Manual de Sociologia Jurídica
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Manual de Sociologia Jurídica Felipe Gonçalves Silva e José Rodrigo Rodriguez (organizadores)
2013
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ISBN 978-85-02-19711-4 Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César — São Paulo — SP CEP 05413-909 PABX: (11) 3613 3000 SACJUR: 0800 055 7688 De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30
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Diretor editorial Luiz Roberto Curia Gerente de produção editorial Lígia Alves Assistente editorial Bianca Margarita D. Tavolari Produtora editorial Clarissa Boraschi Maria Arte, diagramação e revisão Know-how Editorial Serviços editoriais Camila Artioli Loureiro Maria Cecília Coutinho Martins Pesquisa iconográfica Marcia Sato Capa IDÉE arte e comunicação Imagens da capa Produção gráfica Marli Rampim Impressão Acabamento
MINAS GERAIS Rua Além Paraíba, 449 – Lagoinha Fone: (31) 3429-8300 – Fax: (31) 3429-8310 – Belo Horizonte PARÁ/AMAPÁ Travessa Apinagés, 186 – Batista Campos Fone: (91) 3222-9034 / 3224-9038 Fax: (91) 3241-0499 – Belém PARANÁ/SANTA CATARINA Rua Conselheiro Laurindo, 2895 – Prado Velho Fone/Fax: (41) 3332-4894 – Curitiba PERNAMBUCO/PARAÍBA/R. G. DO NORTE/ALAGOAS Rua Corredor do Bispo, 185 – Boa Vista Fone: (81) 3421-4246 – Fax: (81) 3421-4510 – Recife RIBEIRÃO PRETO (SÃO PAULO) Av. Francisco Junqueira, 1255 – Centro Fone: (16) 3610-5843 – Fax: (16) 3610-8284 – Ribeirão Preto RIO DE JANEIRO/ESPÍRITO SANTO Rua Visconde de Santa Isabel, 113 a 119 – Vila Isabel Fone: (21) 2577-9494 – Fax: (21) 2577-8867 / 2577-9565 – Rio de Janeiro RIO GRANDE DO SUL Av. A. J. Renner, 231 – Farrapos Fone/Fax: (51) 3371-4001 / 3371-1467 / 3371-1567 – Porto Alegre SÃO PAULO Av. Antártica, 92 – Barra Funda Fone: PABX (11) 3616-3666 – São Paulo 134.440.001.001
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Data de fechamento da edição: 18-1-2013 Dúvidas? Acesse www.saraivajur.com.br
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
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Participam deste projeto
Ana Carolina Chasin
Professora de Sociologia
Jurídica da Universidade São Judas Tadeu. Doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com estágio sanduíche pelo Center for the Study of Law and Society da Universidade da Califórnia – Berkeley, Estados Unidos. Carmen Silvia Fullin
jamento (CEBRAP) e da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Daniela Feriani Doutoranda em Antropologia Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Univer-
Professora titular de So-
ciologia Geral e Jurídica na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), com
sidade Estadual de Campinas (Pagu). Evorah Lusci Cardoso Doutora em Sociologia Jurídica pela Universidade de São Paulo. Pesquisa-
bolsa sanduíche pela Universidade de Ottawa – Ca-
dora do Núcleo de Direito e Democracia do Centro
nadá. Pesquisadora do Núcleo de Antropologia e
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e da
Direito da USP.
Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
Carolina Cutrupi Ferreira Mestre em Direito
Fabiana Luci de Oliveira Professora da Escola
pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação
de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Ja-
Getulio Vargas. Pesquisadora do Núcleo de Direito e
neiro, onde coordena o núcleo de pesquisa do Cen-
Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Plane-
tro de Justiça e Sociedade. Doutora em Ciências
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Sociais pela Universidade Federal de São Carlos,
em Sociologia pela Université de Toulouse II – Le
com pós-doutorado em Ciência Política pela Univer-
Mirail. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre
sidade de São Paulo.
Violência e Administração de Conflitos da UFSCar.
Fabiola Fanti Doutoranda em Ciências Sociais
João Paulo Bachur
pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa-
pela Universidade de São Paulo. Bolsista de pós-
dora do Núcleo de Direito e Democracia do Centro
-doutorado pela Fundação Alexander von Humboldt
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
na Universidade Livre de Berlim.
Felipe Gonçalves Silva Pesquisador do Nú-
José Rodrigo Rodriguez
cleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de
cleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (CEBRAP). Realizou pesqui-
Análise e Planejamento (CEBRAP) e pesquisador
sa de pós-doutorado no Instituto Latino-Americano
permanente da mesma instituição. Editor da Revista
da Universidade Livre de Berlim. Doutor em Filoso-
Direito GV, professor e coordenador de Publicações
fia pela Universidade Estadual de Campinas.
da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Ge-
Flávio Marques Prol Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Aná-
Frederico de Almeida
Coordenador de Gra-
duação da DIREITO GV. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu. Doutor em
Coordenador do Nú-
tulio Vargas. Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Liana de Paula
lise e Planejamento (CEBRAP).
Doutor em Ciência Política
Professora adjunta do Departa-
mento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo. Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo.
Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Luciana Gross Cunha
Guilherme Leite Gonçalves
Doutor em So-
ção Getulio Vargas e coordenadora do Mestrado
ciologia do Direito pela Universidade de Salento –
Acadêmico em Direito e Desenvolvimento na mesma
Itália. Bolsista do Programa Georg Forster de Pós-
instituição. Doutora em Ciência Política pela Univer-
-doutorado da Fundação Alexander von Humboldt
sidade de São Paulo.
na Universidade Livre de Berlim e na Universidade de Bremen, ambas na Alemanha. Professor licen-
Professora em tempo
integral da Escola de Direito de São Paulo da Funda-
Maíra Rocha Machado
Professora associada
ciado da FGV Direito Rio.
na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Ge-
Jacqueline Sinhoretto Professora adjunta do
Direito pela Universidade de São Paulo, com pós-
Departamento de Sociologia da Universidade Fede-
-doutorado pela Universidade de Ottawa – Canadá.
ral de São Carlos (UFSCar). Doutora em Sociologia
Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e
pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado
a Pena da DIREITO GV.
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tulio Vargas. Doutora em Filosofia e Teoria Geral do
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Participam deste projeto
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Marcella Beraldo de Oliveira Professora ad-
DIREITO GV. Mestre e Doutora em Filosofia e Teoria
junta de Antropologia e do Programa de Pós-Gradua-
Geral do Direito pela Universidade de São Paulo.
ção em Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, com período de bolsa sanduíche no Centro Internacional de Criminologia Comparada da Universidade de Montreal – Canadá. Márcio Alves da Fonseca
Professor assis-
tente-doutor do Departamento de Filosofia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Filosofia pela École Normale Supérieure e pela Universidade de Paris-XII,
Raphael Neves
Professor assistente do Depar-
tamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Doutorando em Política pela New School for Social Research – Estados Unidos. Raquel Weiss Professora adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela UFRGS. Pesquisadora associada do British Centre for Durkheimian Studies da Universidade de Oxford e diretora do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos. Renato Sérgio de Lima Assessor técnico da
ambas na França. Marcus Faro de Castro Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Doutor em Direito pela Universidade de Harvard – Estados Unidos.
Fundação SEADE. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Editor da Revista Brasileira de Segurança Pública. Pós-doutor pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo.
Maria da Glória Bonelli Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal
Rúrion Melo Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Filoso-
de São Carlos. Doutora em Ciências Sociais pela
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Fe-
Universidade Estadual de Campinas com bolsa san-
deral de São Paulo. Doutor em Filosofia pela
duíche na Northwestern University – Estados Unidos.
Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em
Possui pós-doutorado pela American Bar Foundation
Teoria das Ciências Humanas pelo Centro Brasileiro
– Estados Unidos –, e pelo Instituto Internacional de
de Análise e Planejamento (CEBRAP). Pesquisador
Sociologia Jurídica de Oñati – Espanha.
do Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP.
Marta Rodriguez de Assis Machado
Profes-
Samuel Rodrigues Barbosa Professor doutor
sora em tempo integral da Escola de Direito de São
da Faculdade de Direito e do Instituto de Relações In-
Paulo da Fundação Getulio Vargas. Pesquisadora do
ternacionais da Universidade de São Paulo. Doutor em
Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro
Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade
de Análise e Planejamento (CEBRAP). Coordenado-
de São Paulo. Bolsista de Produtividade do CNPq.
ra do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da
Membro do Instituto Brasileiro de História do Direito.
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Sumário
Introdução ......................................................................................................................
13
PARTE I – O Direito na Teoria Social 1
Crítica da Ideologia e Emancipação: Marx, o direito e a democracia .........
19
Rúrion Melo 2
Sociologia e Direito na Teoria Durkheimiana .................................................
35
Raquel Weiss 3
Formalismo como Conceito Sociológico: uma introdução ao conceito weberiano de direito............................................................................................
51
Samuel Rodrigues Barbosa 4
Franz L. Neumann: direito e luta de classes....................................................
61
José Rodrigo Rodriguez e Flávio Marques Prol
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Manual de Sociologia Jurídica
Considerações sobre o Direito na Sociologia de Pierre Bourdieu ...............
79
Ana Carolina Chasin 6
Michel Foucault: o direito nos jogos entre a lei e a norma ............................
93
Márcio Alves da Fonseca 7
O Direito na Sociologia de Niklas Luhmann .................................................... 111 Guilherme Leite Gonçalves e João Paulo Bachur
8
Habermas e Ambiguidade do Direito Moderno ............................................... 133 Felipe Gonçalves Silva PARTE II – Direito, Sociedade e Estado: temas atuais
9
Pluralismo Jurídico: principais ideias e desafios ........................................... 157 Marcus Faro de Castro
10
Transformações da Cidadania e Estado de Direito no Brasil ....................... 179 Raphael Neves
11
Reforma do Judiciário: entre legitimidade e eficiência.................................. 197 Jacqueline Sinhoretto e Frederico de Almeida
12
Acesso à Justiça: a construção de um problema em mutação ...................... 219 Carmen Silvia Fullin
13
Movimentos Sociais e Direito: o Poder Judiciário em disputa ..................... 237 Evorah Lusci Cardoso e Fabiola Fanti
14
Como Decidem os Juízes? sobre a qualidade da jurisdição brasileira ........ 255 José Rodrigo Rodriguez e Carolina Cutrupi Ferreira
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Sumário
15
11
Desempenho Judicial, o quanto a Sociedade Confia e como Avalia o Poder Judiciário Brasileiro: a importância das medidas de confiança nas instituições .................................................................................................... 269 Luciana Gross Cunha e Fabiana Luci de Oliveira
16
Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil ........... 289 Maria da Gloria Bonelli
17
Violência, Estado e Sociologia no Brasil .......................................................... 309 Renato Sérgio de Lima e Liana de Paula
18
O Direito Penal é Capaz de Conter a Violência? .............................................. 327 Marta Rodriguez de Assis Machado e Maira Rocha Machado
19
Direito, Diferenças e Desigualdades: gênero, geração, classe e raça .......... 351 Marcella Beraldo de Oliveira e Daniela Feriani
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Introdução
Cara leitora, caro leitor,
postos conceituais utilizados, torna este
É com imensa satisfação que convida-
manual uma ferramenta de estudo útil não
mos vocês à leitura do Manual de Sociolo-
somente ao público de juristas, mas a to-
gia Jurídica que agora têm em mãos. Seu
dos aqueles engajados na compreensão e
objetivo principal é apresentar em um
crítica das instituições e práticas jurídicas
mesmo volume uma sistematização abran-
contemporâneas.
gente dos tópicos e fundamentos mais es-
A escolha dos conteúdos presentes
senciais a esta disciplina. O livro se desti-
em cada capítulo procurou contemplar
na prioritariamente a alunos e professores
não apenas os tópicos que mais tradicio-
das faculdades de Direito, buscando auxi-
nalmente fazem parte dos cursos de Socio-
liar a preparação de aulas e seu acompa-
logia do Direito no País, como também im-
nhamento por meio de textos didáticos e
portantes reflexões sobre o fenômeno
informativos, orientados tanto por mate-
jurídico desenvolvidas em outros âmbitos
riais teóricos já consagrados quanto por
das Ciências Sociais, as quais não foram
pesquisas contemporâneas originais e re-
plenamente incorporadas entre os tópicos
levantes. A proposta de uma escrita clara e
de nossa formação em Direito. Este manual
sintética, que explicite e elucide os pressu-
conta com a apresentação de alguns dos
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14
Manual de Sociologia Jurídica
mais influentes teóricos da Sociologia ao
– tais como a Filosofia Jurídica, a Teoria
redor do mundo ao lado de artigos sobre
do Direito e a Teoria do Estado –, a Socio-
problemas brasileiros, a maior parte deles
logia do Direito brasileira parece ter acu-
orientados por pesquisas empíricas em
mulado pouca reflexão sobre si mesma, o
curso ou recentemente concluídas.
que compromete uma integração mais
No que se refere ao campo teórico da
contundente de seus tópicos de estudo,
Sociologia do Direito, é bastante comum
bem como uma avaliação continuada de
encontrarmos nos programas didáticos
suas limitações e projetos de futuro.
desta disciplina uma apresentação que se
Falta a esta disciplina tanto uma uni-
limita aos três maiores clássicos do pensa-
dade suficiente a respeito de seus progra-
mento sociológico: Karl Marx, Émile
mas curriculares como um diálogo mais
Durkheim e Max Weber. Sem negar a im-
profícuo entre seus temas já tradicionais.
portância central desses autores e de seus
Podemos mencionar a existência de um
diagnósticos acerca do direito moderno,
grande vácuo entre, de um lado, a pers-
procuramos aqui ampliar o leque de mode-
pectiva institucionalista que se debruça
los teóricos incorporando alguns dos prin-
sobre o funcionamento das instâncias de-
cipais nomes do pensamento sociológico
cisórias formais, particularmente sobre os
contemporâneo, o que nos permite tanto
problemas vinculados à administração da
disponibilizar leituras alternativas a res-
justiça, e, de outro, a perspectiva que se
peito das práticas e instituições jurídicas
recusa a reduzir o direito às decisões pro-
em face dos contextos modificados das so-
feridas por autoridades estatais. Em ou-
ciedades atuais quanto perceber a incon-
tras palavras, parecem-nos faltar media-
testável atualidade dos referidos clássicos
ções suficientes entre os importantes
em suas marcantes influências sobre as
temas do “acesso à justiça” e do “pluralis-
novas estruturas de pensamento.
mo jurídico”, as quais podem vir a ser
Já em relação à “aplicação” da teoria
construídas pela integração de estudos já
social à pesquisa jurídica – ou melhor, ao
existentes e que ampliam a percepção do
campo de consolidação de uma disciplina
fenômeno jurídico para o que acontece no
jurídico-sociológica específica –, não esta-
tecido da sociedade. Nesse sentido, é ne-
mos sozinhos ao reconhecermos que as
cessária a consolidação de estudos sobre a
lacunas e limitações do pensamento jurí-
dinâmica dos processos democráticos, as
dico podem ser sentidas aqui de modo ain-
transformações da cidadania, as novas
da mais profundo. A exemplo do que se
formas de atuação dos movimentos so-
verifica em graus variados entre as demais
ciais, as potencialidades e desafios da prá-
“disciplinas básicas” dos cursos de Direito
tica advocatícia, o controle e a racionaliza-
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Introdução
15
ção do poder estatal, entre tantos outros
esferas da sociedade e para a investigação
temas. Partimos assim da convicção, ou ao
da ideologia dos juristas. Seus importan-
menos da esperança, de já possuirmos
tes resultados, entretanto, costumam dei-
condições de superar esse hiato, o que
xar fora de radar a maneira pela qual os
apenas pode ser efetivado, entretanto,
juristas justificam suas decisões perante a
com a integração e a acessibilidade da pro-
esfera pública com fundamento no mate-
dução acadêmica nesse campo.
rial jurídico disponível (leis, casos judi-
Vale ressaltar que não é comum a So-
ciais, princípios, costumes etc.).
ciologia do Direito se preocupar com a
Em contraste com isso, assistimos ao
pesquisa empírica. Ainda hoje, a maior
surgimento de uma produção crescente de
parte das pesquisas sobre o direito brasi-
estudos em Sociologia do Direito que se
leiro é feita por pesquisadores de Ciências Sociais e de outras áreas do saber. E, apesar das imprescindíveis contribuições a serem realizadas a partir de um “olhar externo” – capaz de descortinar e desconstruir pressupostos implícitos das práticas jurídicas, invisíveis ao olhar treinado dos especialistas –, tais pesquisas não costumam pôr seu foco na racionalidade jurídica propriamente dita. O resultado é que a Sociologia do Direito tende a ser exclusivamente ministrada com base em textos de grandes teóricos da sociologia ou em críti-
preocupa com a racionalidade interna do direito e sua interface com as demais esferas sociais. Tais trabalhos, diga-se, têm o potencial tanto de contribuir para a reflexão das Ciências Sociais sobre o direito quanto de renovar o estudo da dogmática jurídica, contestando o registro formalista exclusivamente preocupado com a construção de respostas normativas unívocas e autorreferenciais, sem abandonar a lógica própria e socialmente permeável do discurso jurídico. Procuramos reunir autores
cas totalizantes ao formalismo jurídico,
representativos desta última vertente, to-
sem dialogar com as matérias de dogmáti-
dos eles em plena atividade à frente de
ca jurídica ou se preocupar com a lingua-
projetos de pesquisa de longo prazo e que
gem específica da reprodução do direito
já são referência para este campo de estu-
positivo brasileiro.
do. Por razões de espaço, muitos estudio-
O Direito tem sido cada vez mais estudado nos campos de pesquisa sobre violência, cidadania e problemas de gênero. Nesses âmbitos, a atenção dos estudiosos
sos ficaram de fora e a dinâmica do campo produzirá em breve novos estudos e pontos de vista importantes sobre os temas aqui abordados.
costuma estar mais voltada para o impacto
Nesse sentido, o conjunto de textos
da atuação do Judiciário sobre as diversas
que compõem este manual não represen-
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Manual de Sociologia Jurídica
ta um panorama completo e definitivo
Não podemos concluir essa rápida nota
acerca da Sociologia do Direito. E tam-
sem agradecer a todos aqueles que colabo-
pouco carrega a pretensão de solver ple-
raram com a redação e a editoração deste
namente os problemas acima apontados.
manual. Além dos nomes que assinam a au-
Sua organização foi motivada pelo inte-
toria dos textos que nos seguem aqui, gosta-
resse de apresentar um quadro mais re-
ríamos de agradecer a Luiz Roberto Curia, a
presentativo do estado atual dos estudos
Clarissa Boraschi Maria e, principalmente, a
em Sociologia do Direito no Brasil, o qual
Bianca Tavolari, que, muito além de contro-
possibilite, sim, um panorama geral das
lar nossos prazos e nossas pretensões exa-
conquistas já consolidadas desse campo
geradas, ajudou-nos de modo inestimável na
disciplinar, mas que também reflita as
seleção dos temas, na leitura atenta e nas
principais lacunas e engessamentos de
sugestões pertinentes a cada capítulo.
sua ainda frágil unidade. Gostaríamos, dessa forma, que este mesmo manual possa ser submetido a uma leitura crítica, a qual ajude a estabelecer uma percepção da Sociologia do Direito mais consciente de suas atuais tarefas e limitações. Além de esperarmos que o empenho em sua redação possa mostrar-se útil ao ensino e à reflexão sobre o direito no País.
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Para terminar, fica aqui nossa homenagem a José Eduardo Faria e a Celso Fernandes Campilongo, nossos professores de Sociologia do Direito e responsáveis pelo interesse inaugural nos temas aqui discutidos. Boa leitura. Os organizadores
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Parte I O Direito na Teoria Social
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1 Crítica da Ideologia e Emancipação Marx, o direito e a democracia
Rúrion Melo
Introdução Karl Marx se tornou mundialmente conhecido por suas críticas à economia capitalista e pela perspectiva revolucionária que seu pensamento legou para os movimentos socialistas e as teorias marxis-
resses de classe em jogo nas sociedades capitalistas modernas. Essa perspectiva crítica o levou a duas conclusões cheias de consequências tanto teóricas como práticas: primeiro, a emancipação social não seria possível sob as condições capitalis-
tas que o sucederam. No entanto, Marx
tas existentes, de modo que a possibilidade
não se limitou a denunciar a lógica de fun-
efetiva de realização da liberdade e da
cionamento do modo de produção capita-
igualdade passava a depender de uma
lista e a diagnosticar os seus limites. Ele
transformação revolucionária do capita-
também criticou a ordem institucional
lismo; segundo, caberia ao direito e à de-
que estruturava a organização política e
mocracia um papel sensivelmente reduzi-
jurídica da sociedade de seu tempo. Ao
do e meramente funcional no processo
desmascarar o ideal do Estado de direito
revolucionário, cristalizando no imaginá-
e a configuração histórica da república
rio marxista uma rígida separação entre
democrática, Marx expôs as contradições
condições emancipatórias, de um lado, e
sociais, as injustiças materiais e os inte-
Estado democrático de direito, de outro.
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Manual de Sociologia Jurídica
Certamente, há uma relação tensa e
veja-se, por exemplo, a mudança considerá-
complexa entre a crítica de Marx ao Esta-
vel ocorrida entre os textos do jovem Marx e
do democrático de direito e sua perspecti-
sua obra madura (COHEN, 1982; LÖWY,
va revolucionária. Afinal, até que ponto
2002). Por ser inviável abordar de modo tão
uma crítica às formas existentes de demo-
abrangente todas essas questões no espaço
cracia significa uma crítica ao ideal do Es-
do presente capítulo, optamos por circuns-
tado democrático de direito por excelên-
crever nossa apresentação às críticas que,
cia? Criticar a democracia não poderia
na recepção histórica de sua teoria, torna-
implicar antes o desmascaramento de suas
ram-se as mais conhecidas e difundidas.
insuficiências atuais em nome de tudo o
Estamos nos referindo às críticas de Marx
que a democracia ainda poderia potencial-
ao direito e à democracia como formas
mente realizar? Marx não estaria critican-
ideológicas de dominação, as quais são
do a democracia burguesa para defender
estabelecidas a partir de uma distinção en-
a verdadeira democracia, aquela que só
tre base econômica e superestrutura po-
poderia ser plenamente realizada no co-
lítico-jurídica.
munismo? Ou seria o pensamento de Marx
É importante já ressaltar também
essencialmente antidemocrático, negando
que nossa exposição foi animada por duas
de uma vez por todas qualquer institucio-
considerações gerais e complementares a
nalização da liberdade – e correndo o risco
respeito do tema do direito e da democra-
de assumir as consequências totalitárias
cia na obra de Marx. Embora pudéssemos
que, por exemplo, decorreram posterior-
afirmar que existe na teoria crítica de
mente da experiência histórica do socialis-
Marx uma compreensão funcionalista do
mo realmente existente?
