O DIREITO ORIGINÁRIO À TERRA E A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO MAYARA RODRIGUES DE ALMEIDA O DIREITO ORIGINÁRIO À TERRA E A AUTODETERMINAÇÃO DO POVOS INDÍGENAS NO BRASIL Porto Alegre 2015
MAYARA RODRIGUES DE ALMEIDA O DIREITO ORIGINÁRIO À TERRA E A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Gustavo Oliveira de Lima Pereira. Porto Alegre 2015
MAYARA RODRIGUES DE ALMEIDA O DIREITO ORIGINÁRIO À TERRA E A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 26 de novembro de 2015. BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Oliveira de Lima Pereira PUCRS _________________________________________ Profª. Drª. Rosa Maria Zaia Borges PUCRS _________________________________________ Prof. Dr. José Carlos da Silva Moreira PUCRS
A linguagem como traição: gritam carrascos para eles. No Equador, os carrascos chamam de carrascos as suas vítimas: Índios carrascos! gritam. De cada três equatorianos, um é índio. Os outros dois cobram dele, todos os dias, a derrota histórica. Somos os vencidos. Ganharam a guerra. Nós perdemos por acreditar neles. Por isso me diz Miguel, nascido no fundo da selva amazônica. São tratados como os negros na África do Sul: os índios não podem entrar nos hotéis ou nos restaurantes. Na escola metiam a lenha em mim quando eu falava a nossa língua me conta Lucho, nascido ao sul da serra. Meu pai me proibia de falar quechua. É pelo seu bem, me dizia recorda Rosa, a mulher de Lucho . Rosa e Lucho vivem em Quito. Estão acostumados a ouvir: Índio de merda. Os índios são bobos, vagabundos, bêbados. Mas o sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico: estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem?
O que dizem quando falam? O que dizem quando calam? (Eduardo Galeano – O Livro dos Abraços, p. 132)
RESUMO Desde 1500, com a chegada dos colonizadores ao Brasil, os povos indígenas passaram a sofrer diversas e graves violações em território nacional. Desta forma, o presente trabalho tem por objetivo analisar, a partir de uma perspectiva crítica, os interesses desenvolvimentistas que permeiam as ações realizadas contra os povos indígenas, as quais ocorrem desde o sustento da “coroa portuguesa” até os dias atuais. Em um segundo momento, o trabalho avaliará a evolução da legislação nacional e internacional, as quais, teoricamente, objetivaram resguardar os direitos dos povos indígenas/tribais. Por fim, a pesquisa abordará um título específico de observação às violações realizadas, sobretudo contra a população indígena que está sendo impactada pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ademais, levandose em conta os critérios deste trabalho, importante ressaltar que o método de abordagem é o dialético, no intuito de observar o panorama histórico da construção da identidade do índio do Brasil e a consequente busca da efetividade de seus direitos no decorrer deste percurso. Diante da realidade apontada, portanto, objetivase demonstrar o tratamento concedido pelo ordenamento jurídico pátrio a tais questões, bem como expor os avanços e retrocessos apresentados, como forma de se questionar e propor a abertura para uma nova cultura no ordenamento jurídico brasileiro. Palavraschave: Povos indígenas. Direito originário. Antropologia jurídica. Indigenismo. Direito, cultura e identidade.
LISTA DE SIGLAS DASI
–
Departamento de Atenção à Saúde Indígena
DGESI
–
Departamento de Gestão da Saúde Indígena
DSESI
–
Departamento de Saneamento e Edificações de Saúde
EdSI
–
Estatuto das Sociedades Indígenas
EIA
–
Estudo de Impacto Ambiental
ELETROBRÁS –
Centrais Elétricas Brasileiras S.A.
FUNAI
–
Fundação Nacional do Índio
IBAMA
–
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
INCRA
–
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MERCOSUL
–
Mercado Comum do Sul
MPF
–
Ministério Público Federal
ONU
–
Organização das Nações Unidas
PAC
–
Programa de Aceleração do Crescimento
PBA
–
Plano Básico Ambiental
PBA–CI
–
Plano Básico Ambiental do Componente Indígena
PEC
–
Proposta de Emenda à Constituição
RIMA
–
Relatório de Impacto Ambiental
SasiSUS
–
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
SESAI
–
Secretaria Especial de Saúde Indígena
SPU
–
Secretaria do Patrimônio da União
SUS
–
Sistema Único de Saúde
LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Distribuição total, rural e urbana da população indígena no Brasil. ...........73 Figura 2 Localização e extensão das terras indígenas............................................7 4 Figura 3 Tabela com o reconhecimento das terras indígenas nos governos dos presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. ................................................75 Figura 4 Situação das terras indígenas no Brasil. ..................................................76 Figura 5 Situação das terras indígenas na Amazônia Legal. Estas terras representam 22,25% da extensão da Amazônia Legal. .............................................77 Figura 6 Demarcações na Amazônia Legal. ............................................................78 Figura 7 Terras Indígenas por Estado na Amazônia Legal (em 22/10/ 2014).........7 9 Figura 8 Projeto de Construção da Usina Belo Monte. ............................................80 Figura 9 Remoção forçada das famílias e perda do modo de vida ribeirinho. .........81 Figura 10 Plano emergencial indígena e desestruturação das aldeias. ..................82
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................9 2. A CONDIÇÃO DE ÍNDIO E O DIREITO NO BRASIL: PANORAMA HISTÓRICO ...13 2.1 O DIREITO ORIGINÁRIO DOS ÍNDIOS ÀS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS...............................................................................................................21 2.2 O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS....................30 3. DIREITOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ..........................38 3.1 DIREITOS INDÍGENAS NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL..............42 3.2 A HERANÇA E O PRESSÁGIO ENCONTRADOS EM BELO MONTE...............48 4 CONCLUSÃO ............................................................................................................58 5 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................61 ANEXO – ILUSTRAÇÕES .........................................................................................77
INTRODUÇÃO No Brasil, segundo dados do IBGE (2010), os povos indígenas são compostos por 305 etnias, falam 274 línguas e totalizam aproximadamente 897 mil indivíduos. 1
Conforme estimativa da FUNAI , eles estão presentes em todas as Unidades Federativas do Brasil, sendo que cada etnia possui uma cultura própria. Esta diversidade cultural, sem dúvida, é uma das maiores riquezas do país, bem como consiste em um grande desafio quando surge a necessidade de implementação de políticas públicas diferenciadas e específicas. Sendo assim, com o sistema jurídico não seria diferente. Neste sentido, o presente trabalho busca problematizar a condição dos índios em território nacional assim como expor a evolução da legislação que respalda os direitos indígenas, a fim de demonstrar o quanto e se as normas criadas são capazes de corresponder aos problemas que cercam os povos indígenas na atualidade, assim como o sistema jurídico vigente. Ademais, a relevância desta pesquisa, para além de pessoal, centrase no fato de desejar a aproximação da academia com a problemática jurídicosocial envolvida na temática dos direitos indígenas. Nesta perspectiva, ao analisarmos o século XXI, principalmente a partir da década de 1990, é possível se verificar o início de uma complexa relação, com inúmeros problemas sociais, políticos e econômicos, criados a partir da versão recente do capitalismo, denominado neoliberalismo, sustentado por uma ideologia 2
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contrária à distribuição de riquezas e à inclusão social. Assim, conforme Santos , também os povos indígenas começaram a se mobilizar, em busca de encontrar
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO FUNAI. Saúde. Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015 . 2 SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o Direito ser emancipatório? Revista Científica de Ciências Sociais, São Paulo, n. 65, p. 376, maio 2003. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 3 Ibidem, p. 12. 1
alternativas ao “direito hegemonicamente vigente” e que fosse capaz de corresponder para além das necessidades jurídicas do mercado. À vista disso, sugere o autor supra referido, o que ele denominou de “despensar o direito”. Neste sentido, de acordo com Lyra Filho4 : A lei sempre emana do Estado e permanece em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico. [...] Embora as leis apresentem contradições que não nos permitem rejeitálas sem exame, como pura expressão dos interesses daquela classe, também não se pode afirmar que toda legislação seja direito autêntico, legítimo e indiscutível [...]. A legislação sempre abrange em maior ou menor grau Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuistas do poder estabelecido.
É nesta lógica que a academia deve buscar desenvolver uma aproximação que possibilite a visualização da problemática indígena no Brasil, de forma que o sistema jurídico abranja, também, as necessidades coletivas que emergem da 5
sociedade. Lyra Filho afirma que o Direito e a Justiça caminham enlaçados, enquanto lei e Direito se divorciam com frequência. O autor ainda aponta que o Direito é: [...] processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele viraser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.
Para melhor desenvolver o tema, o presente trabalho foi elaborado em dois capítulos. No primeiro, será realizado um panorama histórico da condição dos índios e da construção de seus direitos no Brasil, com o objetivo de elencar as bases teóricas utilizadas, para, posteriormente, avaliarmos como foi gerado o direito originário à terra e à autodeterminação, assim como as perspectivas e retrocessos que abarcam as temáticas desenvolvidas. Cumpre observar que para o desenvolvimento do trabalho, além da teorização baseada na ciência jurídica, 4 5
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 17. ed., 9. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2003. p.8. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.56.
buscouse um fortalecimento teórico a partir da perspectiva sociológica e antropológica sobre o assunto. Na sequência, será analisada a conjuntura política em que emergiu a Constituição Federal de 1988 e os avanços trazidos em seu texto no tocante ao reconhecimento dos direitos indígenas. A partir deste delineamento será analisada a legislação infraconstitucional, a qual, com base na Constituição, desenvolveu e difundiu o acesso aos direitos, aos recursos e às políticas públicas que, a partir deste reconhecimento e na medida do possível propiciaram o exercício de direitos e cidadania. Por fim, será exposta a problemática trazida pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, assim como será demonstrada a violação aos direitos da população impactada, especialmente os povos indígenas estabelecidos na região do Rio Xingu. Neste sentido, a situação jurídica será criticamente exposta, sobretudo, para que as heranças violadoras deixadas desde 1500 não sejam perpetuadas. Outrossim, como já exposto, o trabalho não tem a pretensão de esgotar as possibilidades jurídicas relacionadas aos povos indígenas, mas sim atrair os operadores do direito para a investigação das possibilidades e estudos abarcados pelo tema.
2 A CONDIÇÃO DE ÍNDIO E O DIREITO NO BRASIL: PANORAMA HISTÓRICO Ao examinarmos a história da colonização brasileira, para além da visão 6
“simbólica” que permeia o que nos é contado sobre o “descobrimento do Brasil” e, com a intenção de aproximarnos do que de fato aconteceu, se faz imprescindível falarmos do panorama histórico da condição de índio e a luta pelo reconhecimento de seus direitos em território nacional. Neste sentido, é de suma importância observarmos o verdadeiro extermínio que culminou as populações indígenas habitantes do país quando à época da chegada dos colonizadores, o que ocasionou na mortandade de milhares de indígenas. Cabe frisar que esta tragédia não ocorreu de forma isolada, visto que tal fato ocorreu em toda a América indígena. Galeano, neste sentido, informa que no México précolombiano o contingente populacional encontravase em torno de 30 e 37,5 milhões de habitantes, a América Central, por seu turno possuía em torno de 10 a 13 milhões de habitantes. Estimase que, somente na América, a população indígena apresentavase entre 70 e 90 milhões de pessoas, sendo que, após a chegada dos colonizadores, passou a totalizar apenas 7
3,5 milhões. 8
Conforme dados do Instituto Socioambiental , encontravamse em território brasileiro, cerca de 1.000 povos, somados entre 2 e 4 milhões de pessoas à época da chegada dos colonizadores, sendo que, no Brasil de hoje, existem cerca de 243 povos distribuídos entre diversas aldeias, os quais são falantes de mais de 200 9
línguas diferentes. Ao analisar apenas os tupiguarani, Clastres verificou a existência de um milhão e quinhentos mil índios guaranis, durante a colonização, ao
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Neste sentido, entendese a visão “simbólica” como a perpetuação do que nos foi contado pelos colonizadores. Bourdieu explica que: “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (BOURDIEU; Pierre. O poder simbólico . 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1989). 7 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina . Trad. de Galeano de Freitas. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1994. p. 50. 8 Conforme informação no site do PIB. (POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Povos indígenas. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015). 9 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado . São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.109.
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passo que, atualmente , estes encontramse na faixa de cinquenta e sete mil indígenas, divididos entre os estados do Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande 11
do Sul, Rio de Janeiro e Espírito Santo. As causas do decréscimo da população indígena vão desde a disseminação de doenças trazidas pelos colonizadores até os confrontos diretos nas chamadas guerras de conquista e de apresamento, cujo objetivo era garantir a exploração da mãodeobra indígena através do trabalho escravo, tal fato perdurou durante o período colonial e imperial, sendo abolido 12
somente no ano de 1831, pela lei de 27.10.1831 . É possível observar, portanto, que na lógica do sistema hegemônico, “a ‘cultura’ obtém uma força ‘política’ quando uma formação cultural entra em contradição com lógicas políticas ou econômicas que tentam refuncionalizála para a 13
exploração ou dominação” . Criase, desta forma, um contraponto externo ao que a 14
lógica capitalista impõe . Logo, durante o período da colonização, a prioridade dos “recém chegados” pautouse na tentativa de assimilar, apresar, catequizar ou
Conforme informação no site da PIB. (POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Quadro geral dos povos. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015). 11 A degradação cultural dos índios desde a chegada dos colonizadores, e a “ausência de perspectivas”, contribui para a crescente taxa de suicídios que acomete diversas tribos brasileiras. (MORGADO, Anastácio F. Epidemia de suicídio entre GuaraníKaiwá: indagando suas causas e avançando a hipótese do recuo impossível. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 585598, out./dez. 1991. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2015). Em sentido informativo segue matéria veiculada no Jornal Estadão: “Vários autores relatam que o suicídio coletivo não é algo incomum entre os povos tribais, ainda que, obviamente, seja causa de preocupação para com a dignidade humana destes, cabendo ao Estado efetuar a sua proteção. [...] à época da chegada dos colonizadores a Cuba, “estava aquela terra próspera e rica e muito povoada por índios, os quais, pouco depois, deram para enforcarse, quase todos… se enforcavam de tal maneira e com tanta pressa que houve dia de amanhecer com cinquenta casas com índios enforcados com suas mulheres e filhos em um mesmo povoado. Era a maior lástima do mundo para qualquer vivente ver aqueles seres pendurados nas árvores”. (MANSO, Bruno Paes. Porque os índios lideram o ranking dos suicídios no Brasil? O mapa da violência. Estadão, Rio de Janeiro, 07 jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2015). 12 Vide texto em Malheiro; A escravidão no Brasil, p. 236 s.; ARNAUD, Aspectos da Legislação sobre os índios do Brasil, p. 17; BRASIL, Leis, Decretos, etc, Assuntos indígenas, Coletânea de Leis, atos e memoriais referentes ao indígena brasileiro, p. 70 e seguintes. ( KAYSER, HartmutEmanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil : desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p. 144). 13 Lowe e Lloyd, 1997a apud SANTOS; Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar : os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 3435. 14 É nesse sentido que Boaventura de Sousa Santos fundamenta a sociologia das ausências na teoria crítica pósmoderna, pois o capitalismo seria um entrave à emancipação humana. Desta forma, o autor propõe a ascensão do multiculturalismo emancipatório. (Ibidem). 10
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“domesticar” os índios, pois estes eram vistos como selvagens primitivos. Kayser observa que: O trabalho escravo foi permitido durante o período da colonização do Brasil, de acordo com o Direito português. O Direito Civil português daquela época continha normas expressas sobre a escravidão. As leis gerais aplicáveis em Portugal desde 1521 eram as chamadas Ordenações Manuelinas de 1521. Estas foram substituídas pelas Ordenações Filipinas de 1603, que, em essência, vigoraram no Brasil até 1868.
