O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O AFUZILAMENTO DOS DESIGUAIS

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O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O AFUZILAMENTO DOS DESIGUAIS Alberto Carvalho Amaral1

1 Introdução ao Tema

Vivemos uma época de incertezas. O direito passa por novos rumos e, para se adequar aos novos tempos, são invocadas novas razões, novos motivos para legitimar a atuação punitiva estatal. O Direito Penal também sofre a irradiação desses fatos, denominados movimentos expansionistas, especialmente acentuados após os trágicos eventos ocorridos em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América do Norte, no dia 11 de setembro de 2001. Para justificar uma nova razão de Estado, voltada para uma maior adequação do jus puniendi, Günther Jakobs apresenta, em 1985, um esboço inicial do que, posteriormente, defenderia como uma realidade posta: o Direito Penal do Inimigo, derivação prejudicial do ordenamento jurídico de uma sociedade de risco, que consistiria na bifurcação no direito criminal, que ora se voltaria para o cidadão, com todas as suas garantias e inviolabilidades, ora se voltaria para o inimigo, o qual, por não respeitar minimamente o status quo, afrontando-o em sua essência, deveria ser eliminado do sistema. O Direito Penal do Inimigo busca, pela eleição – e posterior neutralização – de possíveis estranhos, assegurar uma falsa segurança aos cidadãos, quando, em realidade, são retirados direitos fundamentais destes. Tal fenômeno se irradia pelos ordenamentos jurídicos do mundo. Nos Estados Unidos da América do Norte, conhecido pelo seu Movimento da Lei e da Ordem, e na Europa, essa moderna corrente de política criminal ganha força, subsidiada, essencialmente, por governos de índole autoritária e juízos de valor desvinculados de qualquer comprovação empírica. Na América Latina, que se habituou aos desmandos oriundos de governos de exceção, a introdução desse pensamento é uma realidade, nos juízos criminais, em doutrina específica e, especialmente, na mídia. Periférico a tudo isso, o Brasil recebe, sem



Artigo publicado na Revista Associação dos Defensores Públicos do Distrito Federal, ano 5, número 5, p. 0954, dez. 2010. 1 Alberto Carvalho Amaral é Procurador de Assistência Judiciária do Distrito Federal. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSUL). Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSUL). Membro integrante do Grupo de Trabalho para apresentação de proposta de reforma do Código de Processo Penal – OS n.º 2, de 29.05.2009, do Centro de Assistência Judiciária do Distrito Federal (CEAJUR/DF). Sócio-fundador do Instituto de Garantias Penais (IGP). Professor de Direito Constitucional, Direito Penal e Direito Processual Penal.

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o menor anteparo, essa onda repressiva de uma política criminal punitivista desarrazoada e minimizadora dos direitos fundamentais. No presente artigo, elaborado a partir de um estudo mais aprofundado sobre o tema, tentar-se-á estabelecer caracteres gerais, sem perder, contudo, a precisão e técnica científicas, a fim de possibilitar uma introdução a este tema, em voga atualmente e no âmbito das mais intricadas discussões científicas.

2 Pressupostos Históricos do Direito Penal do Inimigo

2.1 Movimentos Vanguardistas de Política Criminal. Do Direito Penal do Risco ao Direito Penal do Inimigo e da Mudança Hermenêutica de Günther Jakobs

Cada Estado determina os bens que são castos à convivência de seus consortes, que merecem uma atenção incriminadora específica, bem como a atuação de suas forças para a proteção e punição daqueles que praticarem condutas valoradas como negativas. O Estado é, como se vê, quem determina diretrizes que, posteriormente, vincularão aos seus cidadãos e a si mesmo, pessoa jurídica. A essa escolha, dá-se o nome de Política Criminal. É a Política Criminal, segundo René Ariel Dotti2, o “conjunto sistemático de princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das infrações penais”. Como bem anota Zaffaroni, ela “é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”3. Desses dois conceitos já podem ser extraídas funções importantes da Política Criminal: a) função de orientação, para a assunção de medidas penais futuras, e b) função de crítica, com a tomada de posicionamento frente às decisões tomadas pelo poder político.4 Por possuir esse papel tão importante na configuração do Direito Criminal, a Política Criminal constitui, atualmente, “a pedra angular de todo o discurso legal-social da

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Apud BIANCHINI, Alice. Política Criminal, direito de punir do Estado e finalidades do Direito Penal. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG, p. 3. 3 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 129. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit., p. 129.

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criminalização-descriminalização”5. Toda discussão de um sistema criminal tende por abranger, em instância última, uma crítica da escolha política de um Estado. De outro ponto, ela funciona em conjunto com outras duas ciências, intrínsecas ao fenômeno criminal e que a ela se ligam umbilicalmente: a Criminologia e o Direito Penal (dogmática jurídico-penal). Cabe à Criminologia, ciência crítica por excelência, o estudo do fenômeno criminal, de forma empírica, com a verificação das causas que levam o Estado a incriminar determinados comportamentos como delituosos, os agentes a praticarem tais condutas e as razões determinantes, estimulantes ou ensejadoras da prática delituosa, ao ponto que cabe à dogmática jurídico-penal o estudo, intelecção, interpretação, sistematização e ordenação das normas penais vigentes, que foram confeccionadas a partir das orientações e sistemas propostos pela Política Criminal.