Estado democrático de direito que acaba-
Essas questões apontadas introduto-
ria se mostrando muito limitada, não seria
riamente já foram direcionadas muitas ve-
correto atribuir a Marx uma posição es-
zes não apenas para a teoria de Marx, mas
sencialmente antidemocrática. Na verda-
para toda a tradição marxista (LICHTHEIM,
de, o ideal da república democrática foi
1961; MEDEIROS, 2012). Respondê-las não
encoberto pelo ideal da república do tra-
é tarefa fácil. Tudo se complica ainda mais
balho: uma sociedade emancipada, segun-
ao admitirmos que, no caso de Marx, os te-
do Marx, teria de ser configurada pelo mo-
mas da política, do direito e da democracia
delo produtivista de uma comunidade de
receberam um tratamento muito variado no
cooperação baseada na divisão igualitária
percurso de sua obra, com implicações que,
do trabalho (MELO, 2011a). Nesse sentido,
dependendo do estatuto dos textos, foram
a concepção de uma plena realização da
ora mais positivas, ora mais negativas –
liberdade e da igualdade vinculada à uto-
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pia da sociedade do trabalho não poderia
vel uma análise da sociedade civil não
nos ajudar a entender a postura negativa
mais centrada nas categorias do direito ra-
de Marx diante do potencial emancipató-
cional, mas sim em uma esfera de comér-
rio do direito e da democracia? Acredita-
cio e de trabalho social que seria domina-
mos que sim, e que essa ideia é um ponto
da por leis autônomas. Se o direito racional
de partida adequado para avaliar a atitude
forneceu o modelo normativo de constru-
crítica de Marx sobre o tema.
ção de uma organização política, a econo-
Iniciaremos nossa exposição mostrando como o modelo da base/superestrutura surge no quadro de uma crítica da economia política (1.1). Em seguida, apresentaremos a interpretação que Marx faz do Estado como uma forma de dominação burguesa (1.2) e analisaremos a estrutura normativa da sociedade civil sob a perspectiva de uma crítica da ideologia (1.3). Por fim, procuraremos mostrar que o papel reduzido do direito e da democracia no processo revolucionário e na constituição do ideal comunista de uma sociedade ple-
mia política, por seu turno, teria o objetivo de descrever a sociedade civil com base nas relações de trabalho social organizado pela economia de mercado. Na passagem da filosofia político-jurídica moderna para a economia política, os processos de socialização, representados na forma de um contrato social estabelecido entre pessoas consideradas livres e iguais, foram substituídos pelo sistema de relações constituído pela troca de mercadorias e pelo trabalho, ou seja, pelo modo de produção da vida material em seu conjunto (MARX, 2000).
namente emancipada depende do primado
Para Marx, tal substituição provoca-
do paradigma da produção e da utopia de
da pelo ponto de vista da economia políti-
uma sociedade do trabalho (1.4).
ca traz ganhos teóricos importantes. Em primeiro lugar, permite entender que os
1.1. Base e superestrutura na crítica da economia política
homens entram em relações sociais que são plenamente independentes de sua própria vontade, ou seja, que em vez de se or-
As considerações de Marx a respeito
ganizarem segundo mecanismos normati-
do direito e da democracia dependem de
vos de integração social (tal como aqueles
uma mudança de perspectiva crucial inau-
presentes no direito racional moderno), os
gurada pelo surgimento da economia polí-
homens estão submetidos a um processo
tica. Economistas políticos, tais como
anônimo de socialização. Isso significa
Adam Smith e David Ricardo, conceberam
que o ideal normativo de cidadania livre e
um novo tipo de abordagem para os estu-
igual será radicalmente substituído por
dos de teoria social. Eles tornaram possí-
uma perspectiva pretensamente mais rea-
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lista, em que não haverá mais espaço para
nimo de socialização é, na verdade, um
uma atividade política autônoma por parte
processo de subordinação às leis que re-
da sociedade civil: os indivíduos só pode-
gem o modo de produção da vida material.
rão agir de forma heterônoma. E para po-
Não podemos analisar aqui a lógica de de-
der explicitar tais leis heterônomas res-
senvolvimento de tais leis (o que nos re-
ponsáveis pela organização política das
meteria a discutir a lógica de reprodução
sociedades modernas, a tarefa de Marx
do capital); precisamos entender apenas
consistirá assim em dar continuidade
como as constrições econômicas serão de-
àquilo que a economia política iniciou, ou
terminantes para criar uma relação de
seja, realizar uma anatomia da socieda-
subordinação entre base material e su-
de civil. Ele descobrirá que “as relações
perestrutura jurídica e política.
jurídicas – assim como as formas de Esta-
Se a economia política forneceu um
do – não podem ser compreendidas por si
ponto de partida adequado para a teoria
mesmas [...], inserindo-se pelo contrário
social de Marx, é verdade também que se
nas condições materiais de existência [...]
mostrou incapaz de unificar com uma pos-
designadas como ‘sociedade civil’; por seu
tura crítica seu olhar pretensamente mais
lado, a anatomia da sociedade civil deve
realista. A economia política ainda assu-
ser procurada na economia política”
mia acriticamente a existência de uma su-
(MARX, 2003, p. 4-5).
posta organização normativa que, embora
Em segundo lugar, Marx retira con-
não pudesse mais ser derivada do direito
sequências críticas do fato de não serem
racional, estaria fundamentada agora na
mais as relações baseadas no direito, mas
economia de mercado: por serem pro-
sim as relações de produção que formam o
prietários nas relações de apropriação de
esqueleto que mantém coeso o organismo
mercadorias, reconhecemos os indivíduos
social. “Na produção social de sua existên-
como pessoas portadoras de direitos, atri-
cia”, diz Marx, “os homens estabelecem re-
buindo-lhes seja igualdade nesse processo
lações determinadas, necessárias, inde-
de troca de equivalentes, seja liberdade de
pendentes da sua vontade. [...] O conjunto
perseguirem seus próprios interesses em
destas relações de produção constitui a es-
relação ao bem trocado ou ao seu próprio
trutura econômica da sociedade, a base
trabalho empregado na produção. Nesse
concreta sobre a qual se eleva uma supe-
caso, o modelo do contrato social poderia
restrutura jurídica e política e à qual cor-
se apoiar na evidência de que a sociedade
respondem determinadas formas de cons-
moderna estabelecida sobre as relações de
ciência social” (MARX, 2003, p. 5). Marx
troca garantiria a cada pessoa a autonomia
descobrirá, portanto, que o processo anô-
e a igualdade por meio da participação
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nesse intercâmbio meramente econômico.
dade de classes caracterizada pelos que
O reconhecimento mútuo e a aceitação
possuem propriedade e controlam a pro-
das relações contratuais juridicamente as-
dução e os que, com o seu trabalho, criam
seguradas, pelas quais cada um reconhece
a riqueza da sociedade (e a riqueza dos ca-
o outro como proprietário, têm a preten-
pitalistas), e que na maioria dos casos pre-
são de constituir cada um como uma pes-
cisam vender sua força de trabalho para
soa livre e igual.
sobreviver (MARX, 2002).
Contrariamente, a “anatomia da so-
Marx teria reconhecido, portanto, que
ciedade civil” precisaria ser compreendida
a sociedade civil estaria estruturada de
como contendo um efeito desmascarador
modo a produzir formas cada vez mais
diante das concepções que compunham os
drásticas de desigualdade social. Ele de-
princípios burgueses modernos de organi-
nuncia o sistema econômico capitalista não
zação social, efeito que se encontra expli-
somente por se organizar com base na pro-
citado justamente na relação entre base e
dução de bens como produção de valores de
superestrutura. Logo, não seria mais sufi-
troca, mas por fundar todo o conjunto de
ciente seguir os economistas políticos,
leis e princípios normativos do Estado de
mas sim necessário realizar uma crítica
direito em torno do trabalho assalariado.
da economia política. A implicação mais
As relações sociais desiguais do mercado
profunda da anatomia elaborada por Marx
de trabalho acabam sendo cristalizadas e
consistiria no fato de que sua análise des-
encobertas pelo medium juridicamente
mistificaria a sociedade civil demonstran-
institucionalizado das relações de troca da
do, principalmente, que esta sociedade
base material. Na verdade, a base material
repousa sobre um sistema de exploração
real que condiciona a superestrutura (isto
que perpassaria suas principais institui-
é, todas as formas pelas quais uma socieda-
ções e atingiria justamente o núcleo de
de não apenas se representa, mas também
sua organização normativa. Os aspectos
se regula, tais como a política, o direito, a
normativos da troca de equivalentes impli-
cultura, a religião etc.) faz com que pratica-
cavam que, na relação de troca, pressupu-
mente todos os modos de atividade não
séssemos um princípio de reciprocida-
econômica sejam entendidos como reflexos
de, ou seja, um momento de igualdade
das relações de produção. Como diz Marx,
recíproca por parte daqueles que partici-
“o modo de produção da vida material con-
pavam do processo de troca. Entretanto,
diciona o desenvolvimento da vida social,
em vez de uma sociedade civil constituída
política e intelectual em geral” (MARX,
por pequenos produtores de mercadorias,
2003, p. 5). No tema em questão, as formas
a economia de mercado formou uma socie-
jurídico-políticas da sociedade civil moder-
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na e as normas que a constituem seriam
de força pública organizada para a escravi-
criticadas como expressão necessária das
dão social, de máquina do despotismo de
relações de troca, vale dizer, como reflexo
classe” (MARX, 1977a, p. 195).
jurídico de uma esfera de intercâmbio em
Afirmar que o Estado deve adminis-
que os compradores e vendedores, preten-
trar os negócios da classe burguesa signifi-
samente livres e iguais, trocam suas merca-
ca que a própria relação entre trabalho as-
dorias por equivalentes. A estrutura da so-
salariado e capital só se manteria caso o
ciedade civil revelaria o poder de um
Estado pudesse assegurar certos pressu-
sistema que modela segundo sua própria
postos gerais para a continuidade da pro-
imagem e forma a totalidade do entorno
dução capitalista. A institucionalização do
institucional.
mercado de trabalho mostra que o Estado não seria outra coisa senão a forma de or-
1.2. O Estado como dominação burguesa Se as instituições que compõem a política burguesa não são determinantes das leis do sistema econômico, mas sim determinadas por elas, então o próprio Estado surge da necessidade de organizar e integrar a sociedade de modo que esta pudesse perseguir seus interesses econômicos. Na verdade, todas as instituições políticas que se encontram mediadas pelo Estado moderno estariam comprometidas com a manutenção e reprodução do sistema capitalista, com a administração dos “negócios
ganização que a classe burguesa assume para garantir sua propriedade e seus interesses. Nas palavras de Marx e Engels: “Uma vez que o Estado é a forma sob a qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus interesses comuns, e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, deduz-se daí que todas as instituições comuns se objetivam através do Estado e adquirem a forma política através dele. Daí, também, a ilusão de que a lei se fundamenta na vontade e, ademais, na vontade desgarrada de sua base real, na vontade livre” (ENGELS e MARX, 2007, p. 89).
comuns de toda a classe burguesa” (EN-
Uma vontade livre que adotasse uma
GELS e MARX, 2002, p. 42). “À medida que
forma política mediada pelo Estado se se-
os progressos da moderna indústria desen-
pararia do interesse social efetivo dos in-
volviam, ampliavam e aprofundavam o an-
divíduos e se tornaria uma comunidade
tagonismo de classe entre o capital e o tra-
política ilusória, pois “todas as lutas no in-
balho”, segundo Marx, “o poder do Estado
terior do Estado, a luta entre democracia,
foi adquirindo cada vez mais o caráter de
aristocracia e monarquia, a luta pelo direi-
poder nacional do capital sobre o trabalho,
to ao voto, etc. não são mais do que formas
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ilusórias nas quais as lutas reais das dife-
se tornam cada vez menores, a república
rentes classes são conduzidas” (ENGELS
democrática contradiz o seu próprio prin-
e MARX, 2007, p. 56). “Ilusórias” porque o
cípio de acessibilidade universal. O Estado
discurso pretensamente universal em
não representaria algo como a “vontade
nome de uma vontade livre capaz de re-
geral” do povo, mas favoreceria antes a
presentar a todos os indivíduos por igual
vontade particular de uma parcela da so-
encontrar-se-ia comprometido com uma
ciedade interessada em reforçar a domina-
base concreta, em que as instituições polí-
ção de classe. Como afirma Ernest Man-
ticas e as leis do Estado seriam parciais
del, “o governo de um Estado capitalista,
por apoiar sempre a autovalorização do ca-
por mais democrático que pareça ser, está
pital. A política, nesse sentido, adotaria
atado à burguesia” (MANDEL, 1977, p.
uma forma por meio da qual os interesses
23). Assim, de forma alguma o Estado po-
dos proprietários privados se imporiam so-
deria ser um órgão de reconciliação dos
bre os interesses de toda a sociedade. O
conflitos de classe, porque serviria, na
ideal universalista seria denunciado por
verdade, aos interesses dos proprietários
esconder o seu verdadeiro caráter de más-
privados, e não aos interesses da sociedade
cara do interesse de classe burguês. Esse,
em seu todo, permanecendo, assim, uma
segundo Marx e Engels, seria o dilema do
forma ideológica de dominação (AVI-
universal vivido pelos indivíduos em uma democracia, ou seja, a própria democracia seria interpretada como uma forma ilusória de comu nidade, pois o interesse uni-
NERI, 1968).
1.3. Crítica da ideologia
versal se encontraria independente e alie-
Compreender e decifrar as formas de
nado dos interesses efetivos de cada um
dominação é tarefa daquilo que Marx en-
(ENGELS e MARX, 2007, p. 56).
tendeu como crítica da ideologia. Esse
Essa crítica de Marx ao Estado se di-
tipo de crítica percorre toda a anatomia da
rige à ideia de uma sociedade civil que diz
sociedade civil elaborada em sua teoria.
realizar igualmente todos os interesses e
Mas o que significa dizer que algo domina
necessidades dos indivíduos. Sobretudo
ideologicamente? O que haveria de especí-
porque, em primeiro lugar, faltariam exa-
fico nessa forma de dominação que já não
tamente os pressupostos sociais para a
estivesse presente em outras formas histó-
efetivação da igualdade nessa sociedade, a
ricas de dominação sociais, políticas e eco-
saber, o status de proprietário. E como na
nômicas? Ela reside no fato de se expressar
sociedade capitalista as chances de ascen-
como algo verdadeiro, justo e legítimo, algo
são social de assalariado para proprietário
que é comumente seguido e adotado como
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padrão aceito de estabelecimento de re-
ser explicado abstratamente, sem que se
gras, costumes, visões de mundo e princí-
considere a situação histórica existente.
pios; algo que é considerado socialmente
Seu intuito é explicitar justamente a base
natural, necessário e também inevitável,
real das ideologias, isto é, a ligação do
mas que, apesar de estruturar a realidade
Estado e do direito com as formas de pro-
e ser socialmente compartilhado, possui
priedade e de interesses de classe que
uma efetividade apenas aparente (GEUSS,
compõem as relações de produção. Os in-
1981).
teresses da sociedade civil (e seu modo de
A crítica da ideologia, por sua vez, precisa desmascarar a dominação ideológica como uma ilusão socialmente necessária, isto é, decifrar os pretensos dados sociais, suspeitando do modo como são socialmente induzidos. Ou seja, a crítica da ideologia esclarece como a dominação ideológica, real e efetiva, é sempre ao mesmo tempo verdadeira e falsa: “Ideologias são simultaneamente ‘verdadeiras e falsas’ na medida em que face à ‘realidade’ [...] sejam ao mesmo tempo adequadas e
ação como Estado) devem explicar os diferentes produtos teóricos e formas de consciência (a religião, a filosofia, a moral, o direito etc.), e isso significa explicar “as formações ideológicas sobre a base da prática material” (ENGELS e MARX, 2007, p. 61-62). Assim, a crítica da ideologia revela a prática das relações sociais reais que fundam o poder espiritual e ideológico dominante em cada época. Sempre, a classe que tem à sua disposição os meios para a produção material poderá dispor dos meios de produção espiritual: “As ideias
inadequadas, apropriadas e inapropriadas.
dominantes não são outra coisa a não ser a
Como induzidas socialmente, elas não são
expressão ideal das relações materiais do-
simplesmente uma ilusão ou um equívoco
minantes, as mesmas relações materiais
cognitivo, mas um equívoco com um senti-
dominantes concebidas como ideias; por-
do claramente fundamentado, porque fun-
tanto, as relações que fazem de uma deter-
dado na constituição da realidade. Ideolo-
minada classe a classe dominante, ou seja,
gias, além disso, são ‘simultaneamente
as ideias de sua dominação” (ENGELS e
verdadeiras e falsas’ na medida em que as
MARX, 2007, p. 71).
normas às quais elas estão vinculadas têm um conteúdo de verdade não realizado” (JAEGGI, 2008, p. 145 -146).
O vínculo entre a base social real e as ideias dominantes se manifesta historicamente de modos diversos. Na época em
Em relação às questões de legitima-
que predominou a aristocracia, impera-
ção das instituições sociais, Marx não
ram as ideias de honra, de lealdade etc. Já
acredita que seu desmascaramento possa
no período de dominação da burguesia
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(instituído pela república democrática e
firmado entre pessoas juridicamente livres
pelo Estado de direito), imperaram as
e iguais. Mas, para Marx, é falso afirmar
ideias da liberdade, da igualdade e da pro-
que nas sociedades capitalistas – depen-
priedade. Mas estas são ideias que apare-
dentes dos princípios da liberdade e da
cem na superfície da sociedade capitalista.
igualdade – a liberdade e a igualdade já se
A crítica da ideologia permite analisar o
encontram realizadas. “A própria ideologia
processo histórico segundo a composição
da liberdade e da igualdade”, afirma Rahel
profunda que sustenta a superfície ideoló-
Jaeggi, “é um fator no surgimento da com-
gica. Por essa razão, altera-se o significado
pulsão e da igualdade. Isto é, ela é produti-
da estrutura normativa da sociedade civil
vamente eficaz no sentido de, em seu efei-
(jurídica, moral e política), na medida em
to, ela própria cooperar para a inversão das
que a liberdade, a igualdade e a proprieda-
ideias nela incorporadas. Por conseguinte,
de são comparadas com a realidade das
não que os ideais normativos apenas ain-
relações sociais em que estão ancoradas.
da não estivessem totalmente realizados,
Marx torna aparente, portanto, a discre-
eles estão invertidos em sua realização”
pância entre ideal e realidade. A estrutura
(JAEGGI, 2008, p. 144). É preciso então ex-
normativa da sociedade é confrontada
plicitar uma contradição existente entre as
com as relações sociais existentes, sem
ideias e as práticas sociais na medida em
que para isso Marx tenha de apelar para
que toda a dominação ideológica impõe
algum conjunto de normas que não seja
uma estrutura normativa falsa, mas que,
aquele imanente à própria sociedade civil
por ser necessária para a reprodução das
e à sua expressão jurídico-política no Estado de direito burguês.
próprias relações sociais existentes, deve ser também assumida como necessária.
Uma crítica imanente da ideologia parte assim do pressuposto de que, em determinados momentos do desenvolvimento das forças produtivas, passa a ser historica-
1.4. O ideal emancipatório de uma associação de homens livres
mente necessário um tipo de dominação
Procuramos mostrar nas seções ante-
em que o poder é distribuído desigualmen-
riores que, sob as condições do modo de
te. É justamente isso o que a dominação
produção capitalista, a economia surgiria
burguesa permite realizar por meio do Es-
como um sistema que penetra todos os as-
tado e do direito. É inegável que os princí-
pectos da sociedade e remodela todas as
pios normativos da sociedade burguesa
relações sociais segundo sua própria ima-
funcionam como elemento estruturador le-
gem e forma. A primazia da esfera econômi-
gítimo. O mercado de trabalho é, de fato,
ca, a centralidade da produção, o modelo da
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base/superestrutura e a discrepância entre
como a possibilidade de dispor novamen-
ideal e realidade compõem um sistema que
te dos processos sociais que reproduzem
tende a subordinar e integrar as institui-
a vida dos indivíduos, a capacidade de se
ções políticas, jurídicas e sociais de acordo
reapropriar da produção e reprodução
com seu próprio esquema reprodutivo. Por
material que configuraria a base real da
essa razão, a perspectiva revolucionária
sociedade. O princípio democrático da au-
desacreditou radicalmente da superestru-
tonomia seria traduzido ou mesmo substi-
tura, ou seja, do conjunto das instituições
tuído pela ideia de uma organização social
democráticas. Embora as formas políticas
baseada no paradigma produtivista e as
que efetuariam a transformação revolu-
expectativas utópicas se dirigiriam à esfe-
cionária da sociedade burguesa em uma
ra da produção, ou seja, à emancipação do
sociedade comunista ainda pudessem con-
trabalho.
vergir, em algum momento, com tais ins-
Ora, a verdadeira democracia, por-
tituições democráticas (TEXIER, 2005;
tanto, teria de realizar a libertação do tra-
DRAPER, 1977), a verdadeira democra-
balho heterônomo e possibilitar a disposi-
cia seria caracterizada fundamentalmen-
ção comunitária das condições materiais
te em função da transformação revolucio-
da vida e de um novo modo de distribui-
nária das relações materiais da vida, ou
ção, justo e racionalmente regulado. Marx
seja, das relações sociais entre capital e
supunha que somente as relações equitati-
trabalho (MARX, 2002).
vas na base econômica gerariam princípios
Se a emancipação não pode ocorrer a
verdadeiramente democráticos para a au-
partir da superestrutura, então para Marx
to-organização dos trabalhadores. Mas, as-
apenas a transformação revolucionária
sim, uma reflexão sobre e democracia se-
da base material, ou seja, o próprio âmbi-
ria duplamente enfraquecida. Primeiro,
to do trabalho e do desenvolvimento das
devido à anatomia da sociedade civil que,
forças produtivas, poderia levar à emanci-
como vimos anteriormente, apresentava
pação. Mas o que estaria em jogo nessa
uma subordinação da superestrutura aos
transformação da base econômica? Se-
imperativos do capital, justificando as crí-
gundo Marx, a superação das condições de
ticas de Marx ao direito e à democracia
opressão do proletariado sobre o trabalho
existentes. Segundo, a realização da liber-
heterônomo, isso é, a transformação revo-
dade e a organização coletiva decorreriam
lucionária teria de levar em direção à reali-
imediatamente das condições do trabalho
zação da utopia de uma sociedade do traba-
autônomo conquistadas na base material
lho autônomo. Marx definiria a autonomia
transformada. Salta aos olhos o fato de
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que, com a emergência de uma sociedade
república democrática considerada vulgar,
organizada por produtores associados,
Marx defende a tese de que a sociedade
que passariam a se socializar de forma
comunista seria a única forma de realiza-
transparente, imediata e direta, Marx po-
ção da verdadeira democracia.
deria inclusive abrir mão da necessidade
Mas, na verdadeira democracia, os
de mediações jurídico-políticas como for-
direitos pretensamente iguais e universais
mas de organização da liberdade e da
tenderiam então a desaparecer com o de-
igualdade. O conceito de liberdade signifi-
senvolvimento material da sociedade em
caria apenas libertação em relação aos fe-
direção à consolidação do comunismo?
tiches do capital (ou libertação das forças
Marx é explícito nesse ponto: “Na fase su-
produtivas) e não seria formulado funda-
perior da sociedade comunista, quando
mentalmente em termos de liberdade polí-
houver desaparecido a subordinação es-
tica ou jurídica.
