O Direito Penal do Vizinho

July 24, 2017 | Autor: José Santiago | Categoria: Direito Penal
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Direito Penal do Vizinho1 José de Assis Santiago Neto2 INTERTEXTO Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei

Agora estão me levando

1

Artigo publicado originalmente no site http://emporiododireito.com.br/direito-penal-do-vizinho-porjose-de-assis-santiago-neto/ 2 Mestre e Doutorando em Direito Processual pela PUC/MG, Professor de Direito Penal e Processual Penal da PUC/MG (Campus Betim), Advogado Criminalista – sócio da Santiago & Associados Advocacia, Diretor do Instituto de Ciências Penais (ICP), Coordenador adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Minas Gerais.

Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo. Bertolt Brecht

O ser humano não pode se isolar da humanidade, não pode ser visto isolado como um ente isolado. Rosemiro Pereira Leal3 inicia sua Teoria Geral do

Processo ensinando

que

o homem isolado é uma fantasia

e,

consequentemente, a sociedade e o Direito são criações humanas. O direito não é um produto da natureza ou do cosmos infalível, é criação humana, “produto racional e dinâmico de controle sociopolítico-econômico em vários graus de elaboração humano-técnica, à medida que os grupos sociais surgem, organizando-se a si mesmos por regramentos técnico-jurídicos convenientes”4. Desse modo, o direito é construído pela própria humanidade, produzido pela atividade humana, com escopo de elaborar estruturas adequadas à regular os interesses prevalentes em cada época, visando a criação, manutenção, extinção, manutenção ou imposição de ideológicas 5. O Direito não é fruto de um ente neutro, criado nas mentes mais ingênuas, com nome de “legislador”, é comum ouvirmos frases do tipo “o legislador acha”, “o legislador quer”. O tal “legislador” não acha e nem quer nada, simplesmente não existe! É um mito (mal)criado para ocultar a existência de vontades e interesses por trás da lei criada por seres humanos cada qual com seu interesse individual. Apenas um apego cego ao positivismo jurídico poderia levar à crença cega na norma, creditando que o “legislador possuísse o “inatismo de uma vontade inabalável de dar ao seu povo o melhor de si”6.

3

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 11ª edição. Rio de Janeiro: 2012. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 11ª edição. Rio de Janeiro: 2012. p. 1-2. 5 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 11ª edição. Rio de Janeiro: 2012. p. 2. 6 LEAL, Rosemiro Pereira. A Teoria Neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 61. 4

Com o Direito Penal isso não é diferente, trata-se de criação humana, cujo fim último deve(ria) ser a tutela dos bens jurídicos fundamentais à existência da própria sociedade como criação humana. Porém, não podemos ser ingênuos e achar que o Direito Penal tem suas normas geradas no seio de um sujeito que sequer existe, ele o tal “legislador”... O Direito Penal e Processual Brasileiro não é (e nem poderia ser) diferente dos referidos interesses. Temos um Código Penal e Processual Penal gestados no seio da ditadura Vargas, durante o período denominado Estado Novo, onde a pretensão e o interesse vigente à época era a manutenção do Estado Ditatorial vigente no País. Nem mesmo a reforma da parte geral, operada em 1984 foi suficiente para alterar os objetivos da legislação penal brasileira, frise-se que realizada durante um período de transição, mas ainda antes dos ares democráticos que somente vieram com a Constituição de 5 de outubro de 1988. A leitura da exposição de motivos do Código de Processo Penal nos mostra o verdadeiro desejo daqueles que o fizeram que, sem máscaras afirmam: “As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade”. Vê-se, pois, que o objetivo daqueles que criaram a legislação penal brasileira na década de 1940 era o de combate a um inimigo sempre comum quando se trata de Direito Penal, a criminalidade que habita o imaginário popular. Após vivermos o período negro da ditadura militar (1964-1984), o Brasil passou por um período de reconstituição democrática, estabelecendo um extenso rol de Direitos e Garantias Fundamentais, sendo a primeira Constituição pátria a elencar tais direitos no inicio do texto constitucional, o que denota a importância dada aos direitos fundamentais na Carta de 1988 7. Tal rol extenso tem por escopo assegurar direitos e garantias mínimas ao indivíduo frente ao poder do Estado. Dentre tais garantias e direitos elencados 7

CARVALHO, Kildare. Direito Constitucional. 13ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 587.