No entanto, os interesses que permeavam as investidas da Coroa, para além de fiscais e estratégicos, eram políticos. Pois viam nos índios os aliados que necessitavam nas lutas contra franceses, holandeses e espanhóis, seus competidores internos. [...] o Estado tinha grande interesse estratégico na submissão política dos povos indígenas: sua vassalagem importava ao Estado como condição prévia de uma mãodeobra domesticada e politicamente eficaz na constituição de uma sociedade colonial que garantisse a Portugal a posse dos territórios 16 conquistados [...].
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À vista disso, Chauí afirma que, a partir do ponto de vista histórico, as grandes navegações foram impulsionadas pelo desejo de expansão do capitalismo mercantil. Diante deste contexto, a autora afirma que nasce com a colonização 18
brasileira, o chamado “mito fundador” , baseado em três premissas: a visão do paraíso; a história teológica que buscava “domesticar” os nativos que habitavam o Brasil à época, e, por último, “a influência jurídicoteocêntrica da figura do governante como rei pela graça de Deus”. Ainda, de acordo com a autora supracitada: Cartas e diários de bordo impressionam porque descrevem o mundo descoberto como novo e outro, mas o sentido desses termos é diverso do que esperaríamos. De fato, ele não é novo porque jamais visto nem é outro porque inteiramente diverso da Europa. Ele é novo porque é o retorno à perfeição da origem, à primavera do mundo, ou à “novação do mundo”, oposto à velhice outonal ou à decadência do velho mundo. E é outro porque é K AYSER, HartmutEmanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil : desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p. 100. 16 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.104. 17 CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. 18 Esclarece a autora que “visão do paraíso” é clássica expressão utilizada por Sérgio Buarque de Holanda. 15
originário, anterior à queda do homem. Donde a descrição da gente nova como inocente e simples, pronta para ser evangelizada. [...] considerandose o estado selvagem (ou de brutos que não exercem a razão), os índios não podem ser tidos como sujeitos de direito e, como tais, são escravos naturais. 19
A partir de 1552, o rei Dom João III confiou à Companhia de Jesus o empenho em converter os índios ao cristianismo, com respaldo no Regime de Tomé de Sousa (ordens do rei para o primeiro Governador Geral Tomé de Sousa), de 15.12.1548, a qual permaneceu em vigor até 1577 e continha as diretrizes da administração do Brasil. Importante observar que um dos seus mais importantes objetivos era justamente a conversão dos índios à fé cristã, uma clara tentativa de promover a integração dos índios ao que chamamos de cultura eurocêntrica. Objetivando, portanto, a homogeneização de uma cultura e, consequentemente, tentando 20
desconstruir a identidade étnica do índio brasileiro. Nesta perspectiva, Laraia destaca: O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais. [...] cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir.
Os períodos em que o Brasil seguiu como colônia de Portugal e, posteriormente, durante o Império, foram pautados, sobretudo, pela questão da 21
disputa de terras, a qual será estudada em capítulo próprio. Nesta senda, Cunha esclarece que:
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.63. 20 LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2006. p.7273, 101. 21 CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil . São Paulo: Companhia das Letras/FAPESB, 1992. p.56. 19
O século XIX é um século heterogêneo, o único que conheceu três regimes políticos: embora dois terços do período se passem no Império, ele começa ainda na Colônia e termina na República Velha. Iniciase em pleno tráfico negreiro e termina com o início das grandes vagas de imigrantes livre. [...] A política indigenista do período leva a marca de todas essas disparidades. Mas, para caracterizar o século como um todo, podese dizer que a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras.
À vista disso, o Direito gerado dentro da cultura de uma nação baseada em concepções burguesas clássicas acabou por compreender não haver intermédios 22
entre o cidadão e este Estado . A cultura do individualismo, desta forma, fortalecia o país através de seus cidadãos livres, com direitos e garantias individuais, solidificada especialmente na sociedade do século XXI. Deste modo, absorveuse a ideia de 23
coletividade, grupos humanos ou tribos. Bauman explica que os nômades (os próprios índios e/ou os ciganos, estes últimos muito discriminados no continente europeu), por sua indiferença com a cultura do progresso e da civilização, pouco preocupados com as fronteiras territoriais traçadas pelos legisladores, inseridos no que denominouse “cronopolítica”, passaram a ser vistos como primitivos e subdesenvolvidos, abaixo da escala evolutiva criada para manter o “padrão universal de desenvolvimento”. Logo, são semelhantes, pois, ao seu modo, negam o “civilizarse”, o submeterse ao padrão cultural hegemônico, o qual, na maioria das vezes, tenta absorver estas identidades vistas como diferentes. Neste sentido, 24
LéviStrauss , analisando a diversidade das culturas explica: Nada impede, com efeito, que culturas diferentes coexistam e que prevaleçam entre elas relações relativamente tranquilas, que a experiência histórica prova poderem ter fundamentos diferentes. Logo, cada cultura se afirma como a única verdadeira e digna de ser vivida; ignora as outras, chega mesmo a negálas como culturas. [...] Enquanto se consideram simplesmente diversas, as culturas podem voluntariamente ignorarse, ou considerarse como parceiros para um diálogo desejado.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 62. 23 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida . Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 2122. 24 LÉVISTRAUSS, Claude. O olhar distanciado . Lisboa: Edições 70, 1983. p. 2324. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2015. 22
Evidentemente, os povos tribais se reconhecem como pessoas enquanto parte de um coletivo: a tribo, o grupo. A própria antropologia social já concluiu que os grupos étnicos são caracterizados por suas distinções percebidas entre eles 25
próprios e outros grupos com os quais interagem . Nesta perspectiva, Seeger, 26
Matta e Castro ponderam, com muito cuidado, que para vermos os índios com “os seus próprios olhos”, é necessário reconhecêlos enquanto grupos com uma estrutura social (os sulamericanos, sobretudo, os brasileiros), em que seus corpos são dotados de simbolismo, precedendo outras perspectivas de articulação, tais como o espaço social e o tempo social. Evitandose, conforme os autores “os cortes etnocêntricos em domínio ou instâncias sociais, como ‘parentesco’, ‘economia’ ou 27
‘religião’”. Os mesmos autores concluem que “a corporalidade e a pessoa como informador da praxis local concreta é única via nãoetnocêntrica de inteligibilidade desta praxis ”. Ou seja, fazse necessária a observação de como estes corpos se reconhecem e convivem entre si, e principalmente de qual maneira os sujeitos externos à essas relações podem reconhecer a existência de uma autonomia imbuída na estrutura social dos ameríndios (os índios americanos), a qual encontrase arraigada, portanto, nas concepções cosmológicas destes sujeitos. Este 28
entendimento fundamentase nos sentidos multinaturalistas das comunidades indígenas, diferentemente, ou como complemento ao que
propõe o
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multiculturalismo.
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil . São Paulo: Companhia das Letras/FAPESB, 1992. p.103. 26 SEEGER, Anthony; MATTA, Roberto da; CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional , Rio de Janeiro, n. 32, p. 219, 1979. 27 SEEGER, Anthony; MATTA, Roberto da; CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional , Rio de Janeiro, n. 32, p. 219, 1979. 28 O multinaturalismo acredita que há uma cultura composta por diversas naturezas e que a corporalidade faz junção entre a natureza e a cultura. A chamada “política cósmica”. (CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem e outros Ensaios de Antropologia . São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 347348). 29 Boaventura de Sousa Santos propõe a reivenção do multiculturalismo, de forma que este ocorra de maneira emancipatória, “baseado no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar : os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 3). 25
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Atualmente, para reconhecer “quem é ou não índio” , a FUNAI se baseia nos critérios estabelecidos pela Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, 31
promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004 , e no Estatuto do 32
Índio (Lei 6.001/73). CUNHA frisa a importância de ponderar, dentro destes critérios de definição da identidade étnica de um grupo indígena, que estes são baseados em traços culturais que podem sofrer alterações com o tempo, haja vista que a cultura é dinâmica e permanentemente reelaborada, sem que isto afete a sua identidade. Ainda, completa a autora, “a identidade étnica de um grupo indígena é, portanto, exclusivamente função da autoidentificação e da identificação pela sociedade envolvente”. Como a herança da moral perversa “do etnocentrismo colonial” que tendeu a “transformar a consciência indígena numa ‘consciência infeliz’”, Cardoso de Oliveira 33
mostrou que tal definição acabou sendo ultrapassada a partir dos movimentos
sociais de 1960, devido ao autoreconhecimento identitário por parte dos índios, esta como fonte de dignidade e autoafirmação. O autor explica que “o reconhecimento da identidade do indígena como ser coletivo passou então a ser mais do que um direito político; passou a ser um imperativo moral”. O “nós tribal”, assim como a 30
O Estatuto do Índio define, em seu artigo 3º, o indígena como: “[...] todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.” (BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015). 31 A Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004, em seu artigo 1º afirma que: “1. A presente convenção aplicase: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.” (BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015). 32 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p. 108109. 33 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos . 4. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. p.12.
produção cultural advinda da “tribo”, nasce antes de ser pressuposto para que esta se reconheça como tal. Sendo, destarte, um produto fabricado por este meio. Neste 34
sentido, assevera Barth :
[...] os elementos da cultura presente de um grupo étnico não surgem do conjunto particular que constitui a cultura do grupo em um período anterior, embora o grupo tenha uma existência organizacional contínua, com fronteiras (critérios de pertença) que, apesar das modificações, nunca deixaram de delimitar uma unidade contínua.
Ao longo da história e permanecendo até hoje houve a reprodução e o oferecimento do chamado “processo civilizatório”, o qual ainda é projetado no interesse de integrar o que é visto como diferente, herança da colonização. Neste ponto, a construção dos Estados nacionais latinoamericanos sofreu forte influência do ponto de vista dominante dos colonizadores, o qual buscava um Estado único e, 35
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por consequência, um direito único . Segundo Souza Filho , “a independência dos países latinoamericanos se confunde com revoluções burguesas”, sobretudo de 37
Portugal e Espanha. Para Araújo et al : Tratase de uma interpretação etnocêntrica do Direito, que não admite que um conjunto de regras diferenciadas que organizam uma sociedade distinta possa ser acatado como Direito, convivendo lado a lado com o Direito estatal. Dessa forma, é que opta por se referir a usos, costumes e tradições, os quais se exige respeitar desde que não sejam incompatíveis com o sistema jurídico estatal. Na verdade, os sistemas jurídicos indígenas são vistos como mera fonte secundária do Direito, concepção carregada de preconceito que reclama providências no sentido da absorção de preceitos contemporâneos bem mais arrojados sobre o tema.