2.1.1 Do Minimalismo Penal, do Abolicionismo e do Punitivismo. O Movimento da Lei e da Ordem e Teoria das Janelas Quebradas

Os anseios políticos, como se pode notar claramente, irão definir as atitudes tomadas pelas instâncias oficiais de controle, sendo certo que, por existirem diversos direcionamentos políticos, a depender de cada Estado, haverá diferenciados direitos criminais. Ciente dessa diversidade de ordenamentos jurídicos, é possível agrupar as orientações de política criminal em 3 (três) grandes grupos, assim sintetizados6: (a) minimalismo penal, (b) abolicionismo e (c) punitivismo. Os minimalistas pugnam que, para se garantir os bens mais castos à sociedade, é imprescindível a atuação do Direito Penal. O exercício da sanção estatal, entretanto, deve ser limitado ao máximo, com respeito e atenção a todas as garantias previstas em nosso ordenamento, servindo para, “antes que prevenir ou legitimar, condicionar/vincular o jus puniendi, deslegitimando o exercício absoluto da potestade punitiva”7.

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FIGUEIREDO DIAS Apud BIANCHINI, Alice, op. cit., [Política Criminal ...], p. 3. BIANCHINI, Alice. Os grandes movimentos de Política criminal na atualidade: movimento de lei e ordem, minimalismo penal e abolicionismo. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG, passim. 7 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 74. 6

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Tais amarras ao jus puniendi, consubstanciadas no amplo rol de direitos e garantias previstas no ordenamento jurídico, são imprescindíveis para garantir a “imunidade dos cidadãos contra as intervenções punitivas infundadas ou arbitrárias”8. Daí se verifica que é imprescindível que o Direito Penal mínimo seja garantista, ou seja, que sejam tutelados valores e direitos fundamentais, ainda que estes se mostrem contrários aos interesses da maioria, para vedar arbitrariedades estatais, definir regras iguais para todos, assegurar a dignidade da pessoa humana e garantir a liberdade pelo respeito à verdade dos cidadãos9. Por ser condicionado e limitado, eventual discricionariedade do Direito Penal mínimo volta-se para a excluir qualquer tipo de intervenção penal que não seja devidamente motivada por argumentos cognitivos seguros10. O abolicionismo, por sua vez, pugna pela exclusão total e definitiva do Direito Penal, em razão de sua total ineficácia e arbitrariedade, com a retirada de suas punições exageradas e desarrazoadas. Como explicitam Hassemer e Muñoz Conde11, “se o Direito penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício.” Os vícios do sistema criminal, constatados na alta cifra negra da criminalidade12 nos diversos ordenamentos do globo, na arbitrariedade na captura de prováveis criminosos e na fragmentariedade de sua punição, voltada, quase exclusivamente, às camadas mais pobres da sociedade, exercendo um papel excludente e elitista, evidenciam, para os abolicionistas, a sua desnecessidade. Por último, existem os movimentos punitivistas, também denominados de políticas criminais autoritárias, os quais pretendem uma maior e mais constante atuação do Direito Penal, que possuiria função de transformação da realidade social. Assume-se como verdadeira a idéia de que o Direito Criminal é a grande resposta para todos os problemas criminais, como agente modificador do status quo. 8

FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 77. QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 76. 10 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 83. 11 Apud BIANCHINI, Alice, op. cit. [Os grandes movimentos ...], p. 25. 12 A cifra negra da criminalidade é, em essência, o montante de delitos que, embora cometidos, não são capturados e punidos pelo sistema criminal, pois, em alguma fase da persecução (delegacia, ministério público, judiciário) foi impedida a entrada do provável criminoso na competência dessas instâncias oficiais de controle. A cifra negra da criminalidade é, em essência, o montante de delitos que, embora cometidos, não são capturados e punidos pelo sistema criminal, pois, em alguma fase da persecução (delegacia, ministério público, judiciário) foi impedida a entrada do provável criminoso na competência dessas instâncias oficiais de controle. 9

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A certeza do Direito Penal, oriundo dessa política punitivista, reside em que nenhum culpado fique impune13. Pleiteia a máxima efetividade do controle social, sendo máxima, também, a imunidade a comportamentos ilícitos, mas que são funcionais para o sistema. Por possuir tais objetivos, esse movimento também é denominado Eficientismo ou Direito Penal Máximo. Possui contornos antigarantistas, eis que, para dar a máxima eficácia ao sistema criminal, o punitivismo desvaloriza, em maior ou menor intensidade, o princípio da legalidade estrita ou um de seus corolários. Há a introdução de diversos conceitos morais, por critérios puramente potestativos14, que incham de subjetivismo as figuras criminais, com pretensão de maiores e mais numerosas punições15. Por originar-se de uma concepção etiológica do crime, o movimento punitivista está restrito à verificação e punição das causas da criminalidade. E, em razão dessa limitação conceitual, atua apenas para combater as prováveis origens do delito, mais precisamente os agentes que o cometem, desconsiderando outros fatores intrínsecos ao fenômeno criminal, como, por exemplo, a própria definição das condutas delituosas. Segundo Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini16, sete grupos punitivistas ganham grande destaque na atualidade, sendo os primeiros quatro essencialmente retribucionistas e os três últimos preponderamente prevencionistas. Exemplo que já se tornou clássico do modelo punitivista de política criminal, que se situa no subgrupo “Direito penal como instrumento de dominação e de opressão” e que é intrinsecamente ligado ao Direito Penal do Inimigo, é o Movimento da Lei e da Ordem (law and order), oriundo dos Estados Unidos da América do Norte, na década de 7017. Segundo Alberto Silva Franco18, o Movimento da Lei e da Ordem concebe o crime “como o lado patológico do convívio social, a criminalidade como uma doença