cravizadora dos indivíduos à divisão do
Com essa atitude instrumental dian-
trabalho e, com ela, o contraste entre o
te das instituições políticas da república
trabalho intelectual e o manual; quando o
democrática, parece desaparecer da análi-
trabalho não for somente um meio de vida,
se de Marx justamente o problema de uma
mas a primeira necessidade vital; quando,
auto-organização social entre pessoas li-
com o desenvolvimento dos indivíduos em
vres e iguais. Preocupado em esclarecer
todos os seus aspectos, crescerem tam-
as condições sociais e políticas a serem
bém as forças produtivas e jorrarem em
preenchidas para a realização da emanci-
caudais os mananciais da riqueza coletiva,
pação proletária, Marx refuta veemente-
só então será possível ultrapassar-se total-
mente todos os elementos presos ao voca-
mente o estreito horizonte do direito bur-
bulário jurídico-político burguês que ainda
guês e a sociedade poderá inscrever em
pudessem constar nos programas revolu-
suas bandeiras: De cada qual, segundo sua
cionários. Os ideais do Estado de direito e
capacidade; a cada qual, segundo suas ne-
da democracia constituiriam exigências
cessidades” (MARX, 1977b, p. 232-233).
políticas que não contêm nada além da “ve-
Isso significaria que o princípio nor-
lha e surrada ladainha democrática: sufrá-
mativo “De cada qual, segundo sua capaci-
gio universal, legislação direta, direito po-
dade; a cada qual, segundo suas necessi-
pular, milícia do povo etc. Elas são um
dades” se justificaria a partir das forças
mero eco dos partidos populares burgue-
produtivas plenamente desenvolvidas de
ses, das coligações pela paz e pela liberda-
uma sociedade transformada, que se en-
de” (MARX, 1977b, p. 239). Em oposição à
contraria em condições de satisfazer ma-
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terialmente as necessidades de todos e
pela “ditadura do proletariado”), o apare-
assegurar, finalmente, a liberdade e a
lho do Estado seria usado para o estabele-
igualdade com base na disposição coletiva
cimento de um novo poder político. O pro-
da produção. Substituindo as relações
letariado poderia organizar a produção, a
jurídico-políticas que caracterizariam o
distribuição, o crédito, a comunicação, o
direito burguês, a realização histórica do
transporte etc. Não se trata de forma algu-
trabalho autônomo seria a condição fun-
ma de uma abolição do trabalho, pois esse
damental da emancipação e do critério de
Estado comunista imporia o trabalho a to-
justiça, ou seja, a emergência do trabalho e
dos. O importante é que, estando o prole-
das forças produtivas como a base da vida
tariado com o poder nas mãos, o Estado
social e da riqueza.
serviria apenas como um meio para o obje-
Marx reconhece que alguns poucos
tivo da luta revolucionária, o qual consisti-
elementos ligados ao Estado de direito
ria na reapropriação coletiva dos meios de
burguês ainda poderiam ser necessários
produção (MARX, 1977b, p. 239 -240). Tal
para a transição do capitalismo para o co-
reapropriação não apenas definiria a prin-
munismo: “Entre a sociedade capitalista e
cipal característica de uma sociedade que
a sociedade comunista medeia o período
se autodetermina e se emancipa das con-
de transformação revolucionária da pri-
dições do trabalho heterônomo, mas que
meira para a segunda. A este período cor-
também, no final das contas, exige a su-
responde também um período político de
pressão desse mesmo Estado para sua
transição, cujo Estado não pode ser outro
efetivação.
senão a ditadura revolucionária do
Se a estrutura econômica na base da
proletariado” (MARX, 1977b, p. 239).
sociedade sempre tem predominância na
Mas caberia ao Estado nesse período uma
determinação da constituição social, en-
função meramente instrumental, pois as
tão o uso de instituições políticas do Esta-
condições futuras de uma sociedade
do como um instrumento no período de
emancipada parecem não incluir quais-
transição tem o intuito de torná-lo, no fim
quer traços das instituições político-
das contas, sem uso. Em outros termos, a
-jurídicas que organizavam a república
superestrutura política seria dissolvida
democrática, circunscrevendo-se à ima-
nas relações socioeconômicas emancipa-
gem produtivista de auto-organização
das da base, e assim, vale dizer, com a abo-
(DRAPER, 1986, 1987).
lição da propriedade privada nos meios de
No primeiro estágio do comunismo
produção e de todas as classes em nome
(justamente nesse período caracterizado
de um interesse geral, decorreria a disso-
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31
lução futura da estrutura normativa ante-
de trabalhadores, em que o nexo de soli-
rior. Se admitirmos, então, que as normas
dariedade seria suficiente para a integra-
e instituições sociais não econômicas pos-
ção social em seu conjunto, para a manu-
suem sua “verdade” nas relações econômi-
tenção não mais de uma sociedade
cas, não é difícil concluir pela rejeição dos
constituída por fábricas, mas de uma úni-
princípios da democracia, forçando igual-
ca “fábrica da sociedade”. Nessa socieda-
mente à abolição conjunta do próprio Es-
de, como mostra Marx no primeiro capítu-
tado de direito (DRAPER, 1977).
lo de O capital, os homens trabalham com
De acordo com o modelo de uma
meios de produção comuns e empregam
auto-organização espontânea dos traba-
suas forças individuais de trabalho de for-
lhadores, provavelmente a função social
ma consciente como uma força coletiva de
de controle e de regulação dos conflitos na
trabalho social (MARX, 2002, p. 100).
sociedade socialista passaria a não mais
Essa imagem comunista de uma so-
depender de formas políticas burguesas
ciedade emancipada marcou também a in-
porque provavelmente se esperaria que as
terpretação feita por Marx da Comuna de
leis e normas fossem internalizadas e se
Paris como uma forma de associação livre
tornassem hábitos. Prescindindo das con-
que prescinde de uma institucionalização
dições de institucionalização da liberdade
burguesa. Segundo tal interpretação, a re-
e de uma formação igualitária da vontade,
ferência à organização política e social de
a sociedade comunista estaria limitada à
uma associação de trabalhadores livres
representação holista de uma sociedade
prescindia de uma compreensão mais
do trabalho associada livremente e que,
aprofundada dos modos de funcionamen-
após se apropriar dos meios de produção,
to, das formas de comunicação e das con-
encontraria por si mesma os meios de sua
dições de institucionalização da vida cole-
convivência. O nexo funcional entre estru-
tiva. Ainda assim, a Comuna de Paris
tura de classe e sistema do direito implica-
representaria uma alternativa radical ao
ria, assim, pensar uma sociedade política
Estado burguês, pois possibilitaria a aboli-
de uma nova perspectiva, ou seja, de uma
ção do aparato estatal e, além disso, pode-
perspectiva não regulada pelas institui-
ria ser pensada inclusive como um modelo
ções políticas burguesas e que precisa, po-
democrático de participação direta. O des-
rém, organizar-se socialmente por outros
mantelamento do exército, do aparato ad-
meios. No caso, prescinde-se do Estado
ministrativo da burocracia, da polícia e do
em função de uma organização política
judiciário e sua substituição pela milícia
determinada como uma associação livre
popular, um corpo eleito de protetores da
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Manual de Sociologia Jurídica
comuna etc., eram algumas das medidas
paração entre emancipação e democracia
que seriam realizadas pela Comuna de Pa-
resvala na desconsideração de formas fun-
ris. Sua intenção era reestruturar a socieda-
damentais de interação política com as
de civil burguesa com uma organização que
quais toda teoria social crítica teria de se
visava assegurar a participação dos cida-
preocupar.
dãos na vida política. Contudo, a sociedade emancipada ainda assim seria apresentada como a totalidade de uma sociedade de pro-
Considerações finais
dutores, como a tão esperada república do
De acordo com a interpretação críti-
trabalho: embora ocorresse a emancipação
ca de Marx sobre o direito e a democracia
do trabalho heterônomo e a abolição das
exposta no presente texto, o processo de
classes, em condições emancipadas, lembra
produção e reprodução do sistema econô-
Marx, “todo homem se converte em traba-
mico é responsável por submeter a estru-
lhador” (MARX, 1977a, p. 200).
tura normativa da ordem jurídica e políti-
Vemos assim que Marx parece pres-
ca à sua própria lógica. As instituições da
supor que a regulação jurídica do Estado
sociedade civil, consideradas como uma
poderia ser substituída por formas de con-
superestrutura que reflete o jogo de forças
vivência entre trabalhadores associados
das práticas sociais reais da base econômi-
livremente. O sentido dessa substituição
ca e material, são desmascaradas ao se-
fica claro, por exemplo, no conhecido tex-
rem criticadas como meros reflexos do de-
to de Lênin sobre o papel do Estado na re-
senvolvimento das forças produtivas e das
volução proletária: uma vez asseguradas
relações de produção, e essa crítica invia-
as bases de reprodução material da sociedade, a extinção do Estado poderá finalmente ocorrer com a superação das formas parlamentares e a supressão da democracia (LÊNIN, 1988). Ora, o trata-
bilizaria em grande medida uma consideração futura do direito e da democracia na qual fosse possível lhes atribuir ainda algum potencial emancipatório legítimo.
mento instrumental do Estado não signifi-
A crítica formulada por Marx, ao de-
caria mais do que apenas a dissolução de
nunciar as condições sociais e institucio-
seus órgãos administrativos, mas sim da
nais de manutenção do trabalho heterôno-
própria política? Não podemos avançar
mo, explicita também o ponto de vista de
aqui nessa questão, apesar de ela ser apa-
seu ideal emancipatório segundo a reapro-
rentemente inevitável para quem enfrenta
priação coletiva das forças produtivas por
o tema do direito e da democracia no pen-
uma associação de trabalhadores plena-
samento de Marx. De qualquer modo, a se-
mente livres. Mas Marx não estaria redu-
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Crítica da Ideologia e Emancipação
zindo a institucionalização da liberdade a um papel meramente funcionalista no processo de transformação social e de efetivação de uma sociedade do trabalho autônoma? Não estaria também legando uma perspectiva emancipatória limitada à solução das contradições entre capital e trabalho, deixando em segundo plano a possibilidade de pensarmos formas plurais de emancipação ligadas às pautas das lutas jurídicas e políticas contemporâneas, tais como aquelas surgidas pela desigualdade de gênero, pelo racismo, pela exclusão de minorias etc.? É verdade que as críticas de Marx à política moderna escondem muitos enigmas sobre sua concepção abrangente do que possa ser o “político” (POGREBINSCHI, 2009). No entanto, é igualmente verdadeiro que a recepção do tema do direito e da democracia na teoria crítica contemporânea apontou para a necessidade de ampliação do conceito do político em Marx (MELO, 2009, 2011b).
Bibliografia AVINERI, S. The social and political thought of Karl Marx. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 1968. COHEN, J. Class and civil society: the limits of Marxian critical theory. Amherst: University of Massachusetts Press, 1982. DRAPER, H. Karl Marx’s theory of revolution. New York/ London: Monthly Review Press, 1977. v. I: State and bureaucracy. ______. Karl Marx’s theory of revolution. New York/London: Monthly Review Press, 1986. v. III: State and bureaucracy.
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33
______. The dictatorship of the proletariat from Marx to Lenin. New York/London: Monthly Review Press, 1987. ENGELS, F.; MARX, K. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2002. ______. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GEUSS, R. The idea of a critical theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. JAEGGI, R. Repensando a ideologia. Civitas, v. 8, 2008. LÊNIN, V. I. O Estado e a revolução. In: Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1988. v. 2. LICHTHEIM, G. Marxism. New York: Praeger, 1961. LÖWY, M. A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002. MANDEL, E. Teoria marxista do Estado. Lisboa: Antídoto, 1977. MARX, K. A Guerra Civil na França. In: ENGELS, F.; MARX, K. Textos. São Paulo: Alfa-Omega, 1977a. v. 1. ______. Crítica ao programa de Gotha. In: ENGELS, F.; MARX, K. Textos. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977b. v. 1. ______. Theories of surplus value. New York: Amherst, 2000. 3. v. ______. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. I. ______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MEDEIROS, J. M. S. O socialismo entre a reforma e a revolução. In: FRATESCHI, Y.; MELO, R.; RAMOS, F. C. (Org.). Manual de filosofia política. São Paulo: Saraiva, 2012. MELO, R. A ampliação do conceito do político: para uma outra recepção da teoria crítica de Marx. Cadernos de Filosofia Alemã, XIII, 2009. ______. A teoria da emancipação de Karl Marx. Cadernos de Filosofia Alemã, XVIII, 2011a. ______. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. Cadernos CRH, v. 24, n. 62, 2011b. POGREBINSCHI, T. O enigma do político: Marx contra a política moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. TEXIER, J. P. Revolução e democracia em Marx e Engels. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
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2 Sociologia e Direito na Teoria Durkheimiana Raquel Weiss
2.1. Considerações gerais sobre a vida e a obra do autor
viesse a se tornar o fundador de uma nova disciplina: a sociologia.
David Émile Durkheim nasceu em 15
Embora o nome “sociologia” já tives-
de abril de 1858 em uma pequena cidade
se sido criado por um de seus muitos pre-
chamada Épinal, situada na região da
cursores, Auguste Comte, Durkheim é
Alsácia-Lorena, epicentro das disputas en-
comumente considerado seu fundador em
tre França e Alemanha. Primogênito de
virtude de três razões fundamentais. Em
uma família de fortes raízes judaicas, des-
primeiro lugar, ele trabalhou muito para
de muito cedo decidiu não seguir o destino
que a sociologia fosse reconhecida insti-
que lhe havia sido traçado pela tradição:
tucionalmente, sendo, inclusive, transfor-
deixou para trás a escola de preparação
mada em uma disciplina universitária
para o rabinato, que deveria fazê-lo seguir
(LUKES, 1975). Segundo, ele propôs um
os passos do pai, do avô e do bisavô, e re-
método para essa nova ciência, que deve-
solveu trilhar um caminho diferente. Deci-
ria diferenciá-la das demais ciências exis-
diu que queria ser professor, sem imaginar
tentes naquela época; para isso, precisou
que os passos seguidos nessa nova direção
mostrar que ela possuía um objeto que
acabariam por criar as condições para que
lhe era próprio, exclusivo, justificando,
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Manual de Sociologia Jurídica
assim, a sua razão de ser (BORLANDI e
nição do direito como um fenômeno social,
MUCCHIELLI, 1995; BERTHELOT, 1995).
a teoria sobre a pena e a concepção de cri-
Finalmente, esse título também se deve
me. Porém, antes de avançar nesses três
ao fato de ter realizado numerosos traba-
temas, será fundamental munir o leitor com
lhos de investigação empírica sobre di-
alguns elementos estruturais da obra do
versos aspectos da realidade social, em
autor e do contexto intelectual em que está
particular sobre a educação, a moral, a re-
inserido, de modo que seja possível com-
ligião, a família, as relações no mundo do
preender o significado de suas proposições.
trabalho e, inclusive, o direito.
Afinal, qualquer pessoa que já pas-
No entanto, Durkheim não é conside-
sou pela experiência de tentar compreen-
rado apenas o fundador – ou um dos funda-
der uma teoria sabe bem os numerosos
dores, dependendo da interpretação – da
desafios com os quais se defrontará nesse
sociologia, mas também um “clássico” des-
momento inicial, e a melhor maneira de
sa disciplina. Um clássico é aquele autor
superá-los é tentar responder a algumas
que não tem apenas valor histórico, mas
perguntas fundamentais, como: Com quem
cuja obra pode ser lida e relida diversas ve-
esse autor debateu no processo de forma-
zes, fazendo-nos descobrir aspectos que
ção de sua teoria? Quais suas principais
não foram percebidos antes, e que pode ser
influências? Quais as principais ideias vi-
sempre “atualizado”, isto é, pode ser lido a
gentes em seu momento histórico? Quais
partir de questões e problemas do mundo
seus pressupostos ontológicos e metodoló-
contemporâneo (GIDDENS, 1997). Ainda
gicos? O que esperava realizar com seus
que certos elementos sejam datados e te-
escritos? Embora não seja possível aqui
nham sido superados, é sempre possível en-
responder a todas, são elas que nortearão
contrar, numa obra clássica, ideias e argu-
as considerações a seguir.
mentos que se mantêm relevantes e que instiguem o pensamento.
A primeira coisa a se ter em mente em relação a Durkheim é que ele viveu em um
É a partir dessa perspectiva geral que
cenário intelectual no qual a ciência triun-
propomos apresentar o que consideramos
fava como o modo mais perfeito de conheci-
como as três principais contribuições de
mento: ela não apenas diria aos homens
Durkheim para o campo do direito1: a defi-
como funcionam todas as coisas, como ainda poderia nos ajudar a erradicar todas as
1.
Para uma análise de outros aspectos do tema do direito nesse autor, como a origem social do contrato, veja-se, por exemplo, o texto “O fenômeno jurídico em Émile Durkheim” (ALBUQUERQUE, 2011).
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coisas que nos causam sofrimento. Sua formação intelectual se deu na segunda metade do século XIX, quando a Biologia havia
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Sociologia e Direito na Teoria Durkheimiana
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se transformado no grande modelo de ciên-
sociais. Mas não do modo como lhe eram
cia, inspirando, inclusive, o surgimento da
apresentadas naquela instituição. Ele en-
Psicologia, da Criminologia e até mesmo de
tão decidiu que queria fazer uma ciência
uma disciplina que acabou sendo muito
das coisas sociais e foi isso que lhe colocou
contestada, a Craniologia, que, dentre ou-
no caminho da criação da “sociologia”.
tras coisas, afirmava ser possível traçar o
Para que esse projeto se tornasse pos-
perfil de criminosos, reais ou potenciais, a
sível, Durkheim acreditava que seria preci-
partir das medições de seus crânios (MUC-
so encontrar um método que fosse real-
CHIELLI, 1998, p. 27-41).
mente científico, isto é, que realmente
Era a época em que grandes figuras
conseguisse desvendar o funcionamento do
como Louis Pasteur mostravam como a
mundo social e, ao mesmo tempo, que tives-
ciência poderia trazer benefícios para a vi-
se um objeto que fosse só dela, que fosse
da cotidiana, prevenindo e curando doen-
diferente do objeto da Biologia, da Psicolo-
ças cujas causas eram invisíveis aos olhos.
gia, da Física etc. Em seu livro As regras
E tudo isso seria possível graças ao que en-
do método sociológico, publicado original-
tão era considerado o método científico por
mente em 1895, o autor define que esse ob-
excelência, isto é, o método experimental
jeto é aquilo que ele chamou de “fatos so-
fundamentado sobre o princípio indutivo.
ciais”, que são maneiras de agir, de pensar,
Em outros termos, passou a existir um
de sentir compartilhadas por uma plurali-
consenso de que fazer ciência é dizer o que
dade de indivíduos e que, de certo modo,
as coisas são, e isso só seria possível a par-
impõem-se a nós, que nos constrangem a
tir da observação da realidade.
agir, pensar e sentir dessa maneira.
Esse ideal de ciência atraiu profun-
Esse caráter de constrangimento, de
damente a atenção de Durkheim, que, ain-
coerção, de imposição não vem do fato de
da na época em que estudava na prestigio-
que somos coagidos pela força física, como
sa École Normale Supérieure, em Paris,
se alguém tivesse apontado uma arma
criticava aquilo a que chamava de caráter
para nossa cabeça. Sentimos esse caráter
demasiadamente literário e filosófico da
coercitivo porque os fatos sociais não são
Escola (ALPERT, 1939; DAVY, 1919). Lá
criações individuais, mas criações coleti-
ele aprendeu filosofia, literatura, história,
vas, portanto não coincidem plenamente
em suma, todas as disciplinas que consti-
com nossos desejos, com nossas pulsões,
tuíam as chamadas “humanidades”. Por-
com nossa imaginação singular. Mas, por
tanto, era esse o tipo de questão que lhe
que nos deixamos influenciar por essas
interessava: as coisas humanas, as coisas
imposições, por que simplesmente não ig-
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noramos esse modo comum de proceder e
vas”, as quais acreditava que seriam uma
inventamos nossa própria maneira de fa-
das coisas que a sociologia deveria pesqui-
zer as coisas? Para o autor que estamos
sar e tentar explicar (MILLER, 2009).
discutindo, isso não ocorre porque a natu-
Finalmente, deve-se ainda lembrar
reza humana é dupla: é individual e, mes-
que a teoria de Durkheim foi construída
mo tempo, social.
em um período no qual a escola positiva
Desde o berço, moldamos a nossa per-
italiana estava se consolidando enquanto
sonalidade a partir de um jogo de forças
ciência, dando origem à criminologia
entre aquilo que é inerente a nosso ser bio-
(DIGNEFFE, 1998). Isso explica, em gran-
lógico e psíquico e aquele modo de ser, de
de parte, o interesse do autor pelo tema do
falar, de rir, de pensar que existe ao nosso
crime e da pena, bem como as constantes
redor. O preço de negar tudo isso que é con-
referências a Lombroso e Garofalo2 e o co-
siderado social seria ter um tipo de conduta
nhecido debate com Gabriel Tarde, espe-
não aceita ou não compreendida por aque-
cialmente em torno da explicação para o
les que nos cercam, os quais, por sua vez,
crime (DEBUYST, 1998; MUCCHIELLI,
não nos aceitariam como membros do gru-
1998). Quanto a isso, é importante notar
po. Isso geraria uma situação de sofrimento
que, motivado por essas discussões, o au-
que o indivíduo procura evitar a todo custo,
tor procurou atribuir a esses conceitos um
ainda que de forma inconsciente.
significado consistente com os princípios
Conforme o indivíduo cresce, passa a
gerais de sua sociologia.
interagir com grupos diferentes, com mo-
Feitas essas considerações gerais,
dos de pensar e agir distintos e, muitas ve-
podemos começar a nos aproximar mais
zes, antagônicos. O desenvolvimento de sua
das contribuições de Durkheim para o
personalidade é o resultado da maneira co-
campo do direito. Ora, para afirmar que o
mo reage a essas diversas influências, rejei-
direito poderia ser também um objeto da
tando ou assimilando diferentes crenças e
sociologia e estudado por seus métodos
modos de vida, cuja síntese, em parte ativa,
particulares, ele precisou defini-lo como
em parte passiva, faz com que seja uma
um fato social. Aliás, não um fato social
personalidade singular; mas, ao mesmo
qualquer, mas um dos mais importantes,
tempo, uma personalidade que possui em si
que seria uma das principais, senão a prin-
elementos sociais de diferentes tipos. São esses elementos sociais, esses aspectos compartilhados, que são objetivados naquilo que ele chama de “representações coleti-
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2.
As referências mais importantes aos criminalistas italianos estão nas notas do livro Da divisão do trabalho social, publicado pouco tempo depois da obra Criminologia, de Garofalo.
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cipal, forma de objetivação dessas repre-
é a justiça, mas a continuidade da existên-
sentações coletivas, isto é, ideias que são
cia da vida coletiva. Evidentemente, a jus-
compartilhadas por uma pluralidade de
tiça não é um elemento desprezado, mas
indivíduos. É isso que veremos a seguir.
algo que só tem sentido enquanto um ideal social4 nuclear, com encarnações particu-
2.2. O direito como um fato social
lares variáveis e que congrega as consciências individuais em torno de um dever-ser
A principal ideia que está pressupos-
comum. É justamente por isso que qual-
ta na tese de que o direito pode ser objeto
quer ato que pareça ferir nossa concepção
de uma ciência particular chamada Socio-
de justiça aparece a nós como algo tão gra-
logia é a de que ele também é um fato so-
ve, pois, para o autor, os ideais são ideias
cial, ou seja, é uma criação social, tem uma finalidade social e é na própria vida social que encontra sua fundamentação, sua justificativa. Portanto, para entender a concepção durkheimiana de direito, é importante notar que aqui o direito não é a expressão de qualquer forma de racionalidade3 – nem uma racionalidade divina,
sagradas (DIGNEFFE, 1998), e o sagrado é aquilo que possui um valor indiscutível, acima de qualquer outra coisa, cuja transgressão provoca uma forte reação por parte da sociedade. Voltaremos a isso mais tarde, na discussão sobre a função da pena e sobre o significado do crime.
como no caso da teologia, nem uma racio-
Por enquanto, vamos focar a atenção
nalidade pura prática, como no caso da fi-
sobre algumas outras características im-
losofia kantiana –, nem a descoberta racio-
plicadas em sua concepção de direito.
nal de uma lei natural, como em qualquer
Agora que já sabemos quais são, segundo
forma de jusnaturalismo. Nesse sentido,
Durkheim, a origem e a função mais geral
Durkheim aproxima-se mais da tradição
do direito, é preciso compreender de que
do direito positivo, ainda que tenha dife-
modo ele o define, quais as características
renças importantes em relação aos princi-
desse fato social tão particular. O princi-
pais representantes dessa tradição, como
pal texto para buscar essas informações é
veremos no final do texto.
sua tese de doutorado, que se tornou um
Além disso, no âmbito da sociologia durkheimiana a razão de ser do direito não 3.