Desta forma, ao examinarmos o sistema jurídico contemporâneo, é notável que as leis complementares e a regimentação jurídica e administrativa, ainda não fizeram superar os vícios tutelares, autoritários e assistencialistas do Estado B ARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne (orgs). Teorias da etnicidade . São Paulo: Editora da Unesp, 1969. p. 227. 35 O autor continua: “[...] na boa proposta de acabar com privilégios e gerar sociedades de iguais, mesmo que para isso tivesse que reprimir de forma violenta ou sutil as diferenças culturais, étnicas, raciais, de gênero, estado ou condição” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito . Curitiba: Juruá, 1998. p. 63). 36 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. O renascer dos povos indígenas para o direito . Curitiba: Juruá, 1998, p. 62. 37 ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos Indígenas e a Lei dos "Brancos" : o direito à diferença. Brasília: MEC/SECAD LACED/Museu Nacional, 2006. p.6465. 34
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brasileiro, como concluiu Souza . Cumpre observar, ainda, que há muito tempo o Estado tem pautado a sua relação com os povos indígenas através de um falso diálogo, o qual mais tem tolhido os direitos dos povos originários do que os reconhecido de fato. Permanece a busca por uma libertação da “dominação colonial” 39
herdada ou reconfigurada? a qual, conforme Santos , poderá nos fazer evitar que “a reconstrução de discursos e práticas emancipatórios caia na armadilha de 40
reproduzir, de forma ampliada, concepções e preocupações eurocêntricas”. Sader aponta, entre outros, a força popular do movimento social indígena na América Latina, enquanto instrumento de luta, como alternativa às políticas neoliberais que 41
os afeta diretamente, buscandose um sentido emancipatório à “luta política dos movimentos sociais, eis que o mesmo assume um papel relevante no acesso ao 42
direito e à justiça” . 2.1 O DIREITO ORIGINÁRIO DOS ÍNDIOS ÀS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS Uma das maiores dificuldades encontradas no cenário brasileiro atual referese ao direito dos índios às terras tradicionalmente ocupadas e os conflitos fundiários advindos deste reconhecimento, através da demarcação de terras. É de suma relevância registrar que da garantia do direito à terra dependem os demais direitos inerentes aos povos indígenas, tal como a sua própria sobrevivência e
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SOUZA, José Otávio Catafesto. Mobilização indígena, direitos originários e cidadania tutelada no sul do Brasil depois de 1988. In: FONSECA, Claudia; TERTO JUNIOR, Veriano; ALVES, Caleb Farias (orgs.). Antropologia, Diversidade e Direitos Humanos : diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: UFRGS, 2004. p. 185197. 39 SANTOS; Boaventura de Sousa . Reconhecer para libertar : os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 3. 40 SADER, Emir. Movimentos Sociais e luta antineoliberal. OSAL , Observatorio Social de América Latina , Buenos Aires, v. 5, n. 15, p. 5764, sep./dic. 2004. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2015. 41 SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pósmoderno ao póscolonial e para além de um e outro . Coimbra: Centro de Estudos em Ciências Sociais, 2004, p. 39 . Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2015. 42 CARLET, Flávia. Advocacia popular: práticas jurídicas e sociais no acesso ao direito e à justiça aos movimentos sociais de luta pela terra. 2010. 130f. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) – Coordenação de PósGraduação em Direito, Universidade de Brasília, DF, 2010. p. 112. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2015.
reprodução cultural, e a consequente estruturação social própria e a preservação de 43
seus princípios cosmológicos. Conforme adverte Souza Filho : [...] a existência física de um território, com um ecossistema determinado e o domínio, controle ou saber que tenha o povo sobre ele, é determinante para a própria existência do povo. É no território e em seus fenômenos naturais que se assentam as crenças, a religiosidade, a alimentação, a farmacopéia e a arte de cada povo.
A dificuldade em precisar com exatidão a divisão territorial dos povos indígenas estabelecidos no Brasil na época da colonização ocorria, sobretudo, porque cada tribo possuía o seu próprio conceito de território. A base do poder exercida em determinado espaço geográfico sustentavase nas crenças e mitos de cada tribo. Desta forma, a utilização do espaço ou a forma como se protegiam das investidas de terceiros diferiase muito e, portanto, dependia e ainda depende do 44
critério de cada tribo . Há muito tempo debatese juridicamente os conflitos referentes às terras 45
indígenas. Neste contexto, esclarece Cunha : Os reis portugueses reconheceram, em várias leis, os direitos dos índios sobre suas terras: o alvará de 1º de abril de 1680, mais tarde incorporado na lei pombalina de 1755, isentava os índios de ‘foro ou tributo algum sobre as terras (tantos os índios silvestres quanto os aldeados), ainda que dadas as sesmarias a pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e quero que se entenda ser reservado o prejuízo e direitos dos índios primários e naturais senhores delas.
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Araújo e outros apontam que o Alvará foi pouco respeitado, eis que as terras indígenas continuaram a sofrer com o esbulho praticado pelos colonos da época, os quais muitas vezes contavam com o apoio das autoridades locais. Destarte, devese reconhecer que tal documento foi um marco na lei colonial voltada aos índios, pois
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 8. ed. Juruá: Curitiba, 2012. p.120. 44 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p.43 45 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.111. 46 ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos Indígenas e a Lei dos "Brancos" : o direito à diferença. Brasília, DF: MEC/SECAD LACED/Museu Nacional, 2006. p.24. 43
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os declarou “primários e naturais (senhores das terras)” . Neste sentido, Cunha assevera que: [...] D.João VI, em Carta Régia de 2/12/1808, havia declarado devolutas as terras conquistadas aos índios a quem havia declarado guerra justa; essa declaração implica o reconhecimento dos direitos anteriores dos índios sobre suas terras, direitos agora abrogados para certos grupos apenas; e implica também a permanência de tais direitos para índios contra os quais não se 49 declarou guerra justa.
A transformação das sesmarias em propriedade plena ocorreu somente em 1850, quando promulgouse a Lei 601, de 18.09.1850, mais conhecida como Lei de 50
Terras, a qual foi regulamentada pelo Decreto 1.318, de 30/01/1854 . Conforme 51
Souza Filho , esta Lei incorporava as terras devolutas ao patrimônio privado, reconhecendose o direito de quem havia adquirido as terras através das sesmarias. 52
Cunha aponta ficar demonstrado que “o título dos índios sobre suas terras é um título originário, que decorre do simples fato de serem índios”, sem qualquer necessidade de legitimação. Durante este período, a política de assimilação e concentração social dos 53
índios ao resto da população foi estimulada. Conforme adverte Cunha , nesta época 47
Ainda segundo o autor os índios eram assentados “em rotas fluviais, como a que ligava São Paulo ao Mato Grosso, ou o Paraná ao Mato Grosso, ou ainda como as do Tocantins e do Araguaia ligando o CentroOeste ao Pará e ao Maranhão. [...] Podiamse estabelecer aldeamentos em rotas de tropeiros, como a que ligava São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina”, e frisa que “em todos esses casos, os aldeamentos serviam de infraestrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão de obra.” (CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.76). 48 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.71. 49 Ainda, conforme a autora: “[...] a primazia e inalienabilidade do direito dos índios sobre as terras a que ocupam deve se estender aos aldeamentos para onde haviam sido levados, mesmo que longe de suas terras originais. Tanto é verdade isso que, em 1819, a Coroa volta atrás na concessão de uma sesmaria dentro de terras da aldeia de Valença, de índios Coroados, e reafirma princípios fundamentais: as terras das aldeias são inalienáveis e não podem ser consideradas devolutas; são nulas as concessões de sesmarias em tais”. 50 BRASIL. Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 51 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p.125. 52 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.72. 53 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.75.
as aldeias deram lugar às vilas com nomes portugueses, os casamentos mistos foram favorecidos, e a moradia estabelecida entre índios e portugueses foi estimulada. Tal prática, ainda conforme a autora supra citada, ficou conhecida como “política de entrusamento” e, na teoria, durou pouco menos de um século. 54
Percebese, portanto, mais do que assimilar a cultura do ser diferente , se buscava, também, a submissão dos índios às leis e ao trabalho, reunindoos e sedentarizandoos com o objetivo de retirálos dos grupos das aldeias e os 55
colocando em aldeamentos , tais como as missões jesuíticas. Tal prática se justificava, ainda durante o século XIX, em que índios foram assentados 56
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principalmente em rotas fluviais e de tropeiros . Neste sentido, Farage e Cunha esclarecem: [...] o missionamento desde o século XVI esteve estreitamente vinculado ao projeto colonial do Estado português através do assim chamado Padroado Real, acordo estabelecido entre a Coroa portuguesa e a Igreja Católica, pelo qual as ordens religiosas estariam subordinadas ao Estado em troca do financiamento de seu trabalho nas colônias portuguesas. A tarefa catequética tinha assim por objetivo básico adequar a população indígena às 58 necessidades políticoeconômicas da empresa colonizadora portuguesa.
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Conforme Monteiro “o direito à diferença referese à aceitação e à tolerância daquilo que é estranho aos padrões prédefinidos, o qual foi excluído do sistema pela sociedade moderna”. 55 “Nunca é demais lembrar a distinção básica entre “aldeia” (povoado indígena préexistente à colonização) e “aldeamento” (agrupamento indígena montado pelos missionários com finalidades específicas). Os aldeamentos foram implantados desde o século XVI a partir do trabalho pioneiro dos jesuítas. O regimento de 1686 concedeu a administração espiritual e política dos aldeamentos às ordens religiosas.” (BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões : política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983). 56 A autora ainda informa que os índios eram assentados “em rotas fluviais, como a que ligava São Paulo ao Mato Grosso, ou o Paraná ao Mato Grosso, ou ainda como as do Tocantins e do Araguaia ligando o CentroOeste ao Pará e ao Maranhão. [...] Podiamse estabelecer aldeamentos em rotas de tropeiros, como a que ligava São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina”, e frisa que “em todos esses casos, os aldeamentos serviam de infraestrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão de obra”. (CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.76) 57 FARAGE, Nádia; CUNHA, Manuela Carneiro da. Caráter da Tutela dos Índios: Origens e Metamorfoses. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Os Direitos do Índio : Ensaios e Documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p.103. 58 Ainda, esclareceu a autora que “a tendência do Estado foi a de reforçar o papel das ordens religiosas na administração da mãodeobra indígena livre e, após muitas oscilações, tal papel foi consolidado pelo Regimento das Missões em 1686, que regulou o aldeamento de índios sob o governo temporal dos missionários. Este sistema só terminou em meados do século XVIII.” (CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.9293).
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De acordo com Cunha , a cada aldeamento de índios, era concedida à aldeia uma sesmaria de terras. No entanto, “essas terras podiam ser arrendadas e aforadas, e com esses rendimentos se supunha que deviam sustentarse”. Nesta perspectiva, os índios, insatisfeitos, começaram a cobrar das autoridades locais o 60
reconhecimento dos direitos que tinham sobre essas terras, o direito às raízes . 61
Cunha aduz que: Em 1815, os índios da aldeia dos Aramaris de Inhambupe de Cima, na Bahia, encaminham uma longa representação protestando contra a espoliação das terras de sua aldeia, que ocupavam, afirmam eles, havia mais de cem anos. Em 1821 e 1822, o principal dos índios Gamela de Viana logra da Justiça do Maranhão a demarcação judicial das terras da aldeia (arquivo do Tribunal de Justiça do Maranhão, pacote 005/tj/1986 apuc Andrade 1990). Um índio Xukuru, o capitãomor da vila de Cimbres em Pernambuco, denuncia em 1825 os abusos cometidos aparentemente pelo diretor da aldeia e obtém uma decisão favorável do imperador (23/3/1825). E em 1828 (20/11/1828) é o capitãomor da vila de Atalaia, em Alagoas, quem protesta contra as violências e a invasão das aldeias.
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Tendo em vista a forma devoluta como foram caracterizadas as terras ocupadas pelos indígenas durante os períodos colonial e imperial, coube à primeira 63
Constituição da República de 1891, em seu artigo 64 a transferência aos estados das terras devolutas situadas em seus territórios, a partir da extinção dos
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.7778. 60 Santos se refere ao direito às raízes ao analisar a reemergência da etnicidade como fundamento das culturas locais em contraponto à cultura comercial, globalizada. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira, em Pela mão de alice: o social e o político dna pósmodernidade. (SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente : Contra o Desperdício da Experiência. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.144145). 61 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p.9293. 62 Dec. 1.318/1854, “Art. 72. Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas nos distritos onde existem hordas selvagens” e em seu art. 75, assim estabelecia “As terras reservadas para colonisação de indígenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu usu fructo; e não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilização”. (BRASIL. Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015). 63 CF/1891, “ Art 64. Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.” (BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. 59
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aldeamentos . Araújo explica que datam dessa época os títulos conferidos de maneira indevida sobre as terras dos índios GuaraniKaiowá, no Mato Grosso do Sul, bem como as invasões iniciais da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, quando Roraima ainda fazia parte do estado do Amazonas. Posto isto, a mesma autora afirma que a Carta de 1891 não fez referência ao direitos territoriais dos indígenas sobre as terras que ocupavam, e que a União tratava sobre o assunto diretamente com os governos estaduais e municipais. Cumpre ressaltar que as terras dos aldeamentos não extintos e as terras imemoriais indígenas não eram consideradas devolutas, o que à época causou uma 66
grande desordem. João Mendes Jr. aponta que: Aos Estados ficaram as terras devolutas; ora, as terras do indigenato, sendo terras congenitamente possuidas, não são devolutas, isto é, são originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1 de abril de 1680 e por deducção da própria Lei de 1850 e do art. 24, §1.º, do Decr. de 1854; as terras reservadas para o colonato de indígenas passaram a ser sujeitas às mesmas regras que as concedidas para o colonato de immigrantes, salvo as cautelas de orphanato em que se acham os índios; as leis estadoaes não tiveram, pois, necessidade de reproduzir as regras dos arts. 72 a 75 do Decr. n 1.318, de 30 de janeiro de 1854.