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FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 84. FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 36. 15 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 35. 16 Esses são os grupos punitivistas: a) Direito penal como instrumento de dominação ou opressão; b) Direito penal como instrumento de contrapoder; c) Direito penal como instrumento de reforço das funções estatais; d) Direito penal como instrumento de tutela de interesses de alguns seguimentos internacionais; e) Direito penal como instrumento promocional de específicos bens jurídicos; f) Direito penal como instrumento de estabilização da norma; g) Direito penal como instrumento de segurança contra os riscos da sociedade moderna (pós industrial). (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. “Direito penal” do inimigo e os inimigos do direito penal. Revista Ultima Ratio. Leonardo Sica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ano 1, p. 329-356. Material da 2ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG). 17 ALMEIDA, Gervan de Carvalho. Modernos movimentos de Política Criminal e seus reflexos na legislação brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 97. 18 Apud BIANCHINI, Alice, op. cit. [Os grandes movimentos ...], p. 21. Grifos do autor. 14

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infecciosa e o criminoso como um ser daninho”. A sociedade é dividida entre entre pessoas sadias, não desviantes, e pessoas doentes, que praticam atos delituosos. Com penas extremamente rígidas em regime fechado, aplicações desproporcionais – como a do three strikes and you’re out19 –, desprezo de direitos e garantias materiais e adjetivas de Direito, e utilização de práticas não-ortodoxas, demonstrativas do desdém ao princípio da dignidade da pessoa humana, o Direito Penal que decorre dessa política criminal é, sobretudo, simbólico20, pois apenas busca satisfazer a opinião pública, ainda quando venha a reduzir ou anular direitos fundamentais dos indivíduos que compõe essa sociedade. Aliás, nisso residiu o grande sucesso do Movimento da Lei e da Ordem, pois ele foi inteiramente amparado pelas políticas implementadas em Nova Iorque, baseadas na Tolerância Zero, e que, embaladas por mensagens errôneas e descontextualizadas da mídia, propagaram-se por aquele país. Para entender essa afirmação, é imprescindível um breve retrocesso histórico. No último terço do século passado, diversos países industrializados verificaram um incremento nos índices de criminalidade. Isso motivou a procura de novas fórmulas para a diminuição desses níveis, pelo que as várias nações industrializadas traçaram diversificadas estratégias21. Nos Estados Unidos da America do Norte, houve uma redução genérica dos níveis de criminalidade no início da década de 90. Das diversas e variadas iniciativas realizadas para a redução da criminalidade, a política de recrudescimento de Nova Iorque, “Tolerância Zero”, baseada na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows Theory), teve grande aceitação nos veículos de imprensa22, a qual postula que o aumento da criminalidade e a realização de “graves patologias criminais” decorreriam da impunidade contra os pequenos distúrbios cotidianos, pelo que seria imprescindível uma maior e mais repressiva atuação contra delitos menores. Entretanto, cabe frisar que a diminuição dos índices de criminalidade verificada em Nova Iorque e que foi unilateralmente justificada pela Tolerância Zero, por políticos da situação, poderia ser explicada por outros fatores, não necessariamente a uma atuação mais

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Esta lei, inicialmente originária do Estado da Califórnia, ficou conhecida pelo nome pejorativo acima, eis que a terceira condenação por crime doloso, de qualquer natureza, determinaria a aplicação de uma pena perpétua (LOTKE, Eric. “A dignidade humana e o sistema de justiça criminal nos EUA”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, trad. de Ana Sofia Schmidt de Oliveira, São Paulo, n. 24, p. 39-50, 1998). 20 ALMEIDA, Gervan de Carvalho, op. cit., p. 98. 21 BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 323. 22 BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 324.

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incisiva contra contravenções, já que, além de aumentarem as taxas de homicídio, não foi fator único e decisivo23.

Efetivamente, se demonstrou que as políticas de tolerância zero, que foram implementadas em muitas cidades americanas, seguindo o modelo da de Nova Iorque a princípios dos noventa, ainda que momentaneamente pareciam reduzir um pouco as cifras de criminalidade geradora de insegurança cidadã (furtos, roubos, danos, etc.), analisadas a mais longo prazo não fizeram baixar de forma relevante o número de delitos, nem sequer as dos delitos menores, e sim, ao contrário, provocaram um aumento impressionante do gasto policial, o que, obviamente, conduz também a um aumento da atividade judicial e do número de condenações, com o conseqüente aumento da população penitenciária, já que a maioria destes delinqüentes são condenados a penas de prisão. Inclusive este aumento da dotação policial provocou também o aumento das queixas de muitos setores cidadãos contra a violência e excessos policiais, motivadas pelas reações desproporcionadas com que às vezes a Polícia tem atuado em casos nos que não havia perigo de comissão de um delito.24

