questões de DIPr, não se imiscuindo no direito material sucessório. Portanto, empreender um exame, e assim uma comparação, dos direitos sucessórios brasileiro e argentino se afigura uma tarefa não contemplada no artigo em tela.

I. Os dois grandes princípios informadores das legislações

A) Concepção romana e “unidade sucessória” x Concepção germânica e “pluralidade sucessória”

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O estudo dos princípios que orientam o DIPr das Sucessões sugere um olhar prévio sobre duas concepções relativas ao instituto da sucessão, que estariam na raiz de tais princípios. A própria ausência de consenso entre as diversas legislações nacionais em se tratando de DIPr das Sucessões é apontada como fruto, entre outros fatores, das divergências conceituais acerca do instituto sucessório2. A temática foi abordada por Jorge R. Albornoz3 e Werner Goldschmidt4. De um lado, a concepção “romana”, segundo Albornoz, veria na sucessão a continuação da personalidade do de cujus (“sucessão na pessoa”), daí decorrendo considerar-se a herança como uma massa patrimonial única5. De outro, residiria a concepção “germânica”, a enxergar a sucessão como meio de repartir os bens do falecido entre os herdeiros, sem que os últimos continuassem a personalidade do de cujus (“sucessão nos bens”). De uma e outra concepção teriam irradiado disposições encontradas nos direitos sucessórios nacionais. O enfoque romano, ao privilegiar a continuação da 2

“Quizás la complejidad sea especial debido a las divergencias, a veces muy profundas, que existen em la regulación material interna de cada Estado, íntimamente vinculada con las tradicionales divergencias conceptuales entre los sistemas de ‘sucesión en la persona’ y sucesión en los bienes”. ALBORNOZ, Jorge R. Sucesión hereditária. In: ARROYO, Diego P. Fernández (coord.) Derecho Internacional Privado de los Estados del Mercosur. Buenos Aires: Zavalía, 2003, p. 842. 3 Ibidem, p. 842-843. 4 GOLDSCHMIDT, Werner. Sistema y Filosofia del Derecho Internacional Privado. Tomo II. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1954, p. 336-339. 5 Goldschmidt dispensa maior atenção à sucessão na visão romana. Aduz que, num primeiro momento, a sucessão era entendida como a perpetuação da vontade do indivíduo. Daí a prevalência da sucessão testamentária, e a liberdade absoluta do testador. Por influência do Cristianismo, a concepção original não triunfou, assumindo a lei o lugar antes reservado ao testamento. O resultado seria uma concepção romana secularizada: “la sucesión ‘mortis causa’ como la prolongación de la personalidad del causante, tratándose de una personalidad ficticia reducida a la transmisión de la totalidad del patrimonio” . (Ibidem, p. 338).

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personalidade, daria azo à regra de que, na liquidação das dívidas do morto, o herdeiro deve responder inclusive com os seus bens próprios (ultra vires hereditatis). Regra contrária o enfoque germânico teria originado: por se tratar a sucessão de uma divisão de bens, o passivo do falecido somente seria liquidado até a medida do seu ativo (intra vires hereditatis). A imposição de limitações à capacidade de dispor por testamento, a fim de proteger o quinhão dos herdeiros, também seria conseqüência da concepção germânica. O exame dessas duas concepções, porém, somente se justifica no âmbito deste trabalho pelas suas implicações sobre o DIPr Sucessório. Nesse diapasão, vale frisar que cada um dos enfoques sobre o instituto da sucessão deu origem, em DIPr das Sucessões, a um princípio diverso. Os dois princípios surgidos ostentam uma relação de contraposição, e em torno deles é que, até hoje, revolve a discussão doutrinária acerca das sucessões em DIPr. No modo de ver romano, sendo a sucessão concebida como uma massa patrimonial única, uma única lei deveria ser chamada para regular essa sucessão (“princípio da unidade sucessória”)6. Já o modo de ver germânico, por visualizar a sucessão como uma pluralidade de bens a serem repartidos, indica que a

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“(...) o princípio romano da universalidade da sucessão mostrava que, apesar da heterogeneidade dos elementos que compõem o acervo hereditário, o espólio deve ser considerado um todo, como unidade atribuída ao sucessor universal por um só e mesmo acontecimento, que é a morte. O que se deve considerar, pois, não é a transmissão deste ou daquele bem isolado, mas a extinção do patrimônio do de cujus e a atribuição ao sucessor de um conjunto de bens, composto de diversos elementos, corpóreos e incorpóreos, representado por unidade ideal: universum ius defuncti. E viuse que a esse princípio da universalidade em direito privado, por conveniência de ordem prática, deve corresponder o da unidade em direito internacional privado. Considerou-se que a sucessão inteira deve ser regida por um só direito” (CASTRO, Amílcar de. Direito Internacional Privado. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 452-453).

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transmissão de cada bem deve ser submetida à lei do local onde o bem estiver situado (“princípio da pluralidade sucessória” ou “do fracionamento”). Mesmo que se possam expressar reservas quanto a ser a relação entre as concepções sobre a sucessão e seus correlatos princípios de DIPr evidente (ex.: seria desdobramento natural da concepção germânica entender que a cada bem do acervo deve ser aplicada a lei sucessória do local em que esteja situado?), e considerando, ainda, que nenhum dos autores pesquisados tratou dessa relação de forma satisfatória, afigura-se pacífico que é nas concepções romana e germânica que os princípios de DIPr Sucessório da unidade e da pluralidade encontram a sua origem.

B) A unidade e a pluralidade em perspectiva histórica

Uma outra maneira de examinar os princípios da unidade e da pluralidade é à luz do desenvolvimento do próprio DIPr. Duas etapas significativas da evolução desse ramo do Direito apresentam repercussão direta sobre os princípios ora tratados7. Com a queda do império romano, passa-se à fase da chamada “personalidade do direito”: o direito a ser aplicado ao indivíduo é o seu direito nacional, onde quer que a pessoa se encontre. Essa re-orientação na direção dos

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Tais etapas serão apresentadas de forma breve, somente a fim de servir de embasamento histórico para o exame dos princípios da unidade e da pluralidade sucessória em DIPr. Para um estudo aprofundado do desenvolvimento histórico do DIPr, recomenda-se CASTRO, op. cit., p. 127-184.

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direitos nacionais pode ser explicada em face do desaparecimento do que antes era o poder central. Um sistema nesses moldes trazia perplexidades e incertezas. Amílcar de Castro alude a Agobardo, bispo de Lião, que teria dito que no século IX, freqüentemente, cinco homens, cada um regido pelo seu direito, podiam ser encontrados juntos8. Pelas dificuldades que encerrava, o sistema da personalidade do direito ruiu, sendo suplantado pelo sistema da territorialidade, conseqüência da consolidação do feudalismo. Ausente um poder central, a ordem passava a ser exercida pelos proprietários da terra (senhores feudais), que ditavam o direito dentro do seu feudo, e não admitiam que se recorresse a uma regra jurídica alienígena9. A circunstância de o senhor feudal somente admitir a aplicação do seu direito dentro feudo obra, na verdade, não apenas na direção de se promover a negação da personalidade (ou seja, o direito aplicável não se escolhe em razão da nacionalidade do sujeito, e sim do território no qual se encontra), mas também a negação de um DIPr, considerado esse como sistema de resolução de conflitos de leis. O conflito de leis é resolvido de maneira simples: aplica-se o direito local em

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Ibidem, p. 130. Amílcar menciona, também, que, a fim de pôr termo às incertezas, teria sido instituído expediente denominado professio juris, através do qual, nos atos extrajudiciais e judiciais, a pessoa declarava por que direito se governava. 9 “E esse isolamento trazido pelo feudalismo concorreu para implantar o sistema da territorialidade: nenhum senhor consentia em qualquer manifestação de poder estranho a seu feudo. E por isso o feudalismo foi a negação da personalidade: nenhum vassalo poderia invocar uso jurídico diverso do que vigorava no feudo a que pertencesse, pois, em homenagem a seu senhor, sujeitava-se à sua justiça; e a política do senhor feudal era a de desprezar todos os direitos, menos o seu, e recusar conseqüências jurídicas a quaisquer fatos ocorridos em feudo estranho. Nessa ocasião, todos os costumes eram reais, no sentido de que só eram observados no respectivo feudo” (Ibidem, p. 134).