À título de curiosidade e representando um marco para a época, em 1922, 67
conforme Cunha , entrou em vigor no Rio Grande do Sul, o Decreto Estadual n.º 68
3.004, de 10.8.1922. Tal documento, em seu art. 21 , reconheceu títulos indígenas conforme estes seriam consagrados posteriormente pela Constituição de 1934. Neste sentido, apesar da reconhecida posse dos índios sobre as terras que CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio : ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 68. 65 ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos Indígenas e a Lei dos "Brancos" : o direito à diferença. Brasília, DF: MEC/SECAD LACED/Museu Nacional, 2006. p.7. 66 MENDES JUNIOR, João. Os indígenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. São Paulo: 1912, p. 62 apud CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio : ensaios e documentos. São Paulo: editora brasiliense, 1987. p.7475. 67 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil : história, direitos e cidadania. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.7778. 68 Dec. 3.004/1922: “Art. 21 “ O Estado as considera tais (terras indígenas) independente de qualquer título de domínio, como consequência da propriedade de ocupação por eles (índios).” (OLKOSKI, Wilson. Aspectos da história agrária dos Kaingang do médio alto Uruguai – RS. Revista de Ciências Humanas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 4, 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. p.6). 64
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ocupavam, expresso nas Constituições de 1934 , 1937 , 1946 , 1967 e 1969 , foi apenas com o advento da Constituição de 1988 que restou proclamado o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que possuíam. Nesta perspectiva, a Constituição de 1988 reconhece que basta a ocupação da terra tradicional para que sobre ela os povos tenham direitos originários, aplicandose o ato administrativo de reconhecimento da área ocupada por uma comunidade indígena através do procedimento de demarcação. Entretanto, uma das ameaças atuais mais explícitas aos direitos territoriais dos povos indígenas referese à expansão das fronteiras agrícolas (agronegócio), bem como as ações desenvolvimentistas de concentração de terras e exploração 74
dos recursos naturais , tendo em vista que os mesmos comprometem os povos originários estabelecidos em território brasileiro, eis que apresentamse interesses 75
opostos em debate. Nesta perspectiva, Souza Filho analisa que: Além da conjuntura política, as disputas judiciais por terra no Brasil continuam fortemente influenciadas pelos direitos individuas estruturados no século XIX, com opção preferencial pela propriedade individual da terra. O caráter individualista e absoluto da propriedade da terra tem sido o traço distintivo do direito ocidental e a matriz do direito civil latinoamericano. [...] Com o advento dos direitos coletivos, ficou mais claro que a terra deve cumprir esse papel social, ou socioambiental, de proteger o meio ambiente e as culturas a ela associadas. Mas a exclusividade no domínio de um território é o marco da cultura jurídica latinoamericana, seja do ponto de vista do direito público, seja do ponto de vista do direito privado, aquele disputando 69
Constituição de 1934: “Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendolhes, no entanto, vedado alienálas.” 70 Constituição de 1937: “Art. 154. Será respeitado aos silvicolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanentemente, sendolhes, porém, vedada a alienação das mesmas.” 71 Constituição de 1946: “Art. 216. Será respeitado aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.” 72 Constituição de 1967: “Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito a usufruto exclusivo dos recursos naturais e todas as utilidades nelas existentes.” 73 Constituição de 1969: “Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e todas as utilidades nelas existentes.” 74 Souza Filho explica que: “mesmo em regiões não atingidas pela fronteira agrícola, são enormes os interesses econômicos que disputam território com os povos indígenas: maneira, minérios, combustíveis fósseis, vias de comunicação férrea, fluvial, rodoviária ou até mesmo aérea, com a instalação de aeroportos na selva”. (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p.149). 75 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 62.
soberanias absolutas e detalhadamente demarcadas, inclusive em regiões desconhecidas, este transformando toda terra em lotes privados. Por isso, apesar das mudanças legais introduzidas pelas constituições, ainda é muito difícil que os juízes interpretem as leis contra interesses da propriedade privada.
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Conforme Souza Filho , o sistema jurídico vigente no Brasil reconhece a terra indígena como “propriedade da União Federal, mas destinada à posse permanente dos índios, a quem cabe o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”, segundo seus usos, costumes e tradições. Em 1973, com o advento do Estatuto do Índio (Lei 6.001), o seu artigo 65 já determinava que o Poder Executivo realizasse a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos, o que não ocorreu. Posteriormente, em 1988, o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias também determinou que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”, vencendose novamente este prazo. Cumpre observar que o estudo para a realização da demarcação realizado 77
atualmente, ocorre de acordo com o que dispõe o Decreto n.º 1.775/96 . Primeiramente, a FUNAI nomeia um antropólogo para elaborar um estudo antropológico de identificação da terra indígena em questão, com o apoio de um grupo técnico do Órgão indigenista, para posteriormente ser apresentado um “relatório circunstanciado à FUNAI, do qual deverão constar elementos e dados específicos listados na Portaria nº 14, de 09/01/96”, contendo as informações da terra indígena a ser demarcada. Na sequência, o relatório deverá ser aprovado pelo presidente da FUNAI no prazo de quinze dias, publicando o seu resumo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada correspondente, bem como na sede da prefeitura local. Em seguida, até 90 dias após as publicações, todo interessado, incluindo estados e municípios, poderá apresentar contestação, munida de provas que comprovem direito à indenização ou vícios existentes no relatório
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p.121. 77 BRASIL. Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 76
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apresentado . Respectivamente, e após o transcurso dos 90 dias, a FUNAI terá 60 dias para elaborar pareceres fundamentando as razões dos interessados e encaminhando o procedimento ao Ministro da Justiça, o qual terá o prazo de 30 dias para: (a) expedir portaria, declarando os limites da área e determinando a sua demarcação física; ou (b) prescrever diligências a serem cumpridas em mais 90 dias; ou ainda, (c) desaprovar a identificação, publicando decisão 79 fundamentada no parágrafo 1º. do artigo 231 da Constituição.
Nesta sequência, após a declaração dos limites da área, a FUNAI promove a demarcação física, enquanto o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), prioritariamente, procederá ao reassentamento de ocupantes que eventualmente não sejam índios. A homologação da demarcação compete ao Presidente da República, o qual procederá mediante decreto. Por fim, a terra demarcada e homologada será registrada em até 30 dias após a homologação, no cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio da 80
União (SPU). 81
Eliane Brum quando se refere à concentração de terras, explica que: Segundo o Censo de 2010 do IBGE, há 517 mil índios aldeados em menos de 107 milhões de hectares de terras indígenas, o equivalente a 12,5% do território brasileiro. E onde estão essas terras? Mais de 98% delas estão na Amazônia Legal – e menos de 2% fora de lá. Já os 46 mil maiores proprietários de terras, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, exploram uma área maior do que essa: mais de 144 milhões de hectares. Sobre a realidade da concentração fundiária no país, que continua a crescer, o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) mostra que as 130 mil grandes propriedades rurais particulares concentram quase 50% de toda a área privada cadastrada no POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Como é feita a demarcação hoje? Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 79 POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Como é feita a demarcação hoje? Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 80 POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Como é feita a demarcação hoje? Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 81 BRUM, Eliane. Os índios e os golpes na Constituição. El País, Madrid, 13 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 78
Incra. Já os quase quatro milhões de minifúndios equivalem, somados, a um quinto disso: 10% da área total registrada. Em entrevista ao jornal O Globo, o pesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira, coordenador do Atlas da Terra, afirmou que quase 176 milhões de hectares são improdutivos no Brasil. [...] Num país com essa quantidade de terras destinada à agropecuária e com essa concentração de terras na mão de poucos, afirmar que o problema do desenvolvimento são os povos indígenas só não é mais ridículo do que Kátia Abreu, a latifundiária que diz não existir mais latifúndio no Brasil e hoje ministra da Agricultura, afirmar que “o problema é que os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção.
Portanto, é possível se observar o desenrolar de diversos conflitos entre comunidades indígenas e fazendeiros, o que por vezes ocasiona a morte de integrantes do movimento indígena, como visto recentemente no Mato Grosso do 82
Sul , consequência da disputa por terras entre fazendeiros e índios da etnia GuaraniKaiowá. Nesta sequência, ressurge com força o debate referente à Proposta de Emenda à Constituição 215 (PEC 215), a qual acrescenta ao artigo 49 da Constituição Federal o inciso XVIII, a fim de tornar competência exclusiva do Congresso Nacional “aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas”. Modifica, também, o artigo 231 da Constituição Federal, em seu §4º, o qual disporá que “ as terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis”. Igualmente, altera o §8º do referido artigo, estabelecendo que “os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados 83
por lei.” . Ressaltase, por fim, que demarcar as terras indígenas é uma forma de contribuir para a preservação do meio ambiente e da biodiversidade presente em
P ara mais detalhes acessar: BEDINELLI, Talita. Foi uma guerra, um massacre. El País, Madrid, 05 set. 2015. Disponível em: . Acesso em: 07 set. 2015. 83 BRASIL. Congresso Nacional. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Proposta de Emenda à Constituição nº 215, de 2000. Acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o § 8º ambos no art. 231 da Constituição Federal. Autor: Deputado Almir Sá e outros; Relator: Deputado Osmar Serraglio. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 82
território brasileiro, e colabora “[...]para a construção de uma sociedade que valoriza 84
a identidade étnica e cultural dos seus povos” . 2.2 O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS Historicamente, é possível observar que a autodeterminação teve o seu apogeu após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os períodos de 1945 e 1980, “no bojo do processo de descolonização que culminou com a derrocada de regimes coloniais e o surgimento de novos Estados a partir dos 85
86
antigos povos subjugados na África, na Ásia e na Oceania” . Albuquerque explica que: A autodeterminação consiste em um direito enquanto conjunto de regras, normas, padrões e leis reconhecidas socialmente que garantem a determinados povos, segmentos ou grupos sociais o poder de decidir seu próprio modo de ser, viver e organizarse política, econômica, social e culturalmente, sem serem subjugados ou dominados por outros grupos, segmentos, classes sociais ou povos estranhos à sua formação específica.
87
Souza Filho refere que a política integracionista contemporânea encontrase assentada no constitucionalismo dos estados modernos, livres e soberanos, garantidores de direitos individuais e da consequente população estabelecida em solo pátrio. Logo, as minorias étnicas encontradas neste mesmo território passaram a ser oprimidas, ter direitos suprimidos ou, junto a isto, sofreram investidas que causaram graves violações, como é o caso brasileiro da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte que, além de causar impactos catastróficos às comunidades indígenas dependentes do Rio Xingu, também acabou por prejudicar a vida de inúmeras famílias de ribeirinhos que retiravam dali o sustento familiar. BANDEIRA, Marcela. A demarcação de terras indígenas no Pará é fundamental para a proteção da Amazônia . Manaus, 06 nov. 2014. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2015. 85 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O direito à autodeterminação dos povos indígenas: entre a secessão e o autogoverno. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos Humanos e Direitos Fundamentais : diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 589. 86 ALBUQUERQUE, Antonio Armando Ulian do Lago. Multiculturalismo e direito à autodeterminação dos povos indígenas . Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 148. 87 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 77. 84
Importante frisar que, apesar de exposta na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, a população indígena reivindicava a consulta que deveria ser realizada junto às comunidades ali estabelecidas, tendo em vista que estes seriam os impactados diretos pelas obras. Respeitariase, portanto, o direito à autodeterminação destes , estabelecida pela Convenção supra referida, no entanto, a 88
consulta não ocorreu . Compactuase com as violações sofridas pelos povos indígenas, quando contribuímos com o silenciamento destes, visando apenas a perpetuação das nossas vozes e dos nossos privilégios, enquanto reféns da cultura dominante homogênea, a qual, por não compreender a diferença do outro, a inferioriza. A identidade nacional, portanto, não deixou espaço de reconhecimento às culturas diferentes, às identidades étnicas que não fossem a predominante. Silenciosamente convivemos com estas identidades, sabemos que elas existem mas não as vemos, as utilizamos como alegorias, como parte da história que talvez nos lembre, como fruto de nossa ignorância, o quanto “evoluímos”. 89
Anaya esclarece que: [...] embora vários Estados tenham resistido ao uso expresso do termo autodeterminação em associação a povos indígenas, é possível ver, além das sensibilidades retóricas, um consenso de opinião amplamente compartilhado. Tal consenso se encontra na visão de que os povos indígenas têm direito a continuar a existir como grupos distintos e, portanto, a ter controle sobre seus próprios destinos em condição de igualdade. Este princípio possui implicação em qualquer decisão que possa afetar os interesses de um grupo indígena, e traz consigo os contornos gerais de normas a ele relacionadas.
Diferentemente do que estabelece a autodeterminação desenvolvida pelo direito internacional, assentada no direito de um povo se constituir em Estado, e ÍNDIOS afetados por hidrelétricas: três processos judiciais, nenhuma consulta. Movimento Xingu Vivo para Sempre, 04 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 89 ANAYA, S. James. Os direitos humanos dos povos indígenas. In: ARAÚJO, Ana Valéria (Org). Povos Indígenas e a Lei do “Brancos”: o direito à diferença. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2006. p.191. 88
internamente vertida em soberania, a autodeterminação dos povos indígenas referese a autoestima destas comunidades. Observandose que eles possuem regras de convivência social singulares, as quais, consequentemente, diferem muito 90
91
das normas estatais vigentes . Quanto à autodeterminação, explica Souza Filho : Quando dito a partir das organizações internacionais estatais, significa o povo do Estado, considerado, apesar das diferenças, como um só. Quando dito a partir do próprio povo, antropologicamente falando, diz respeito à vontade coletiva de um grupo socialmente organizado.
Cumpre frisar que os direitos coletivos dos povos indígenas ficam limitados a um território, objetivandose que o sistema os localize, excluindose, portanto, deste 92
reconhecimento, os povos que extrapolam um espaço territorial determinado . 93
Nesta perspectiva, Catafesto Souza , refere a condição dos MbyáGuarani, os quais, conforme o autor, foram “relegados à condição de apátridas” por circularem por todos os países do Mercosul e, no Brasil, serem relegados à condição de “estrangeiros”, ocorrendo poucos avanços no reconhecimento desta etnia quanto ao direito à mobilidade. 94
Anjos Filho observa que uma importante referência foi trazida pela Carta das Nações Unidas, a qual expressamente estipulou o respeito ao princípio da 95
autodeterminação, em seu artigo 1º , bem como a Declaração Sobre a Concessão SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito . 1.ed., 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 78 91 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito . 1.ed., 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 80. 92 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Multiculturalismo e direitos coletivos. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Reconhecer para libertar : os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 93. 93 SOUZA, José Otávio Catafesto de. Os MbyáGuarani e os Impasses das Políticas Indigenistas no sul do Brasil . Buenos Aires, out. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. 94 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O direito à autodeterminação dos povos indígenas: entre a secessão e o autogoverno. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos Humanos e Direitos Fundamentais : diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p.589590. 95 Carta das Nações Unidas, “Artigo 1 – Os propósitos das Nações Unidas são: [...] 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU. Carta das Nações Unidas. São Francisco, 26 jun. 1945. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015). 90
de Independência aos Países e Povos Coloniais da Assembléia Geral da ONU, de 96
1960 . O Direito à autodeterminação também foi respeitado pelos Pactos 97
Internacionais de Direitos Humanos de 1966 . Neste mesmo sentido, o autor supracitado estabelece que conforme a autodeterminação: [...] um povo não está submetido à vontade de outro povo, assumindo as rédeas do seu próprio destino. A liberdade, neste contexto de autodeterminação, não se refere diretamente aos indivíduos considerados em si mesmos, mas sim à coletividade política formada pelo conjunto de todos eles [...].