Talvez poderíamos no máximo afirmar que pode vir a se tornar a expressão de algum tipo de racionalidade intersubjetiva esclarecida pela ciência, mas isso apenas em termos hipotético -ideais.
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de seus mais importantes livros: Da divisão do trabalho social. Ali, o direito permeia quase toda a discussão, pois o tema 4.
Para aprofundar o significado dos ideais sociais na teoria durkheimiana, veja-se: (DURKHEIM, 2004; WEISS, 2011 e 2012).
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Manual de Sociologia Jurídica
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principal do livro é a investigação das vá-
lado, ela é um conjunto de regras bem defi-
rias formas de solidariedade social, com a
nidas que prescrevem a nossa conduta. É
intenção de mostrar que a divisão do tra-
nesse sentido que, segundo Durkheim, a
balho é a principal forma de solidariedade
moral aparece a nós como um dever que
do mundo moderno, em que existe aquilo a
constrange a nossa vontade, pois ela é um
que o autor chama de “solidariedade orgâ-
fato social.
nica”, que se oporia à “solidariedade mecâ-
Porém, para o autor, esse seria ape-
nica”, que seria própria das solidariedades
nas o caráter mais exterior da moral, ape-
tradicionais.
nas a forma com que ela aparece para nós.
Em relação a isso, o autor afirma, por
Aquilo que constitui a sua verdadeira subs-
exemplo, que o direito é a forma mais visí-
tância, a sua alma, é a moral enquanto um
vel da solidariedade (DURKHEIM, 1999a,
“bem”, enquanto algo que desejamos reali-
p. 31), ou ainda que, sempre que existe
zar. E por quê? Como é possível desejar
uma forma de vida social minimamente
algo que se impõe a nossos desejos, algo
organizada, há também alguma forma de
que muitas vezes nos custa sacrifícios para
vida jurídica (DURKHEIM, 1999a, p. 31-
realizar? A resposta a essas questões cons-
32), o que nos faz perceber a centralidade
titui núcleo da teoria moral durkheimaina.
desse fenômeno. Para encontrar informa-
Dito de maneira breve, a moral é um
ções ainda mais precisas sobre o verdadeiro
bem porque é expressão do ideal social que
significado do direito, é necessário recorrer
compartilhamos. Tomando de empréstimo
a uma parte da introdução desse mesmo li-
o par conceitual proposto pelo filósofo Fi-
vro que foi apresentada apenas na primeira
chte, o dever é a “letra” da moral, é seu as-
edição e suprimida nas edições posteriores.
pecto formal e exterior, enquanto o bem é
Esse trecho foi publicado separadamente
seu “espírito”, que não é apenas a parte
anos mais tarde (DURKHEIM, 1975) e
mais interior dessa realidade, mas também
constitui uma das peças mais cruciais
sua substância, sua razão de ser. Na pers-
para apreender sua concepção de direito
pectiva durkheimiana, aderir a uma moral
enquanto algo profundamente relacionado
não é aderir a uma sociedade enquanto en-
com o elemento mais importante da vida
tidade física, mas é aderir ao ideal social
social: a moral.
que ela representa, que são aquelas repre-
Grosso modo, a moral é o que define
sentações investidas de um caráter sagrado
o domínio do bem e do mal, do certo e do
que dizem o que desejamos ser. Portanto,
errado, do justo e do injusto, do que deve-
aderir a uma moral não é apenas obedecer
mos e do que não devemos fazer. De um
a um conjunto de regras, mas é, sobretudo,
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Sociologia e Direito na Teoria Durkheimiana
41
aderir a certo ideal social. É acreditar que
em que consiste no efeito, positivo ou nega-
determinado conjunto de valores são bons
tivo, provocado por uma regra moral ou ju-
e desejáveis.
rídica. Enquanto no mundo da natureza as
Mas isso não quer dizer que as regras não sejam importantes. As regras são esses ideais convertidos em prescrições de conduta. Por exemplo, ao ideal que considera a vida humana como algo inviolável corresponde à regra de não cometer homicídio, dentre numerosas outras que podem ser vinculadas a esse ideal geral, como a
consequências são sempre resultados imediatos da ação, no mundo da moral e do direito, a consequência é sempre mediada, e a sanção consiste nessa mediação; afinal “essa reação predeterminada, exercida pela sociedade sobre o agente que infringiu a regra, constitui aquilo a que chamamos de sanção” (DURKHEIM, 1975, p. 275).
proibição da tortura, ou o fato de o Estado
Ou seja, a prescrição “não coloque o
tornar-se cada vez mais responsável por
dedo na tomada” não é nem moral, nem ju-
garantir saúde a seus cidadãos. A regra é a
rídica, porque a consequência de minha
forma de uniformizar as condutas na me-
desobediência, o choque, resultará ime-
dida do possível, para garantir que o ideal
diatamente do ato. Porém, se eu cometo
social seja respeitado.
um assassinato, nada vai me acontecer
Tudo isso que vale para a moral vale para o direito. Em determinado aspecto, a moral e o direito são um mesmo fenômeno: ambos consistem em regras de conduta que servem para garantir a continuidade da existência da sociedade, não apenas de seu corpo (o conjunto dos indivíduos em
imediatamente. As consequências que recairão sobre mim serão sempre mediadas pelas sanções morais e/ou jurídicas5: reprovação, exclusão do convívio social cotidiano, encarceramento etc. Para compreender a diferença entre esses dois tipos de sanção, e entre o direito e a moral, vamos recorrer às palavras do autor:
interação), mas também a sua alma (os acreditamos que esses dois domínios “sãoNósmuito intimamente unidos para que pos-
ideais coletivos). Porém, ao mesmo tempo, são fenômenos diferentes.
sam ser radicalmente separados. Há entre eles trocas contínuas; assim como há regras jurídi-
O ponto de partida para a identificação de ambos os fenômenos, e que também constitui o núcleo de sua diferenciação, é o conceito de sanção. Grosso modo, a sanção é definida como a característica que mais facilmente permite identificar um fato moral ou um fato jurídico, na medida
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5.
Claro que se pode ainda mencionar a reação psíquica de culpa, que pode se fazer valer mesmo quando o ato permanece secreto. Mas, na perspectiva durkheimiana, mesmo a culpa sentida individualmente é uma expressão de um ideal social internalizado pelo indivíduo, que faz com que ele mesmo recrimine sua ação, na medida em que ele próprio aderia a esse ideal.
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cas que se tornam morais, há regras morais que se tornam jurídicas. Muito frequentemente o direito não se desvincula dos costumes que constituem o seu substrato, tampouco os costumes do direito que os realiza e os determina. [...] Contudo, a sanção que é vinculada às regras a que chamamos mais especialmente de morais apresenta características muito particulares que nos permite determiná-las. [...] A diferença que separa esses dois tipos de penas não diz respeito a suas características intrínsecas, mas à maneira como são administradas. Uma é aplicada por cada um e por todos, a outra por um corpo definido e bem constituído; uma é difusa, a outra é organizada” (DURKHEIM, 1975, p. 79-80).
Portanto, a principal diferença entre moral e direito não reside tanto no conteú-
2.3. Os argumentos sobre a pena Como acabamos de ver, a sanção é uma reação predeterminada a uma ação, que pode ser tanto positiva quanto negativa. A reação positiva é sempre uma reação de aprovação, que muitas vezes implica alguma forma de recompensa. Porém, a sua forma mais evidente é geralmente a sanção negativa, na medida em que consiste numa reação mais ostensiva do que a positiva. Tal sanção negativa, isto é, uma reação de desaprovação do ato que infringiu a regra, é chamada de punição ou, em termos mais técnicos, pena.
do da regra, nem no fato de a moral consti-
Como o tema da pena é um dos mais
tuir o domínio da ação por respeito à lei,
importantes das teorias jurídicas, é possí-
enquanto o direito define o domínio da
vel afirmar que os argumentos de Durkheim
ação em conformidade com a lei. A princi-
a esse respeito constituem possivelmente
pal diferença é que a moral é um domínio
sua principal contribuição substantiva para
mais difuso, cujas sanções não são tão bem
a sociologia do direito.
definidas e podem ser aplicadas por qualquer membro da sociedade. Por sua vez, o direito é caracterizado por regras muito específicas,
estabelecidas
mediante
um
processo maior de deliberação entre aqueles encarregados de instituí-las, e cuja desobediência implicará uma punição estabelecida a priori e será imputada por um corpo de especialistas que possuem a autoridade para julgar sua ação e determinar sua punição. No próximo item, veremos com mais detalhes as várias dimensões implicadas na concepção durkheimiana de pena e de sua função social.
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De forma geral, a discussão sobre a pena, propriamente dita, pode ser encontrada em três contextos distintos. Em primeiro lugar, as considerações a esse respeito têm lugar em sua investigação sobre os tipos de solidariedade social, em que busca uma explicação para o fenômeno da divisão do trabalho nas sociedades modernas6. O autor introduz a discussão sobre a 6.
Conforme observa Françoise Digneffe (DIGNEFFE, 1998b, p. 373), a discussão apresentada nesse texto “é a mais conhecida, mas ao mesmo tempo é a mais imprecisa e a mais contestada atualmente”, e suas teses fundamentais reaparecem também em As regras do método sociológico e no
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pena, ensaiando uma definição bastante
a natureza da pena não mudou essencial“mente, [mas], tudo o que se pode dizer hoje é
peculiar a esse respeito, tendo como objetivo maior chegar à proposição de que as
que a necessidade de vingança está mais bem dirigida hoje do que ontem. O espírito de previdência que se despertou não deixa mais o campo tão livre à ação cega da paixão; ele a contém em certos limites, opõe-se às violências absurdas, aos estragos sem razão de ser. Mais esclarecida, ela se difunde menos casualmente; já não a vemos voltar-se contra inocentes. Ela continua sendo, porém, a alma da penalidade”.
sociedades em que o vínculo social é estabelecido de maneira “mecânica”, isto é, por similitudes, são aquelas em que o desrespeito à solidariedade constitui um “crime” e, portanto, implica uma sanção repressiva, uma “pena”. Segundo o autor:
“
O vínculo de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos pena. Procurar seu vínculo é, portanto, perguntar-se qual a causa da pena, ou, mais claramente, em que consiste essencialmente o crime” (DURKHEIM, 1999a, p. 39).
43
Porém, isso não quer dizer que o Direito Penal não possua qualquer razão de ser nas sociedades contemporâneas, muito ao contrário. Embora sua importância na manutenção da solidariedade social seja menor do que nas sociedades com solidariedade orgânica, ele continua a desempenhar o papel de “guardião” dos valo-
Portanto, a discussão sobre a pena ocorre em função da investigação sobre os tipos de solidariedade. Para o autor, a pena é caracterizada inicialmente como uma “reação passional”, o que se mostra tanto mais evidente quanto menos ilustradas são as sociedades, porque, nas sociedades mais ilustradas, o que se verifica são tentativas de dissimular essa motivação básica, afinal
res sociais mais importantes, dotados até mesmo de certa sacralidade, porque expressão da própria consciência coletiva7. Aliás, essa reação mais passional por parte da sociedade, e que adquire uma forma mais racionalizada no âmbito das regras jurídicas, é facilmente percebida diante de casos que geram maior comoção por parte da sociedade, precisamente porque representam uma ameaça a valores que estão dentre os mais sagrados, por exemplo a re-
artigo que ainda não possui tradução em português, “Les Deux Lois de l`Évolution Pénale”. Em contrapartida, considera que a discussão sobre o tema que aparece no livro A educação moral “é a menos conhecida dos criminologistas e dos juristas”, mas é justamente ali que “aparecem considerações estimulantes sobre as formas que poderiam tomar a reação social aos atos considerados como indesejáveis” (DIGNEFFE, 1998b, p. 377).
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lação de proteção e afeto que se espera
7.
Sobre o caráter “sagrado” que o autor atribui à sociedade, veja-se especialmente As formas elementares da vida religiosa (DURKHEIM, 2003) e O ensino da moral na escola primária (DURKHEIM, 2007).
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que exista numa relação entre pais e filhos. Dentre os episódios relativamente recentes que provocaram uma reação de natureza explicitamente passional em ní-
gratuita. É o sinal a atestar que os sentimentos são sempre coletivos, que a comunhão dos espíritos na mesma fé permanece a mesma e, com isso, repara o mal que o crime fez à sociedade”(DURKHEIM, 1999a, p. 81-82).
vel nacional, podemos recordar o Caso Richthofen e o Caso Nardoni. Entretanto, para Durkheim a pena não é justificada pelo seu caráter puramente retributivo, embora a necessidade de vingança e expiação esteja na base de sua motivação mais aparente, nem puramente preventivo, uma vez que a inibição de novos crimes pelo agente (por reabilitação ou por neutralização) ou pelos demais
Em suma, no que se refere à sua função, o sentido da pena é o de restituir o respeito pela lei, é lembrar aos indivíduos que aquele ideal no qual acreditavam continua valendo, que aquele sistema não foi ameaçado e que a regra continua a ter autoridade. Serve, por exemplo, como afirmação de que a Constituição que regulamenta e protege a vida dos indivíduos no contexto de um Estado de Direito não foi
membros da sociedade (pelo medo da pu-
descartada. A pena é o que garante que os
nição) pode até ser uma consequência da
crimes não abalem a Constituição. Em
pena, mas não se trata de uma consequên-
contrapartida, quando as violações não
cia necessária e, tampouco, consiste na
são punidas, a regra – no caso do nosso
verdadeira razão de ser da penalidade.
exemplo, a própria Constituição – perde a
Tendo em vista essas considerações, che-
sua credibilidade, implicando um enfra-
gamos à seguinte concepção sobre o fun-
quecimento dos ideais sociais que ela ex-
damento e a função da pena:
pressa. Portanto, esse deveria ser o funda-
“
A pena não serve, ou só serve de maneira muito secundária, para corrigir o culpado ou intimidar seus possíveis imitadores; desse duplo ponto de vista, sua eficácia é justamente duvidosa e, em todo caso, medíocre. Sua verdadeira função é manter intacta a coesão social, mantendo toda a vitalidade da consciência comum. Negada de maneira tão categórica, esta perderia necessariamente parte de sua energia, se uma reação emocional da comunidade não viesse compensar essa perda, e daí resultaria um relaxamento da solidariedade social. [...] Assim, ao mesmo tempo em que é um produto necessário das causas que a geram, essa dor não é uma crueldade
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mento real da pena, e não uma expiação ou uma forma de vingança. Esse é um elemento que aparece de forma mais explícita no segundo contexto em que esse tema figura na obra de Durkheim, isto é, em seus escritos sobre a educação, especialmente na segunda parte do livro A educação moral. Aqui, a discussão da pena é desvinculada do direito penal enquanto tal, uma vez que é circunscrita ao universo escolar; contudo, talvez por isso mesmo, por não estar
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preso a questões de fundo jurídico, o au-
cessário enquanto cumpre a função de
tor encontra maior liberdade para refletir
tranquilizar as consciências de que sua fé
sobre as características mais gerais da
nos valores em que acreditam continua a
pena, retomando e aprofundando alguns
ter as mesmas razões de ser. Portanto, o
dos argumentos apresentados em Da di-
tratamento austero em relação ao crimi-
visão do trabalho.
noso, a dor presente na punição, é apenas
A questão central que o autor preocupa-se em responder é “por que é necessário punir?”. Antes de apresentar sua posição, procede a uma revisão das duas teorias predominantes à época, que, de um lado, preconizavam a punição como simples meio de prevenir a inobservância da regra e, de outro, como simples expiação. Com relação ao primeiro caso, afirma que a pena só poderia ter alguma eficácia sobre aqueles que não manifestam certa tendência para o crime, mas muito pouco sobre aqueles predispostos a isso, afinal “o castigo é o risco profissional do delinquente” (DURKHEIM, 2008, p. 121). Em relação ao segundo tipo de resposta, contestou que apenas a expiação pela simples expiação pudesse consistir em justificativa plausível para a aplicação da pena, porque “a pena, concebida como uma simples expiação, nada mais é do que uma forma apenas renovada do antigo talião; e a lei de
um reflexo da pena, mas não seu elemento essencial, é apenas sua característica mais exterior, mais visível. Na verdade, se a expiação do crime fosse a verdadeira essência da pena, essa essência se realizaria de maneira muito imperfeita, isso porque
“
nem o castigo escolar, nem a pena propriamente dita, provocam um verdadeiro sofrimento nas naturezas fundamentalmente rebeldes. Não importa; nem por isso ela deixa de conservar todas as suas razões de ser. Estabelecermos uma escala penal não é imaginarmos suplícios cientificamente hierarquizados” (DURKHEIM, 2008, p. 135).
Finalmente, o terceiro contexto em que Durkheim tematiza o problema da pena é em seus escritos sobre o próprio direito. O tratamento mais extenso e sistemático sobre isso teve lugar na primeira parte de um curso que preparou, com o título de Física dos Costumes e do Direito, ministrado pela primeira vez na Universidade de Bourdeaux, entre 1896 e 1900.
talião, diz-se, não mais pode ser admitida
Essa parte inicial tratava da teoria do au-
pela consciência moral de nossos contem-
tor sobre a obrigação, a sanção e a moral e
porâneos” (DURKHEIM, 2008, p. 130).
pretendia ser um estudo geral do direito e
De maneira muito semelhante ao que
das práticas sociais, centrado sobre o fun-
defendera no livro anterior, Durkheim
cionamento delas no conjunto da socieda-
afirma que a aplicação da pena é algo ne-
de. Infelizmente, hoje não é possível saber
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com precisão o que o autor escreveu a esse
textos, talvez o mais interessante a reter
respeito, pois os manuscritos dessa pri-
seja o argumento de que a essência do cri-
meira parte do curso foram destruídos,
me não reside no ato em si, mas no fato de
junto com outros documentos, durante a
que constitui uma ofensa grave à consciên-
Segunda Guerra8.
cia coletiva, ou seja, “não se deve dizer que
Um artigo que se enquadra nesse
um ato ofenda a consciência comum por ser
mesmo contexto é Deux lois de l`évolution
criminoso, mas que é criminoso porque
pénale, que pode ser lido como um desdo-
ofende a consciência comum” (DURKHEIM,
bramento das pesquisas realizadas sobre o
1999a, p. 52).
curso supramencionado. Trata-se de um
Portanto, é na própria consciência
estudo empírico em que o autor defende
coletiva que se deve buscar as explicações
que a intensidade da pena diminui com a
para aquilo que é considerado um crime
complexificação das sociedades e na medi-
em determinada sociedade, afinal o crime
da em que o poder político se torna mais
é aquilo que coloca em risco a validade
absoluto. Outra “lei” apreendida a partir de
dessas representações que constituem
suas investigações postula que a privação
essa consciência, que é a maior fonte de
da liberdade, e apenas da liberdade, duran-
autoridade moral e a condição de possibili-
te períodos variáveis de tempo, tende a se
dade da própria sociedade. Dessa forma,
tornar o tipo “normal” de repressão.
segundo o autor, “o crime não é apenas a
Para complementar o quadro geral
lesão de interesses, inclusive considerá-
das contribuições da teoria durkheimiana
veis, é uma ofensa a uma autoridade de
para a sociologia, vamos analisar breve-
certa forma transcendente” e, acrescenta,
mente o fenômeno que é a contrapartida
“experimentalmente, não há força moral
necessária da pena, sem a qual ela sequer
superior ao indivíduo, salvo a consciência
existiria: o crime.
coletiva” (DURKHEIM, 1999a, p. 56). Vejamos agora como esse tema apa-
2.4. O significado social do crime Dentre as numerosas páginas dedicadas à discussão do crime em diferentes
8.
A este respeito, veja o artigo de Marcel Mauss (1918, p. 12). Apenas a segunda parte do manuscrito, relativa à moral prática, foi preservada, tendo sido publicada em 1950 com o título de Lições de sociologia, em que o tema da pena aparece apenas como pressuposto, mas não é desenvolvido.
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rece na última seção do terceiro capítulo do livro As regras do método sociológico, onde encontramos uma afirmação que é possivelmente a mais controversa a esse respeito, qual seja, a de que o crime é entendido como um “fato normal”. Em primeiro lugar, é preciso mencionar que o autor afirma que um fato social é “normal”
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quando ele é o que deveria ser e é conside-
jacente do real, que ainda não foi incorpo-
rado patológico quando deveria ser de ou-
rada pela maioria dos indivíduos. Vejamos
tro modo. Portanto, o próprio critério de
como isso se relaciona com a questão do
normal tem seu sentido e sua validade de-
crime.
terminados na relação com um fim – o que deveria ser – previamente estabelecido.