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detrimento de qualquer outro. Para utilizar expressão de Pontes de Miranda, tratase da “posse do solo como elemento determinador da lei”10. Esse estado de coisas criou uma classificação jurídica que, séculos depois, quando do surgimento das primeiras escolas de DIPr (as chamadas “escolas estatutárias”11), seria uma espécie de ponto de partida para o trabalho das mesmas: a divisão dos estatutos entre “reais” (territoriais) e “pessoais” (extraterritoriais). Os primeiros, que eram a regra, aplicavam-se na circunscrição do território, e excluíam a aplicação de qualquer outro. Os segundos afiguravamse uma exceção aos primeiros, permitindo que fosse aplicado, dentro do feudo, em situações especiais, o “direito pessoal” do sujeito. Para o que interessa ao presente estudo, vale dizer que as regras sucessórias se inseriam no âmbito dos estatutos reais. Assim, para os bens situados dentro do feudo, seria aplicado, sempre, quanto à sucessão dos mesmos, o direito do feudo. Esse entendimento elide qualquer discussão acerca de vir a sucessão a ser regulada por direito estranho, e, dessa forma, em havendo uma sucessão internacional, concede prevalência ao princípio da pluralidade sucessória. Em face do sucinto panorama histórico apresentado é que se aponta, 10

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Internacional Privado. Tomo II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p. 260. 11 Foram elas a italiana (séc. XIV), a francesa (séc. XVI), a holandesa (séc. XVII) e a alemã (séc. XVIII). “Estatutárias” deflui de “estatutos”, os direitos particulares das cidades ou das províncias da Europa Ocidental ao tempo em que floresceram tais escolas, direitos esses que se contrapunham à lei (o direito romano e o lombardo), de interesse geral e aplicável em toda a jurisdição. A par de dividir os estatutos em reais e pessoais, essas escolas “não tomavam em consideração o fato anormal para organizar direito que lhe fosse adequado, sim pressupunham conflito entre os estatutos, admitindo que estes se aplicavam, ao mesmo tempo, ao mesmo fato, automaticamente, e pretendendo dizer, apenas, pelo exame dos mesmos, se este ou aquele devia, ou não, ser mantido fora da jurisdição onde vigorava, razão pela qual não conseguiam ver a autonomia do direito internacional privado” (CASTRO, op. cit., p. 141).

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em doutrina, que o princípio do fracionamento encontra-se imbuído de concepções feudais. A prevalência do princípio da pluralidade perdurou até que as bases sobre as quais se assentavam as escolas estatutárias fossem contestadas por Friedrich von Savigny no século XIX, com a publicação, em 1849, do oitavo volume do “Tratado de Direito Romano Atual”. O doutrinador alemão repeliu a classificação a priori dos estatutos em reais e pessoais; baseado numa idéia de comunhão de direitos entre os povos, sustentou que todo Estado deve admitir o direito de outro como fonte do nacional. Propôs uma inovação metodológica quanto às escolas estatutárias, aduzindo que a escolha da lei aplicável deve partir da consideração do “fato”, e não da regra de direito. Como o presente artigo não comporta que se teçam maiores considerações acerca das idéias de Savigny sobre o DIPr12, o que importa dizer é que, ao privilegiar a análise do fato para fins de determinação da lei aplicável (com qual dos direitos potencialmente aplicáveis o fato melhor se adequaria?), a opção pela “lei do domicílio”, em se tratando de sucessão, é a que, segundo o jurista, produz conseqüências mais aceitáveis. A proposta de Savigny possui grande repercussão sobre o tema objeto desse estudo. Ao sugerir que um direito melhor se amolda a determinado fato (in casu, a sucessão internacional), o que ocorre é a ascensão da idéia de unidade sucessória, ou seja, de que a sucessão internacional deve ser regulada por um só direito, aquele mais intimamente ligado a essa sucessão. É fornecido, igualmente, 12

Sobre as concepções de Savigny sobre o DIPr, sugere-se, também, CASTRO, op. cit., 165-173.

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o elemento (regra de conexão) apto a ditar qual o melhor direito aplicável: o domicílio do falecido. A propósito, Amílcar elenca justificativas que fariam do domicílio do morto a melhor regra de conexão no que diz respeito à sucessão:

Se em direito a lógica sempre prevalecesse, só deveria ser adotado o sistema do ius domicilii. O direito mantido pelo meio social onde o indivíduo efetivamente viveu é que deve ser observado quanto à transmutação de seu espólio. (...) Por conseguinte, a adaptação do finado ao meio jurídico e econômico em que viveu, estabelecida com ânimo definitivo, parece decisiva para que se aprecie a sucessão pelo direito desse meio, nada importando que, pelo laço político, estivesse preso a Estado onde não vivia.13

O princípio da unidade sucessória, no entanto, não conhece como única regra de conexão o domicílio do de cujus. Outra regra de conexão foi estabelecida, qual seja, a nacionalidade do finado. A tese foi defendida pelo italiano Pasquale Mancini, contemporaneamente à doutrina de Savigny, e a adoção da nacionalidade como ponto de conexão de DIPr das Sucessões por diversas legislações nacionais justifica a alusão ora feita. Como o domicílio, a nacionalidade retoma uma idéia de personalidade do direito, no sentido de que o direito pessoal do morto é que há de ser aplicado, em detrimento do direito do local em que localizados os bens do acervo. Tanto o princípio da unidade quanto o do fracionamento possuem atenuações, constituindo uma generalização cabível a de que nenhum dos princípios se aplica de forma pura14.

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Ibidem, p. 454. Na ótica de Albornoz: “Sin embargo veremos que la realidad de los sistemas nacionales vigentes no muestra abundantes ejemplos de sometimiento irrestricto a una sola ley o a una ley para cada 14

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A atenuação do princípio da pluralidade diz respeito aos bens móveis, em construção que retroage ao período feudal, época em que dito princípio, como visto, se consolidou. Quando se menciona a “territorialidade do direito” vigente nesse período, especial destaque merece o postulado de que os bens imóveis são regidos pelo direito do local (ius rei sitae). A posse da terra e a sua submissão ao direito do feudo são dotadas de forte conotação política na sociedade feudal. A importância dada à terra (bem imóvel por excelência) tem, contudo, como contrapartida, o desapego aos bens móveis (daí o adágio res mobilis, res vilis, mobilia vilis est e abiecta possessio). Embora as coisas móveis não detivessem relevância, não se pretendia reconhecer que a sua sucessão escaparia ao ius rei sitae. Levando em consideração, porém, que tais bens poderiam se encontrar em múltiplas jurisdições, dificultando a partilha, ao ius rei sitae se chegaria através de uma ficção jurídica: a lei da situação seria a daquele local em que a maior parte dos móveis ordinariamente se encontra, o domicílio do morto (mobilia sequuntur personam). Destarte, para os imóveis persistiria sendo aplicado o direito do local em que situados (feudo); para os móveis, incidiria o direito do domicílio do defunto, por obra da referida ficção. Com efeito, a construção descrita acima possui ares de um dado histórico distante, sem qualquer implicação prática, o que se afigura enganoso. Tal qual a construção medieval, legislações como a da França, Inglaterra e Estados Unidos

bien, apreciándose muchos casos de sistemas intermedios que combinan ambas concepciones” (ALBORNOZ, op. cit., p. 844).