O direito à autodeterminação também foi encontrado na Declaração Sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 98
1986, através da Resolução 41/133 , a qual previa que o direito humano ao desenvolvimento deveria respeitar a autodeterminação dos povos, bem como a 99
soberania sobre todas as riquezas e recursos naturais , e, ainda, tomar medidas 96
1. A sujeição dos povos a uma subjugação, dominação e exploração constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a causa da paz e da cooperação mundial; 2. Todos os povos tem o direito de livre determinação; em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração sobre a concessão de independência aos Países e Povos Coloniais. Resolução n. 1514, de 14 de dezembro 1960. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015). 97 Assim estabelecem o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os quais, expressamente reconhecerem em seu primeiro artigo que “todos os povos têm direito a autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.” (BRASIL. Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015; BRASIL. Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015). 98 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração sobre o Direito ao Desenvolviemento. Genebra, 04 dez. 1986. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2015. 99 Artigo 1º, § 2º “Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente se suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, baseada no princípio do proveito mútuo, e do Direito Internacional. Em caso algum, poderá um povo ser privado de seus meios de subsistência.” (BRASIL. Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015; BRASIL. Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015).
firmes quanto às recusas de reconhecimento do direito fundamental dos povos à 100
autodeterminação
.
A Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas, adotada pela Assembléia Geral em 13 de setembro de 2007, em seu artigo 2º, reconheceu que “os povos indígenas [...] têm o direito de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.”. Em seu artigo 3º a referida Declaração expõe que: “Os povos indígenas têm direito à autodeterminação”. Em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e buscam livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Já o artigo 4º estipula que os indígenas “no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.” A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada pelo Brasil através do Decreto nº 5.051, de 101
19 de abril de 2004
, deixa claro o dever de o país preservar a integridade dos
povos indígenas, bem como o respeito a sua identidade social e cultural e o pleno gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Neste sentido, o Decreto estabelece, inclusive e fundamentalmente, o direito que estes povos possuem de 100
Artigo 5º, “1. Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicarse a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou imporlhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas. 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.” ( BRASIL. Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015; BRASIL. Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015 ). 101 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2015.
consulta quanto às “medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetálos diretamente”
102
art. 6º, a, “[...] deverão ter o direito de escolher suas próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas [...]”
103
assim como, poderão participar da avaliação de
planos e programas de desenvolvimento a nível regional e nacional que possam vir a afetálos diretamente (art. 7º,1).
104
Primordial é a análise das Diretrizes Sobre os Assuntos dos Povos Indígenas, 105
realizado pelo Grupo das Nações Unidas para o Desenvolvimento
, o qual além de
reconhecer o princípio da autodeterminação, reconhece também o livre, prévio e informado consentimento dos “ pueblos tribales ”. Seguindo esta mesma lógica, a Organização dos Estados Americanos está confeccionando a sua respectiva Declaração de Direitos dos Povos Indígenas
106
.
Nesta perspectiva, cumpre aos Estados aplicar, de fato, o que dispõe os principais documentos que corroboram com o direito à autodeterminação dos povos indígenas, de modo que estes exerçam seus direitos constitucionais com autonomia 107
acerca dos assuntos que possam vir a afetálos diretamente. Anjos Filho
esclarece:
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O direito à autodeterminação dos povos indígenas: entre a secessão e o autogoverno. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos Humanos e Direitos Fundamentais : diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013 . 103 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2015. 104 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2015. 105 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Directrices sobre los Asuntos de los Pueblos Indígenas . Aprovado em 01 de fevereiro de 2008. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2015. 106 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. 26 fev. 1997. Disponível em: . Acesso em : 15 set. 2015. 107 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O direito à autodeterminação dos povos indígenas: entre a secessão e o autogoverno. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos Humanos e Direitos Fundamentais : diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013 . p.619. 102
[...] parece não haver dúvida de que no presente momento o sistema internacional de direitos humanos, construído a partir dos esforços da Organização das Nações Unidas, não admite como regra geral a possibilidade de secessão dos povos com base no direito à autodeterminação, priorizando a integridade dos Estados nos quais estão inseridos, o que pode ser excepcionado apenas em raras situações.
A crítica realizada aos órgãos oficiais, nacionais ou internacionais, e os instrumentos de proteção dos direitos humanos, no entanto, é que estes acabam sendo enfraquecidos ou colocados em segundo plano quando imbuídos por interesses dominados pela política hegemônica globalizada. Direitos subsumidos, e não apenas dos povos indígenas, estabelecidos em um modelo neoliberal de direitos humanos e democracia, como os hoje existentes, necessitam, no mínimo, ser revistos,
como
forma
de
evitarmos
a
reprodução
de
verdadeiros
etnocídios/genocídios. É neste sentido que nasce a teoria crítica dos direitos humanos, em que a lógica mercadológica imbricada na sociedade moderna, 108
encontra nas lutas sociais uma reconfiguração destes direitos. Para Herrera Flores :
[...] el sistema de valores hegemónico en nuestros días es mayoritariamente neoliberal, y, por consiguiente, pone por encima a las libertades funcionales al mercado y por debajo a las políticas públicas de igualdad social, económica y cultural.
Aparício
109
explica que através da perspectiva crítica e emancipatória no
quadro de direitos humanos, projetamos essas diversas lutas sociais (principalmente de índios, mulheres e negros) em um espaço democrático participativo e plural, o que resultaria, portanto, no empoderamento destes “novos sujeitos” frente ao direito internacional. Tratase de, no plano internacional, transpormos o universalismo cultural, ainda que este apresente valores e preocupações universais, para que, de fato, se estabelece um diálogo intercultural. HERRERA FLORES, Joaquín. La Reinvención de los Derechos Humanos. Andalucía: Astrasueños, [2005]. p. 36. Disponível em: . Acesso em: 08 jul. 2015. 109 APARÍCIO, Adriana Biller. A reinvenção dos direitos territoriais indígenas: na trilha da Teoria Crítica dos Direitos Humanos como “Motor” do Pluralismo Jurídico. In: BECKER, Simone; BRITO, Antonio Guimaraes; OLIVEIRA, Jorge Eremites de. Estudos de Antropologia Jurídica na América Latina Indígena. 1.ed. Curitiba: CRV, 2012. p.242. 108
Por fim, cumpre esclarecer que a secessão, principal motivo de recusa ao reconhecimento da autodeterminação por parte dos Estados, apenas se justificaria em caso de explícita violação aos valores democráticos de igualdade e de respeito, 110
ou em caso de recente colonialismo ou ocupação estrangeira
. Priorizase,
portanto, a integridade dos Estados em que estes povos se encontram, reconhecendose o direito à autoadministração dessas populações e a consequente manutenção da sua identidade cultural e territorial. Neste sentido, importante ressaltar que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, fortalece a ideia de que a concessão de autonomia aos povos indígenas tornase um fator positivo, inclusive evitando a ruptura destas populações com o Estado em que estão 111
inseridas
.
3 DIREITOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A partir de 1980 verificase que os direitos dos índios passaram a ser introduzidos por várias constituições latinoamericanas, logo, foram promulgadas as constituições do Panamá e do Equador, ambas de 1983, sendo que o Equador promulgou uma das mais avançadas Constituições no tocante aos direitos das 112
comunidades tradicionais, em 2008
. Na sequência, a Guatemala, em 1985; a 113
Nicarágua, em 1987 e o Brasil, em 1988
. A partir de 1990 novas constituições
entraram em vigor ou foram revisadas, tais como a Constituição da Colômbia, em 1991; do Paraguai, em 1992; do Peru, em 1993; Argentina e Bolívia, ambas de 1994 e Venezuela, em 1999
114
. Cumpre ressaltar a importância das Constituições do
115
Equador e da Bolívia
, a última promulgada em 2007, tendo em vista que elas são
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O direito à autodeterminação dos povos indígenas: entre a secessão e o autogoverno. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos (Org.). Direitos Humanos e Direitos Fundamentais : diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 596. 111 Ibidem. 112 ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2015. 113 KAYSER, HartmutEmanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil : desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p.218. 114 Ibidem, p.218. 115 BOLÍVIA. Constitución Politica del Estado, 24 de noviembre de 2007. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2015. 110
referências no respeito aos direitos dos povos originários na atualidade, principalmente no tocante à consulta prévia, em consonância com o que dispõe a 116
Convenção 169 da OIT
.
À vista disso, a promulgação da atual Constituição Federal, ocorrida em 05/10/1988, representou um verdadeiro marco no que diz respeito ao relacionamento do Estado com os povos indígenas encontrados no Brasil, bem como efetivou o reconhecimento de pontos fundamentais no tocante aos direitos pertencentes aos índios. Lacerda
117
refere brilhantemente que:
Na Constituição Federal de 1988 os povos indígenas, bem como outras formas de identidade coletiva de base étnicocultural, obtiveram amparo e visibilidade. Ali, pela primeira vez mencionavase a existência de comunidades quilombolas, momento em que se lhes reconhecia a propriedade definitiva de suas terras (terras de quilombos), determinandose ao Estado a obrigação de “emitirlhes os títulos respectivos” (art. 68 – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Ao mesmo tempo, determinavase também, em caráter obrigatório, a abertura do ensino de História do Brasil para as contribuições das “diferentes culturas e etnias” na “formação do povo brasileiro” (art. 242, § 1.º Ato das Disposições Constitucionais Gerais).
Desta forma, a partir desta evolução constitucionalista desencadeada na América Latina, constatase que o texto constitucional brasileiro superou a 118
concepção assimilacionista
presente na legislação anterior, reconhecendo aos
índios, em seu capítulo VIII, conforme depreendese do artigo 231 (e seus respectivos parágrafos) e do artigo 232, fundamentalmente, o reconhecimento das terras tradicionais que ocupam permanentemente, o direito a serem diferentes, 119
preservando suas crenças, tradições, costumes, línguas e organização social
,
LACERDA, Rosane Ferreira. “Volveré, y Seré Millones” : Contribuições Descoloniais dos Movimentos Indígenas Latino Americanos para a Superação do Mito do EstadoNação. 2014. 2v, 491f. Tese (Doutorado) Universidade de Brasília – UnB. Faculdade de Direito. Área de Concentração: Direito, Estado e Constituição, Brasília, 2014. p. 392. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2015. 117 LACERDA, Rosane Ferreira. “Volveré, y Seré Millones” : Contribuições Descoloniais dos Movimentos Indígenas Latino Americanos para a Superação do Mito do EstadoNação. 2014. 2v, 491f. Tese (Doutorado) Universidade de Brasília – UnB. Faculdade de Direito. Área de Concentração: Direito, Estado e Constituição, Brasília, 2014. p. 371. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2015. 118 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p.107. 119 A Constituição Federal, em seu artigo 231, dispõe: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que 116
120
entre outros. Batista
refere que tais mudanças influenciaram o reconhecimento de
um estado multicultural, em que foram estabelecidas medidas de “proteção às culturas indígenas como realidades dotadas de peculiaridades específicas em relação à sociedade como um todo”. Souza
121
acrescenta, também, que com o
advento da Constituição de 1988, os nativos passaram “a ser respeitados como agentes de seu próprio destino, estando baseada juridicamente sua vontade de manutenção enquanto comunidade diferenciada no seio da sociedade nacional”. Nesta perspectiva, ainda foi consagrado o entendimento no qual as terras 122
ocupadas pelos índios são bens da União
e não sujeitamse à categoria de bens
públicos, posto que são inalienáveis. As terras, portanto, são também indisponíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis
123
. O controle exercido pela União, neste
sentido, tem o intuito voltado para a preservação da área em que assentada a comunidade indígena, competindo aos índios, além da posse permanente, o 124
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes
,
objetivando, portanto, a conservação das “atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bemestar e as tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2015). 120 BATISTA, Juliana de Paula. A natureza jurídica dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, Franca, SP, v. 4, n. 1, p. 111133, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 121 SOUZA, José Otávio Catafesto de. A construção de políticas públicas diferenciadas às Comunidades Indígenas do Rio Grande do Sul: o caso dos Kaingang. In: SCHWINGEL, Lúcio Roberto (org.). Povos Indígenas e Políticas Públicas da Assistência Social no Rio Grande do Sul: subsídios para a construção de políticas públicas diferenciadas às Comunidades Kingang e Guarani. Porto Alegre: Secretaria do Trabalho e Cidadania, [2012]. p. 25. 122 CF/88, “A rt. 20. São bens da União: [...]; XI as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.” ( BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2015). 123 CF/88, “Art. 231 São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. [...] §4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.” (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2015). 124 CF/88, Art. 231, “§2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinamse a sua posse permanente, cabendolhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes .” (Ibidem).
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e 125
tradições”
.
Silva cultural
126
observa que a identidade étnica perdura no conceito desta reprodução
127
, mas adverte que a mesma não é estática, pois:
Os índios, como qualquer comunidade étnica, não param no tempo. A evolução pode ser mais rápida ou mais lenta, mas sempre haverá mudanças e, assim, a cultura indígena, como qualquer outra, é constantemente reproduzida, não igual a si mesma. [...] Eventuais transformações decorrentes do viver e do conviver das comunidades não descaracterizam a identidade cultural. Tampouco a descaracteriza a adoção de instrumentos novos ou de 128 novos utensílios, porque são mudanças dentro da mesma identidade étnica.