Essa teoria foi plenamente aceita, com poucas discussões, pois se mostrava muito interessante para as autoridades. Sob uma idéia equivocada de oferecer segurança, poderiam os detentores do poder justificar uma maior intervenção e controle do cotidiano dos cidadãos. O bombardeio midiático e a venda de uma falsa idéia de que a política de Tolerância Zero tinha alguma base criminológica bastou para sua tentacularização para outras partes do mundo25, especialmente par uma Europa abatida, vez por outra, pelo que se convencionou simplificar em “atos terroristas”. E, dessa busca mundial para combater essa nova forma de criminalidade, que não se limita a um ordenamento jurídico e não se sente intimidada pelo tradicional Direito Penal e suas funções da pena, outro fruto de se conviver em uma sociedade de risco, advêm novos conceitos criminais, como o do Direito Penal do Inimigo.

2.1.2 O Direito Penal do Risco e a Maximização da Esfera de Ingerência Estatal

A sociedade moderna trouxe grandes adventos para a sociedade. Vive-se melhor e mais que há alguns séculos. Benefícios da ciência ajudam o homem no seu dia-a-dia, diminuindo as dificuldades naturais. Mas, ao lado das enormes benesses tecnológicas, há dificuldades novas que se agregam às preocupações cotidianas.

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COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. “Teoria das Janelas Quebradas: e se a pedra vem de dentro?”. Boletim Ibccrim, v. 11, p. 6-8, out. 2003. 24 MUÑOZ CONDE apud BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 327/328. Grifos do autor. 25 BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 329.

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O avanço cultural e tecnológico implica, de outro lado, a assunção de riscos diários, que são imprescindíveis para essa sociedade moderna. Transportes, energias, alimentos e outras áreas imprescindíveis para o viver do ser humano encontram-se ligadas a situações de risco, que são, paulatinamente, englobadas pelo Direito Penal. O Direito Penal tradicional encontra-se parcialmente defasado. Essa feição conservadora não atua preventivamente, já que sua ação é posterior, somente após a produção do fato danoso. Não é, também, o meio para promover qualquer espécie de intimidação contra a realização de práticas delitivas hodiernas26. Disso se verifica um movimento de expansão na proteção de bens jurídicos, antes impensável, consistente na agregação de novos institutos jurídicos e na alteração daqueles da criminalidade clássica, que não se mostram suficientes para a proteção adequada desses novos bens jurídicos – ao menos em um juízo aprioristico e, de certo modo, falseado. O Direito Penal do Risco é, assim, uma mudança de foco, no modo de entender o Direito Penal e de agir dentro dele, resultado de uma época que já se mostra transformada27. A criação do risco e o seu incremento enquadram-se no centro das reflexões dogmáticas sobre imputabilidade penal28, refletindo uma mudança no próprio Direito Penal, que deve ter papel decisivo, na tarefa de tornar seguro o futuro da sociedade. A expansão do direito, nesta sociedade de risco, pode ser apreendida, como bem expõe Cornelius Prittwitz, nos seguintes caracteres: (i) admissão de novas categorias de bens jurídicos (por exemplo, meio ambiente, mercado de capitais), (ii) adiantamento da fronteira entre comportamentos puníveis e não-puníveis e (iii) redução das exigências para a punição (mudança de paradigmas, como a punição de crimes de perigo abstrato)29. O Direito Penal do Risco acaba por conferir novas conceituações ao antigo Direito Penal, atualizando seus preceitos. Para isso, basta notar os acréscimos doutrinários decorrentes do princípio da confiança, da teoria da imputação objetiva, responsabilidade civil objetiva por danos ambientais e tantos outros que tem, por centro, os riscos inerentes a uma convivência em uma sociedade moderna.

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BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 322/323. PRITTWITZ, Cornelius. “O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 47, mar./abr. 2004, p. 32. 28 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29. 29 PRITTWITZ, Cornelius, op. cit., p. 39. 27

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Mas, frise-se, aceitar o risco como fundamento da sociedade e base motivadora de um novo discurso jurídico-criminal não significa a sua utilização para restringir direitos e garantias fundamentais. Esse é um pressuposto imprescindível para a diferenciação seguinte. Fruto dos movimentos expansionistas do Direito Penal, que objetivam, ao menos aprioristicamente, combater a criminalidade pela intervenção penal, o Direito Penal do Inimigo, que combate o risco de eventuais ofensas a bens jurídicos indeterminados, causados por agentes não-identificados e que não estão submetidos da mesma forma aos regramentos sociais, com a dicotomia da ação das instâncias de controle: contra o cidadão e contra o inimigo. As concepções sobre o Direito Penal do Inimigo derivam-se, ao menos em parte, do Direito Penal do Risco. Aquele é um desvirtuamento deste, que, apesar de ter se originado com o uso de alguns de seus preceitos, se corrompeu de diversas formas, especialmente pela ignorância de princípios penais e pelo acentuado enfoque midiático, no que se refere à criminalidade, o que cultivou, de forma real, a insegurança em relação ao próximo (estranho, desconhecido).