Vamos inicialmente relembrar que Durkheim define o crime como qualquer
Que fim é este? Durkheim o apresen-
forma de violação ou ofensa, por menor
ta diretamente a partir da famosa metáfo-
que seja, da consciência moral. Ao afirmar
ra biológica: “Com efeito, tanto para as so-
que se trata de um fenômeno normal, não
ciedades quanto para os indivíduos, a
quer dizer que o crime seja uma prática
saúde é boa e desejável, enquanto a doen-
generalizada em todas as sociedades,
ça é algo ruim, que deve ser evitado”
pois uma prática generalizada sequer po-
(DURKHEIM, 1999b, p. 51). Nesse sentido,
deria ser considerada crime; mas quer an-
a saúde da sociedade é esse fim superior
tes dizer que se trata de um fato presente
que deveria servir como parâmetro para o
em todas as sociedades, isto é, generaliza-
estabelecimento do normal e do patológico.
do em uma “espécie” determinada, para
Na verdade, há dois sentidos implica-
não dizer em todas as espécies.
dos no conceito de normal. No primeiro, o
Nesse sentido, o crime nos ajuda a
normal é aquilo que é geral na extensão de
ver a diferença entre um fato social normal
uma dada sociedade, ou que ocorre em to-
qualquer e um fato social moral. O crime,
das as sociedades de um mesmo “tipo”. No
dentro de determinadas taxas, faz parte
segundo, refere-se àquilo que está implica-
do funcionamento normal da sociedade, o
do na lógica subjacente ao real, mesmo que
que o torna um fato social normal. No en-
não seja compartilhado pela “média” dos
tanto, a própria definição de crime é a de
indivíduos. Do mesmo modo, um comporta-
um ato imoral, enquanto ofensa à consciên-
mento que não corresponde ao normal
cia pública, o que nos faz perceber que
pode ser patológico, quando ameaça a exis-
nem tudo o que é “normal” é moral.
tência da vida social enquanto um organis-
Mas o autor vai mais além, afirmando
mo minimamente integrado, ou pode ser
que o crime, ao menos certo tipo de crime,
simplesmente desviante. Nesse caso, ele
não é apenas algo inevitável, mas também
não corresponde ao comportamento “nor-
desejável. Porém, como é possível que o
mal”, mas não tem um impacto prejudicial;
crime possa ser um fato desejável? Ora,
ao contrário, pode até ter uma função útil,
para Durkheim, uma sociedade sem cri-
na medida em que explicita essa lógica sub-
me, isto é, sem desvios da consciência mo-
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ral média, seria uma sociedade de santos,
pela ampla maioria dos indivíduos e, nesse
uma sociedade impossível, baseada sobre
sentido, constituíam um crime, seja ele do
uma consciência social absolutamente ho-
ponto de vista da moral, seja do ponto de vis-
mogênea e inflexível. Não quer dizer que o
ta do direito, ou de ambos.
crime não possa ter formas anormais,
Contudo, se esse tipo de crime for con-
como no caso de uma taxa de criminalida-
siderado um movimento de pressão por
de excessiva, que inviabilizaria a própria
transformação da moral existente e que an-
convivência social, incutindo medo e inse-
tecipe as mudanças que estão por vir, que
gurança.
estão inscritas na própria dinâmica da socie-
No entanto, a existência de alguns
dade, a sociologia da moral e do direito deve-
crimes é inevitável, enquanto a existência
rá considerá-lo não apenas normal, como
de outros é até mesmo profundamente de-
desejável. Aliás, de um ponto de vista estri-
sejável. Segundo o autor, o crime está liga-
tamente ético, esse tipo de crime será tão ou
do às condições fundamentais de toda e
mais desejável do que as próprias regras
qualquer vida social e representa o ele-
atualmente consideradas morais. Vejamos a
mento que torna possível a dinâmica, ou
seguir como Durkheim descreve essa fun-
melhor, a própria evolução da moral e do
ção transformadora e desejável do crime:
direito que devem mesmo ser dinâmicos. Esse tipo particular de crime, que antecipa a consciência moral do futuro e justamente por isso desvia daquela existente no presente, está na base de uma ideia quase paradoxal da teoria durkheimiana que pode ser resumida da seguinte maneira: aquilo que é considerado a moral normal de um determinado período em uma sociedade determinada é a moral encarnada na consciência dessa sociedade; portanto, um comportamento ou ideia que desafie essa consciência moral será sempre considerado imoral. Podemos, por exemplo, pensar no caso do divórcio, ou até mesmo das relações homoafetivas até a primeira metade do século XX. Eram comportamentos ou ideias repudiados
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“
Não é mais possível hoje contestar que não apenas a moral e o direito variam de um tipo social a outro, como também mudam em relação a um mesmo tipo, se as condições da existência coletiva se modificam. Mas, para que essas transformações sejam possíveis, é preciso que os sentimentos coletivos que estão na base da moral não sejam refratários à mudança, que tenham, portanto, apenas uma energia moderada. Se fossem demasiado fortes, deixariam de ser plásticos. Todo arranjo, com efeito, é um obstáculo para um novo arranjo, e isso tanto mais quanto mais sólido for o arranjo primitivo. [...] Ora, se não houvesse crimes, essa condição não seria preenchida; pois tal hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chegado a um grau de intensidade sem exemplo na história. Nada é bom indefinidamente e sem medida. É preciso que a autoridade que a consciência moral possui não seja excessiva; caso contrário, ninguém ousaria contestá-la, e muito facil-
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Sociologia e Direito na Teoria Durkheimiana mente ela se cristalizaria numa forma imutável. Para que ela possa evoluir, é preciso que a originalidade individual possa vir à luz; ora, para que a do idealista que sonha superar seu século possa se manifestar, é preciso que a do criminoso, que está abaixo do seu século, seja possível. Uma não existe sem a outra” (DURKHEIM, 1999b, p. 71).
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e produzindo novas sínteses. O direito deve ser sensível às representações sociais elaboradas no seio da coletividade: muitas vezes, as transformações ocorridas nos ideais sociais têm um ritmo mais acelerado do que as transformações jurídicas, e a sociologia deveria ser capaz de mostrar
Portanto, talvez isso resuma uma das ideias mais intrigantes da teoria de
quando o direito passou a ser equivocadamente conservador.
Durkheim, que pode ser considerada uma
Por outro lado, muitas vezes a cons-
das tarefas mais importantes da sociologia
ciência moral de grupos que são socialmen-
do direito de matriz durkheimiana. Ou seja,
te mais numerosos legitimam prescrições
essa matriz sociológica que nos apareceu a
que já não são coerentes com a lógica mais
princípio como fundamentalmente positiva
fundamental da sociedade em questão.
mostra que é possível ser investida de uma
Nesse caso, o direito não deve ser a expres-
intenção crítica, na medida em que o direi-
são dessa consciência média e a sociologia
to não é considerado simplesmente um epi-
deveria ser capaz de fornecer justificativas
fenômeno dos costumes e a sociologia não
para esse descolamento. Por exemplo, a de-
precisa ser apenas uma descrição das re-
cisão do Supremo Tribunal Federal de ga-
gras jurídicas que sintetizam esses costu-
rantir a união civil de casais formados por
mes na forma da lei.
pessoas do mesmo sexo poderia ser rejeitada caso houvesse um plebiscito a respeito.
Considerações finais
Não obstante, de um ponto de vista sociológico, essa decisão poderia ser justi-
Tomadas em conjunto sua concepção
ficada, na medida em que ela seria a ex-
sobre o direito como fato moral, sua con-
pressão da lógica mais fundamental das
cepção sobre o significado e a função so-
sociedades pautadas pela solidariedade
cial da pena, além da ideia do crime como
orgânica, ou seja, aquelas cuja existência
um fenômeno normal em seu duplo senti-
depende não do fato de que todos os indi-
do, podemos vislumbrar outras tarefas e
víduos partilhem as mesmas convicções,
horizontes possíveis para a sociologia do
mas justamente do fato de que ela permite
direito. Primeiro, ela deve ser capaz de
que estes sejam profundamente diferen-
perceber que há uma relação dialética en-
ciados. Ou seja, uma decisão que garanta a
tre moral e direito, na qual ambos se in-
qualquer indivíduo unir-se afetivamente
fluenciam mutuamente, transformando-se
com quem desejar estaria plenamente de
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acordo com a razão de ser, com o fundamento último das sociedades contemporâneas, por mais que esses modos de vida não sejam reconhecidos por uma parcela grande da população. Nesse caso, o normal enquanto média estatística deve ser subsumido ao normal enquanto lógica do real. Ao mostrar isso, a sociologia do direito estaria realizando uma de suas mais importantes atribuições. Vemos, portanto, que há um campo de atuação imensamente amplo para essa disciplina e que, por mais que certos elementos da teoria durkheimiana tenham um caráter datado, isso não significa que não seja possível encontrar muitos outros que se mostrem relevantes no cenário atual, os quais o presente texto procurou indicar brevemente.
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3 Formalismo como Conceito Sociológico Uma introdução ao conceito weberiano de direito
Samuel Rodrigues Barbosa
Max Weber (Erfurt, 1864 – Munique,
carreira universitária: Sobre a história das
1920) cursou direito e chegou a advogar.
companhias comerciais na Idade Média.
Mas foi como professor, e não como “prati-
Segundo fontes sul-europeias [Zur Ges-
cante”, que ele veio a se ocupar com o di-
chichte der Handelsgesellschaften im Mit-
reito. As investigações jurídicas possuem
telalter. Nach südeuropäischen Quellen],
uma posição-chave em sua vasta obra, não
de 1889, e A história agrária romana e
da perspectiva dogmática (ele não foi um “doutrinador”), mas a partir de outras disciplinas, como a economia, a história, a sociologia – muito embora, durante um curto período, tenha sido professor de direito comercial e cambiário1.
sua significação para o direito público e privado [Die römische Agrargeschichte in ihrer Bedeutung für das Staats - und Privatrecht], de 18912. Após esses trabalhos sobre a história do direito, Weber escreveu, na primeira década do século XX, alguns ensaios de teoria da ciência, vários dos quais
Os estudos sobre o direito datam de
merecem destaque para elucidar os princí-
suas duas teses, exigidas para se iniciar a
pios metodológicos de uma perspectiva não
1.
Vide a biografia de Weber escrita por sua mulher (WEBER, 2003).
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2.
Do último livro, há tradução em português (WEBER, 1994).
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Manual de Sociologia Jurídica
dogmática para a conceituação do direito3.
Igualmente, há uma linhagem da teoria so-
Um, em especial, intitula-se “Stammler e
cial que também pergunta pelo formalismo
a Superação da Concepção Materialista de
do direito; não é uma investigação centra-
História” [“R. Stammlers ‘Überwindung’
da na “clarificação conceitual”, preocupada
der materialistischen Geschichtsauffas-
com o que os juízes fazem quando são for-
sung”], de 1907, elaborado em resposta ao
malistas ou devem fazer (ou não) para sê-
livro recém-publicado do jus-filósofo Rudolf
-lo. O acento é colocado nos nexos do direi-
Stammler. Até o final da vida, Weber se ocu-
to formal com a economia e a política. De
pou com o direito, como revela sua última
Neumann a Habermas, de Selznick/Nonet
obra, que permaneceu inacabada. Ela ficou
a Teubner, a linhagem parte de Weber, que
conhecida como Economia e Sociedade
colocou no centro do debate sociológico o
[Wirtschaft und Gesellschaft], editada pela
problema do formalismo6. Pela primeira
primeira vez por sua mulher em 1922. Nesta
vez, as qualidades formais do direito foram
obra, aparecem os resultados de pesquisas
investigadas sob uma perspectiva evolucio-
anteriores, que a bem da verdade não se li-
nária e comparativa. A pergunta central é a
mitavam ao direito, a exemplo dos estudos
respeito da aquisição evolutiva das quali-
sobre legitimidade e dominação, sobre a re-
dades formais no quadro mais amplo da
lação entre economia e religião. O direito
racionalização social e cultural típicas do
aparece, em especial, na Parte I, Capítulo I
Ocidente, e, com base nisso, faz-se o diag-
– “Conceitos sociológicos fundamentais”; na
nóstico da época – as contraditórias ten-
Parte II, Capítulos I – “A economia e as or-
dências antiformais da sua época.
dens sociais” e VII – “Sociologia do direito”. Em outro trabalho, comentamos as duas primeiras entradas4. Já neste texto, escolhemos discutir o conceito weberiano de direito formal, que é central para sua sociologia do direito. ***
No capítulo “Sociologia do Direito”7, Weber pergunta “pelo grau e tipo [Art] da racionalidade do direito” (WEBER, 1980, p. 395; WEBER, 1999a, p. 11). O problema do grau é estudado com a distinção racional/ irracional: podemos falar em direito mais ou menos racional; bem como pesquisar
O formalismo como problema de pes-
sua “direção”, isto é, sua racionalização.
quisa é recorrente na teoria do direito5.
Mas o que do direito sofre a racionalização?
3.
4. 5.
Foram reunidos em uma coletânea (WEBER, 1988; e, em português, WEBER, 1993). Ver Barbosa (2007). Para trabalhos de duas épocas diferentes: Bobbio (1958) e Schauer (1988).
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6.
7.
Vide, como exemplo dessa linhagem, Teubner (1983); e, no Brasil, Rodriguez (2009). Trata-se do Capítulo 7 da segunda parte da obra póstuma Economia e sociedade (WEBER, 1980; WEBER, 1999a).
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Formalismo como Conceito Sociológico
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Esse é o problema do tipo, respondido com
fundamentada significa que o julgamento
o par formal/material. Desse modo, é possí-
não é simplesmente ad hoc, mas transcen-
vel falar em racionalização formal ou mate-
de a “irracionalidade do caso concreto”.
rial do direito. Os pares racional/irracional
Weber subdivide a generalização em
e formal/material se combinam para consti-
“obtenção analítica de proposições jurídi-
tuir quatro tipos-ideais de direito: formal
cas” e “trabalho sintético de construção jurí-
irracional; material irracional; formal racio-
dica” (WEBER, 1980, p. 395-396; WEBER,
nal; e formal material.
1999a, p. 12). A analítica se fundamenta
Nosso interesse está centrado na ra-
numa casuística e a fomenta (circularidade
cionalização do direito. E aqui, como alhu-
constatável no processo histórico). Em ou-
res, “racional” pode ter muitos sentidos
tras palavras, a partir da comparação de ca-
“dependendo das direções que toma a ra-
sos e decisões que foram colecionados, é
cionalização no desenvolvimento [Entfal-
possível generalizar uma proposição jurídi-
tung] do pensamento jurídico” (WEBER,
ca. Penso, por exemplo, na proposição “o
1980, p. 395; WEBER, 1999a, p. 11). A racio-
acessório segue o principal”. A generalização
nalização, definida como manipulação inte-
aqui depende da análise do conjunto de ca-
lectual [Denkmanipulation], divide-se em
sos e decisões anteriores.
duas direções principais: a generalização e a sistematização. Quanto mais generalizado ou sistematizado, mais racional o direito. Sem prejuízo da redundância, vale dizer: racionalização do direito significa o trabalho de generalização ou sistematização.
A construção sintética, por sua vez, diz respeito à consistência de um conjunto de proposições reunidas em algum “instituto jurídico” como família, propriedade etc. Nesse caso, lembro a proposição “o vendedor responde pelo perecimento da coisa antes
Generalização designa “a redução dos
da tradição”. Em que se fundamenta essa ge-
fundamentos [Gründe] que determinam a
neralização? Tal proposição faz parte de um
decisão, no caso concreto, a um ou a vários
conjunto de outras proposições: responde o
‘princípios’: tais são as ‘proposições jurídi-
vendedor, porque antes da tradição é ele o
cas’ [Rechtssätze]”8 (WEBER, 1980, p. 395;
proprietário, ainda que a coisa já tenha sido
WEBER, 1999a, p. 11). Que a decisão seja
vendida. Instituto jurídico significa a tipificação das características relevantes nos fa-
8.
“Para nossas concepções atuais”, as proposições jurídicas são “deduzidas [‘de normas estatuídas’] pelo trabalho do pensamento jurídico” (WEBER, 1980, p. 394; WEBER, 1999a, p. 10). Weber, pois, distingue norma de proposição. Proposições são racionalizações a partir das normas positivas e são aplicadas aos casos.
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tos (no exemplo, houve ou não a tradição?) e a síntese de proposições. Essas duas espécies de generalização correm paralelas, não são etapas cumulativas, ao contrário, pois a
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sublimação da analítica pode se combinar com construção deficiente.
*** Formal não se confunde com proces-
O segundo grau/segunda direção da
sual. O direito civil pode ser formal e a
racionalização do direito é a sistematiza-
aplicação do direito, como o salomônico,
ção, definida, “segundo o nosso modo atual
ser material. Se empregarmos a classifica-
de pensar”, como:
ção antiga entre direito substantivo e adje-
“
o inter-relacionamento de todas as proposições jurídicas obtidas mediante a análise, que formem entre si um sistema de regras logicamente claro, internamente sem contradições e, acima de tudo, em princípio, sem lacunas” (WEBER, 1980, p. 396; WEBER, 1999a, p. 12).
tivo, direito formal pode se referir tanto ao direito substantivo quanto ao adjetivo. Distinção central é aquela entre dois tipos de formalismo: o sensível e o lógico. Determinada palavra foi dita, um rito previamente fixado foi seguido, uma assina-
Bem se vê a diferença da sistematiza-
tura, selo ou outra marca foi colocado – se
ção para a generalização (mesmo a sintéti-
características como essas, salientes na
ca). Agora, a exigência é de consistência de
visibilidade mesma dos atos, definem a de-
todas as proposições, ao passo que na gene-
cisão a ser tomada, diz-se que o formalis-
ralização sintética não há a exigência da
mo é sensível ou externo.
consistência de todos os institutos e, por-
Esse formalismo sensível pode ser
tanto, de todas as proposições, mas apenas
mais ou menos racional. O exemplo extre-
a consistência das proposições dentro de
mo de um direito formal irracional é o
cada instituto. Outro aspecto é que o gaba-
de decisões baseadas pelo emprego de
rito da passagem vem da teoria do direito
meios mágicos (como as consultas a orá-
da época. Na definição, aparecem os dois
culos). Somente “à pergunta feita de ma-
problemas canônicos: da consistência (au-
neira formalmente correta dão os meios
sência de contradições/antinomias) e da
mágicos a resposta certa” (WEBER, 1980,
completude (ausência de lacunas). Isso é indicativo de como a sistematização vem a ser uma aquisição tardia. A racionalidade como sistematização não teria alcançado nem o direito romano (clássico ou do jus commune) nem o direito inglês9.
p. 446; WEBER, 1999a, p. 74). “Maneira formalmente correta” significa o estar de acordo com o rito, com fórmulas solenes etc. Uma palavra errada faz perder o processo. Diz-se que esse caso extremo é irracional: em primeiro lugar, porque não há a discutibilidade, o meio mágico não é a pro-
9.
“O que faltara em grande medida aos juristas romanos – as categorias sistemáticas puras – foi criado agora” (WEBER, 1980, p. 492; WEBER, 1999a, p. 129).
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va da verdade ou falsidade de um fato; em segundo lugar, porque da decisão mágica
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não se extrai uma proposição jurídica que
“por avaliações totalmente concretas de
possa ser aplicada a outros casos futuros.
cada caso”, em vez “de depender de nor-
Irracionalidade, pois, no sentido de não
mas gerais” (WEBER, 1980, p. 396; WE-
generalizável. O ominoso é ad hoc.
BER, 1999, p. 13) – essa é a nota de irracio-
Mas o formalismo sensível pode sofrer a racionalização por generalização. Com base em uma casuística analógica de precedentes, a prática jurídica criou “esquemas de contratos e queixas praticamente úteis, orientados nas necessidades concretas, tipicamente repetidas, dos interessados do direito” (WEBER, 1980, p. 457;
nalidade. O outro elemento definidor, “material”, é que essas avaliações são “de natureza ética emocional ou política” (WEBER, 1980, p. 396; WEBER, 1999a, p. 13). O famoso julgamento de Salomão, considerado tipicamente, é um exemplo. Por sua vez, no direito racional material são aplicadas normas gerais com dignidade qualitativamente diferente “daquela das generalizações lógicas de inter-
WEBER, 1999a, p. 87). No caso do formalismo lógico, as ca-
pretações abstratas do sentido: imperativos éticos ou utilitários ou de outras regras de oportunidade ou máximas políticas que rompem tanto o formalismo das características físicas quanto o da abstração lógica” (WEBER, 1980, p. 397; WEBER, 1999a, p. 13).
racterísticas juridicamente relevantes são descobertas pela aplicação de conceitos jurídicos abstratos. “Negócio jurídico”, por exemplo, é uma abstração conceitual que não se reduz a características sensíveis.
***
Admite-se, por exemplo, que o silêncio possa obrigar. Perde-se, com isso, a “uni-
A racionalização formal e material do
vocidade das características externas”.
direito faz parte de um quadro maior. No fa-
Saliento, ainda, que o formalismo lógico é
moso prefácio aos estudos sobre religião10,
racional naquele grau mais elevado,
após enumerar variadas manifestações do
“
somente a abstração interpretadora do sentido faz com que surja a tarefa especificamente sistemática: a de coordenar e racionalizar, com os meios da lógica, as regras jurídicas, cuja vigência é reconhecida num sistema, internamente consistente, de disposições jurídicas abstratas” (WEBER, 1980, p. 396; WEBER, 1999a, p. 13).
Weber chama de direito irracional material aquelas decisões determinadas
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racionalismo ocidental, ressaltada sua peculiaridade e significado universal vis-à-vis outras manifestações do racionalismo, Weber salienta que por “racionalismo”
“
pode -se entender coisas muito diferentes... Cada um desses âmbitos [v.g., a técnica, o trabalho científico, a guerra, o direito]
10.
Publicado no Brasil como prefácio ao primeiro estudo dedicado à ética protestante (WEBER, 1999b).
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pode, além disso, ser ‘racionalizado’ segundo alvos [Zielrichtungen] e pontos de vista últimos muito diferentes, e o que de um ponto de vista for racional poderá ser irracional de outro. Racionalizações têm existido nos mais diversos âmbitos da vida [Lebensgebieten] de diferente espécie em todos os círculos culturais. Para caracterizar sua diferença do ponto de vista da história da cultura, deve -se ver primeiro em que esfera e direção ocorreram” (WEBER, 1988a, p. 11-12; WEBER, 1999b, p. 11).
racionalização; (2) um exemplo do conflito entre as esferas jurídica e econômica acerca do ponto de vista sobre a caracterização do “racional” e a propalada correlação entre formalismo do direito e capitalismo moderno. (1) O processo de racionalização formal ou material possui portadores (Träger), isto é, agentes que podem ser mais ou menos especializados. Eles formam uma le-
Sem mais, vamos fazer a sinonímia
gião: sábios versados em direito, sacerdotes,
entre esferas e esferas culturais de valor,
funcionários eleitos, escribas, jurados, notá-
entendidas como o conjunto de ideias que
rios, conselheiros legais os mais diversos.
possuem uma legalidade própria [Eigen-
Dois portadores são de especial im-
gesetzlichkeiten]; e, por âmbitos da vida,
portância: o advogado profissional e o ba-
a conexão entre ideias e interesses que
charel; cada qual é produto de uma confi-
regulam legitimamente a posse e a distri-
guração distinta do ensino jurídico: ou “o
buição de bens . Podemos chamar de ra-
ensino do direito por práticos”; ou “o ensi-
cionalização cultural o processo de dife-
no teórico do direito em escolas jurídicas
renciação das esferas culturais de valor a
especiais e na forma de um tratamento ra-
partir do desencantamento das visões de
cional-sistemático” (WEBER, 1980, p. 456;
mundo religiosas. A efetivação dos valores
WEBER 1999a, p. 86).
11
[Wertverwirklichung] ocorre nos âmbi-
O exemplo lembrado para o primeiro
tos da vida . Vejamos brevemente: (1) um
tipo é o do ensino jurídico monopolizado por
exemplo de legalidade própria da esfera
corporações de advogados. Para o segundo,
jurídica e sua relação com portadores da
a formação universitária. A diferença entre
12
ambos está no tipo de racionalização for11.
12.
Essas definições vêm de Habermas 1995, p. 321; Habermas, 1984, p. 234. Para uma conceituação algo diferente, cf. Schluchter (1981, p. 20). Alhures, Weber troca âmbitos da vida por ordens da vida [Lebensordnungen]. Valores são pretensões de validade que se tornam motivos para a ação (SCHLUCHTER, 2000, p. 23; cf. ainda SCHLUCHTER, 1981, p. 18). Cf. para o problema da diferenciação das esferas de valor, Terra (2003, p. 18). A diferença entre racionalização cultural e societal em Habermas, 1995, p. 225 -239; Habermas, 1984, p. 157-168.
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mal: o primeiro avança à generalização formal sensível; o segundo alcança uma sistematização formal lógica. A diferença entre os dois tipos de formalismo é o critério para explicar a diferença de estilo entre o common law e o direito continental (WEBER, 1999a, p. 86-89).