Da mesma forma, é importante frisar a competência da União em legislar 129
sobre as populações indígenas
, cumprindo ao Congresso Nacional autorizar a
exploração e o aproveitamento dos recursos hídricos, bem como a pesquisa e a 130
lavra de riquezas em terras indígenas
, ressalvandose que a casa legislativa
procederá, neste ponto, independentemente de sanção do Presidente da República 131
. Quanto ao julgamento e processamento das ações referentes aos direitos 132
indígenas, a competência é da Justiça Federal
, sendo partes legítimas para
ingressar em juízo, os índios, as comunidades e organizações que atuam na defesa
CF/88, Art. 231, §4º (op. cit.). SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 127 CF/88. Art. 231, §2º (op. cit.). 128 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 129 CF/88, “ " Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...];XIV populações indígenas;” ( BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2015). 130 CF/88, “ Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...]XVI autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais;” (Ibidem ). 131 CF/88, “Art. 48 Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:” ( Ibidem). 132 CF/88, “ Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...]; V defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;” (Ibidem ). 125 126
dos seus interesses
133
134
, com a possível intervenção do Ministério Público Federal
em todos os atos do processo. 135
A atual constituição, conforme explica Souza
, influenciou inclusive nas
transformações de diretrizes e políticas públicas direcionadas às múltiplas comunidades étnicas existentes no Brasil, tanto administrativa quanto judicialmente, no tocante às questões relativas à saúde, educação, assistência social, regularização fundiária, entre outras. Referiu, ainda, que tais transformações foram ocasionadas pela emergência de movimentos nacionalistas e étnicos contrários aos novos modelos de dominação colonial (neocolonialismo). 136
É possível se concluir que, formalmente
, a Constituição de 1988 possibilitou
uma evolução essencial no que diz respeito ao explícito resguardo dos direitos dos povos indígenas, ainda que, atualmente, seja possível visualizarmos a busca da efetividade destes direitos frente às violações cometidas a tais comunidades. 3.1 DIREITOS INDÍGENAS NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL A legislação infraconstitucional que respalda os direitos dos povos indígenas é resultado, sem dúvida, das lutas políticas e sociais, as quais, antes mesmo da Constituição de 1988, já ansiavam pelo reconhecimento de direitos que pudessem expressar e suprir as suas mínimas condições de existência. Neste sentido, primeiro e, como um verdadeiro marco, demonstrase a importância do DecretoLei 25, de 30.11.1937, o qual foi criado com base na Constituição de 1937, e além de dispor, CF/88, “Art. 232 Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” ( BRASIL. Constituição (1988), op. cit.). 134 CF, Art. 129, “V. defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;” (Ibidem). 135 SOUZA, José Otávio Catafesto. Mobilização indígena, direitos originários e cidadania tutelada no sul do Brasil depois de 1988. In: FONSECA, Claudia; TERTO JUNIOR, Veriano; ALVES, Caleb Farias (orgs.). Antropologia, Diversidade e Direitos Humanos : diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: UFRGS, 2004. p.187. 136 Kayser acrescenta que não há uma garantia jurídica permamente dos direitos indígenas à posse e ao usufruto, posto que, existe a possibilidade de autorização do uso e da exploração dos recursos localizados em terras indígenas pelo Congresso Nacional. (KAYSER, HartmutEmanuel . Os direitos dos povos indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p. 278). 133
previu obrigações sobre a proteção e conservação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, compreendidos, entre este, o patrimônio arqueológico, etnográfico e paisagístico, distribuído nas categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular. Posteriormente, com o advento da Constituição Federal de 1988, o sistema jurídico brasileiro viu desencadear um notável aumento nos diplomas legais relacionados aos índios. Neste sentido, merecem destaques, conforme Santos Filho 137
, o Decreto 22, de 04.02.1991, o qual foi o primeiro a dispor sobre o processo de
demarcação das terras indígenas. Surgiram também os Decretos 23, 24 e 25, editados em 04.02.1991, os quais, respectivamente, referemse à prestação de assistência à saúde das populações indígenas; a proteção do meio ambiente em terras indígenas e os programas e projetos de autosustentação dos povos indígenas. 138
Souza Filho
esclarece que o Decreto 22, de 1991, referente à demarcação
das terras indígenas, observou o disposto na Constituição Federal de 1988, e sob a sua vigência, como fato notório, foram “demarcadas as mais importantes e maior número de terras indígenas , em unidades e em extensão territorial”, outrossim, pretendendo cumprir o disposto no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, indicouse a publicação de plano referente à demarcação das terras indígenas a cargo do Ministério da Justiça. Posteriormente foi editado o Decreto 1.775, de 08.01.1996, que revogou o Decreto 22, de 1991, deliberando integralmente sobre o processo demarcatório das terras indígenas. A crítica realizada ao procedimento permanece no sentido de que não há uma consulta prévia realizada à comunidade estabelecida no território a ser demarcado, desta forma, inexiste a efetiva participação da comunidade indígena na tomada de decisão. SANTOS FILHO; Roberto Lemos dos. Apontamentos sobre o Direito Indigenista . Curitiba: Juruá, 2005. 138 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. 137
Quanto à educação a ser desenvolvida em território indígena, restou consolidado, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394, de 20.12.1996, conforme os seus artigos 78 e 79, como sendo dever do Estado oferecer aos índios uma educação escolar bilíngue, na língua portuguesa e na língua indígena. Entre os seus objetivos está “a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de suas línguas e ciências”
139
. O Conselho Nacional da Educação, por seu turno, através da
Resolução nº 3, de 10.11.1999, definiu que é responsabilidade da União fixar as diretrizes da política de educação indígena, e aos estados a tarefa de ofertála, conforme estabelece o artigo 9º, inciso I, da referida resolução. Ainda, cumpre destacar a implantação da Lei 12.711
140
, de 29.08.2012, conhecida como a “Lei de
cotas”, uma política de ação afirmativa, destinada, entre outros, aos estudantes de origem indígena, a qual concede acesso às instituições federais de ensino técnico ou de nível médio, como também às instituições federais de ensino superior, tanto a nível de graduação (tendo a Universidade de Brasília como pioneira, neste sentido) quanto a nível de pósgraduação, a título de exemplo, encontramos a Universidade 141
Estadual do Rio de Janeiro Federal de Goiás
, a qual aprovou em 2014 tal medida, e a Universidade
142
, a qual aprovou a mesma medida no ano de 2015.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e da Resolução 3/99 do Conselho Nacional de Educação, a educação indígena está contemplada no Plano Nacional de Educação, aprovado em 2001, e no projeto de lei de revisão do Estatuto do Índio, em tramitação no Congresso Nacional. (BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Política Indígenas: introdução. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015; BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CEB nº 3, de 10 de novembro de 1999. Fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências . Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015 ). 140 BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 141 LEI estabelece sistema de cotas nos cursos de pósgraduação no RJ. G1 Rio, Rio de Janeiro, 11 nov 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 142 GOIÁS. Universidade Federal. Resolução CONSUNI nº 07/2015. Dispõe sobre a política de ações afirmativas para pretos, pardos e indígenas na PósGraduação stricto sensu na UFG. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 139
O direito à saúde é garantido pela Constituição Federal como um direito de todos e dever do Estado
143
, já o Estatuto do índio, em seu artigo 54
144
, regula o
direito dos índios à assistência à saúde. Neste sentido, compete à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), criada em outubro de 2010, a coordenação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas
145
, bem como a gestão
do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)
146
. Compete à Secretaria o desenvolvimento de ações de
atenção integral à saúde indígena, bem como a educação em saúde, entre outros, contando com o apoio administrativo do Departamento de Gestão da Saúde Indígena (DGESI), o Departamento de Atenção à Saúde Indígena (DASI) e o Departamento de Saneamento e Edificações de Saúde (DSESI). Ainda, como forma de melhor atender as demandas das populações indígenas, foram criados trinta e quatro DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas), sendo de responsabilidade destas unidades gestoras descentralizadas do subsistema, “a execução de ações de atenção à saúde nas aldeias e de saneamento ambiental e edificações de saúde indígena”
147
. Cumpre observar que tais distritos foram divididos por critérios
territoriais, podendo abranger mais de um município e em alguns casos mais de um 148
estado. À FUNAI
compete apenas o monitoramento das ações de atenção
desenvolvidas às comunidades indígenas. Por fim, também vale ser ressaltada a
CF/88, “ Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” ( BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2015). 144 “ Art. 54. Os índios têm direito aos meios de proteção à saúde facultados à comunhão nacional. Parágrafo único. Na infância, na maternidade, na doença e na velhice, deve ser assegurada ao silvícola, especial assistência dos poderes públicos, em estabelecimentos a esse fim destinados.” (BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015). 145 BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional da Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília, 2002. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 146 SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE INDÍGENA – SESAI. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. 147 SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE INDÍGENA – SESAI. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. 148 FUNDAÇÃO NACIONA DO ÍNDIO – FUNAI. Qual é o papel da FUNAI relativo a atenção à saúde dos povos indígenas . Brasília, DF, 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 143
importância que o Programa Mais Médicos
149
vem obtendo nas áreas atendidas
pelos DSEIS: [...] Antes do Mais Médicos, os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) contavam com 247 médicos que ficavam justamente em locais onde não era necessário dormir na aldeia. Com o programa, o número aumentou para 582 médicos, dos quais 292 são médicos cubanos, oito brasileiros formados no Exterior, 26 intercambistas e nove pelo Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab).Desde 2011, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) vem superando adversidades para atender a cerca de 666 mil indígenas que vivem em 305 povos residentes em 5.700 aldeias, sendo que a Região Norte concentra a maior parte dessa população (cerca de 46%). A Sesai é composta de 34 DSEI, 354 Polos Bases, 68 Casas de Saúde Indígena (CASAI), 751 postos de saúde distribuídos nas cinco Regiões Geográficas.
150
Quanto ao Código Civil de 2002, Lei nº 10.406
, de 10.01.2002, conforme
151
Araújo
, deu um tratamento mais positivo aos índios, na medida em que
estabeleceu ser matéria de lei específica a questão da capacidade para a prática 152
dos atos da vida civil. Conforme Kayser
, a antiga redação do artigo 6 do Código
Civil, datado de 01/01/1916, “continha uma regulamentação sobre a capacidade jurídica relativa dos índios e o mandado de regulamentar sua tutela através de leis especiais”. No mesmo sentido, esclarece o autor: A regulamentação tem efeito paternalista, e parece incorporar preconceitos jurídicos. [...] A circunstância de que o legislador do Direito Civil de 1916 conduziu os “silvícolas” ao ordenamento de incapacidade jurídica relativa foi sua 153 “inadaptação à civilização do país”.
149
MAIS médicos contribui para melhorar atendimento aos povos indígenas. Brasílai, 27 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 150 BRASIL. Código Civil (2002). Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2015. 151 ARAÚJO, Ana Valéria et al. Povos Indígenas e a Lei dos "Brancos" : o direito à diferença. Brasília: MEC/SECAD LACED/Museu Nacional, 2006. p.58. 152 KAYSER, HartmutEmanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil : desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p.278. 153 KAYSER, HartmutEmanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil : desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p.278.
Assim, ainda durante a República, através do Decreto nº 5.484
154
, de
27.06.1928, pela primeira vez foi empreendida a tentativa de regulamentação das 155
relações jurídicas dos índios. Conforme Souza Filho
, apesar das críticas à norma,
há relevância no que ela oferece a partir do ponto em que é realizada uma abertura na legislação brasileira, sendo introduzida no sistema jurídico brasileiro “a concepção de que as relações dos índios com a sociedade organizada sob o manto do Estado brasileiro é de natureza pública e não privada”. Todavia, as regulamentações do Decreto foram substituídas pela Lei nº 6.001, de 1973, conhecido como Estatuto do Índio, eis que, em 1967, devido a forte pressão da opinião pública nacional e internacional quanto a violação aos direitos humanos dos 156
índios, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
foi extinto e, com a promulgação da
157
Lei nº 5.371
, de 05.12.1967, criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a
quem incumbiu elaborar o projeto de lei indígena, denominado Estatuto do Índio. Ao Estatuto do Índio
158
, elaborado em 1973, em plena ditadura militar, ficou a
tarefa de dispor, entre outros, sobre a assistência e tutela dos índios e suas comunidades. Criado pela Lei nº 6.0001, de 19.12.1973, o Estatuto busca, de certa forma, a preservação da cultura indígena, no entanto, consoante o seu artigo 1º, pretendeu a integração “progressiva e harmônica dos índios ou silvícolas na comunhão nacional”
159
, por isso, é causa de muitas críticas. Atualmente há um
debate sobre a evidente contradição encontrada no Estatuto do Índio, em
BRASIL. Decreto nº 5.484, de 27 de julho de 1928. Regula a situação dos indios nascidos no territorio nacional. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2015. 155 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito . 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 100101. 156 BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 2.057, de 1991. Dispõe sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas. Autor: Deputado Aloizio Mercadante e outros. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 157 BRASIL. Lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967. Autoriza a instituição da ?Fundação Nacional do Índio? e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2015. 158 BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 159 “Art.1º Esta lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrálos, progressiva e harmonicamente, à comunhão nacional”. (Ibidem). 154
contraponto ao posicionamento da Constituição Federal de 1988. Inclusive, tramita no Congresso Nacional a proposta
160
de um novo estatuto do índio, conhecido como
o Estatuto das Sociedades Indígenas EdSI. Sendo assim, visíveis são os avanços trazidos também em consonância com a Constituição Federal de 1988, os quais fortaleceram os direitos indígenas que ainda não estavam consolidados no ordenamento jurídico brasileiro. Muito embora o Estado necessite de melhorias em vários aspectos práticos do âmbito jurídico e administrativo, de modo a satisfazer todos os envolvidos, o mero fato de existirem documentos legais corroborando com as reivindicações dos povos indígenas já é algo a ser considerado como um convite ao debate e às positivas mudanças que, cedo ou tarde, chegarão. 3.2 A HERANÇA E O PRESSÁGIO ENCONTRADOS EM BELO MONTE “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” (Eduardo Galeano)
O giro histórico das violações cometidas contra os povos indígenas, de 1500 aos dias atuais, encontra em Belo Monte umas das piores heranças deixadas pelo período ditatorial brasileiro. A hidrelétrica de Belo Monte foi planejada no período de 1975
161
162
, pela Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras)
, e abalou de forma muito
intensa a vida da população de Altamira, uma das cidades mais afetadas pela obra, bem como a vida das comunidades indígenas e dos ribeirinhos que dependem do Rio Xingu para (sobre)viver, impactando de maneira catastrófica a vida destas pessoas. BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 2.057, de 1991. Dispõe sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas. Autor: Deputado Aloizio Mercadante e outros. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 161 RODRIGUES, Luciana. Belo Monte: Risco ou progresso? Revista Latitude, Maceió, v. 5, n. 2, p. 111139, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 162 ELETROBRÁS: Energia para novos tempos. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 160
A Usina Hidrelétrica de Belo monte faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, sendo construída em uma região muito rica em biodiversidade, constituída como o berço de espécies endêmicas de fauna e flora, além de território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas juruna e 163
arara
. Desta forma, criouse um enorme conflito socioambiental, o qual, conforme
164
Rosa
gerou “[...]controvérsias e reclamações por parte dos movimentos sociais,
ambientalistas e populações da região afetada[...]”. 165
Conforme Rodrigues
, o projeto original sobre a construção da hidrelétrica
sofreu inúmeras alterações com o passar dos anos, sendo retomado apenas em 2001, quando em razão de um verão pouco chuvoso, ocorreu uma grande crise de eletricidade e o projeto foi reapresentado como a promessa de “salvação do país”. A partir de então, explica a autora: [...] houve o ajuizamento da primeira Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal de Belém, visando exigir a obrigatoriedade de consultar os indígenas habitantes das áreas que fossem afetadas, bem como a obtenção de autorização do Congresso Nacional, o que é determinado pelo artigo 231 da Constituição Federal. A decisão judicial decorrente dessa Ação Civil Pública foi no sentido de embargar o EIA (Estudo de Impacto Ambiental) e o processo de licenciamento. Tal decisão, tomada em primeira instância em Belém, no ano de 2001, foi mantida até a última instância, em Brasília. Mais uma vez o projeto Belo Monte foi derrotado, em fins de 2002. Assim, o Governo Federal anuncia a pretensão de modificar os procedimentos para o empreendimento hidrelétrico no rio Xingu. A terceira tentativa de construção da usina hidrelétrica começou nos primeiros meses do governo Lula, quando o senador José Sarney, aliado do governo em exercício, convencia a cúpula federal da importância e oportunidade do projeto Belo Monte. Em janeiro de 2006, o MPF ajuíza a segunda ação, tentando demonstrar a inconstitucionalidade da falta de oitiva das comunidades indígenas afetadas. A ELETROBRÁS solicitou ao IBAMA a abertura de processo de licenciamento ambiental prévio. Começou, então, a ser feito o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). A sentença do processo, em primeira instância, derrubou o entendimento do MPF e dispensou a oitiva dos indígenas atingidos, tendo os estudos sido iniciados. O Informações extraídas de: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Dossiê Belo Monte. p. 8. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 164 ROSA, Michel Fernandes da. Discutindo saúde ambiental a partir de uma Ecologia de Saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; CUNHA, Teresa. Colóquio Internacional do Sul: aprendizagens globais SulSul, SulNorte e NorteSul. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2015. 165 RODRIGUES, Luciana. Belo Monte: Risco ou progresso? Revista Latitude, Maceió, v. 5, n. 2, p. 111139, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 163
governo federal, então, se apressa para licenciar a obra, mas começa a fazer o EIA (Estudo de Impacto Ambiental). A primeira versão do EIA/RIMA é entregue ao IBAMA em 2009, mesmo ano em que a Eletrobrás solicitou a Licença Prévia (LP). O MPF ajuizou uma nova ação em razão de entender que os Estudos de Impacto Ambientais estavam incompletos, sob o argumento de que não seria possível que em dez dias tivessem sido feita a vistoria técnica no local da obra, as reuniões com as comunidades afetadas e a conclusão do termo de referência de uma obra de tal magnitude. O pedido do órgão ministerial foi judicialmente aceito, suspendendo novamente o processo de licenciamento até que os Estudos fossem efetivamente completados. [...] Em fevereiro de 2010 o Ibama concede a Licença Prévia (LP) da hidrelétrica e a ANEEL aprova estudos de viabilidade da UHE Belo Monte. Na mesma época, houve a aprovação pelo TCU da previsão de custos para construção da UHE Belo Monte, bem como a aprovação do Edital do Leilão nº. 06/2009, destinado à contratação de energia elétrica proveniente da Usina. Após diversas suspensões das obras pela justiça, recursos foram julgados e as obras novamente liberadas, estando a hidrelétrica em plena execução. [...].