2.1.3 O Direito Penal do Inimigo e a Mudança Hermenêutica: Da Análise-Descritiva à Defesa de sua Inevitabilidade

Em 1985, o doutrinador e professor alemão Günther Jakobs proferiu palestra, no Seminário sobre Direito Penal, em Frankfurt, noticiando a existência de um moderno movimento punitivista. Em tom de advertência, em um nível analítico-descritivo, discorreu acerca da existência do que denominou Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), de forma bastante crítica. A partir da análise de tipos penais específicos, de caráter excepcional, ofereceu uma explicação dogmática30, acentuando o perigo que decorreria da contaminação do Direito Penal do cidadão pelo Direito Penal do Inimigo.31 Naquele momento e até perto da virada do milênio, não houve grandes críticas e discussões no meio acadêmico, permanecendo o Direito Penal do Inimigo uma figura quase

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FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. “O Direito Penal do Inimigo e o Estado Democrático de Direito”. Trad. Júlio Pinheiro Faro Homem de Siqueira e Igor Rodrigues Brito. Panóptica. Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev.2008, p. 105. 31 AMBOS, Kai. “Direito Penal do Inimigo”. Trad. Pablo Rodrigo Alfen. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 12.

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ignorada32, justamente pelo fato de, apesar de descrever o fenômeno, o doutrinador manter-se com certa neutralidade, acentuado que seria um desvio episódico, mas que não desvirtuaria o sistema, quando devidamente afastado pelas garantias postas aos cidadãos. Contudo, em 1999, na Conferência do Milênio em Berlim, o professor alemão abandonou a sua postura crítica e privilegiou, ao lado da exposição do surgimento dessa vertente no ordenamento mundial, a defesa e inevitabilidade do Direito Penal do Inimigo, como uma realidade incontornável e que seria concebível de acordo com o seu entendimento de finalidades da pena33. O Direito Penal do Inimigo tornou-se elemento estrutural de sua teoria do Direito Penal e da pena34. A partir dessa guinada doutrinária, Jakobs35 passa a concebê-lo como “a regulação jurídica da exclusão dos inimigos, a qual se justifica no fato de estes serem atualmente não pessoas, e conceitualmente faz pensar em uma guerra cujo alcance, limitado ou total, depende de tudo aquilo que deles se teme”.

3 O Direito Penal do Cidadão e do Inimigo. A Jurisdicionalização da Não-Pessoa

Ao contrário da ocorrido na primeira oportunidade, quando expôs, de forma apenas descritiva, as reações mundiais a esse novo posicionamento dogmático se intensificaram de forma estrondosa, dando-lhe força e uma aparente legitimidade36. As obras de Günther Jakobs posteriores a 1999 demonstram a sua aceitação conformada a esse último entendimento, com a pretensão de sistematizá-lo, definindo seus pressupostos filosóficos, preceitos jurídicos e fundamentos que seriam determinantes para a utilização dessa nova concepção na moderna sociedade de risco e que justificariam a cisão no Direito Penal, legitimando o exercício imoderado da força contra os inimigos do sistema, o que seria, segundo ele, inevitável.

3.2.1 Inimigos e Cidadãos para o Direito Penal de Jakobs

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GRECO, Luís. “Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 56, set./out. 2005, p. 88. 33 AMBOS, Kai, op. cit., p. 13. 34 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo, op. cit., p. 105. 35 Apud VÍQUEZ A., Karolina. “Direito Penal do Inimigo: quimera dogmática ou modelo orientado para o futuro?” Trad. Júlio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 58/59. 36 GRECO, Luís, op. cit., p. 89.

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Jakobs defende a existência de dois pólos no Direito Criminal moderno, um denominado Direito Penal do Inimigo e, outro, Direito Penal do cidadão. Seriam graficamente representados como duas esferas, que poderiam comunicar-se, e que demonstrariam duas possíveis formas de atuação em face da prática de um crime, a depender do elemento subjetivo envolvido (cidadão ou inimigo). O cidadão possui a sua esfera privada livre do Direito Penal, já que a intervenção do Direito somente poderá ocorrer quando o seu comportamento representar uma perturbação exterior. Há uma otimização de suas liberdades37, com respeito às garantias sistêmicas. O inimigo, ao contrário, representa uma fonte de perigo constante para os bens jurídicos protegidos pelo ordenamento, não se respeitando qualquer esfera privada sua, podendo ser responsabilizado inclusive por seus pensamentos. Otimiza-se a proteção a bens jurídicos38. Asseguram-se todas as garantias do cidadão, pois apenas se almeja reafirmar o valor da norma, como imperativo superior às violações individuais eventualmente cometidas, já que o cidadão, em sua atuação racional, oferece uma segurança cognitiva para a sociedade e seus consortes. Para o inimigo, ser irracional e perigoso, contrário ao próprio ordenamento, pretende-se afastar um mal grave e perturbador do status quo, que possui força para minar as fundações do Estado Democrático de Direito. O Estado “pode proceder de dois modos com os delinqüentes: pode vê-los como pessoas que delinqüem, pessoas que tenham cometido um erro, ou indivíduos que, em face da gravidade de suas condutas, devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação”39 Esse tipo específico de criminoso, que se desvia por princípio, deve ter sua ação cerceada pelo Estado, por todas as formas, eis que este deve proteger a sua própria existência e a manutenção do ordenamento jurídico, estando o Estado legitimado a negar a personalidade normativa de um indíviduo, quando este se caracterizasse como inimigo, em uma construção irreal. Em uma prevenção específica positiva, ele deveria ser neutralizado, assim como eventuais pessoas propensas a tais atividades, para, assim, proteger a incolumidade estatal e resguardar seu ordenamento jurídico contra eventuais agentes que, por sua condição, situamse fora das regras gerais a todos aplicadas.