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aplicam o ius rei sitae para a sucessão dos bens imóveis (fracionamento) e o direito pessoal do de cujus para a dos móveis (unidade). Uma exceção conhecida ao princípio da unidade sucessória também pode ser encontrada por meio de um escorço histórico. Faz-se menção, aqui, ao “prélévement” da Lei Francesa de 14 de julho de 181915. Antes da Revolução Francesa, o estrangeiro era submetido a várias incapacidades (o chamado “direito de Aubana”), entre elas a de transmitir por herança bens que possuía na França. Da mesma forma, o estrangeiro era incapaz de adquirir por herança, ainda que o pai fosse francês16. A Revolução, por lei de 06 de agosto de 1790, quedou por abolir o direito de Aubana. O Código Napoleônico, porém, restabeleceu a Aubana, rezando, no art. 726, que um estrangeiro não poderia suceder nos bens que parente estrangeiro ou francês deixara na França, “sino en los casos y de la manera como um francés sucediera a su pariente que dejara bienes en el país de esse extranjero”17. O art. 11, de seu turno, estabelecia a reciprocidade, dizendo que aos estrangeiros seriam acordados os mesmos direitos civis que os franceses gozassem no país daqueles. 15

PRADO, Victor N. Romero del. El Derecho Internacional Privado en el Código Civil Argentino y en el Anteproyecto del Dr. Juan A. Bibiloni. Córdoba: Imprenta de la Universidad de Córdoba, 1935, p. 226-229. 16 Romero del Prado observa que o direito de Aubana sofria várias limitações, como a possibilidade de o estrangeiro transmitir por herança desde que houvesse deixado filho francês. Também se instituíram exceções em favor de soberanos estrangeiros, de comerciantes, por tratados etc., assim como o pagamento da “detração”, um imposto sobre a sucessão de estrangeiro (Ibidem, p. 226-227). 17 Ibidem, p. 227. O Código de Napoleão ia tão longe quanto, no art. 912, proibir, ausente a reciprocidade no seu país de origem, que o estrangeiro recebesse por ato entre vivos. O autor argentino aduz que nem mesmo na vigência do antigo direito havia uma incapacidade dessa monta, já que os diversos atos entre vivos eram considerados faculdades de “direito das gentes”.

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Veio, então, nova mudança legislativa, com a já referida lei de 1819, que, buscando atrair capitais estrangeiros, derrogou os artigos 726 e 912 do Código. O art. 2º da lei fez uma ressalva relativa aos casos sucessórios:

“En el caso de división de una misma sucesión entre herderos extranjeros y franceses, éstos recibirán de los bienes situados em Francia, una porción igual al valor de los bienes situados en país extranjero, de que fuesen excluídos por cualquier título, en virtud de leyes o costumbres locales”18.

O dispositivo pressupõe (i) que seja aberta uma sucessão cujos bens estejam localizados em mais de uma jurisdição e (ii) que concorram herdeiros estrangeiros e franceses. Caso os últimos sejam preteridos na partilha havida em país estrangeiro, haverá compensação dessa perda na partilha dos bens situados na França. Dita disposição do direito francês, conforme se verá, inspirou legislações de DIPr sucessório, impondo, em países que adotam o princípio da unidade (mas não necessariamente somente nesses), que a unidade da lei aplicável à sucessão seja quebrada com o desiderato de proteger o quinhão de cidadãos nacionais.

C) Incidências legislativas

Feita a apresentação dos dois princípios basilares de DIPr das Sucessões, e retomando a assertiva de que as legislações nacionais não logram chegar a um consenso sobre o princípio a ser adotado, como arremate dessa primeira parte do 18

Ibidem, p. 228.

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artigo é oportuno trazer à baila a orientação consagrada por alguns ordenamentos (até para dimensionar a falta de consenso). Adotaram o princípio da unidade sucessória, utilizando como regra de conexão a nacionalidade do de cujus: Itália, Espanha, Alemanha, Grécia, Japão, China, Polônia. No mesmo grupo, porém lançando mão do domicílio como ponto de conexão: Suíça, Equador, Colômbia, Nicarágua. O princípio da pluralidade, na sua forma pura (englobando todos os bens e direitos deixados pelo morto), é incomum, sendo típica dos Tratados de Montevideo de Direito Civil Internacional de 1889 e 1940 e da legislação do estado norte-americano do Mississipi. Já o princípio da pluralidade numa forma intermédia (aplicando-se para os imóveis a lei do situs e para os móveis a pessoal do falecido – do domicílio ou da nacionalidade) – que Valladão sustenta se tratar do “sistema prevalente na maioria absoluta dos Estados”19 –, foi adotado por França, Inglaterra, Estados Unidos, Áustria, Hungria, República Dominicana, Bolívia, Venezuela. Os exemplos evidenciam, ademais, uma faceta da falta de consenso sobre a matéria: as discrepâncias legislativas não são entre diferentes regiões ou famílias jurídicas, visto que, por exemplo, dentro da Europa Ocidental ou da América Latina, elas estão a se manifestar.

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“Na legislação comparada o sistema prevalente na maioria absoluta dos Estados é o estatutário, da pluralidade sucessória, imóveis, lex rei sitae, móveis, lei do domicílio do de cujus”. (VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1973, p. 206; grifado no original).

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II. O DIPr das Sucessões nas legislações brasileira e argentina

Introduzidas, no capítulo I, as duas correntes que protagonizam a discussão doutrinária sobre sucessões em DIPr, cabe, no presente, verificar se e em que medida os princípios referidos foram adotados nos ordenamentos brasileiro e argentino. O objetivo, em verdade, é até mais ambicioso: por intermédio de tal exercício, buscar-se-á apontar as limitações práticas dos princípios da unidade e da pluralidade sucessória, e chamar atenção para particularidades que, por não serem sublinhadas pela doutrina, acabam dificultando o entendimento da matéria.

A) Brasil

Valladão assevera que “No Brasil, a tradição representada pelo direito reinícola era a da teoria estatutária, da pluralidade sucessória (...)”20. No entanto, durante o Império, já havia vozes se levantando em favor da adoção do princípio da unidade. Como, por exemplo, Pimenta Bueno, em 1863 (ainda que sujeita a “alguma disposição especial do estatuto real”):

Todas as razões, assim filosóficas como de justiça e recíproca conveniência, ditam que as sucessões dos estrangeiros sejam deferidas aos seus herdeiros, qualificados como tais pela lei pessoal do finado e nos têrmos dela, salvo alguma disposição especial do estatuto real, que porventura proíba alguma particularidade. (...) A lei da sucessão do estrangeiro deve obter no país da

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VALLADÃO, op. cit., p. 210.

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situação dos imóveis e em relação a êles todos os efeitos que a lei territorial não proibir ou recusar, ou que não forem repelidos por sua moral (...)21.

O princípio da unidade, baseado na nacionalidade do de cujus22, foi, por fim, adotado pela antiga Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 14. A sucessão legítima ou testamentária, a ordem da vocação hereditária, os direitos dos herdeiros e a validade intrínseca das disposições do testamento, qualquer que seja a natureza dos bens e o país onde se achem, guardado o disposto neste Código acerca das heranças vagas abertas no Brasil, obedecerão à lei nacional do falecido; se este, porém, era casado com brasileira, ou tiver deixado filhos brasileiros, ficarão sujeitos à lei brasileira.