A construção da Usina teve início no ano de 2011, quando a vencedora da 166
licitação, o Consórcio Norte Energia S/A
, obteve a outorga de concessão, ficando
definido em um Projeto Básico Ambiental (PBA) o detalhamento dos planos, projetos e programas destinados a prevenir, mitigar e compensar os impactos da obra. Hoje, com a obra praticamente concretizada, em um custo estimado em R$ 30 bilhões
167
,
é possível analisarse a herança deixada quanto a degradação ambiental da região, a piora da qualidade de vida da população local e a perda dos recursos naturais 168
necessários para a sobrevivência das populações tradicionais ali estabelecidas
.
A composição acionária do Consórcio Norte Energia dividese da seguinte forma: o Grupo Eletrobras dividese em Eletrobras, com 15,00%; Chesf, com 15,00% e Eletronorte, com 19,98%. A Sociedade de Propósito Específico compreende a Belo Monte Participações S.A. (Neoenergia), com 10,00% e Amazônia (Cemig/Light), com 9,77%. As Autoprodutoras dividemse em Aliança Norte Energia S/A (Vale/Cemig), com 9,00% e Sinobras, com1,00%. As Entidades de Previdência Complementar são compreendidas em Petros, com 10,00% e na Funcef, com 10,00%. 0,25% são pertencentes às outras sociedades, compreendida, nesta, a empresa J.Malucelli Energia. (NORTE ENERGIA. Usina Hidrelétrica Belo Monte. Composição acionária da Norte Energia. Belo Monte, 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015). 167 DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. p. 40. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015. 168 Informações extraídas de: DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. p. 9. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015 166
169
Rosa
, explica que a Usina está sendo construída na região oeste do Estado
do Pará, no município de Vitória do Xingu, no entanto, a obra afeta diretamente o número de onze municípios, quais sejam: Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá, Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória 170
do Xingu. Neste sentido, é preocupante a violência institucional e simbólica
causada aos grupos antagonistas do projeto, em busca de um nítido progresso a qualquer custo. Hernández e Magalhãs especialistas”
171
ao analisarem o estudo do “painel de
172
, afirmam q ue várias comunidades indígenas que vivem às margens
do rio seriam afetadas: [...] as Terras Indígenas – Juruna do Paquiçamba e Arara da Volta Grande – são “diretamente afetadas” pela obra. E, ademais, grupos Juruna, Arara, Xipaya, Kuruaya e Kayapó, que, imemorial e/ou tradicionalmente, habitam as margens deste trecho do rio.
Thais Santi, Procuradora da República que atua diretamente no caso de Belo 173
Monte, explica em entrevista concedida à Eliane Brum, em dezembro de 2014
,
que “[...] Belo Monte vai se tornando um fato consumado. E a morte cultural dos
169
ROSA, Michel Fernandes da. Discutindo saúde ambiental a partir de uma Ecologia de Saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; CUNHA, Teresa. Colóquio Internacional do Sul: aprendizagens globais SulSul, SulNorte e NorteSul. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2015 170 HERNÁNDEZ, Francisco del Moral; MAGALHÃES, Sonia Barbosa. Ciência, cientistas e democracia desfigurada: o caso Belo Monte. Novos Cadernos NAEA, v. 14, n. 1, p. 7996, jun. 2011. Disponível em . Acesso em : 10 out. 2015. 171 HERNÁNDEZ, Francisco del Moral; MAGALHÃES, Sonia Barbosa. Ciência, cientistas e democracia desfigurada: o caso Belo Monte. Novos Cadernos NAEA, v. 14, n. 1, p. 7996, jun. 2011. Disponível em . Acesso em : 10 out. 2015. 172 SANTOS, Sônia Maria Barbosa Magalhães; HERNANDEZ, Francisco del Moral. Painel de Especialistas : Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. Belém, 29 out. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 173 BRUM, Eliane. Belo Monte: a anatomia de um etnocídio. El País, Madrid, 01 dic. 2014. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015.
indígenas é naturalizada por parte dos brasileiros como foi o genocídio judeu por 174
parte da sociedade alemã.” . Neste sentido, Rodrigues
refere:
O MPF acredita que se a obra não causar um genocídio propriamente dito, vai causar no mínimo um genocídio cultural, porque a cultura vai mudar completamente a vida das pessoas, já que tem relação com o sagrado, com as festas religiosas, festa da piracema etc. [...].
Importante referir, ainda, o fato de que no ano de 2011 a questão de Belo Monte foi levada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, através da Medida Cautelar de nº382/2010 (MC382/10)
175
, ante as claras violações de direitos
humanos realizadas em benefício da construção da usina. Assim, a entidade cobrou explicações das autoridades brasileiras, além de solicitar a imediata paralisação das obras, bem como para que fosse realizada uma consulta prévia, livre, informada e culturalmente adequada às comunidades afetadas
176
. O Brasil não apenas não
compareceu à audiência designada para prestar esclarecimentos
177
, como também
autorizou o início da obra no mesmo ano. Não obstante a problematização em torno de Belo Monte, vários especialistas posicionaramse desqualificando
178
o EIA/RIMA
apresentado pelo governo, com apontamentos de graves falhas no tocante ao impacto ambiental e social do projeto, além da inviabilidade técnica.
RODRIGUES, Luciana. Belo Monte: Risco ou progresso? Revista Latitude, Maceió, v. 5, n. 2, p. 111139, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 175 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. MC 382/10 Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil . Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2015. 176 QUESTÃO de Belo Monte é levada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Justiça Global Brasil, 03 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 177 BELO Monte: após boicotar audiência, Brasil é cobrado na CIDH/OEA. Justiça Global Brasil, 28 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015. 178 O documento “Painel de Especialistas: Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo monte” está disponível em: SANTOS, Sônia Maria Barbosa Magalhães; HERNANDEZ, Francisco del Moral. Painel de Especialistas : Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. Belém, 29 out. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 174
Cumpre observar que medidas de mitigação e compensação foram apresentadas na forma de 31 condicionantes, as quais foram planejadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em que basicamente estipulavase a responsabilidade do poder público e do empreendedor, em um Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBACI), com o prazo de 35 anos de duração, contudo, até abril de 2015, não ocorrera o cumprimento nem da metade das condicionantes
179
. Conforme importante informação disponibilizada pelo dossiê
realizado pelo Instituto Socioambiental: Segundo a Norte Energia, R$ 212 milhões já foram gastos com os povos indígenas. Porém, em lugar de serem investidos, de forma estruturada, na mitigação e compensação dos impactos, esses recursos foram principalmente utilizados no fornecimento de bens materiais (até março de 2015, foram comprados 578 motores para barco, 322 barcos e voadeiras, 2,1 milhões de litros de gasolina, etc.), consolidando um inaceitável padrão clientelista de relacionamento entre empresa e povos indígenas. Os recursos foram distribuídos por dois anos (de outubro de 2011 a setembro de 2013), na forma de uma espécie de “mesada” no valor de R$ 30 mil mensais por aldeia. Dessa maneira, o empreendedor e o Estado puderam controlar temporariamente os processos de organização e resistência indígena, deixando como legado a desestruturação social e o enfraquecimento dos sistemas de produção de alimentos nas aldeias, colocando em risco a saúde, a segurança alimentar e a autonomia desses povos. [...] Para que o empreendedor reconhecesse a obrigatoriedade em realizar algumas ações de mitigação, foram necessárias determinações judiciais. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o Plano de Fiscalização e Vigilância Territorial e com a realocação dos Juruna que vivem em um travessão da rodovia 180 Transamazônica (BR230), conhecidos como Juruna do Km 17.
Mesmo assim, as ações ainda não foram executadas. O MPF precisou intervir para exigir a assinatura do termo de compromisso de implementação do PBACI, que garantiria o cumprimento das medidas de mitigação de longo prazo. O instrumento deveria ter sido assinado 35 dias após a emissão da licença de instalação da obra, concedida em janeiro de 2011, mas isso só ocorreu três anos
179
DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. p. 14. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015. 180 DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. p. 40. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015.
depois, em março de 2014, depois de mais de 300 indígenas terem ocupado os escritórios da Norte Energia, em Altamira, durante dois dias.
181
Ademais, em parecer técnico realizado pela FUNAI, em março de 2015, constatouse que entre 2008 e 2013, o desmatamento ocorrido no interior das terras indígenas no entorno da construção de Belo Monte foi de 193,4 quilômetros 182
quadrados, o que representa uma eclosão de 16,31% de desmatamento
.
Outrossim, apesar de não alagar nenhuma região de território indígena, Belo Monte praticamente seca o Rio Xingu entre as terras indígenas Arara da Volta Grande e Paquiçamba, ocasionando o desvio da vazão hídrica em até 80% para o reservatório 183
de geração de energia
.
Assim sendo, encontramos em Belo Monte um Direito que, para além das bases legais ou, insuficientemente chegando nesta “legalidade”, encontrase refém 184
das escolhas políticas e governamentais
de um país que pretere direitos
fundamentais em favor de poder e lucro. Isto fica claro ao se analisar o Plano 185
Emergencial apresentado pela Norte Energia S/A
181
e, conforme expõe a
Poder Judiciário, Justiça Federal de Primeira Instância, Seção Judiciária do Pará. Decisão. Ação civil pública nº 655 78.2013.4.01.3903. Belém, 31 mar. 2014; Poder Judiciário, Justiça Federal de Primeiro Grau, Seção Judiciária do Estado do Pará, Subseção Judiciária de Altamira. Decisão liminar. Ação civil pública nº 1655 16.2013.4.01.3903. Altamira, 6 set. 2013. 182 DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. p. 38. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015. 183 DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. p. 40. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015. 184 BRUM, Eliane. Belo Monte: a anatomia de um etnocídio. El País, Madrid, 01 dic. 2014. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2015. 185 PLANO emergencial. Boletim Informativo, Belo Monte, n. 2, nov. 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015.
Procuradora da República Thais Santi
186
, sobre a dependência criada ardilosamente
aos povos indígenas, em clara tentativa de assimilacionismo: [...] Eliane Brum – O que a senhora viu?