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GRECO, Luís, op. cit., p. 82. GRECO, Luís, op. cit., p. 82. 39 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 2. ed. Trad. André Luís Gallegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 42. 38

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A defesa da sociedade ganha grande relevo, admitindo-se, inclusive, um desproporcional “dano colateral”40. As vulnerações aos direitos humanos, se realizadas por inimigos e em âmbito plural, permitem a tomada de qualquer atitude que se mostre necessária para assegurar a incolumidade da coletividade.41 Por se tratar de um fenômeno comum aos países ocidentais, retratado a partir de normas germânicas42, Jakobs conclui no sentido de que “quem não quer privar o Direito penal do cidadão de suas qualidades vinculadas à noção de Estado de Direito [...] deveria chamar de outra forma aquilo que tem que ser feito contra os terroristas, se não se quer sucumbir”.43 Esse tratamento desigual seria uma realidade incontornável, cabendo aos juristas o reconhecimento de sua existência e o dever de interpretá-lo de forma adequada, sem, contudo, desmerecê-lo. Até porque “um Direito penal do inimigo implica, pelo menos, um comportamento desenvolvido com base em regras, ao invés de uma conduta espontânea e impulsiva”44.

3.2.2 O Funcionalismo Sistêmico Radical como Substrato Teórico Imprescindível

O pressuposto das afirmações de Jakobs, que permeiam suas formulações sobre o inimigo, é o de que a identidade normativa da sociedade deve ser mantida45. Por seu funcionalismo sistêmico radical, o “Direito Penal (como subsistema do sistema social) tem a função primordial de proteger a norma e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais”.46 Os contatos e interações sociais geram certas expectativas para os consortes, as quais são imprescindíveis para a subsistência da ordem social, já que, se desestabilizadas, surgem conflitos entre os conviventes. Portanto, essas expectativas devem ser normatizadas e protegidas pelo Direito Criminal, para assegurar a confiança e fidelidade das interações sistêmicas.47

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O dano colateral seria o “homicídio de seres humanos inocentes”, quando se busca “destruir as fontes dos terroristas e dominá-los, ou, melhor, matá-los diretamente” (JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 41). 41 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 47. 42 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 40/41. 43 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 37. 44 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 22. Grifos do autor. 45 GRECO, Luís, op. cit., p. 95. 46 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 15. 47 QUEIROZ, Paulo de Souza, op. cit., p. 47.

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Nesta concepção, a pena é um significante, que poderá ser compreendida (a) como a desautorização da norma, que reafirma a vigência perdida após a prática delituosa – em um interacionismo simbólico entre fato e coação penal48 –; e, de outra ponta, (b) como a produtora de alteração física, pois há efetiva e segura prevenção especial durante o lapso da preservação da liberdade por uma pena restritiva49. A função da pena, quando aplicada ao cidadão, seria restabelecer o estado normal de coisas, que foi abalado pela prática delituosa, reforçando “a confiança no Direito Penal”50. O Direito Penal não protege bens jurídicos, ao menos diretamente, já que, com a realização do tipo penal pelo desviante, o bem jurídico não poderia mais ser protegido. Em face do cidadão, a norma penal, ao cominar sanção ao desviante, reafirma a sua validade, reimprimindo, na sociedade, o seu valor próprio, sendo irrelevante a prática dessa conduta, pois o ordenamento jurídico segue sem alterações. Acentua-se o seu caráter preventivo geral positivo, que seria o grande fundamento que imprimiria validade ao sistema e ao jus puniendi estatal. De outro ponto, quando aplicada em face de um inimigo, a sanção irá possuir significado diverso. Ela será, de fato, um instrumento de segurança contra um indivíduo perigoso, em que se busca a eliminação de um perigo, com o afastamento, pelo maior tempo possível51, dessa afronta à existência do ordenamento jurídico.

3.2.3 Conceituação do Inimigo e a sua Eliminação na Defesa do Ordenamento

O inimigo é aquele que, por não atender às normas e aos anseios sociais, não conviveria em um Estado de Direito. A condução de sua vida direciona-se, de forma permanente, à destruição do ordenamento jurídico posto, pelo que a atuação do Direito Penal e Processual Penal, contra ele, teria outros caracteres, já que as garantias e direitos fundamentais, disponíveis a todos os cidadãos, não lhe seriam extensíveis. Ele é uma não-pessoa, já que o Direito apenas consideraria pessoa o indivíduo que oferecesse uma segurança cognitiva de seu comportamento. Quem não oferece esse segurança “não só não deve esperar ser tratado como pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como pessoa (pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas).”52 48

JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 22. JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 22/34. 50 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 15. 51 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 16. 52 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 15. 49