A atual Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 04/09/1942), em que se centram as regras de DIPr brasileiro, manteve o princípio da unidade sucessória, alterando, porém, o ponto de conexão para o domicílio do falecido. Trata-se de um texto enxuto, de apenas 19 artigos, que, até pelo seu tamanho, não proporciona maiores refinamento e sistematização às regras de DIPr. O artigo 10 é o que versa sobre DIPr sucessório, assim estabelecendo o seu caput: “A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a 21

Apud in BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado Elementar de Direito Internacional Privado. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1961, p. 226-227. 22 Um defensor do princípio da unidade, tomada a nacionalidade como regra de conexão, foi Clovis Bevilaqua. São dele estas palavras: “Os argumentos em que se apoia a doutrina que adopta a lei nacional para regular o direito successorio nas relações internacionaes de direito privado são concludentes e satisfactorios. (...) O principio da nacionalidade é o actualmente vigorante; é ao grupo social de sua origem que o homem se sente preso por elos moraes inquebraveis (...). Por outros termos, a personalidade do individuo não morre nem se deve modificar pelo simples facto delle deixar, temporaria ou definitivamente, a sua patria, ha de manter-se integra no seio da sociedade internacional. Mas, para respeitar essa integridade, é necessário manter a efficacia extraterritorial da lei que presidiu á sua formação” (BEVILAQUA, Clóvis. Princípios Elementares de Direito Internacional Privado. Campinas: Red Livros, 2002, p. 276-277).

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situação dos bens”. Esse enunciado serve como ponto de partida para a reflexão sobre o atual DIPr das Sucessões brasileiro. O dispositivo estabelece o princípio da unidade sucessória baseado no domicílio do morto como regra de DIPr brasileiro. E a enunciação do princípio é feita de um modo um tanto pretensioso. Ao consignar que a sucessão obedece à lei do país de domicílio do de cujus, “qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”, o dispositivo determina que a lei domiciliar deverá ser aplicada mesmo para bens localizados no estrangeiro. Suponha-se que o finado era domiciliado no Brasil e que possuía bens aqui e na Argentina. Nesse caso, de acordo com o art. 10, caput, da LICC, a lei brasileira (pois do domicílio) deverá reger toda a sucessão, incidindo sobre os bens situados em ambos os países. E a única maneira factível de tal comando se concretizar é pressupor que somente uma sucessão será aberta, perante a justiça brasileira, com a decisão proferida sendo executada na Argentina, sobre os bens lá situados. Se, contudo, o finado fosse domiciliado na Argentina (veja-se que não possui relevância a nacionalidade, pois o ponto de conexão é o domicílio), a lei daquele país é que (segundo a regra de DIPr brasileiro) regeria a sucessão. Assim, utilizando-se o mesmo raciocínio, a sucessão deveria ser processada perante a justiça argentina, e a decisão, quanto aos bens localizados no Brasil, deveria ser aqui executada. Note-se que, como conseqüência da adoção do princípio da unidade no DIPr brasileiro, por uma questão de coerência, à justiça brasileira, em se tratando de de cujus domiciliado na Argentina, caberia permitir a incidência da lei argentina sobre os bens situados no Brasil. 18

O exemplo fornecido corresponde a uma aplicação ideal do princípio da unidade sucessória; faz crer que a matéria não apresenta complexidade nem desafios. Atento a tal circunstância, Pontes de Miranda referiu: “É sedutor o princípio da unidade da sucessão. Encanta o jurista a sua exposição fácil, lógica, simples (...)”23. Todavia, a referida “aplicação ideal” do princípio – a que induz o art. 10, caput, da LICC – esbarra numa série de limitações, de ordem legal ou prática. Proceder-se-á, então, a verificar como o princípio de fato opera em face das várias condicionantes que se põem.

A.1) A questão da jurisdição

O princípio da unidade consagrado no art. 10 da LICC supõe que, caso aplicável a lei brasileira na condição de lei domiciliar, possa ela ser executada em país estrangeiro no qual o falecido possuía bens (ou, no caso inverso, em que aplicável a lei estrangeira – exemplo do de cujus domiciliado na Argentina –, que dita lei seja executada no Brasil). Sem que se adentre a discussão acerca de se o país estrangeiro concederia exequatur à decisão da justiça brasileira, é de se perquirir, em primeiro lugar, se o ordenamento brasileiro permite que a justiça desse país disponha sobre bens situados fora do território nacional.

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MIRANDA, op. cit., p. 262.

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Uma resposta à indagação pode ser buscada no Código de Processo Civil, no título IV, capítulo II (artigos 88 a 90), que trata da “competência internacional”. Assim dispõe, mais especificamente, o art. 89:

Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: I – conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil; II – proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional24.

De modo patente, o art. 89 do CPC, ao definir regras de competência internacional do judiciário brasileiro, enfraquece o princípio da unidade sucessória. O artigo não versa sobre a hipótese de a justiça brasileira pretender aplicação extraterritorial, mas sobre a hipótese contrária, ou seja, quando a justiça estrangeira intenta produzir efeitos no território nacional. O inciso II do art. 89 trata, especificamente, da competência internacional em se tratando de inventários e partilhas. E impõe que, “ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional” (isto é, era domiciliado em outro Estado), se os bens deixados estiverem situados no Brasil, a sucessão, quanto a esses bens, deverá ser aberta perante a justiça brasileira. No exemplo dado no tópico anterior, na parte referente a finado com domicílio na Argentina, não há como se conceber, então, que a justiça argentina decida sobre o reparto de bens (o inciso não diferencia entre bens móveis e imóveis) que o de cujus tenha deixado no Brasil. Em face do art. 89 do CPC, vedado está ao STJ 24

A LICC no seu art. 12, § 1º, possui regra idêntica à do art. 89, I, do CPC: “Só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis no Brasil”.

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homologar sentença estrangeira ou conceder exequatur a carta rogatória nesse sentido25. Já o alcance extraterritorial da justiça brasileira, pois ausente regra explícita acerca da matéria, teve a fixação dos seus limites relegada à jurisprudência. É ilustrativa, a esse respeito, a decisão proferida pelo STJ no RESP nº 397.769 – SP (3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 25/11/2002). O Espólio de Jânio da Silva Quadros interpôs recurso especial contra acórdão em agravo de instrumento que manteve decisão interlocutória, proferida em inventário, que “indeferiu o requerimento de expedição de carta rogatória ao Poder Judiciário da Suíça, com o objetivo de obter informações a respeito de eventuais depósitos bancários existentes naquele país em nome do de cujus”. A parte recorrente sustentava violação ao art. 89 do CPC, argumentando que “inexiste em tal dispositivo, ou em qualquer outro, vedação para o Poder Judiciário brasileiro determinar a partilha de bens, situados fora do país, de brasileiro aqui residente e domiciliado”. A Turma, por unanimidade, quedou por não conhecer do recurso especial (o mérito do recurso, em verdade, foi enfrentado). O acórdão, com o fito de repelir a tese do recorrente, aludiu a princípio que, nesses termos, não se encontrou enunciado na doutrina pesquisada: “princípio da pluralidade dos juízos sucessórios”.

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CF, art. 105: “Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: (...) i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias”.

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Para definir o alcance extraterritorial da justiça brasileira, a 3ª Turma do STJ nada mais fez que aplicar mesma regra do art. 89, II, do CPC:

Se o ordenamento jurídico pátrio impede ao juízo sucessório estrangeiro de cuidar de bens aqui situados, móveis ou imóveis, em sucessão mortis causa, em contrário senso, em tal hipótese, o juízo sucessório brasileiro não pode cuidar de bens sitos no exterior, ainda que passível a decisão brasileira de plena efetividade lá.