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Formalismo como Conceito Sociológico
Sobre o formalismo sensível ou empíri-
57
“
Este tipo de ensino jurídico produziu, por sua natureza, vinculado a precedentes e analogias, um tratamento formalista do direito. Já a especialização artesanal dos advogados impedia a visão sistemática da totalidade da matéria jurídica. [...] os conceitos, que ela formou, estavam orientados por situações, de fato materiais, palpáveis e correntes na experiência cotidiana e, nesse sentido, formais; constelações que ela delimitava convenientemente entre si segundo características externas e unívocas” (WEBER, 1980, p. 457; WEBER, 1999a, p. 87).
Os conceitos que cria têm caráter de normas abstratas que, pelo menos em princípio, são construídas de modo rigorosamente formal e racional, mediante a interpretação lógica do sentido, e delimitadas entre si. Seu caráter racional-sistemático pode conduzir o pensamento jurídico a uma considerável emancipação das necessidades cotidianas dos interessados no direito [...]. Uma vez desencadeadas as necessidades puramente lógicas da doutrina jurídica, sua força, e a da prática por elas dominada, pode ter a consequência de que as necessidades dos interessados, como força motriz da elaboração do direito, acabam quase eliminadas” (WEBER, 1980, p. 459; WEBER, 1999a, p. 89).
Se não há uma racionalidade siste-
Sem maior aprofundamento, interes-
mática, há racionalidade por generaliza-
sa a nós observar que, particularmente no
ção. O recurso a precedentes e a analogias
caso continental, falar em formalismo im-
são elementos destacados por Weber para
plica “levar a sério” o papel da dogmática
co dos advogados ingleses, Weber sintetiza:
“
definir a generalização (analítica das pro-
jurídica.
posições), como vimos acima. Além disso,
(2) A diferença entre os dois tipos de
é um direito formal, como expressamente
formalismo permite analisar o modo mati-
afirmado na passagem, mas um formalis-
zado como Weber relaciona direito e capi-
mo sensível ou empírico13. Até Austin, o
talismo moderno:
conceito de ciência do continente mal poderia ser aplicado à jurisprudência inglesa; e a impossibilidade da codificação planejada por Bentham se explica pelo racionalismo formal característico do direito inglês (WEBER, 1999a, p. 150). Quanto ao direito formal racional do ensino universitário moderno, 13.
“O pensamento jurídico inglês é, ainda hoje, apesar de toda a influência pela exigência cada vez mais rigorosa de uma instrução científica, em altíssimo grau, uma arte ‘empírica’” (WEBER, 1999a, p. 149).
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“
nesse tipo específico de logicização do direito não tinham, de modo algum, participação decisiva, como na tendência a um direito formal, necessidades da vida dos interessados burgueses num direito ‘calculável’. Pois a esta necessidade, como toda experiência mostra, corresponde do mesmo modo e frequentemente até melhor um direito formal empírico, vinculado a precedentes judiciais. As consequências da construção jurídica puramente lógica comportam-se, antes pelo contrário, muitas vezes de modo totalmente irracional e disparatado em relação às expectativas dos interessados no comércio” (WEBER, 1980, p. 493; WEBER, 1999a, p. 129-131).
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Sem entrar na discussão de passagens
materialização” do direito privado, como a
conflitantes que podem ser encontradas no
previsão da boa-fé ou como a guinada para
corpus weberiano14, nessa passagem espe-
o direito social do Estado gestor. Mas We-
cífica o direito formal sensível aparece mais
ber encontra tendências antiformais no
adequado que o formalismo lógico ao de-
âmbito da administração da justiça. De
senvolvimento de um direito calculável
um lado, a “tentativa do restabelecimento
para os interessados burgueses. O direito
de um padrão valorativo objetivo”, de ou-
racional formal lógico, com sua legalidade
tro, fazer do juiz um “profeta”.
própria, “emancipado das necessidades dos
Sendo cético acerca da fundamenta-
interessados no direito”, entra em conflito
ção racional de juízos de valor, a busca de
“muitas vezes” com as expectativas da ação social econômica. O direito racional formal lógico, cultivado como cultura literária, como dogmática universitária, é muitas vezes irracional do ponto de vista econômico. Um detalhe importante é que o formalismo sensível também é calculável. Nesse sentido, há uma afinidade entre o formalismo sensível do caso inglês com o capitalismo. De todo modo, no capitalismo político (vide o mercantilismo), nem mesmo há a busca do formalismo sensível – antes o capitalista se aproveita de privilégios concedidos pelas monarquias, que é um exemplo de direito irracional material (WEBER, 1999a, p. 123-124). *** Por fim, queremos anotar brevemente algo do diagnóstico da época. Weber discerniu várias tendências antiformalistas contraditórias. A literatura sociológica tem enfatizado aquelas tendências de “re14.
Para o problema do capitalismo e do formalismo no caso inglês, ver Trubek (2007).
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um padrão valorativo objetivo é debitado na conta do renascimento do jusnaturalismo – que é o caso típico de um direito material racional (e racional no mais alto grau, como sistema). A busca “ansiosa da ideia de um direito suprapositivo”, na expressão de Weber, talvez esteja mais viva do que nunca. Quanto ao juiz profeta, escreveu:
“
não é certo se juiz burocrático em países com direito codificado será feito um profeta jurídico simplesmente sobrecarregando-lhe a coroa de ‘criador’. Em todo caso, diminuirá fortemente a precisão jurídica do trabalho, tal como se manifesta nas fundamentações dos julgamentos, quando arrazoados sociológicos e econômicos ou éticos, ocupam a posição dos conceitos jurídicos” (WEBER, 1980, p. 512; WEBER, 1999a, p. 152-153).
Weber estudou alhures o papel dos profetas do Israel Antigo na configuração do direito. Como portadores de carisma, eles revolucionavam o direito tradicional de corte sacerdotal. A hipótese de Weber é que o juiz do direito continental – um quadro da
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Formalismo como Conceito Sociológico
burocracia, isto é, recrutado por concurso, com garantias, formas de vencimento que o imunizam do controle político – não possui a legitimidade carismática. Em razão disso, aproximar o juiz de um profeta deve trazer
59
TEUBNER, Günther. 1983. Substantive and reflexive elements in modern law. Law & Society Review, v. 17, n. 2, p. 239 -285, 1983. TRUBEK, David. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo. Revista Direito GV, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 151-185, 2007.
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4 Franz L. Neumann Direito e luta de classes
José Rodrigo Rodriguez Flávio Marques Prol
4.1. Um grande autor desconhecido Um grande autor desconhecido: talvez esta seja uma boa maneira de nos refe-
blicações variadas, ainda aguardam uma organização unitária e interpretações compreensivas1.
rirmos a Franz Neumann. Precursor da
Parte da culpa por essa situação é
ciência política alemã, historiador do na-
dele mesmo. No necrológio que escreveu
zismo, funcionário do Departamento de
para Neumann, Theodor W. Adorno disse
Estado dos Estados Unidos e jurista radi-
nunca ter conhecido alguém tão pouco in-
cal, autor de textos militantes sobre direi-
teressado em sua própria obra 2. Segundo
to do trabalho e direito econômico, Neu-
Adorno, Neumann parecia ficar satisfeito
mann tem sido lembrado, principalmente,
em investigar e compreender determina-
por contribuições parciais a diversos ra-
dos fenômenos sem a preocupação de en-
mos das ciências humanas (THORNHILL, 2000; COTTERREL, 1995) e, eventualmente, como representante da Teoria Crí-
1.
tica da Sociedade (HONNETH, 1999; SCHEUERMAN, 1997; JAY, 1987). Seja como for, seus escritos, dispersos em pu-
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2.
As exceções são os livros de: Intelmann, 1996; Scheuerman, 1997; Thornhill, 1999, Kelly, 2003; Rodriguez, 2009; e duas coletâneas: Perels, 1984; Iser & Strecker, 2002. Ver ao final a bibliografia para os textos de Franz Neumann. O texto aparece como apêndice à edição francesa de Behemoth de Franz Neumann, editada pela Payot em 1987.
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contrar a melhor maneira de transmitir e
rialismo interdisciplinar” praticado pelo
organizar sua produção. Adorno, muito ao
Instituto de Pesquisas Sociais (RODRI-
contrário, soube divulgar suas ideias com
GUEZ, 2009).
eficácia ao longo de toda a sua carreira.
No entanto, ele próprio não traçou
Ele escreveu, como Neumann, obras com-
essa trajetória. Tampouco se preocupou
plexas e seminais, mas também textos cur-
em ligar os pontos de sua obra. É interes-
tos, que desenvolveram alguns aspectos de
sante notar que o único livro completo que
seu pensamento, e artigos para jornais e
publicou em vida, Behemoth, é um estudo
revistas. Além disso, ministrou cursos e
de caso: a obra procura demonstrar a sin-
aulas abertas, inclusive por meio do rádio.
gularidade do nacional-socialismo na Ale-
Neumann, de sua parte, nunca orga-
manha e não se apresenta como ponto cul-
nizou seus escritos em livros, manteve
minante ou conclusivo de seus escritos
seus dois doutorados inéditos e nunca es-
anteriores.
3
creveu um artigo sintético com o objetivo
Não pretendemos fazer aqui o que
de organizar suas ideias. Cada um de seus
Neumann, ele mesmo, não fez: conferir
textos aborda problemas e questões novas,
unidade teórica a um trabalho que se volta
sem a preocupação de organizar seu pen-
mais para o problema do que para o siste-
samento na forma de uma trajetória coe-
ma, mais para as questões concretas de
rente. Eles incorporam novas questões e
seu tempo do que para a filosofia4. Esta
evoluem com elas, inclusive quanto a seu
parece ser, na verdade, uma característica
estilo de escrita e campo do saber. Por
de seu modo de pensar, e não uma falha
exemplo, na passagem dos anos 1930 para
em sua carreira intelectual.
os anos 1940, Neumann deixa de escrever como um jurista de esquerda e passa a produzir como teórico crítico que trabalha nos marcos do assim denominado “mate-
3.
O primeiro foi escrito em 1923 sob a orientação de Max Ernest Mayer, ainda na Alemanha, e permanece inédito até hoje, inclusive em alemão. Seu título é “Introdução Jusfilosófica a um Tratado sobre a Relação entre Estado e Pena” (Rechtsphilosophische Einleitung zu einer Abhandlung über das Verhältnis von Staat und Strafe). O segundo doutorado foi escrito na London School of Economics, na Inglaterra, em 1936, sob a orientação de Harold Laski e se intitula “The Rule of Law: Political theory and the legal system in modern society”. Foi publicado em 1980 em alemão e na língua original, o inglês, em 1986.
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Neumann escreve sempre rente à empiria e ao mundo contemporâneo, sem perder de vista os fenômenos sociais de seu tempo. Um pouco à maneira dos psicanalistas, seus conceitos seguem muito de perto o material empírico analisado. Também ao modo dos analistas políticos e econômicos, seu interesse sempre se volta para os acontecimentos contempo4.
Para um panorama da obra do autor, ver Rodriguez, 2009.
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Franz L. Neumann
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râneos, e não para a erudição filosófica
em seus anos de estudante de direito, épo-
ou histórica.
ca em que foi militante estudantil, quanto
Franz Neumann tinha em vista, principalmente, a singularidade dos fatos históricos de sua época. Em particular, a situação da Alemanha e seus impasses jurídicos, políticos e econômicos. Seu objetivo nunca foi construir alguma espécie de “teoria geral” capaz de abarcar fenômenos variados, separados pelo espaço e pelo tempo. Quando Neumann se refere ao direito, faz referência ao direito europeu e ocidental; quando discute política, refere-se aos problemas da Alemanha e dos EUA (país para o qual migrou em 1937), e assim por diante.
depois de formado, em sua atuação como advogado do movimento sindical durante a República de Weimar. Em seu exílio norte-americano, não foi diferente: Neumann trabalhou para o Departamento de Estado dos EUA como chefe de um escritório cuja função era fornecer informações sobre a Alemanha, capazes de enfraquecer o regime nacional socialista e preparar a desnazificação do país após a guerra. Além disso, atuou no Tribunal de Nuremberg para investigar a ação dos nazistas contra a Igreja católica. Quando morreu, já na condição de professor de Ciência
Em seus dois textos mais sistemáti-
Política da Universidade de Colúmbia, não
cos, O império do direito – seu segundo
havia abandonado suas atividades parale-
doutorado – e Behemoth, seu método fica
las. Tal continuidade em seu modo de pro-
muito claro: a discussão de todas as ques-
ceder faz supor que este era seu modo de
tões teóricas é sempre fundada em análi-
pensar e de estar no mundo.
ses institucionais detalhadas dos países a que ele se refere. Não sabemos se no final
Para ser fiel à urgência e à atualidade do modo de pensar de Franz Neumann,
da vida, caso ele tivesse sobrevivido ao aci-
vamos falar dele a partir de dois problemas
dente de carro que o matou aos 54 anos,
centrais em sua reflexão, a saber, a entra-
na Suíça (em 1954), Neumann teria desen-
da da classe operária no Parlamento e o
volvido uma “teoria geral” organizada. As
advento do nazismo. A partir destas duas
circunstâncias de sua vida e sua inspira-
questões, apresentaremos algumas de
ção intelectual, a Teoria Crítica, que pro-
suas construções teóricas e tentaremos
cura sempre juntar teoria e práxis, fazem
mostrar sua utilidade, com as devidas
supor que não.
adaptações, para pensar problemas con-
Seja como for, Neumann procurou
temporâneos.
combinar durante toda a sua carreira as
No que diz respeito à Sociologia Jurí-
atividades de militante e professor, tanto
dica, a contribuição de Neumann é confe-
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Manual de Sociologia Jurídica
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rir conteúdo de classe às categorias jurídi-
capitalismo: a “crise final” deste sistema
cas para mostrar que a luta socialista por
que, para ser figurável, exige ação prática
emancipação se dá também por seu inter-
revolucionária e rearticulação do conheci-
médio. Neumann faz uma combinação
mento posto para desnaturalizar as cate-
criativa dos escritos de Max Weber e Karl
gorias que o moldam como se fosse algo
Marx para explicitar que o debate sobre a
natural, uma segunda natureza.
materialização do direito, tipicamente weberiano, é um momento da luta de classes, nos termos de Marx. Além disso, Neumann mostra que, em determinados momentos históricos, ser revolucionário significa destruir o Direito. Em outras realidades e contextos, ser revolucionário implica lutar pela emancipação por meio das próprias categorias jurídicas5. Desse modo, ele fornece elementos para uma análise histórica e social do direito. Os dois acontecimentos históricos a que já nos referimos – ingresso da classe operária no Parlamento e advento do nazismo – são interpretados por Neumann como rupturas de grande alcance que motivaram a rearticulação de conceitos e narrativas promovidas por seus escritos. São fatos que demandam rearticulação conceitual por desafiarem o conhecimento de então. Nesse sentido, eles podem ser equiparados a uma crise, categoria central para a tradição marxista.
No caso de Franz Neumann, como veremos adiante, o assunto é o colapso do estado de direito ocidental e a desnaturalização da concepção liberal-burguesa de direito por meio da articulação entre teoria e práxis. Esse colapso do direito, promovido pelo nazismo, não marca o fim do capitalismo e tem consequências tanto para a reprodução do sistema quanto para a ação revolucionária, que muda de sentido nesse processo. A partir da avaliação de Neumann sobre cada um destes problemas e da ligação que estabelece entre ambos, será possível compreender e organizar melhor suas ideias centrais. O ponto crucial a se compreender é a transformação sofrida pelo direito liberal burguês no início do século XX. Este direito deixa de funcionar como mero instrumento de dominação de classe e passa a ser veículo para a expressão de interesses variados. Torna-se um espaço de disputa pela melhor maneira de regular a sociedade, in-
Normalmente, a “crise” a que se refe-
clusive a utilização dos meios de produção.
re tal tradição diz respeito ao colapso do
Como veremos, este movimento do real faz com que o direito perca seu caráter ideológi-
5.
Para uma análise sobre a relação na obra de Neumann entre diagnóstico de determinado momento histórico e a função do direito para se buscar a emancipação, ver Prol, 2009.
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co e se torne um momento necessário da emancipação humana.
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Franz L. Neumann
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É importante esclarecer que este po-
etc.). Tais direitos representam explicita-
tencial emancipatório não foi necessaria-
mente uma compensação pela exploração
mente encarado dessa forma pela classe
dos trabalhadores conquistada pela classe
trabalhadora de então, tampouco assumi-
operária a partir da luta social. Essa é a ma-
do explicitamente em sua práxis revolu-
neira pela qual eles foram justificados no
cionária. Franz Neumann, como teórico
contexto da racionalidade do direito.
crítico, identificou tal potencial e explicitou os processos sociais que criaram suas condições de possibilidade por meio de uma ampla reconstrução conceitual sobre o que é o direito para o campo marxista. No momento histórico em que nosso autor escreveu, regimes autoritários dominavam a Europa, o que dificultava apostar na forma direito como estratégia de luta: era preciso antes derrubar, eventualmente destruir com violência, o totalitarismo. Como veremos, Neumann estava bem consciente desta necessidade. Suas afirmações sobre o caráter emancipatório do direito só se aplicam a contextos em que o direito esteja, de fato, em funcionamento, ou seja, contextos como o nosso.
A seguinte passagem do livro Império do direito é essencial para compreender o surgimento desses direitos sociais:
“
O período pós-guerra [1ª Guerra Mundial] é caracterizado pelo fato de que o movimento trabalhista se torna politicamente autoconsciente, separando-se do movimento liberal da burguesia, constituindo-se como organização política autônoma e tentando transformar toda a sociedade conforme sua própria filosofia de vida. [...] a massa da população agora tinha direitos políticos e não mais se separava passivamente da elite governante” (NEUMANN, 1986, p. 269 -271).
Ou seja, a transformação do estado liberal em uma democracia de massas, com o ingresso da classe proletária no Parlamento, é fundamental para permitir que os trabalhadores aprovem leis que sejam
4.2. A entrada da classe operária no Parlamento e a transformação do direito liberal A entrada da classe operária no Parlamento provocou, por meio de sua participa-
favoráveis aos seus interesses. Neumann menciona todos os direitos fundamentais previstos na segunda parte da Constituição de Weimar como conquistas dessa transformação histórica.
ção no jogo eleitoral e parlamentar, uma
Podemos compreender melhor o al-
mudança profunda nas estruturas do esta-
cance dessa transformação institucional
do de direito. A face mais visível deste pro-
ao refletir sobre os direitos trabalhistas,
cesso foi a criação de direitos sociais (direi-
objeto de vários estudos de Franz Neu-
tos trabalhistas, direito à educação, à saúde
mann. Tais direitos assumem a forma
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técnico-jurídica de cláusulas que passam a
permitido negociar seus termos, tampouco
integrar todos os contratos de trabalho ce-
afastar sua incidência sobre o contrato de
lebrados num determinado território,
emprego. Note-se que, a rigor, ambos os
mesmo que as partes não deliberem sobre
valores são pagos sem nenhuma contra-
elas e não as incluam no instrumento con-
prestação por parte do empregado. A re-
tratual. As partes também não podem evi-
muneração das férias é paga, por defini-
tar que essas cláusulas estejam presentes
ção, sem que o empregado preste nenhum
nos contratos. Em outras palavras, não po-
serviço adicional. Da mesma forma, o 13º
dem decidir contratar de outra forma, pois
salário é um valor que não está ligado a
seu papel é explicitamente diminuir a
nenhuma contraprestação específica. A
margem de exploração do trabalho com a
lógica de ambos é permitir que o trabalha-
criação de determinados benefícios. Como
dor recupere suas forças durante o des-
Neumann explica em outro texto, no qual
canso e tenha mais dinheiro para gastar
analisa as principais características do di-
no final de cada ano. Os institutos dimi-
reito do trabalho moderno:
nuem a quantidade de mais-valia que o
trabalhista se baseia em obriga“çõesA relação recíprocas e no poder: seres humanos estabelecem relações de dominação com outros seres humanos. Essa é a base do princípio jurídico que obriga aqueles que possuem esse poder (a despeito de serem capitalistas privados ou socialistas) a cumprir obrigações adicionais em relação ao objeto da dominação, o trabalhador. Mas isso não [...] requer do trabalhador a execução de obrigações adicionais para o empregador, além daquelas estabelecidas no contrato de trabalho” (Neumann in SCHEUERMAN, 1996, p. 235).
empregador pode extrair de seus empregados, reduzindo a margem de exploração imposta ao trabalhador. Desse modo, é interessante notar como o direito liberal muda suas feições, ao admitir a existência de direitos trabalhistas. A existência de contratos de emprego, que antes serviam para ocultar a exploração de classe, ajuda agora a reduzir sua margem e, ponto central para esta análise, a explicitá-la na letra da lei. Ao
Ou seja: o empregador deve cumprir
contrário do que diz Marx em O Capital, o
obrigações adicionais ao pagamento de
contrato de emprego não serve mais para
um salário para o trabalhador sem poder
ocultar a extração de mais-valia: ele expõe
exigir nada em troca, a não ser o próprio
a exploração e torna-se um meio de reduzi-
trabalho. Podemos citar como exemplos o
-la6. Como foi possível criar o direito a fé-
13º salário e as férias anuais remuneradas. É obrigatório pagar estes benefícios a todos os empregados, sem exceção. Não é
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6.
Marx considerava que o contrato de trabalho, formulado nos termos de troca entre equivalentes, servia para ocultar a exploração da força de trabalho (única mercadoria que conse-
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Franz L. Neumann
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rias remuneradas e ao 13º salário, é possí-
Além do contrato de trabalho, pode-
vel criar hoje novos direitos trabalhistas,
mos citar os efeitos desta movimentação
novos benefícios. Com esta mudança cru-
da classe operária sobre outro instituto
cial, o direito liberal deixa de funcionar
fundamental da ordem capitalista, a pro-
como forma alienante e ganha uma infle-
priedade privada. A entrada da classe ope-
xão emancipatória e antiburguesa, que, ao
rária no Parlamento teve como resultado a
invés de naturalizar, serve para explicitar
alteração no modo de se conceber e regu-
o conflito de classes. Como afirmava
lar este instituto. A propriedade deixou de
Neumann no mesmo texto mencionado,
ser o poder absoluto de deter, usar e abu-
escrito originalmente em 1951: “Mais
sar do bem e passou a ser definida de acor-
agora do que antes de 1933 [ano da as-
do com sua função social7.
censão de Hitler ao poder na Alemanha],
Por exemplo, tornou-se possível de-
a proteção dos interesses e direitos do
sapropriar imóveis que não eram utiliza-
trabalhador individual em face do empre-
dos pelos seus donos, estabelecer limites
gador, seja capitalista, seja socialista,
ao seu uso para impor o respeito à saúde
deve compor o núcleo do direito do traba-
do trabalhador e, mais tarde, ao meio am-
lho” (SCHEUERMAN, 1996, p. 235).
biente e aos consumidores, entre outras limitações. Como diz o art. 153, § 2º, da
gue produzir valor). Nesse sentido: “O comprador e o vendedor de uma mercadoria – a força de trabalho, por exemplo – são determinados apenas pela sua vontade livre. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais” (MARX, 1998, p. 206). Contudo, continua, antecipando algumas teses centrais apresentadas por Neumann: “Temos de confessar que nosso trabalhador sai do processo de produção de maneira diferente daquela em que nele entrou. No mercado, encontramo-lo como possuidor da mercadoria chamada força de trabalho, em face de outros possuidores de mercadorias; vendedor em face de outros vendedores. O contrato pelo qual vendeu sua força de trabalho ao capitalista demonstra, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Concluído o negócio, descobre-se que ele não é nenhum agente livre, que o tempo em que está livre para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la e que seu vampiro não o solta ‘enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue a explorar’. Para proteger-se contra ‘a serpe de seus tormentos’, têm os trabalhadores de se unir e, como classe, compelir a que se promulgue uma lei que seja uma barreira social intransponível, capaz de impedi-los definitivamente de venderem a si mesmos, e à sua descendência ao capital, mediante livre acordo que os condena à morte e à escravatura” (idem, p. 346, destaca-se). Não há espaço para desenvolver maiores comparações sobre as obras aqui.