encontram-se várias que possuem nítida relação com o Direito e o Processo Penal. Vê-se, pois, que o sistema punitivo sofre de cíclicas épocas de maior liberdade seguidas por épocas de maior rigor e punições mais duras. É o que se vê no atual estágio brasileiro. O inimigo é sempre o mesmo, como vimos na passagem citada da exposição de motivos do Código de Processo Penal, uma suposta criminalidade, também criação da própria humanidade, eis que decorrente do cometimento, em maior ou menor proporção de condutas tipificadas por leis penais criadas por seres humanos segundo seus próprios interesses e representando os interesses de um grupo social. Já se falou que no Brasil havia um técnico de futebol a cada esquina, hoje temos um penalista em cada mesa de bar. E esse fato nada tem em relação ao assustador número de faculdades de Direito existentes, mas ao fato de que todos se sentem habilitados a dar seus palpites sobre segurança pública e Direito Penal. Tais vozes clamam por um Direito Penal mais rígido, com novas tipificações, majoração de penas e a construção de um sistema ainda mais rígido, ainda que para isso se tenha que abrir mão de garantias fundamentais. Afinal, essa geração não viveu o período ditatorial e, por isso, não entendeu o significado dos direitos e garantias previstos na Constituição. Também não se percebe que o Direito Penal é seletivo, atuando de forma mais duras diante daqueles que mais sofrem com a ausência do Estado. “Os órgãos do sistema penal exercem seu poder militarizador e verticalizadordisciplinar, que dizer, seu poder configurador, sobre os setores mais carentes da população e sobre alguns dissidentes (ou ‘diferentes’) mais incômodos ou significativos”8. Ou seja, qualquer recrudescimento do sistema punitivo atingirá em maior escala aqueles que menos podem se defender da atuação do sistema punitivo. Segundo dados levantados pelo Instituto Avante Brasil9, em 8

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revam, 2001. p. 23-24. 9 https://s3-sa-east1.amazonaws.com/staticsp.atualidadesdodireito.com.br/iab/files/2014/01/LEVANTAMENTO-SISTEMAPENITENCIA%CC%81RIO-2012.pdf

2012, o Sistema Carcerário Brasileiro possuía mais da metade de suas vítimas entre homens jovens (18 a 29 anos), cuja destacada maioria possuí níveis mínimos de escolaridade (ensino fundamental incompleto). Isso sem falar na possibilidade de exclusão da punibilidade pelo pagamento do tributo nos crimes tributários enquanto nos crimes patrimoniais sem violência isso não é permitido, afinal patrimonializados cometem crimes tributários, pobres furtam... Não podemos esquecer a criminalização da vadiagem como contravenção penal (art. 59, da Lei de Contravenções Penais). Esse clamor pelo Direito Penal, por penas mais duras encontra um limite, o próprio sujeito que o reclama. O que queremos dizer é, pedem um direito penal mais duro apenas para o outro. Afinal, as mesmas pessoas que clamam por tal direito penal não se vêm como vítimas do sistema punitivo, mas apenas como vítima do outro, aquele que insistem em etiquetar como “bandido”. É sempre o outro, o “bandido”, nunca “eu” ou “algum parente meu”. Não se vêm como clientes do sistema punitivo. É comum ver frases como “e se a vítima fosse você ou seu filho”, e se “sua filha fosse estuprada”. Não vêm que a frase poderia ser “e se você fosse o réu?” ou “e se seu filho fosse acusado de um crime”. O “se” comporta os dois lados, todos podemos ser vítimas de crime, mas os cometemos a todo momento, apenas não somos descobertos porque não estamos entre os “eleitos” pelo sistema penal. Só querem Direito Penal para o outro, para o vizinho. Daí o Direito Penal do Vizinho. Trata-se de um sistema punitivo sempre mais duro, a serviço de combater um inimigo imaginário, “ele, o bandido”. Daí frases como “bandido bom é bandido morto”, lógico, o “bandido” é sempre o outro, nunca “eu” ou “um dos meus”. Afinal, quando o direito penal se volta contra mim eu quero um direito penal brando, com todas as garantias constitucionais, aí o Direito Penal, que para o outro era brando e merecia ser endurecido e com menos garantias, passa a ser pesado demais para recair sobre meus ombros. Ora, se queremos Direito Penal para o outro, temos que primeiro lembrar que nós também podemos ser atingidos por ele. E, se por ventura isso ocorrer, qual Direito Penal vamos querer, um Direito Penal do inimigo ou um

Direito Penal democrático? Se queremos um Direito Penal Democrático para nós, melhor assegurá-lo ao “outro”. O Direito Penal não é apenas para o “vizinho”, ele também pode atingir nossa casa, ninguém quer que isso aconteça, mas, se acontecer, que tenhamos as garantias constitucionais. Em momento que a Comissão de (in)Constituição e (in)justiça da Câmara dos Deputados aprovou como sendo constitucional uma Proposta de Emenda Constitucional que visa reduzir a menoridade penal; onde se clama por maiores penas, e regimes mais rigorosos de cumprimento das mesmas; onde o Projeto de Novo Código Penal, ao invés de reduzir, amplia o número de condutas proibidas, entre outras reformas que visam maior atuação penal, vale o alerta de que o Direito Penal deve(ria) servir para todos e, se assim o fosse atingir a todos igualmente. O ramo do Direito que deveria ser a última ratio do sistema, só sendo utilizado para os casos mais graves, vem sendo chamado como primeiro instrumento do Estado. Não percebemos que o espaço que é ocupado pelo Direito Penal exclui o espaço que era ocupado pela liberdade, quanto mais gordo o Direito Penal fica, mais delgada fica a liberdade. Chegando ao fim desse ensaio, vale lembrar que aqueles que fazem tais leis penais, agem sob interesses próprios, usando do discurso punitivo para angariar votos inclusive. Mas os que clamam por mais Direito Penal, deve(riam) pensar os dois lados do “se”, se colocando não só no papel de vítimas do crime, mas no papel de agentes submetidos ao poder do Direito Penal, principalmente porque cometemos mais crimes do que somos vítimas.

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