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Caso se verifique que o agente se afastou decididamente, de forma permanente, do Direito vigente, não oferecendo qualquer garantia cognitiva de que irá se comportar conforme a norma, ele deve ser considerado inimigo53. Nesse ponto, afirma que:

Con toda certeza será difícil determinar quiénes son exactamente los sujetos que deben incluirse en esta categoría, pero no es imposible: quien se ha convertido a si mismo en una parte de estructuras criminales solidificadas, diluye la esperanza de que podrá encontrase un modus vivendi común a pesar de algunos hechos criminales aislados, hasta convertirla en una mera ilusión, es decir, precisamente, en una “expectativa contrafáctica”.54

O legislador alemão já teria, em alguns delitos específicos, adotado, de forma aberta, uma posição de luta, de guerra, contra certas pessoas55, quais sejam, os criminosos econômicos, delinqüentes organizados, autores de delitos sexuais, crimes graves e terroristas. Das leituras dos escritos de Jakobs, verifica-se que os terroristas seriam o inimigo principal. As ações dos terroristas denotam a busca de instaurar um estado de natureza, pelo não há respeito ao estado de direito consolidado. O terrorista rechaça, por princípio, a legitimidade do ordenamento jurídico vigente, pois busca, de forma duradora e incessante, a sua destruição, fazendo instaurar um estado de natureza.56 E a justificação de previsões tão abertas para a neutralização desses inimigos, que não se sentem compelidos, ao menos inicialmente, pelas normas tradicionais de Direito Penal, dá azo a tratamentos antigarantistas e extremos. O Direito Penal do Inimigo prevê, como conseqüência necessária e indisponível, a alteração de alguns postulados clássicos do Direito Penal. A eliminação de um perigo, que é o próprio inimigo e suas práticas delitivas, autoriza uma intervenção penal antecipada, com a punição da preparação ou, inclusive, de estados anímicos de vontade, que sequer desprenderam-se da fase da cogitatio57. Deve ser punido não com pena, mas com um remédio, uma medida que ofereça segurança aos demais consortes, no sentido de que ele está privado de sua liberdade e, assim,

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JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 35. JAKOBS, Günther. “Derecho Penal del enemigo? Un estúdio acerca de los presupuestos de juridicidad”. Panóptica, Vitória, ano 2, n. 11, nov./fev. 2008, p. 205. 55 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 35. 56 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 36. 57 O iter criminis é o caminho necessário para a perfecção do crime. Pode ser dividido em: a) cogitação – preparação psicológica para a realização do delito; b) atos preparatórios – obtenção de meios, instrumentos e verificação de momento ideal para a prática delituosa; c) atos executórios – início de condutas que afetam o bem jurídico tutelado pela norma penal; d) consumação – preenchimento de todos os elementos típicos do delito; e, por fim, e) exaurimento – efeitos eventualmente decorrentes da prática delituosa. O Direito Penal pune, em regra, apenas as condutas quando se encontrem, pelo menos, na fase de execução do delito. 54

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não oferece quaisquer riscos à comunidade. Limita-se, assim, tanto a liberdade de pensar, quanto a de agir.58 Essa punição deverá ter, essencialmente, caráter prospectivo, por combater perigos que poderão advir da conduta do agente, não atos já praticados59, em verdadeiro exercício de previsão. No âmbito adjetivo, Jakobs defende que seriam possíveis diversas restrições, em virtude, inclusive, do que seriam comportamentos “típicos” de um inimigo no processo penal, que seria aquele que “com seus instintos e medos põe em perigo a tramitação ordenada do processo”, ao contrário da pessoa em Direito, que “nem oculta provas nem foge”60. Suas garantias processuais serão drasticamente reduzidas, para garantir maior efetividade dos prováveis provimentos jurisdicionais. A prisão preventiva, de exceção, tornase regra. Outros procedimentos invasivos também são admitidos, pois os inimigos, “imputados, na medida em que se intervém em seu âmbito, são excluídos de seu direito: o Estado elimina direitos de modo juridicamente ordenado”.61 E, da mesma forma que ocorre no direito substantivo, as regras mais extremadas dirigem-se contra os delitos de terrorismo, em que se confundem a posição de prisioneiros delinqüentes ou de prisioneiros de guerra. Não haveria, assim, limites para a persecução contra esse desviante, já que o primordial seria a proteção da comunidade.

4 A Inconcebível Despersonalização da Pessoa e a Total Inaplicabilidade do Direito Penal do Inimigo

O substrato teórico do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs reside no fato de que, atualmente, o Direito Penal encontra-se em uma situação conflitante, em que medidas penais exageradas estão sendo tomadas frente a novas práticas delituosas, que não são intimidadas pelos preceitos criminais tradicionais. Na busca por uma maior efetividade na repressão a essas condutas, que afetam todo o ordenamento jurídico, pretende-se dividir a atuação do sistema criminal, uma voltada para o cidadão, assegurando-se todos os seus direitos fundamentais, e outra direcionada ao inimigo, neutralizando-o, para garantir a segurança dos demais consortes.