Em suma, eis o raciocínio utilizado: se a justiça estrangeira não pode inventariar bens situados no Brasil (art. 89, II, do CPC), também não pode a justiça brasileira inventariar bens localizados no estrangeiro (auto-limitação que abarca tanto bens imóveis quanto móveis, vez que o caso versava sobre “eventuais depósitos bancários”). A decisão descrita põe a nu debilidade do princípio da unidade sucessória. Ora, se não é possível que a justiça brasileira, pelo menos, busque, em processo de inventário, decidir sobre a parte do acervo localizada no estrangeiro (ainda que, na prática, a execução da sentença brasileira fique, como é curial, sujeita a homologação), perde força se falar em unidade sucessória. Não obstante a questão da competência jurisdicional, tal como disposta no direito brasileiro, constituir um óbice à efetivação do princípio da unidade em DIPr sucessório, referida circunstância não é ressaltada pela doutrina com a veemência que reclama. Uma exceção é Haroldo Valladão, que, com lucidez, se opõe ao princípio da unidade mormente pelas dificuldades que concorrem para a sua

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concretização26. Nada como um exemplo contemplando situações práticas, trazido por Valladão, para explicitar as mencionadas dificuldades:

No Brasil, a efetivação do princípio unitarista e universalista nas sucessões havia de suscitar, do ponto de vista processual, acerca da competência para o inventário e a partilha também dificuldades insuperáveis. Como iria o Juiz brasileiro, do domicílio do de cujus, inventariar, isto é, arrecadar, avaliar, mandar vender ou entregar, distribuir, adjudicar, partilhar, todos os bens, móveis e imóveis, por ele deixados, qualquer que fosse o país onde se encontrassem, nas Américas, na Europa, na Ásia, na África, na Oceania, sujeitando todo o respectivo processo, para todos os interessados, cônjuge sobrevivente, herdeiros, credores, Fisco, a uma única lei, à lei prescrita pelo direito internacional privado brasileiro, até 24 de outubro de 1942, à lei da nacionalidade, e, posteriormente, à lei do domicílio, do de cujus? Ou se o de cujus morresse domiciliado no estrangeiro, aguardarem aqui no Brasil, Juízo e todos aqueles interessados que lá no estrangeiro se procedesse ao inventário e partilha de todos os bens por ele deixados, inclusive dos sitos no Brasil, o que, com toda a probabilidade, lá não seria feito, ou se o fosse não seria num só lugar, nem se regeria por uma só lei, nem se regularia pela lei determinada pelo direito internacional privado brasileiro?27

Mais adiante, complementa Valladão, em passagem que serve como uma luva para desfecho do presente sub-item:

Vê-se, pois, que a nova Lei de Introdução, embora prescrevendo, quanto à lei aplicável, a unidade e a universalidade da sucessão, não só não estabeleceu, ao tratar da competência judiciária, aquele mesmo princípio no foro do inventário, no domicílio do de cujus, mas veio acolher, declaradamente, a norma da pluralidade sucessória ao determinar, quanto aos imóveis sitos no Brasil, a competência exclusiva dos tribunais brasileiros.28

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“O problema do lugar da abertura da sucessão com o processo do inventário e partilha, vem finalmente levantar obstáculos intransponíveis, ao princípio da unidade e universalidade da sucessão, dada a regra corrente no processo de todos os Estados, da competência privativa dos respectivos tribunais para decidir sobre bens, particularmente imóveis, neles situados” (VALLADÃO, op. cit., p. 224; grifado no original). 27 Ibidem, p. 227; grifado no original. 28 Ibidem, p. 229; grifado no original.

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No sub-item que segue, o exame da “lei aplicável” permitirá dizer em que medida, afinal, o princípio da unidade vigora no ordenamento brasileiro.

A.2) A questão da lei aplicável

O princípio da pluralidade dos foros sucessórios, enunciado no RESP nº 397.769 – SP, determina que, no que diz respeito a bens sitos no Brasil, o inventário e partilha dos mesmos deverão ser processados perante a justiça brasileira. Em regra, o princípio foi consagrado no Brasil29. Resta, então, verificar que lei o juiz nacional aplicará ao se deparar com uma sucessão internacional, a fim de avaliar se, no tocante à lei aplicável, a unidade sucessória subsiste. Recorrer-se-á, mais uma vez, ao exemplo fornecido no tópico A). Na primeira situação – de finado com domicílio no Brasil que deixa bens aqui e na Argentina –, não há maiores indagações: o juiz brasileiro aplicará, quanto aos bens situados no Brasil, a lei brasileira, pois lei do domicílio. Na segunda – falecido domiciliado na Argentina que deixa bens lá e no Brasil –, desponta a face mais saliente do princípio da unidade. No que se refere aos bens localizados no Brasil, conforme já explanado, a competência será do juiz brasileiro. E que lei deverá ser por ele utilizada, a brasileira ou argentina? O princípio da unidade sucessória, então, incide, e estabelece que o juiz brasileiro haverá de aplicar a lei sucessória argentina (lei domiciliar do morto). Para toda

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A exceção, quanto ao alcance extraterritorial da justiça brasileira, reside, por exemplo, em julgados elencados no próprio RESP 397.769-SP.

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sucessão aberta no Brasil (sendo que a sucessão de bens situados no Brasil, necessariamente, deverá ser aberta aqui), o juiz nacional aplicará a lei do domicílio do de cujus: eis a maneira como pode ser enunciado o princípio da unidade sucessória em DIPr brasileiro. Mesmo essa aplicação da lei domiciliar pelo juiz nacional, porém, encontrase sujeita a ressalvas. Uma ressalva tradicional no DIPr brasileiro visa a proteger o cônjuge ou filhos brasileiros. Prevista no art. 14 da antiga Introdução ao Código Civil, e no art. 10, § 1º da atual30, a ressalva galgou status constitucional na Constituição de 1934 (art. 134), reaparecendo nas Constituições de 1937 (art. 152), de 1946 (art. 165) e de 1967 (art. 150, § 33). Na Constituição de 1988, aparece no art. 5º, como um dos direitos e garantias fundamentais:

XXXI – a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus;

Por razões de coerência sistêmica, quando a Constituição alude a “lei pessoal do de cujus”, só se pode concluir que está se referindo à lei domiciliar do finado. A ressalva materializada no art. 5º, XXXI, da CF (e art. 10, § 1º da LICC) é relevante na hipótese de falecimento de estrangeiro com domicílio fora do Brasil. Havendo cônjuge ou filhos brasileiros, o juiz, pondo de lado a unidade sucessória, deverá aplicar à sucessão a lei brasileira, a menos que a lei do domicílio do de

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Art. 10, § 1º: “A sucessão de bens estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus”.

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cujus seja mais favorável àqueles31. Assim como o prélévement da Lei Francesa de 1819, a disposição enfocada objetiva proteger os nacionais na divisão dos bens. Uma outra ressalva à incidência da lei domiciliar (e, assim, à unidade de lei aplicável para as sucessões abertas no Brasil) pode ocorrer quando essa colidir com a ordem pública brasileira. Trata-se de uma ressalva geral de DIPr à aplicação da lei estrangeira pelo juiz nacional, que encontra previsão no art. 17 da LICC: “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”32. A matéria foi abordada pelo STF, no REXT 68.157-RJ, julgado em 18/04/1972 sob a relatoria do Min. Luiz Gallotti.