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Constituição de Weimar: “A propriedade impõe obrigações. Seu uso deve constituir, ao mesmo tempo, um serviço para o mais alto interesse comum”. Não há espaço aqui para detalhar o regime da propriedade privada sob a égide 7.
Em uma perspectiva bastante inovadora para seu tempo, Neumann escreverá, no artigo “The concept of political freedom”, de 1953: “As tarefas de uma teoria política preocupada com a liberdade da humanidade são analisar se a propriedade privada cumpre sua função como um instrumento eficiente da liberdade e descobrir quais mudanças institucionais são necessárias para maximizar sua efetividade” (NEUMANN in SCHEUERMAN, 1996, p. 215). A ideia que Neumann tem em mente, aqui, é a possibilidade de a sociedade democraticamente promover alterações na estrutura de propriedade existente, inclusive levando em consideração suas diferentes manifestações: “O substrato do direito de propriedade – terra, bens de consumo e bens de produção – pode requerer tratamento diferenciado” (idem, p. 214).
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da função social. Para o que nos interessa,
cio individual da propriedade privada, por
basta dizer que institutos jurídicos liberais
exemplo. Como afirma Neumann:
foram transformados pela ação parlamen-
“
Toda norma geral que pretende estabelecer um limite à atividade do estado, seja de direito natural ou de direito positivo, necessariamente contribui com a desintegração do status quo. Essa norma tem dois gumes; é uma espada de dois gumes. [...] Mais cedo ou mais tarde, o progressivo reconhecimento do Império do Direito (‘Rule of Law’) se torna perigoso para as posições de poder” (NEUMANN, 1986, p. 6).
tar da classe operária. Para permanecer com nossos dois exemplos, o contrato de emprego deixa de ocultar a exploração do trabalho e passa a funcionar como meio de proteção ao trabalhador; e a propriedade privada deixa de ser sacrossanta e individualista e ganha inflexões coletivas: seu conteúdo e sua função passam a ser disputados e definidos em razão dos interesses de toda a sociedade. Este processo de transformação deixa claro, portanto, que o direito liberal não é imutável e pode ser disputado por meio das instituições formais.
No começo do século XX, o agravamento da chamada questão social com o crescimento de poder da classe operária foi levando a burguesia a adotar um ideário cada vez mais autoritário, voltado à repressão do movimento operário, ao controle das classes subalternas e ao
4.2.1. O direito é uma faca de dois gumes
abandono do estado de direito. Está cria-
Como resultado desse processo, a bur-
do o paradoxo que se resolverá nos fascis-
guesia deixa de defender o estado de di-
mos que dominarão a Europa: a mesma
reito e passa a apoiar outros modelos de
classe que lutara para criar o estado de
regulação, nitidamente mais autoritários.
direito, um instrumento claramente ra-
Afinal, o direito se revela uma faca de dois
cional de legitimação do poder, passa a
gumes. A defesa da implantação do estado
defender formas irracionais de legitima-
de direito foi um instrumento importante
ção como o carisma do líder, a autoridade
para destruir os privilégios da aristocracia
transcendente do Estado, o sangue do
e impor limites ao exercício do poder pelo
povo, o bem da nação8.
estado com o objetivo de proteger a propriedade privada e a liberdade de contrato. No entanto, uma vez implantado e em funcionamento, o estado de direito passou a ser utilizado pela classe trabalhadora para ameaçar o poder da burguesia, impondo limites à exploração do trabalho e ao exercí-
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8.
Na continuação da passagem acima citada, Neumann escreve: “O abandono da democracia é acompanhado por uma reversão no sistema de valores da esfera filosófica. A ratio é desvalorizada. [...] Permanece somente a justificação carismática, que é um caso típico de atitude extrema de irracionalidade” (NEUMANN, 1986, p. 6). A referência à Hitler e ao nacional-socialismo é nítida. Para mais, ver a introdução de Franz Neumann ao seu O império do direito (NEUMANN, 1986).
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Afinal, o direito exige que os podero-
ações que têm como objetivo neutralizar a
sos prestem contas do que fazem, ou seja,
arena jurídica quando ela confere a vitória
que suas decisões sejam justificadas com
ao adversário. Em suma, o processo de
fundamento em normas jurídicas. Em sua
fuga do direito, ou seja, fuga aos entraves
essência, o direito é justificação racional.
impostos pela forma direito ao poder que
Em formas de dominação irracionais, os
se pretende autárquico, parece ser um fe-
poderosos podem ser arbitrários e agir
nômeno absolutamente atual9.
sem justificação, pois a legitimidade de seu poder advém de outras fontes. Tradição, divindade, nação: diante do crescimento do poder proletário, a burguesia foge do direito para construir um espaço de ação arbitrária e neutralizar as reivindicações das classes subalternas. O objetivo central desse movimento é desarmar o mecanismo de controle do poder e evitar a formação de demandas que contrariem seus interesses.
4.2.2. O nazismo é um não estado de não direito Mas retomemos o fio da exposição: a dissociação entre burguesia e estado de direito, o divórcio entre direito liberal e classe burguesa, mostra-se de maneira clara durante o regime nacional-socialista. No final do livro O império do direito, escrito por Neumann em 1936, e em Behemoth, de 1942, nosso autor afirma que a
Um breve parêntese: os Estados Uni-
Alemanha, naquele momento, não era um
dos da América, ao menos durante o go-
estado e, além disso, não contava com um
verno Bush, negou apoio a todo e qualquer
regime de direito no sentido ocidental da
mecanismo jurídico que pudesse criar en-
palavra. Numa fórmula sucinta, para Neu-
traves ao exercício unilateral do poder,
mann a Alemanha era um não estado de
como o Tribunal Penal Internacional.
não direito e, apesar disso, o capitalismo
Além disso, impôs restrições aos direitos
funcionava normalmente.
fundamentais para combater o terrorismo e criou um tribunal de exceção para julgar Saddam Hussein ao invés de usar as cortes iraquianas ou tribunais internacionais.
No final do livro O império do direito, Neumann escreveu: “O direito não mais existe na Alemanha, porque ele é hoje somente uma técnica para transformar a
Poderíamos citar outros exemplos,
vontade política do Líder em realidade
como o esforço das corporações interna-
constitucional” (NEUMANN, 1986, p. 298).
cionais para criar padrões próprios para a regulação, longe do controle dos estados e da sociedade civil nacional, além de outras
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9.
Para o desenvolvimento dessas ideias, ver Rodriguez, 2009.
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Antes, Neumann já havia afirmado: “Não
de Behemoth justamente para ressaltar
se pode duvidar que a calculabilidade das
essa estrutura instável, disforme e singu-
relações comerciais ainda existe, na medi-
lar, a qual, segundo ele, não encontra para-
da em que serve aos interesses dos mono-
lelo na história ocidental e representa uma
polistas” (idem, p. 297). É exatamente
ruptura com esta tradição política. Criatu-
nesse sentido que podemos afirmar que o
ra bíblica que aparece no livro de Jó, Behe-
nazismo eliminou o direito ao mesmo tem-
moth é um monstro que, no Livro de Tho-
po em que garantiu o funcionamento do
mas Hobbes, é utilizado para representar a
capitalismo.
guerra civil inglesa, ou seja, uma situação
Antes de continuar, façamos uma
de destruição das instituições10.
pausa para refletir sobre o alcance do que acabamos de dizer: segundo Neumann, na Alemanha nazista não havia nem estado liberal burguês nem direito liberal burguês, embora o capitalismo continuasse funcionando. Ora, para qualquer militante ou teórico socialista, a supressão dessas duas estruturas – estado liberal e direito liberal – deveria ser sinal do advento de uma sociedade socialista. No entanto, o nazismo foi capaz de suprimir ambas e manter o capitalismo. Como isso foi possí-
Neumann chega a prever a implosão do nazismo em razão de sua formação instável, mas a derrota da Alemanha na guerra não permitiu verificar se tal previsão se confirmaria na prática. Seja como for, Neumann demonstra seus argumentos em mais de 480 páginas de pesquisa empírica sobre o funcionamento de todo o aparato nazista, percurso que, infelizmente, não podemos sequer tentar resumir aqui. Sigamos adiante.
vel? Ou ainda: o que a continuidade do capitalismo, a despeito do direito e do estado, significa para o papel desses últimos na luta pela emancipação humana? Para Neumann, a Alemanha era um não estado porque sua estrutura de poder deixou de se basear na tensão entre estado e sociedade e passou a ser baseada em acordos instáveis celebrados entre burguesia, burocracia, exército e partido nazista, mediados pelo Führer. Neumann intitula o livro que escreveu sobre o nazismo
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10.
Nas palavras de Neumann: “Todo sistema político pode ser caracterizado pela sua teoria política, que expressa sua estrutura e seus objetivos. Porém, nós teríamos problemas se tentássemos definir a teoria política do Nazismo. O Nazismo é antidemocrático, antiliberal e profundamente antirracional. É exatamente por conta disso que ele não pode se utilizar de nenhum pensamento político precedente. Nem mesmo a teoria política hobbesiana é aplicável. O estado Nazista não é o Leviatã. Além do Leviatã, Hobbes também escreveu Behemoth, or the Long Parliament, que foi editado em Londres pela primeira vez em 1889, por Ferdinand Tönnies, a partir do manuscrito original. Behemoth, que simbolizava a Inglaterra do período do Long Parliament, foi construído como a representação do não estado, uma situação caracterizada pela completa ausência do direito (complete lawlessness)” (NEUMANN, 1966, p. 459).
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Franz L. Neumann
entendido meramente como um animal político” (NEUMANN in SCHEUERMAN, 1996, p. 197)11.
Como acabamos de explicar, a Alemanha nazista era um não estado. Resta explicar porque este regime também foi classificado por Neumann como de não direito. Em uma palavra: as regras que governavam a Alemanha eram produzidas sem a participação da sociedade como um todo; eram criadas unilateralmente pelos poderosos sem a participação de qualquer coisa que se possa identificar como sociedade. De fato, como diz Neumann, o Nazismo promoveu a destruição da tensão entre sociedade e estado, criando um polo de poder único que não podia sofrer nenhuma resistência.
71
O sonho do poder arbitrário é suprimir a sociedade ou qualquer outro entrave que impeça seu livre exercício. O direito, ao menos em sua manifestação ocidental, impõe aos poderosos o dever de se justificarem perante a sociedade. Por isso mesmo, a supressão da tensão entre sociedade e estado destrói o direito e, consequentemente, a própria liberdade. O que havia na Alemanha não era direito, mas um conjunto de regras de natureza técnica que visavam a atender a vontade do Führer e
Neumann não defende que a mera
estabilizar expectativas. Ou seja, regula-
distinção entre sociedade e estado ga-
vam, mas de maneira fundamentalmente
ranta, por si mesma, a emancipação. Mas,
autárquica.
como desenvolveu em The concept of political freedom (“O conceito de liberdade política”), a tensão é com certeza um dos elementos constitutivos da ideia de liberdade: lugar e principalmente, liber“dadeEm éprimeiro a inexistência de restrições. [...] Assim compreendida, liberdade pode ser definida como negativa ou liberdade legal (‘juristic’ freedom). [...] O elemento negativo da liberdade não deve ser descartado – fazer isso conduz à aceitação do totalitarismo – mas não pode, por si mesmo, explicar adequadamente a noção de liberdade política. Traduzido em termos políticos, o aspecto negativo da liberdade necessariamente conduz à fórmula do cidadão contra o Estado. [...] O Estado não deve absorver completamente o indivíduo; o indivíduo não pode ser
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Tais regras eram capazes de criar previsibilidade para os negócios e para os comportamentos em geral. No entanto, sua formação era autoritária e sua obediência imposta pelo terror e pela força. Qualquer oposição ou discordância, por mais 11.
Mais à frente no seu texto, Neumann apontará os limites do conceito negativo de liberdade. Resumidamente, eles são: (i) a partir dessa definição, é impossível justificar a democracia como o melhor sistema político; (ii) essa fórmula pressupõe que o único inimigo da liberdade é o Estado – embora o poder social privado possa ser ainda mais danoso; (iii) a proteção da liberdade legal não diz nada a respeito do conteúdo das leis que a protegem, permitindo, por exemplo, que um Estado liberal brutalize seu sistema penal; (iv) o modo de aplicação dessas liberdades sempre permite a existência de “cláusulas de escape” (escape clauses) que permitem a prevalência do poder político sobre os direitos individuais. É impossível aprofundar esse tema aqui. Para mais, ver: op. cit., p. 208 -210.
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Manual de Sociologia Jurídica
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insignificante que fosse, era simplesmente suprimida.
4.2.3. Direito liberal, mas não necessariamente burguês
Elas também desrespeitavam os pre-
Direito liberal e burguês: esperamos
ceitos básicos da ideia de império do direi-
que, a esta altura da exposição, a conjunti-
to (rule of law) existente no auge do libe-
va já não soe tão natural como poderia
ralismo, no século XIX. Segundo Neumann,
soar antes. O direito liberal é necessaria-
as regras do nazismo não eram gerais na
mente um direito burguês? O estado de
sua formulação, tinham prescrições vagas
direito serve necessariamente aos interes-
e abstratas e poderiam retroagir. Essa es-
ses da burguesia?
trutura de regras não pode ser fundamentada por uma concepção racional do direito. Sua legitimação depende de uma teoria que Neumann denominou “decisionista”, a qual classificava como jurídicas quaisquer normas emitidas pelo poder político. Neumann apontou Carl Schmitt como um dos principais defensores dessa tradição12.
Como acabamos de dizer, a estrutura institucional singular do nazismo, ou melhor, Behemoth, conviveu, sem qualquer problema, com o regime capitalista. Em seu livro, Neumann mostra como o nazismo ajudou a fortalecer as grandes empresas monopolistas alemãs, destruindo sistematicamente os pequenos negócios. Mostra
Claro, pode-se ampliar o conceito de
também como estas empresas passaram a
direito e chamar as regras nazistas de “ju-
contar com a ajuda do regime para compe-
rídicas” ou de “direito”. No entanto, ao fa-
tir na arena internacional e, por isso mes-
zer isso, perde-se justamente a especifici-
mo, como o regime adquiriu uma natureza
dade do nazismo que Neumann pretendeu
belicosa e expansionista para conquistar
evidenciar.
cada vez mais mercados. A supressão de qualquer oposição so-
12.
Nesse sentido, a seguinte passagem do texto The change in the function of the law in Modern Society (“A mudança na função do direito na sociedade moderna”) é essencial: “Se a lei geral é a forma fundamental do direito e se o direito não é somente voluntas, mas também ratio, então se deve afirmar que o direito do estado autoritário não possui caráter jurídico. O direito só é possível como fenômeno distinto do comando político do soberano caso se manifeste como lei geral” (NEUMANN in SCHEUERMAN, 1997, p. 138). Não há espaço para desenvolver esse importante debate aqui, que também envolve um aprofundamento sobre as próprias características da definição de império do direito, em particular na teoria alemã, que Neumann definiu como liberal -constitucionalista, e inglesa, democrático -constitucionalista. Para um aprofundamento, ver Rodriguez, 2009.
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cial aos desígnios do capitalismo garantia proteção à propriedade privada dos monopolistas e previsibilidade para os seus negócios. Um movimento sindical livre, capaz de protestar na esfera pública, organizar greves e reivindicar direitos no Parlamento é muito mais nocivo ao capitalismo e gera muito mais imprevisibilidade do que um regime autoritário. Com efeito, em seus escritos sobre a Rússia, Max Weber já revelara a
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afinidade existente ali entre autoritarismo
levadas ao direito como uma tendência an-
e capitalismo, mostrando como as elites
tiformal ameaçadora do direito moderno,
preferiam fazer acordos com um pequeno
Neumann defende que, em uma sociedade
grupo de poderosos do que ter lidar com as
democrática, elas servem justamente para
massas numa democracia e ter que nego-
favorecer as classes não privilegiadas.
ciar com uma pletora de agentes sociais. Desde que respeitada a propriedade priva-
Sobre a materialização do direito, Weber escrevera:
da, tudo andaria bem.
“
Surgem com o despertar dos modernos problemas de classe, exigências materiais dirigidas ao direito por uma fração dos interessados no direito (sobretudo os trabalhadores), por um lado, e pelos ideólogos do direito, por outro, que repudiam precisamente a vigência exclusiva de semelhantes critérios referentes, apenas, à ética comercial e reivindicam um direito social baseado em patéticos postulados éticos. Mas isso põe fundamentalmente em dúvida o formalismo do direito [...] pretendendo justiça material em vez de legalidade formal” (WEBER, 2004, p. 146).
De qualquer forma, fica bastante claro, após a análise do regime nazista feita por Neumann, que nem o direito nem o estado liberais são, necessariamente, instituições burguesas. Ambos têm origem na revolução burguesa e serviram para destruir os privilégios da aristocracia e proteger a propriedade privada e os contratos. No entanto, o prosseguimento dos conflitos sociais conferiu a estas instituições novas inflexões. A entrada da classe operária no Parlamento e a reivindicação de novos direitos transformaram por dentro o estado e o direito liberais, conferindo a eles características completamente distintas. A movimentação política desta classe fez com que o direito liberal se tornasse contraditório, ou seja, tornasse-se, ao mesmo tempo, meio de manutenção e de transformação da sociedade.
Portanto, o próprio Weber interpretava a transformação pela qual passava o direito no início do século XX de modo pessimista, principalmente a partir da democratização do sistema político e da inclusão dos trabalhadores, ao imaginar que ela enfraqueceria o caráter formal do direito, desestruturando-o (“reivindicam um direito social baseado em patéticos postulados éticos”)13. O que Neumann demonstrou, contu-
Nesse ponto, Neumann faz uma críti-
do, é que a destruição do estado do direito
ca à interpretação pessimista do diagnósti-
no nazismo foi antes um abandono cons-
co de “materialização do direito” descrito antes por Weber. Ao invés de compreender as demandas crescentes por justiça social
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13.
Ver, ainda, o artigo de Samuel Barbosa, nesta mesma coletânea.
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ciente daquele pela burguesia do que uma
social, cujas estruturas tributária, admi-
desestruturação jurídica oriunda da de-
nistrativa e política são completamente
mocratização e das demandas materiais.
diferentes daquelas que caracterizam o li-
Em outras palavras, Neumann consegue
beralismo clássico.
articular o diagnóstico weberiano de ma-
A possibilidade de controlar o merca-
terialização do direito, no qual demandas
do, impondo a ele um padrão racional de
por justiça social e equidade são direcio-
funcionamento, abre a perspectiva de su-
nadas ao direito, com a democratização do
primir o capitalismo por meio das institui-
estado, por meio da atuação de uma classe
ções, e não somente a partir de sua destrui-
política autoconsciente (o proletariado).
ção violenta. Afinal, mercado e capitalismo
Assim, cada nova demanda incluída
não são sinônimos. O capitalismo existe
pelo direito implica a modificação de sua
quando sua lógica toma conta de todas as
estrutura: ele não é mais visto como meio
esferas sociais. Uma das funções do direi-
neutro cuja função é transmitir a vontade
to é justamente impedir que isso ocorra.
do poder, porque sua tessitura também
Nenhum poder, seja ele político, econômi-
está em disputa. Ela não permanece inal-
co ou social, deve suprimir a tensão entre
terada; é transformada continuamente pelas lutas sociais. Para fazer uma analogia, podemos dizer que os eventos linguísticos, quando levados em conta e incorporados
uma esfera soberana e uma esfera de liberdade independente desta: em sua encarnação mais conhecida, a diferença entre sociedade civil e estado.
pelas regras formais do idioma, resultam na transformação da gramática. Em nosso caso, da gramática institucional.
4.3. O que é uma revolução? O que é emancipação?
O contrato de trabalho, que era ape-
Parece ficar claro que este movimen-
nas meio para ocultar a exploração, torna-
to teórico e real resulta na modificação do
-se instrumento de luta contra a explora-
próprio sentido de revolução. Altera-se a
ção. A propriedade privada, que era um
visão da transformação social, que deixa
direito sacrossanto e eminentemente indi-
de ser concebida como uma ruptura tem-
vidualista, ganha sentido social e limites
poralmente rápida e violenta das institui-
ao seu exercício, em nome do respeito ao
ções sociais e passa a ser pensada como
trabalhador, ao meio ambiente, ao consu-
um processo que se realiza na imanência
midor etc. Numa perspectiva macroscópi-
delas. Parece cair por terra, portanto, a di-
ca, o estado mínimo se transforma radi-
cotomia Reforma x Revolução, clássica
calmente e vai se tornando um estado
para a história do marxismo.
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É evidente que, no que se refere à Alemanha nazista, Neumann não acredi-
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titutiva da sociedade emancipada. Deixemos este ponto mais claro.
tava haver nenhuma possibilidade de re-
Podemos identificar a emancipação,
sistência institucional. Afinal, o direito
exclusivamente, com a realização dos ob-
havia sido suprimido. A única solução para combater o nazismo seria uma vitória militar, acachapante e inequívoca, acompanhada da desnazificação das posições de poder do aparelho estatal alemão, programa que Neumann endossa explicitamente em Behemoth e defenderá em seu exílio norte-americano (SALTER, 2007)14. A possibilidade de emancipação via direito, ideia presente em especial no livro O império do direito, pressupõe que o direito liberal esteja em funcionamento. Apenas assim as reivindicações da sociedade podem alterar as instituições por dentro e os detentores do poder são obrigados a justificar suas ações racionalmente.
jetivos da classe operária? Se esta fosse a posição de Neumann, seria difícil sustentar o que dissemos até agora. Como alguns marxistas, Neumann veria algo de positivo no direito apenas quando ele servisse de instrumento para determinados interesses, mas não como algo valioso em si mesmo. Sua posição foi esta durante a república de Weimar; porém, mudou já em 1936, ano em que termina de escrever O império do direito. Nesse livro, Neumann retira diversas lições do regime nazista recém-implantado, criticando com veemência toda e qualquer forma de legitimação irracional do poder. O livro mos-
A manutenção da tensão entre esses
tra com clareza que a tensão entre socie-
dois polos, sociedade e estado soberano,
dade e estado é o que confere ao direito
torna-se essencial à emancipação huma-
potencial emancipatório: desde que man-
na. Neumann percebe que é a liberdade da
tida a separação entre estado e socieda-
sociedade diante do estado que permite às
de, é possível organizar reivindicações,
classes oprimidas formularem suas demandas de transformação e utilizarem o direito para fazer avançar a emancipação humana. O direito passa a ser não mais um mero instrumento de luta, mas parte cons-
14.
No prefácio do livro Behemoth, datado de dezembro de 1941, Neumann afirma: “Uma derrota militar da Alemanha é necessária. [...] A superioridade militar das democracias e da União Soviética deve ser demonstrada ao povo alemão” (NEUMANN, 1966, p. xix).
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lutar por direitos e modificar por dentro as instituições. É claro que Neumann não defende a forma direito em qualquer contexto, sob qualquer hipótese e em qualquer de suas manifestações concretas. Nenhum pensador marxista seria capaz de afirmar a validade de uma estrutura para além da história e do contexto em que se localiza.