Santi O Plano Emergencial tinha como objetivo criar programas específicos para cada etnia, para que os indígenas estivessem fortalecidos na relação com Belo Monte. A ideia é que os índios se empoderassem, para não ficar vulneráveis diante do empreendimento. [...] Eu vi os índios fazendo fila num balcão da Norte Energia, um balcão imaginário, quando no plano estava dito que eles deveriam permanecer nas aldeias. Comecei a perceber o que estava acontecendo quando fiz essa visita à terra indígena de Cachoeira Seca e conheci os Arara, um grupo de recente contato. E foi um choque. Eu vi a quantidade de lixo que tinha naquela aldeia, eu vi as casas destruídas, com os telhados furados, chovendo dentro. E eles dormiam ali. As índias, na beira do rio, as crianças, as meninas, totalmente vulneráveis diante do pescador que passava. Quando Belo Monte começou, esse povo de recente contato ficou sem chefe do posto. Então, os índios não só se depararam com Belo Monte, como eles estavam sem a Funai dentro da aldeia. De um dia para o outro ficaram sozinhos. Os Arara estavam revoltados, porque eles tinham pedido 60 bolas de futebol, e só tinham recebido uma. Eles tinham pedido colchão boxe para colocar naquelas casas que estavam com telhado furado e eles não conseguiram. Esse grupo de recente contato estava comendo bolachas e tomando refrigerantes, estava com problemas de diabetes e hipertensão. [...] Era como se fosse um pósguerra, um holocausto. Os índios não se mexiam. Ficavam parados, esperando, querendo bolacha, pedindo comida, pedindo para construir as casas. Não existia mais medicina tradicional. Eles ficavam pedindo. E eles não conversavam mais entre si, não se reuniam. O único momento em que eles se reuniam era à noite para assistir à novela numa TV de plasma. Então foi brutal. [...]
Eliane Brum Era esse o Plano Emergencial, o que deveria fortalecer os indígenas para que pudessem resistir ao impacto de Belo Monte?
Santi – Tudo o que eles tinham recebido do Plano Emergencial. O Plano Emergencial gerou uma dependência absoluta do empreendedor. Absoluta. E o empreendedor se posicionou nesse processo como provedor universal de bens infinitos, o que só seria tolhido se a Funai dissesse não. A Norte Energia criou essa dependência, e isso foi proposital. E se somou à incapacidade da Funai de estar presente, porque o órgão deveria ter sido fortalecido para esse 186
“[...] A decisão foi tomada após pedido do Ministério Público para que fosse analisada a participação de empresas investigadas na Operação Lava Jato, que apura desvios de recursos na Petrobras, em outra estatal do país, a Eletrobras, do setor elétrico. A obra de Belo Monte está estimada atualmente em cerca de R$ 33 bilhões. A maior parte dos recursos para a construção viriam do BNDES – ao menos R$ 22 bilhões. O Ministro José Múcio Monteiro, responsável pelo processo no TCU, considerou que o fato de as empresas que formam o consórcio que constrói a hidrelétrica estarem sendo investigadas na Lava Jato é motivo para o início de uma auditoria do tribunal sobre esse contrato. Outro problema apontado foi o alto custo da construção da usina, que estaria inviabilizando um retorno financeiro para as estatais que estão investindo nesse projeto.” (AMORA, Dimmi. Por envolvimento de construtoras na Lavajato TCU investiga Belo Monte. Folha UOL, Brasília, 24 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015).
processo e, em vez disso, se enfraqueceu cada vez mais. Os índios desacreditavam da Funai e criavam uma dependência do empreendedor.
Eliane Brum A senhora acha que essa condução do processo, por parte da Norte Energia, com a omissão do governo, foi proposital?
Santi – Um dos antropólogos da 6ª Câmara tem uma conclusão muito interessante. No contexto de Belo Monte, o Plano Emergencial foi estratégico para silenciar os únicos que tinham voz e visibilidade: os indígenas. Porque houve um processo de silenciamento da sociedade civil. Tenho muito respeito pelos movimentos sociais de Altamira. Eles são uma marca que faz Altamira única e Belo Monte um caso paradigmático. Mas hoje os movimentos sociais não podem nem se aproximar do canteiro de Belo Monte. Há uma ordem judicial para não chegar perto. Naquele momento, os indígenas surgiram como talvez a única voz que ainda tinha condição de ser ouvida e que tinha alguma possibilidade de interferência, já que qualquer não índio receberia ordem de prisão. E o Plano Emergencial foi uma maneira de silenciar essa voz. [...] .
O posicionamento da Advocacia Geral da União é no sentido de que Belo 187
Monte se trata de uma obra governamental, como explica Santi
. Entretanto, Belo
Monte se apresentou como uma empresa com formação de S.A. (Sociedade Anônima), como empresa privada, o que, consequentemente, complica na hora de se cobrar as políticas públicas cabíveis à população impactada, devido ao fato de a empresa transferir tal responsabilidade para o Estado. 188
Ademais, Santi
frisa que a ação referente à Belo Monte é uma obra “ sub
judice ”, composta de 22 duas ações. Competindo ao Supremo Tribunal Federal realizar este julgamento; entretanto, a ação encontrase em “suspensão de segurança”, mecanismo jurídico herdado da ditadura militar, o qual: [...] impede o julgamento antecipado de uma ação, que poderia ser pedido por conta da urgência, da relevância e da qualidade das provas apresentadas. É concedido pela presidência de um tribunal, que não analisa o mérito da questão, apenas se limita a mencionar razões como “segurança nacional”.
SANTI, Thais [entrevistada]. Belo Monte: a anatomia de um etnocício. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 02 dez. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. 188 SANTI, Thais [entrevistada]. Belo Monte: a anatomia de um etnocício. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 02 dez. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. 187
Desta forma, por todo o exposto, a sociedade precisa incansável e 189
urgentemente transformar a sua ausência
em presença, para que velhas práticas
e discursos não sejam naturalizados, e para que não haja a compactuação com práticas etnocidas por parte de um Estado estrategicamente silencioso. As heranças permanecem, de 1500 até agora, o presságio requer mudança. Mudança e coragem. Esta deve ser a herança deixada para as futuras gerações, para que estas consigam olhar para trás e ver o que a história nos conta, sem a repetição de velhos erros ou a propagação de antigos preconceitos. Atualmente a obra de Belo Monte encontrase quase concluída, faltando apenas a licença operacional
190
, analisada pelo IBAMA. Ademais, em junho de 2015,
o Tribunal de Contas da União informou que iniciará uma investigação sobre 191
recursos públicos utilizados na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte
.
É neste sentido que, brilhantemente, PIZZIO e VERONESE analisam a sociologia das ausências, teoria formulada por Boaventura de Sousa Santos: “A produção social dessas ausências resulta na subtração do mundo, na contração do presente e no desperdício da experiência. A sociologia das ausências coloca a necessidade de pôr em questão cada uma dessas lógicas. Nesse questionamento, propõe substituir monoculturas por ecologias , o que possibilitaria a disputa epistemológica entre diferentes saberes, a vivência de temporalidades diversas da frenética máxima de que tempo é dinheiro, a não identificação da diferença com a desigualdade, a recuperação do que no local não é efeito da globalização hegemônica, a valorização de sistemas alternativos de produção e consumo, ecosocialismo, ecofeminismo etc. Dessa forma, tornase possível, através da sociologia das ausências, captar e compreender o processo através do qual têm sido produzidos os silêncios sociais nos mais diversos contextos empíricos e, a partir daí, trazer a tona saberes e perspectivas diferenciadas que possam representar toda a riqueza social contemporânea. Nesse processo, os sujeitos fazemse autores da sua própria vida e da vida coletiva.”. (PIZZIO, Alex; VERONESE, Marília Veríssimo. Possibilidades conceituais da sociologia das ausências em contextos de desqualificação social. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 5167, 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015). 190 FALEIROS, Gustavo. Quase concluída, Belo Monte mudará o pulso das águas do Singu. UOL Notícias, Manaus, 01 out. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. 191 “[...] A decisão foi tomada após pedido do Ministério Público para que fosse analisada a participação de empresas investigadas na Operação Lava Jato, que apura desvios de recursos na Petrobras, em outra estatal do país, a Eletrobras, do setor elétrico. A obra de Belo Monte está estimada atualmente em cerca de R$ 33 bilhões. A maior parte dos recursos para a construção viriam do BNDES – ao menos R$ 22 bilhões. O Ministro José Múcio Monteiro, responsável pelo processo no TCU, considerou que o fato de as empresas que formam o consórcio que constrói a hidrelétrica estarem sendo investigadas na Lava Jato é motivo para o início de uma auditoria do tribunal sobre esse contrato. Outro problema apontado foi o alto custo da construção da usina, que estaria inviabilizando um retorno financeiro para as estatais que estão investindo nesse projeto.” (AMORA, Dimmi. Por envolvimento de construtoras na Lavajato TCU investiga Belo Monte. Folha UOL, Brasília, 24 jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015).
4 CONCLUSÃO O objetivo deste trabalho foi problematizar e demonstrar o direito histórico dos índios à terra e à sua autodeterminação, assim respeitado o dever de consulta. Pautouse, inicialmente, fazer um retrospecto como o realizado no primeiro capítulo, com o delineamento da história da colonização brasileira e dos documentos legais surgidos em cada período. Neste sentido, é importante destacar que do respeito à condição dos índios e às suas particularidades culturais, tendo em vista a diversidade de etnias existentes no Brasil, os demais direitos inerentes, tais como à terra e à autodeterminação, conseguirão, no mínimo, entrar no debate políticoeconômicohistóricosocial brasileiro. Logo, os interesses políticos e estratégicos que embasaram a vinda da Coroa, bem como a disputa pela mão de obra escrava dos índios, não difere muito do cenário encontrado hoje. Os interesses são os mesmos, muda a forma de violentar o outro. Desta forma, é possível notar que o direito desenvolvido à época da Colônia, o qual permaneceu até a República Velha, tratava essencialmente da questão referente às terras, sem deixar de ser desenvolvida uma política de assimilação e concentração social dos índios ao resto da população. Conforme observado, a reprodução cultural dos índios, sua estruturação social e a própria sobrevivência da identidade étnica de um determinado grupo, é consequência da garantia do direito à terra. Se trata de reconhecer que este grupo existe, ali, com seus valores, seus mitos e crenças, em sua possível dignidade. Isto posto, ressaltase que apenas com o advento das Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, foi reconhecido o direito dos índios à posse das terras que ocupavam, e, apenas com o advento da Constituição de 1988 restou proclamado o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que possuíam. O qual ocorre através do ato administrativo de reconhecimento da área ocupada, com o procedimento de demarcação. À vista disso, a problemática centrase na expansão das fronteiras agrícolas (agronegócio), bem como observandose as ações desenvolvimentistas que buscam explorar os recursos naturais em áreas de ocupação tradicional, trazendo como
consequência o embate entre as comunidades indígenas e os demais interessados. É neste contexto que o direito deve funcionar como força emancipatória, tendo em vista a emergência de uma nova cultura jurídica, bem como uma ruptura paradigmática, capaz de formar operadores do direito no mínimo mais humanistas. Nesta sequência, com o advento de inúmeras constituições latinoamericanas entre a década de 1980 e 1990, compostas pelo reconhecimento de direitos às populações indígenas, coube à Constituição Brasileira de 1988 tornarse um marco. Através da Constituição Federal houve o reconhecimento de pontos fundamentais do direito indigenista, tais como o reconhecimento das terras tradicionais que ocupam permanentemente, o direito a serem diferentes, preservando suas crenças, tradições, costumes, línguas e organização social, além da superação, teoricamente, da concepção assimilacionista encontrada em textos legais do passado. Deste modo, foram criadas leis infraconstitucionais que proporcionaram o acesso dos índios à direitos fundamentais e de plena cidadania, tais como os relacionados à saúde e à educação da população indígena. No tocante à autodeterminação, foi possível se concluir que esta advém da necessidade dos Estados aplicarem, de fato, o que dispõe os principais documentos referentes ao direito à autodeterminação dos povos indígenas, de modo que estes exerçam seus direitos constitucionais com autonomia acerca dos assuntos que possam vir a afetálos diretamente. Neste contexto, é importante frisar que priorizase a integridade dos Estados em que estes povos se encontram, reconhecendose o direito à autoadministração dessas populações e a consequente manutenção da sua identidade cultural e territorial, como forma de se evitar o argumento referente a secessão. Isto posto, buscouse analisar a evolução da legislação brasileira, utilizandose também as bases teóricas sociológicas e antropológicas, a fim de demonstrar e evitar que os direitos até aqui conquistados não caiam na armadilha de reproduzir velhas concepções eurocêntricas. É neste sentido que o direito, enquanto um instrumento de emancipação social, pode fortalecer os
movimentos que lutam pelos direitos indígenas, como alternativa contra as políticas que, especialmente no Brasil, com a legitimidade concedida (principalmente) pelo Congresso Nacional, imbuído por diversos interesses, tem cometido graves violações contra os povos indígenas estabelecidos em território nacional.
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ANEXO ILUSTRAÇÕES Figura 1 Distribuição total, rural e urbana da população indígena no Brasil
Fonte: IBGE, 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2012.
Figura 2 Localização e extensão das terras indígenas
Fonte: POVOS Indígenas no Brasil. Localização e Extensão das TIs . 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.
Figura 3 Tabela com o reconhecimento das terras indígenas nos governos dos presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff
Fonte: POVOS Indígenas no Brasil. Demarcações nos últimos seis governos. 11 ago. 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015.
Figura 4 Situação das terras indígenas no Brasil
Fonte: POVOS Indígenas no Brasil. Situação jurídica das TIs no Brasil hoje. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.
Figura 5 Situação das terras indígenas na Amazônia Legal. Estas terras representam 22,25% da extensão da Amazônia Legal
Fonte: POVOS Indígenas no Brasil. Situação jurídica das TIs no Brasil hoje. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.
Figura 6 demarcações na Amazônia Legal
Fonte: POVOS Indígenas no Brasil. Demarcações nos últimos seis governos. 11 ago. 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015
Figura 7 Terras Indígenas por Estado na Amazônia Legal (em 22/10/ 2014).
Fonte: POVOS Indígenas no Brasil. Localização e Extensão das TIs . 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015
Figura 8 – Projeto de Construção da Usina Belo Monte
Fonte: DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015 .
Figura 9 – Remoção forçada das famílias e perda do modo de vida ribeirinho
Fonte: DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015.
Figura 10 – Plano emergencial indígena e desestruturação das aldeias
Fonte: DOSSIÊ: Belo Monte: Não há condições para licença de operação. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2015. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2015 .
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