O recurso teve origem em

acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que, mantendo a decisão de 1º grau, ordenou a inscrição e cumprimento de testamento particular feito na Itália por Gabriela Besanzoni Lage Lillo. Na Itália, não são exigidas testemunhas para o testamento particular (também conhecido como de mão própria), ao passo que no

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Uma indagação que surge é se a hipótese versar sobre brasileiro domiciliado no estrangeiro com cônjuge ou filhos brasileiros? Caberá ao juiz, mesmo se tratando de “brasileiro” com domicílio fora do país, proceder à verificação da lei mais favorável (se a domiciliar ou a brasileira), e aplicá-la? 32 Segundo Nádia de Araújo: “A intervenção da exceção de ordem pública internacional consiste no afastamento da lei designada, ocasionando um efeito negativo, pois sua utilização importaria em um resultado incompatível com a ordem pública do foro. (...) Apesar das críticas ao seu uso demasiado, a ordem pública é válvula de escape que pode auxiliar a dar ao sistema de conflito de leis a flexibilidade necessária à sua própria manutenção, especialmente porque o método conflitual, nos moldes tradicionais, não mais atende aos reclames do momento” (ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado – Teoria e Prática Brasileira. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 100).

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Brasil, de acordo com o art. 1645 do antigo Código Civil, eram necessárias cinco testemunhas. Foi levantada, no acórdão no STF, a questão de se a ordem pública brasileira vedaria a execução do testamento, trazendo-se à baila a circunstância de os testamentos conjuntivos (ou de mão comum) não serem exeqüíveis no Brasil, já que a lei desse país não os admite. O entendimento do Relator e dos demais integrantes da 1ª Turma (que, de forma unânime, o acompanharam) foi de que não havia vedação de ordem pública, pois o testamento particular é aceito tanto na Itália quanto no Brasil, havendo, unicamente, diferença quanto às formalidades (lá, desnecessidade de testemunhas; cá, cinco testemunhas). Nesse esteio, para conferir validez ao testamento, a decisão acudiu à regra locus regit actum, negando provimento ao recurso extraordinário. Por fim, merece referência o art. 10, § 2º da LICC, que lê: “A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder”. Alguma confusão pode surgir quanto ao significado da disposição, indagando-se se essa regula a condição de herdeiro ou, meramente, a capacidade para receber a herança. Para não tornar o sistema irreconciliável, inclina-se pela segunda opção, assim como o fizeram Nádia de Araújo (ela exemplifica mencionando que os casos de indignidade seriam regidos pela lei domiciliar do herdeiro) e a jurisprudência33. 33

“Direito Internacional Privado. Art. 10, § 2º, da LICC. Condição de herdeiro. Capacidade de suceder. Lei aplicável. I – Capacidade para suceder não se confunde com capacidade de herdeiro. II – Esta tem a ver com a ordem da vocação hereditária que consiste no fato de pertencer a pessoa que se apresenta como herdeiro a uma das categorias que, de um modo geral, são chamadas pela lei à sucessão, por isso haverá de ser aferida pela mesma lei competente para reger a sucessão do morto que, no Brasil, ‘obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto’ (art. 10, caput, da LICC). III – Resolvida a questão prejudicial de que determinada pessoa, segundo o domicílio que

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B) Argentina

Contrariamente ao que sucede no Brasil, o estudo do DIPr das Sucessões na Argentina é marcado por um dissenso doutrinário acerca de qual princípio é adotado. Assim, dividem-se os autores entre os que entendem que o princípio adotado é da unidade, e aqueles que dizem que é o da pluralidade. As regras de DIPr sucessório encontram-se inseridas no Código Civil argentino, e a razão para o dissenso na doutrina residiria na falta de coerência das várias disposições que possuem relação com a matéria. Romero del Prado faz referência ao fato de que a parte do Código que trata das sucessões foi elaborada às pressas pelo codificador Vélez Sarsfield, por exigência do amigo e presidente Sarmiento, que pretendia deixar como legado da sua administração o Código Civil. Em face disso, teria havido precipitação, agravada pela ausência de um capítulo sobre sucessões no projeto de Teixeira de Freitas, que servia de guia para o trabalho de Vélez34. De um lado, o Código Civil argentino ostenta disposições que pendem claramente para o princípio da unidade sucessória. Eis o art. 3283: “El derecho de sucesión al patrimonio del difunto, es regido por el derecho local del domicilio que el difunto tenía a su muerte, sean los sucesores nacionales o extranjeros”.

tinha o de cujus, é herdeira, cabe examinar se a pessoa indicada é capaz ou incapaz para receber a herança, solução que é fornecida pela lei do domicílio do herdeiro (art. 10, § 2º, da LICC). IV – Recurso conhecido e provido”. (STJ, 4ª Turma, RESP 61.434-SP, Rel. Min. César Asfor Rocha, por maioria, j. 17/06/1997). 34 Prado, op. cit., p. 215-216.

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Da mesma forma que o art. 10 da LICC, o art. 3283 do Código Civil da Argentina consagra o princípio da unidade, utilizando como regra de conexão o domicílio do de cujus. O art. 3283, que prevê a lei aplicável, é complementado pelo art. 3284, que versa sobre o juízo competente para a abertura da sucessão: “La jurisdicción sobre la sucesión corresponde a los jueces del lugar del último domicilio del difunto “. À unidade da lei aplicável haveria uma única exceção, consubstanciada no art. 3470:

“En el caso de división de una misma sucesión entre herderos extranjeros y argentinos, o extranjeros domiciliados en el Estado, estos últimos tomarán de los bienes situados en la República, una porción igual al valor de los bienes situados en país extranjero de que ellos fuesen excluidos por cualquier título que seja, en virtud de leyes o costumbres locales”.

Trata-se, como se denota da dicção do artigo, de uma exceção à semelhança daquela constante no art. 10, § 1º da LICC, que procura proteger o quinhão de cidadãos domiciliados na Argentina (a lei brasileira visa à salvaguarda do cônjuge ou filhos brasileiros), sejam eles argentinos ou estrangeiros. O dispositivo, para operar, prevê a ocorrência de partilha, em país estrangeiro, de bens do de cujus lá localizados, na qual os herdeiros com domicílio na Argentina tenham tido seus quinhões desrespeitados (utilizando-se como parâmetro a lei

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sucessória argentina). Segundo aparece na nota ao artigo35, o mesmo deita raízes no “prélévement” da Lei Francesa de 1819. De outro lado, constata-se que tão claras quanto as disposições que favorecem a unidade sucessória são as que a refutam, privilegiando o princípio contrário, do fracionamento. Nessa esteira, reza o art. 10:

“Los bienes raíces situados en la República son exclusivamente regidos por las leyes del país, respecto a su calidad de tales, a los derechos de las partes, a la capacidad de adquirirlos, a los modos de transferirlos, y a las solemnidades que deben acompañar esos actos. (...)” (grifou-se).

Assim, ao artigo sujeitar os bens imóveis às leis da República (inclusive quanto ao modo de transferi-los), não haveria como subsistir a regra de que a sucessão de ditos bens seja regida pela lei do domicílio do finado, quando essa for lei estrangeira. O princípio da unidade, outrossim, é rechaçado pela nota ao art. 3598, que contradita, frontalmente, o sentido dos arts. 3283 e 3284:

“Supóngase que una persona muera en Buenos Aires dejando cien mil pesos aqui y cien mil en Francia. Los bienes que estén en la República se regirán por nuestras leyes y los que estén en Francia por las de aquel país. Habrá, pues, tantas sucesiones cuantos sean los países en que hubiesen quedado bienes del difunto”36.