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PRITTWITZ, Cornelius, op. cit., p. 41/42. GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice, op. cit., p. 16. 60 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 40. 61 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel, op. cit., p. 40. 59

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Essa formulação, como se verá neste capítulo, deve ser totalmente rechaçada. Desde a definição de inimigo, que guarda um alto teor preconceituoso e elitista, até as razões de Direito que autorizariam a não-caracterização de sua personalidade jurídica, o Direito Penal do Inimigo mostra-se, simplesmente, como uma política criminal punitivista negadora do preceito principal de nosso ordenamento, que é o substrato de nossa Carta Magna – a dignidade da pessoa humana. Ademais, a falha das instâncias de controle, que atacam um problema sóciocultural com o aparato criminal, que não é apto para tais fins, e o evidente retrocesso histórico, que nega a própria democracia, são sintomas claros de que devemos repudiar, de forma peremptória, esse Direito Penal do Inimigo, que de Direito quase nada é.

4.1 As Falhas das Instâncias Oficias de Controle Concretizada na Definição do Inimigo

Ao vislumbrar a teoria que dá suporte ao Direito Penal do Inimigo, resta evidente um ponto nevrálgico para o seu funcionamento e que será seu ponto mais frágil – a definição do inimigo – e que, por sua imprecisão, não será justificativa suficiente para o afastamento irreversível do sistema criminal e de suas garantias. O Direito Penal não é algo ontológico; mas, sim, algo criado e que guarda uma função no Estado. Como afirma Nilo Batista, o “direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira.”62 Estatísticas comprovam que uma política criminal eficientista, nos moldes punitivistas, não reduz os índices de criminalidade. A busca insana pela punição não diminuiu os índices de criminalidade do Estado norte-americano em comparação com outros países, causando, ao contrário, uma resposta extremamente negativa de aumento de encarcerados63, ligado ao assombroso gasto público e a criação de um mercado relacionado ao gerenciamento de estabelecimentos prisionais. Por sua vez, um sistema criminal que possui como suporte primordial a etiquetação de estrangeiros, discriminando os originários de países supostamente

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BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2000, p. 19. Em uma fração de tempo de pouco superior a 20 anos (década de 80 até 1996), o número de prisoneiros sentenciados quase quadruplicou. Apenas em 1996, 12 (doze) milhões de pessoas adentraram em prisões e cadeias norte-americanas. Estima-se que, por ano, cada preso custe a esse Estado U$22,000 (LOTKE, Eric, op. cit., p. 39-50). 63

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subdesenvolvidos, alcunhados de terroristas, tende, apenas, a incrementar o ódio e atitudes ofensivas às nações supostamente desenvolvidas. Essa face não é um desvirtuamento próprio daquele Estado, mas uma característica dos ordenamentos modernos. O sistema penal foi moldado para seguir determinados parâmetros e, se não for freado em sua potestividade, pode degenerar-se de forma irreversível. A Criminologia Crítica, que tece contundentes críticas ao funcionamento do sistema criminal64, especialmente pelas teorias sociológicas deslegitimadoras da intervenção penal abusiva, deixa claro que a atuação das instâncias oficiais de controle é, em grande medida, uma política de exclusão de certos grupos para o incremento de outros. A busca pelas causas da criminalidade, para alcançar o fim do crime, operada pelas políticas criminais punitivistas e, dessa forma, pelo Direito Penal do Inimigo, é equivocada e desmedida, já que o delito é, em seu âmago, uma expressão de uma conduta social esperada, porém indesejada. A teoria do labeling approuch, ou do etiquetamento social, demonstrou que a definição do criminoso, em si, já é um processo excludente e que desse processo, não da prática delituosa, há a definição da pessoa como criminosa. O criminoso não é aquele que pratica crimes; mas, sim, aquele definido e capturado pelo sistema65. A mesma imprecisão se daria na definição do inimigo. A quem caberia dizer se tal ato foi praticado por um cidadão, que pode retornar à sociedade, ou por um inimigo, afrontoso e contrário às normas estatuídas? O subjetivismo inerente já assinala a falha na utilização desse critério. A definição de inimigo, essencial para o Direito Penal preconizado por Jakobs, teria esse mesmo caráter personificado em populações excluídas, banidas dos avanços culturais. A escolha de quais crimes justificariam uma atuação incisiva, como se vê nos escritos do doutrinador alemão, é um amplo campo de possibilidades, abrindo, de forma absurda, as possíveis inclusões de pessoas, “socialmente” indesejáveis, no conceito de inimigo.

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Sobre a Criminologia Crítica e as críticas às teorias ontológicas da criminalidade, ver BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 65 Com suporte no interacionismo simbólico, pelo qual a realidade humana é o reflexo das interpretações coletivas dos fatos, o labeling approuch decorre de três constatações irretorquíveis, quais sejam, (a) a cifra oculta da criminalidade, (b) a relatividade do delito e (c) a impunidade nos crimes de colarinho branco e assemelhados.

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Há muitas outras regras do Direito penal que permitem apreciar que naqueles casos nos quais a expectativa de um comportamento pessoal é defraudada de maneira duradoura, diminiu a disposição em tratar o delinqüente como pessoa. Assim, por exemplo, o legislador (por permanecer primeiro no âmbito do Direito material) está passando a uma legislação – denominada abertamente deste modo – de luta, por exemplo, no âmbito da criminalidade econômica, do terrorismo, da criminalidade organizada, no caso de
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