Por fim, refutando a unidade sucessória, surge a própria nota ao art. 3283: 35

Uma peculiariadade do Código Civil argentino foi a confecção de notas aos artigos pelo codificador Vélez Sarsfield, em que esse traz informações sobre o dispositivo (a sua origem, por exemplo) ou tece comentários. Embora a nota não tenha caráter de lei, é de valia para fins interpretativos. 36 Apud PRADO, op. cit., p. 217.

30

“Puede llamarse una excepción a este principio general lo que está dispuesto respecto a la transmisión de los bienes raíces que forman una parte del territorio del Estado y cuyo título debe ser siempre transferido en conformidad a las leyes de la República, Art. 10 de este Código”37.

Entre os defensores do princípio da unidade, encontra-se, fervorosamente, Romero del Prado. Ele milita em favor do que se poderia chamar de “unidade pura”, no sentido de que, no caso de uma sucessão internacional, haja somente um inventário (aberto no país de domicílio do morto) e uma lei reguladora (lei domiciliar do morto). Prado analisa minuciosamente todas as disposições do Código Civil que abordam a matéria, com a intenção de comprovar a sua tese de que o Código adotou, e sem vacilações, o princípio da unidade. A parte da obra de Prado dedicada à defesa do princípio da unidade38 torna-se cansativa, em virtude das especificidades a que desce o autor (como, por exemplo, quando busca comprovar que o art. 10 não se aplica em se tratando de sucessão). A impressão passada ao leitor, contudo, é que o doutrinador não dá a atenção devida a debilidade flagrante do princípio da unidade: a unidade sucessória somente é implementável dentro do território argentino, já que, para bens localizados fora da República, não há como o juiz argentino, simplesmente, decidir acerca da sua partilha. 37

Ibidem, p. 218. “Cómo refutamos los argumentos aducidos em favor de la pluralidad” (Ibidem, p. 218-229). Vejase, por exemplo, como Prado rebate a nota ao art. 3598: “Para nosotros, si muere em Buenos Aires, la sucésion única se abrirá en esta ciudad donde suponemos que tenía el difunto su último domicilio y esto de conformidad al Art. 3283, pero si deja bienes en países que no admiten este principio de la unidad, como Francia, se abrirá en cada uno de ellos un juicio sucesorio y habrá así varias sucesiones, no porque nuestro Código acepte esta doctrina de la pluralidad, sino porque las legislaciones extranjeras la hacen necessária, la imponen” (p. 219). 38

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Prado termina o capítulo IX (“Derecho de Sucesión”) do seu livro avaliando a jurisprudência argentina sobre o tema das sucessões em DIPr, e concluindo que os desentendimentos em torno da matéria muito se devem a uma desorientada atuação jurisprudencial39. Sendo isso verdadeiro ou não, o certo é que acabou recaindo sobre a jurisprudência cunhar o sistema de DIPr das Sucessões vigorante na Argentina.

B.1) O caso “Walter de Hahn”

Se, no plano doutrinário, revela-se dissenso quanto ao princípio de DIPr das Sucessões consagrado pelo Código Civil, no plano jurisprudencial preponderam critérios de fracionamento40. Um “leading case” sobre a matéria, apontado como influenciador de jurisprudência posterior e que espelha o sistema de DIPr Sucessório que prevalece na prática, é o “Plenario de la Cámara Civil de la Capital del 27 de agosto de 1914, en la causa Walter de Hahn y otros” (doravante caso Walter de Hahn). O caso foi movido pelos herdeiros de de cujus russo, domiciliado na Rússia; postulava-se o reconhecimento de uma sentença declaratória de herdeiros

39

“Alguna vez, varios años hace, afirme que era realmente penosa la impresión que dejaba en el espíritu el análisis de la jurisprudencia argentina respecto del régimen internacional de las sucesiones, por la confusión y el olvido de los verdaderos principios seguidos por el eminente codificador argentino. Hoy en día, debo ratificar esta apreciación, pues, todavia nuestros magistrados permanecen ciegos a las claras enseñanzas de la cátedra universitária” (Ibidem, p. 235). 40 “(...) la jurisprudencia civilista se ha mostrado fuertemente fraccionadora, aplicando el derecho argentino a la herencia de inmuebles locales y muebles com situación permanente en el país” (ALBORNOZ, op. cit., p. 854).

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proferida naquele país, a fim de que fossem partilhados dinheiro e ações localizados em um banco na Argentina (“Banco de Londres y Río de la Plata”). A decisão de 1º grau negou reconhecimento à sentença russa, pelo que os herdeiros apelaram à Câmara Civil da Capital. A decisão na Câmara Civil foi apertada, por seis votos a cinco, atestando a disparidade de pontos de vista acerca da matéria que, até hoje, perdura na doutrina argentina. O posicionamento vencedor fez uma distinção entre três classes de bens: imóveis (CC, art. 10), “móveis com situação permanente” (art. 11, 1ª parte) e “móveis com situação móvel” (art. 11, 2ª parte). No que respeita as duas primeiras classes de bens, entendeu-se, na esteira do que determina o Código Civil, que a regência é das leis da República. Dessa forma, não se poderia aceitar que a sucessão desses bens fosse regida por lei estrangeira. Ocorre que os bens versados no feito (dinheiro e ações) se incluiriam na terceira classe, “móveis com situação móvel” (os “móveis com situação permanente” são aqueles que se conservam sem a intenção de transportá-los). E, quanto aos “móveis com situação móvel”, não havia imposição legal de que fossem regidos pelas leis da Argentina, motivo pelo qual a sua sucessão poderia obedecer às leis de país estrangeiro (in casu, Rússia). O sistema que exsurge do caso Walter de Hahn pode ser descrito nos seguintes termos: o princípio da unidade só sobrevive para os “bens móveis com situação móvel”. Para esses bens, se admite como competente para a sucessão o juízo do domicílio do finado e como lei reguladora a do seu domicílio. Assim, poderá ser reconhecida a sentença estrangeira que disponha sobre essa classe 33

de bens, conforme sucedeu no caso Walter de Hahn (é de se cogitar que, no tocante aos “móveis com situação móvel”, o princípio adotado na Argentina é o da unidade pura, no sentido de que o único juízo competente para tramitar a sucessão, e a única lei aplicável, são os do domicílio do morto). Contudo, quanto aos “imóveis”, e aos “móveis com situação permanente”, consagrou-se o princípio da pluralidade. Sempre que se tratar dessas espécies de bens, a lei de regência (inclusive quanto à sucessão) será a argentina, e competente, a justiça argentina. O fato de a lei aplicável ser a argentina conduz a que se entenda como exclusivamente competente a justiça argentina. Dito entendimento poderia ser desafiado na hipótese em que o juízo domiciliar do morto (Rússia, por exemplo) dispusesse sobre a sucessão de bens imóveis (ou móveis com situação permanente) sitos na Argentina aplicando a lei desse país. Não haveria, nesse caso, infringência aos artigos 10 e 11, 1ª parte do CC argentino, na medida em que, embora a decisão proviesse de juízo estrangeiro, estaria sendo observada a lei argentina. Em regra, nem se cogita, no entanto, na Argentina, que o juiz estrangeiro aplique, quanto à sucessão de tais bens, a lei argentina, e que essa decisão obtenha reconhecimento. Se a lei aplicável é a argentina, a única justiça competente será a argentina: essa é a norma. A competência exclusiva da justiça da Argentina sobre imóveis (e móveis com

situação

permanente)



situados

implica,

em

contrapartida,

“la

autorrestricción de las sentencias argentinas com relación a aquellos bienes

34

argentinos”41. Essa tomada de posição é altamente fracionadora, pois – de modo idêntico ao entendimento adotado no RESP nº 397.769 – SP – fica a justiça argentina tolhida de, em questões sucessórias, pretender que as suas decisões tenham alcance extraterritorial (pelo menos que no diz respeito a imóveis e móveis com situação permanente).

B.2) A proposta de Boggiano

Tendo em conta que Boggiano defende o princípio da unidade, o referido autor propõe uma nova forma de abordagem ao DIPr sucessório, objetivando que tal princípio, na prática, opere. Boggiano parte da premissa de que a sentença argentina deve, sim, pretender alcance extraterritorial em matéria sucessória (esse seria o único meio de salvaguardar a unidade numa sucessão internacional). Mas, para isso, a justiça argentina, deparada com uma sucessão na qual haja bens em mais de um país, não poderá, tão-só porque o seu DIPr assim o diz, aplicar a lei do último domicílio do defunto, conforme dicção do art. 3283 do CC. A sentença proferida na Argentina somente poderá obter reconhecimento no país em que haja bens se esse país (em última análise, o seu DIPr) aceitar a solução encontrada pelo juiz argentino. Assim, se o DIPr do país estrangeiro estipular que a sucessão deve ser regida pela lei de nacionalidade do defunto, de nada adianta que a sentença 41

BOGGIANO, Antonio. Derecho Internacional Privado. Tomo III. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1988, p. 105.

35

argentina que se pretende ver reconhecida determine que a partilha siga a lei domiciliar. O doutrinador argentino retoma algo que Pontes de Miranda já assinalara42: que, ao cabo, caberá à lei de situação dos bens definir qual lei regerá a sucessão. Imagine-se a hipótese de de cujus argentino domiciliado na Itália ao tempo de sua morte, que tenha deixado bens nos dois países. Se se deseja que a partilha decidida na Argentina produza efeitos na Itália, quanto aos bens lá sitos, é necessário que o juiz argentino perquira qual solução seria dada pelo juiz italiano (o juiz da lei do situs). Se a Itália faz uso da nacionalidade como ponto de conexão de DIPr sucessório, deverá o juiz argentino, a fim de que a sua decisão possa ser reconhecida na Itália, aplicar a lei argentina (lei da nacionalidade) à partilha dos bens em território italiano43. Caso houvesse, também, bens situados na França, caberia ao juiz argentino, do mesmo modo, adotar, para aqueles bens, a solução que seria dada pelo juiz francês: os bens móveis seriam regidos pela lei domiciliar, enquanto que os imóveis pela lei francesa, na condição de lei da situação. Em defesa da sua proposição, assinala Boggiano:

42

Aduz Pontes: “Mas repare-se bem em que é a ‘situação’ que distingue, que valoriza, que qualifica, que prende ou solta os bens. Porque? Porque a lex rei sitae constitui regra de competência; as outras, oriundas de sugestões recebidas pelos legisladores da situação, constituem resultados de determinações (de direito interno) da lei sucessoral” (MIRANDA, op. cit., p. 261). 43 Atente-se para outro ponto da proposta de Boggiano: quando o art. 3283 do CC argentino faz alusão à lei do último domicílio do falecido está a se referir, em verdade, ao sistema jurídico daquele país. Já que a Itália utiliza o critério da nacionalidade como regra de DIPr das Sucessões, o juiz argentino, guiando-se por tal critério, deverá aplicar a lei argentina. Esse “retorno” ao direito local, por intermédio das regras de DIPr do direito estrangeiro, chama-se de “reenvio”.

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“Esta metodologia de coordinación produce una situación jurídica consolidando, de modo unitário y simultâneo, el punto de vista de uno o más ordenamientos extranjeros en bloque, en concreto. Los ‘puntos de referencia’ son, en este contexto, los lugares de situación de los bienes. Hay que tomar en cuenta el reconocimiento de la sentencia argentina en aquellos puntos de referencia necesaria para la eficácia internacional de la sentencia”44.

Conforme antes referido, a proposta de Boggiano é construída sobre o pressuposto de que haverá uma única sucessão, aberta na Argentina, e que, atento a critérios de coordenação, o juiz argentino buscará que a sua decisão seja reconhecida no estrangeiro, no tocante à parte dos bens que lá se situa. Porém, o doutrinador deixa de considerar que muitos Estados irão proclamar exclusividade de jurisdição sobre os bens localizados dentro do seu território, o que constitui um obstáculo à efetivação da sua proposta. Calcado no art. 89, II, do CPC, o STJ, por exemplo, certamente irá indeferir a homologação de sentença argentina que decida sobre a sucessão de bens no Brasil.

Considerações finais

Não seria um disparate colocar em questão a utilização dos princípios da unidade e da pluralidade como pontos de referência para a compreensão do DIPr das Sucessões. Isso porque, de pouco serve que, em nível doutrinário, sejam contrapostos dois princípios (um determinando que a sucessão internacional seja regida por uma só lei, e outro por tantas leis quanto haja bens em diferentes Estados) se, na prática, um deles, o da unidade, não alcança implementação. 44

BOGGIANO, op. cit., p. 118; grifado no original.

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No Brasil, a despeito de a doutrina não vacilar quanto a ser o princípio da unidade o consagrado, e da dicção do art. 10, caput, da LICC, opera um sistema que não é fidedigno à tradicional classificação. A circunstância de a justiça brasileira não se permitir alcance extraterritorial em causas sucessórias, nem permitir que, nessas causas, a justiça estrangeira aqui produza efeitos, tolhe a pretensão extraterritorial que é inerente ao princípio da unidade (o que denota a expressão “qualquer que seja a natureza e a situação dos bens”, contida no referido artigo, senão uma pretensão extraterritorial?). Nesse passo, se a justiça brasileira não possui a pretensão de, em processos sucessórios, emitir determinações sobre bens situados fora do território nacional (nem os Estados que possuem essa pretensão conseguem, de forma autônoma, fazer valer determinações dessa ordem – o que constitui um imperativo do sistema de Estados), não há sentido em se insistir no princípio da unidade para a sucessão internacional. Um óbice, talvez o principal, à efetivação da unidade sucessória é ser a regra, entre os Estados, a exclusividade de jurisdição sobre os bens situados no respectivo território. Mesmo que, hipoteticamente, se superasse esse obstáculo, ainda assim a unidade somente seria implementável se houvesse alguma forma de coordenação entre os ordenamentos postos em contato com a sucessão internacional. De nada adiantaria, por exemplo, que o Estado “X” dispusesse sobre a parte do acervo localizada em “Y” de acordo com a lei domiciliar, se “Y” adotasse como regra de conexão a lei de nacionalidade do morto. Assim, surpreende que a doutrina não ressalte a necessidade de coordenação, e que 38

Boggiano, dentre os autores pesquisados, tenha empreendido solitariamente a tarefa de propor um método que objetive a coordenação. Mormente em face da competência exclusiva do judiciário brasileiro sobre os bens aqui sitos, tem-se, no Brasil, um princípio da unidade severamente restringido. A unidade sucessória prevista na LICC somente opera para os bens localizados no Brasil. Na contra-mão do que sugere a enunciação do princípio, a unidade da LICC ignora os bens do acervo localizados fora do território brasileiro. O princípio fica subsumido na aplicação, pelo juiz nacional, de apenas uma lei à sucessão dos bens aqui localizados, a do domicílio do de cujus. A inoperância do princípio da unidade também se observa a partir do DIPr argentino. No tocante aos bens imóveis e “móveis com situação permanente”, se admite, unicamente, a incidência da lei argentina, e a competência exclusiva da justiça daquele país.

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