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Mesmo diante de um estado de direi-
danças nas instituições, é razoável dizer que
to em funcionamento, Neumann não se
o direito funciona como mero instrumento
esquivou de afirmar a necessidade de re-
de dominação de classe?
ver seu desenho para além da separação
Com efeito, o direito ainda hoje reve-
de poderes em sua concepção tradicional,
la sua força quando pensamos, por exem-
a seu juízo, um entrave para pensar em
plo, na ação de determinados estados e
formas mais radicais de democracia15. Se-
governos para se afastar de qualquer regra
ria possível e necessário, sugere o autor,
nas esferas nacional e internacional, ou
pensar em outra separação de poderes,
seja, para fugir do controle de qualquer
que não promova um amálgama entre es-
instância que se pareça com a sociedade
tado e sociedade, mas que distribua de
civil. Também quando pensamos na estra-
maneira diferente o poder entre os diver-
tégia de grandes empresas que buscam
sos grupos sociais.
fugir do direito, escolhendo países com le-
O que Neumann e, mais tarde, Habermas nos fazem perceber é o potencial eman-
gislação social e tributária mais favorável aos seus interesses.
cipatório contido na forma direito diante
Fugir do direito é uma maneira efi-
de determinadas circunstâncias históricas;
caz de tentar construir um espaço de arbi-
bem como a necessidade de transformar,
trariedade, livre de qualquer controle so-
por dentro, seu desenho, para radicalizar a
cial. Dito isto, insistimos na pergunta:
democracia a cada momento, diante de no-
diante de um estado de direito em funcio-
vas demandas e de novos interesses sociais.
namento, faz sentido apostar na violência
Formulados desta maneira, estes conceitos
e na destruição das instituições que ga-
nos permitem analisar melhor a conjuntura
rantem, justamente, a possibilidade de lu-
e pensar a práxis emancipatória de maneira
tar pela transformação social?
mais ponderada e eficaz.
Se considerarmos que, hoje, a classe
A pergunta, nesta altura, é a seguinte:
operária não é mais a única portadora da
diante de um estado de direito em funciona-
emancipação; que ela não é mais a única
mento e da possibilidade de qualquer grupo
porta-voz dos interesses de todos os opri-
ou indivíduo que se sinta excluído, injustiça-
midos, a importância do estado de direito
do, desprovido de direitos, organizar-se para
cresce ainda mais. Não há tempo de deta-
reivindicar seus interesses e postular mu-
lhar este problema aqui. Mas é importante notar que Neumann escreveu antes de ele
15.
Ver texto de Neumann sobre Montesquieu, prefácio a uma edição norte -americana de O espírito das leis, que está contido em Neumann, 1957.
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ser colocado e, portanto, não o responde inequivocamente. Em sua época, “movi-
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Franz L. Neumann
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mento social” era sinônimo de classe ope-
a este quadro as lições do nazismo e os fe-
rária: a reflexão sobre os assim denomina-
nômenos contemporâneos que podemos
dos “novos movimentos sociais” é posterior
classificar como “fuga do direito”, podemos
à sua morte e ganha corpo a partir dos
olhar para o estado de direito hoje com
anos 1960 e 1970.
olhos bastante generosos.
Feministas, pacifistas, ativistas gays,
Na falta de uma “verdade” para as
ativistas queer, movimento negro, ecolo-
reivindicações da esquerda, de um senti-
gistas, entre outros, mostraram que a luta
do único para a emancipação humana e,
distributiva voltada ao fim da exploração
ainda, diante dos perigos do arbítrio e da
do trabalho não era a única dimensão da
falta de controle sobre o poder político e o
opressão sob o capitalismo. Estas novas
poder econômico, o direito mantém e au-
demandas passam a ser dirigidas ao esta-
menta, na atualidade, seu potencial eman-
do de direito, resultando em transforma-
cipatório. Afinal, trata-se de um mecanis-
ções nas estruturas de poder constante-
mo capaz, desde que pressionado pelos
mente pressionadas pela proliferação de
movimentos sociais e enraizado na socie-
novas desigualdades, encarnadas em indi-
dade a ponto de abarcar seus principais
víduos, grupos e movimentos sociais em
conflitos, de manter aberta a luta pelo po-
luta contra a opressão.
der sem permitir que se recaia em regi-
O estado social do pós-guerra está se
mes arbitrários.
transformando em algo novo, algo para o qual ainda não temos nome, mas que continua a experimentar mudanças significativas. Mais importante: é difícil identificar uma linha reta que ligue, hoje, uma determinada práxis com a sociedade emancipada do futuro. O desenho dela, aparentemente, será muito mais plural, fragmentado e dinâmico do que aquele antecipado pelo marxismo tradicional. Num contexto plural como este, e aqui a reflexão de Habermas é central, o direito ganha importância por ser capaz de promover uma disputa entre grupos sem o uso de violência aberta. Acrescentando-se
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Bibliografia Textos de Franz Neumann FRAENKEL, Ernst; KAHN-FREUND, Otto; KORSCH, Karl; NEUMANN, Franz; SINZHEIMER, Hugo. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982. KIRCHHEIMER, Otto; NEUMANN, Franz. Social democracy and the rule of law. Keith Tribe (Ed.). London: Allen & Unwin, 1987. NEUMANN, Franz. The democratic and the authoritarian state : essays in political and legal theory. Herbert Marcuse (Ed.). Illinois: Free Press, 1957. ________. Behemoth: the structure and practice of national socialism 1933 -1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. ________. Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino, 1983.
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Sobre Franz Neumann (monografias, artigos e capítulos) COTTERRELL, Roger. Law’s community. Legal theory in sociological perspective. Oxford: Clarendon Press, 1995. HONNETH, Axel. Teoria crítica. In: GIDDENS, Anthony (Org.). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999. ________. Anxiety and politics: the strengths and weaknesses of Franz Neumann’s diagnosis of a social pathology. Constellations, v. 10, June 2003. INTELMANN, Peter. Franz L. Neumann: chancen und dilemma des politischen reformismus. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1996.
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Outros textos
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5 Considerações sobre o Direito na Sociologia de Pierre Bourdieu Ana Carolina Chasin
Pierre Bourdieu (1930 -2002) pode
igual entre iguais (por não partilhar os có-
ser considerado um dos mais importantes
digos sociais vigentes no meio intelectual
sociólogos do século XX. Nasceu numa fa-
francês). Esse estado de permanente ina-
mília modesta de uma vila rural situada no
dequação é o que ajuda a explicar por que
extremo sul da França. Não obstante, sua
a busca por desvelar os mecanismos sim-
trajetória escolar foi bem-sucedida, tendo-
bólicos de distinção social está presente
-lhe permitido alcançar a Escola Normal
em suas mais diversas pesquisas sobre o
Superior (ENS), pináculo da vida intelec-
mundo social e os campos de produção da
tual francesa, onde cursou filosofia justa-
cultura legítima. Tal preocupação é per-
mente no momento em que, na hierarquia
ceptível não apenas nas investigações que
acadêmica das disciplinas, ela ocupava a
desenvolveu a respeito dos gostos de clas-
posição de maior prestígio.
se e dos estilos de vida, mas também nos
Essa experiência de ascensão social significou uma ruptura com o meio fami-
diferentes âmbitos da arte, da ciência e, principalmente, do direito.
liar e cultural de origem que jamais seria
Bourdieu dedicou-se a uma varieda-
plenamente resolvida no plano subjetivo.
de impressionante de empreendimentos
Apesar do mérito, nunca se sentiria um
intelectuais. Escreveu 37 livros e publicou
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mais de 400 artigos sobre os mais diversos
esse movimento exige, de saída, situar o
temas relativos ao mundo social (WAC-
próprio autor no interior da tradição do
QUANT, 2008). Mobilizou uma ampla cole-
pensamento sociológico. Conceitos como
ção de métodos proporcionados pela tradi-
espaço social, capital, campo, habitus e
ção das ciências sociais – desde etnografia
illusio, entre outros, delineiam os contor-
até as mais complexas técnicas quantitati-
nos de uma abordagem preocupada em es-
vas – para realizar pesquisas empíricas de
tabelecer mediações entre uma série de
objetos tão distintos quanto o sistema
polaridades recorrentes nas análises do
educacional francês, o declínio da socie-
mundo social: indivíduo versus sociedade,
dade camponesa, a dominação nas rela-
prática versus estrutura, análise interna
ções de gênero, a classe trabalhadora da
versus análise externa, teoria versus em-
Argélia, o mundo intelectual, a filosofia, as
piria. Assim como outros sociólogos con-
artes, as divisões de classe etc. Esse rol de
temporâneos, Bourdieu realiza uma tenta-
objetos aparentemente tão desconexos
tiva de superação dessas antinomias.
pôde ser integrado a partir de um conjunto de conceitos que foi sendo elaborado ao longo dos anos e que foi conformando uma impressionante coerência à obra. A força e a consistência desse relativamente enxuto quadro conceitual talvez ajudem a explicar por que Bourdieu obteve tanto destaque em todo o mundo e nas mais diversas áreas do conhecimento, podendo ser considerado uma referência incontornável para a compreensão das sociedades contemporâneas.
O conceito de espaço social constitui um bom ponto de partida para a compreensão do que o autor entende por mundo social. Com existência objetiva, independente das intenções dos agentes individuais, o espaço social se caracteriza basicamente por ser multidimensional e relacional. Os agentes e grupos sociais são definidos pelas posições relativas que ocupam numa região determinada desse espaço. O espaço social não é homogêneo e indiferenciado, sendo que em seu interior ele produz campos.
5.1. Conceitos centrais para a compreensão do mundo social
O campo é justamente o lugar em que as posições dos agentes estão fixadas. É ao
Para compreender o impacto de sua
mesmo tempo um campo de forças e um
contribuição aos estudos sobre o direito, é
campo de lutas, local em que se travam as
importante apresentar, mesmo que suma-
disputas entre os agentes em torno dos in-
riamente, alguns desses conceitos princi-
teresses específicos que caracterizam a
pais. Como é característico de Bourdieu,
área em questão: riqueza, poder, verdade,
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Considerações sobre o Direito na Sociologia de Pierre Bourdieu
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beleza, justiça etc. Cada campo é relativa-
de capital semelhantes e que, colocados
mente autônomo e possui uma lógica de
sob as mesmas condições, tendem a apre-
funcionamento própria, que orienta as
sentar as mesmas atitudes e práticas.
ações dos indivíduos.
A dimensão simbólica assume im-
Dependendo da lógica de funciona-
portância significativa nessa análise. As
mento de cada campo, um tipo diferente
classes sociais não se definem apenas
de capital é valorizado. Para Bourdieu, há
pela posição ocupada pelos atores no
diversos tipos de capital: o capital econô-
processo de produção (como boa parte
mico, o capital cultural (títulos escolares,
dos estudiosos de extração marxista
conhecimentos, bagagem cultural), o capi-
consideravam), mas sim pelo posiciona-
tal social (redes de contatos e relaciona-
mento dos agentes no espaço social, que
mentos) e o capital simbólico, que é uma
é multidimensional e, apesar de englobar
espécie de síntese dos outros três tipos de
também a dimensão do processo de pro-
capital, a forma percebida e reconhecida
dução, não se reduz a ela. Os processos
como legítima das diferentes espécies de
de representação e de nomeação, bem
capital.
como as lutas em torno das classificações
Em cada campo social, há um polo
a respeito do mundo, também são objeto
dos dominantes e um polo dos dominados.
de luta entre as classes. Assim, as rela-
Os dominantes são aqueles que possuem a
ções de força objetivas tendem a se re-
maior quantidade do capital disputado na-
produzir nas relações de força simbóli-
quele campo; são “aqueles que exprimem
cas, nas visões do mundo social que
as forças imanentes do campo” (BOUR-
contribuem para a permanência dessas
DIEU, 2003, p. 49). O modelo referente à
mesmas relações de força.
estruturação e ao funcionamento dos cam-
Afirmar que os agentes pertencentes
pos seria válido e aplicável a todos eles. Ele
a uma mesma classe possuem quantidade
trabalha com a hipótese de que existem
de capital econômico ou cultural seme-
homologias estruturais e funcionais entre
lhante é o mesmo que dizer que suas práti-
todos os campos.
cas, costumes, gostos e atitudes são tam-
A noção de espaço social é também
bém similares. Nesses termos, a noção de
fundamental para a compreensão da con-
habitus se destaca como uma dimensão
cepção de classe do autor. A classe é o con-
importante para a compreensão do es-
junto de agentes que ocupam posições ho-
quema analítico proposto por Bourdieu.
mólogas no espaço social. É composta por
Nas próprias palavras do autor, habitus
agentes que possuem quantidades e tipos
significa:
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“o sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente” (BOURDIEU, 1994, p. 60-61).
foi detidamente abordado no artigo “La force du droit: pour une sociologie du champ juridique” [A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico], publicado na revista de seu grupo de pesquisa (Actes de la recherche en sciences sociales) em setembro de 1986. Logo no início desse texto, Bourdieu critica o que ele chama de debate científico do direito – formalismo versus instrumentalis-
O habitus opera, portanto, a media-
mo – para conceituar o que seria o campo
ção entre agente e sociedade, a ponte en-
jurídico. O formalismo, representado pelo
tre as posições objetivas de classe e suas
pensamento de Hans Kelsen, compreende-
práticas. O habitus é o princípio unifica-
ria o direito como um sistema fechado, ca-
dor e gerador de todas as práticas. São dis-
paz de se desenvolver internamente, e que
posições de conduta padronizadas, não
deveria ser estudado a partir do corpo de
necessariamente reflexivas ou conscien-
doutrina produzido. Já o instrumentalis-
tes, incorporadas pelos agentes e que mo-
mo, representado pelos autores da tra-
delam suas ações e práticas. Indivíduos
dição marxista, pecaria justamente pela
situados em um local homólogo do espaço
visão unicamente externa do direito (in-
social possuem habitus semelhantes, o
terpretado como superestrutura, instru-
que resulta em correspondências nos seus
mento de dominação etc.). Para Bourdieu,
gostos e estilos de vida. O estilo de vida
nenhuma dessas escolas realiza uma in-
constitui um conjunto unitário de prefe-
terpretação historicamente situada do di-
rências que exprimem, na lógica específi-
reito. Essa lacuna seria suprida justa-
ca de cada um dos subespaços simbólicos
mente a partir da compreensão do direito
(mobília, vestimenta, alimentação, lingua-
como campo, tal como ele propõe:
gem etc.), a mesma intenção expressiva. Assim, cada dimensão do estilo de vida simboliza todas as outras.
5.2. O campo do direito Embora não tenha sido extensamente estudado pelo autor, o campo do direito
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Para romper com a ideologia da indepen“dência do direito e do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, for-
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Considerações sobre o Direito na Sociologia de Pierre Bourdieu ma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física. As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas” (BOURDIEU, 1998, p. 221).
O trabalho de Bourdieu se propõe, por um lado, a explorar qual seria a lógica específica desse campo, as práticas e os discursos que nele se inscrevem; por outro, a esmiuçar de que modo e em que medida ele traduz a dominação vigente na sociedade de modo mais amplo. O campo do direito apresenta como especificidade, como objeto de disputa, o capital jurídico, o “direito de dizer o direito”; ou seja, a separação entre quem parti-
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A instituição de um ‘espaço judicial’ implica “a imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de fato dele excluídos, por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de toda a postura linguística – que supõe a entrada neste espaço social” (BOURDIEU, 1998, p. 225).
A linguagem técnica utilizada e compreendida unicamente pelos operadores do direito é o que melhor demarca essa fronteira, fundamental para a manutenção da relação de poder entre esses dois espaços. A escrita desempenha papel importante na construção dessa linguagem jurídica, pois garante a regularização dos procedimentos e favorece a autonomização do texto. Por vezes, a linguagem jurídica emprega as mesmas palavras que a linguagem vulgar, mas o significado atribuído ao termo é completamente diferente, o que aumenta ainda mais a distância entre os operadores do campo e os profanos.
cipa desse campo e quem não participa é
Os operadores são agentes especiali-
dada pela capacidade de interpretar o cor-
zados encarregados de organizar, segundo
po de textos – consagradores de uma visão
formas codificadas, a manifestação públi-
legítima e justa do mundo social – que o
ca dos conflitos. Atuam, assim, como me-
integram. Apenas quem detém competên-
diadores (terceiros) que intermedeiam as
cia social e técnica para compreender a
demandas dos envolvidos:
linguagem interna do direito é que está habilitado a tomar parte em seus rituais. São considerados “profissionais”, em oposição aos “profanos”, desconhecedores desse funcionamento específico:
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“
O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito direto entre partes diretamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que atuam por
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Manual de Sociologia Jurídica procuração e que têm em comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do campo” (BOURDIEU, 1998, p. 229).
Há, paralelamente, a permanente construção de uma racionalidade no interior do campo. O direito aparece como fundamentado na ciência e na moral, como
Para o autor, a constituição de um
se fosse independente das relações de for-
campo jurídico ocorre justamente no mo-
ça que ele consagra. Esse trabalho de ra-
mento em que há instauração do monopó-
cionalização permite, assim, que se ignore
lio dos profissionais sobre a produção e a
o arbitrário e que o veredicto seja reconhe-
comercialização dos serviços jurídicos. A
cido como legítimo, garantindo a eficácia
competência jurídica é um poder específi-
simbólica de sua aplicação.
co que permite o controle do acesso ao campo do direito (quais conflitos podem entrar e quais ficam de fora).
Com isso, tem-se a impressão de que o direito parece plenamente autônomo no espaço social. Somente os membros do cam-
Dependendo do contexto, essa fron-
po jurídico dominam sua linguagem e são
teira entre profanos e profissionais pode
capazes de compreender sua racionalidade.
ser deslocada, mas ela jamais é rompida.
Apesar das diferentes posições que even-
Como exemplo, Bourdieu relata o que
tualmente ocupem, todos os integrantes
ocorreu na França quando o direito do trabalho estava sendo “vulgarizado”, ou seja, quando sua linguagem começava a ser compreendida pelos profanos. Nesse momento, os profissionais iniciaram um movimento de aumento da “cientificidade”, visando a conservação do monopólio da interpretação legítima. O mesmo acontece toda vez que há uma nova demanda por judicialização: quando novas causas começam a chegar nos espaços jurídicos (aumentando a demanda), impõe-se a criação
desse campo tendem a compartilhar o mesmo habitus, ou seja, certo estilo de vida, jeito de se vestir, de se comportar, de falar etc. Além disso, aderem à illusio do campo, isto é, incorporam certos pressupostos inscritos no fundamento de seu funcionamento, tais como a crença na lógica dedutivista. A illusio é comum a todos os membros do campo, sejam eles ocupantes de posições dominantes ou dominadas, sejam eles ortodoxos ou heréticos.
de um novo mercado e, consequentemen-
Outra especificidade do campo do di-
te, de novas competências. Um efeito cir-
reito é a atividade de formalização. Trata-
cular leva ao aumento do formalismo dos
-se do trabalho de elaboração das leis, de
procedimentos, reforçando a necessidade
redação das normas. Ao lado dos detento-
de contratação de serviço especializado e
res do poder temporal, político ou econô-
excluindo, novamente, os profanos.
mico, os “agentes formalizadores” também
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pertencem à classe dominante, de forma que tendem a legislar em prol dos interesses dessa classe: proximidade dos interesses e, sobretudo, “a Aafinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo que o ethos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão de mundo dos dominantes” (BOURDIEU, 1998, p. 242).
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estruturam a percepção e a apreciação correntes e que orientam o trabalho destinado a transformá-los em confrontações jurídicas” (BOURDIEU, 1998, p. 231).
Nessa atividade de formalização, as leis elaboradas, manifestações dos diferentes interesses específicos da classe dominante, possuem algumas uniformidades. Sua principal característica é a dissimulação dos interesses de classe: é por meio de uma aparente neutralidade e universalidade que as leis (arbitrárias e frutos dos interesses dominantes) adquirem sua legitimidade. A especificidade do funcionamento do campo jurídico está justamente nessa retórica de autonomia, neutralidade e
É essa sintonia dos habitus que ga-
universalidade:
rante a previsibilidade do texto jurídico. Bourdieu desconstrói a ideia de que a formação de precedentes (jurisprudência) leva ao desenvolvimento de uma racionalidade jurídica, responsável por garantir essa segurança. O que aparece como a
ele confere o selo da universalidade, fator “por[...]excelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o mundo social que em nada de decisivo se opõe ao ponto de vista dos dominantes” (BOURDIEU, 1998, p. 245, ênfases no original).
aplicação de uma competência jurídica neutra deriva mais da coesão de habitus
Toda essa análise leva, assim, à cons-
dos intérpretes do que de uma lógica ima-
trução de uma interpretação que combate
nente dos textos:
a crença (presente no mundo do direito) de imparcialidade das decisões judiciais
A previsibilidade e calculabilidade que “[Max] Weber empresta ao ‘direito racional’ assentam, sem dúvida, antes de mais, na constância e na homogeneidade dos habitus jurídicos: as atitudes comuns, afeiçoadas, na base de experiências familiares semelhantes, por meio de estudos de direito e da prática das profissões jurídicas, funcionam como categorias de percepção e de apreciação que
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(segundo a qual o juiz nada mais faz do que aplicar a norma geral ao caso concreto). Bourdieu argumenta que o veredicto sempre envolve um trabalho de interpretação e escolhas, no qual o juiz deve optar entre diferentes direitos possíveis. Ele possui certo grau de autonomia, de forma
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que suas decisões irão sempre refletir uma
Outro ponto importante na análise
tomada de posição. Quanto mais autono-
empreendida por Bourdieu sobre o campo
mia ele desfruta, melhor posicionado está
do direito se refere justamente a essa “di-
no campo, e vice-versa. Toda sentença tra-
visão do trabalho jurídico”, ou seja, às opo-
duz, dessa forma, o resultado de uma luta
sições estruturais verificadas dentro do
simbólica, sendo que o vencedor depende-
próprio campo. Dois polos compõem a es-
rá da correlação de forças entre os profis-
trutura do campo do direito: os teóricos e
sionais (principalmente juiz e advogados).
os práticos. Os teóricos, geralmente pro-
O sucesso (ou insucesso) de cada profissional atuante nessa disputa está relacionado à sua capacidade de mobilizar os recursos jurídicos disponíveis (capital jurídico), o que, como indicado anteriormente, depende da posição do espaço social que ocupa. Além disso, há também uma correspondência entre a posição ocupada pelos profissionais no interior do
fessores e outros acadêmicos (além dos juízes das altas cortes), interpretam os textos jurídicos a partir da elaboração de doutrinas. Já os práticos, que podem ser representados por advogados ou por juízes (a depender do contexto), afirmam-se pela prática processual e pela interpretação do direito a partir da avaliação de um caso concreto.
campo jurídico (especialmente os advoga-
Conforme a tradição jurídica, e de-
dos) e seus “clientes” (situados fora do
pendendo da posição social ocupada pelo
campo jurídico), ou seja, aqueles que pos-
campo do direito em cada sociedade, um
suem interesses concretos em jogo nas
desses polos ocupa a posição dominante,
disputas. Nesse sentido, Bourdieu afirma
detendo o monopólio da interpretação au-
que há uma homologia (ou paralelismo)
torizada dos textos jurídicos. Na tradição
entre as diferentes categorias de produto-
romano-germânica, são os teóricos (pro-
res ou de vendedores de serviços jurídicos
fessores e membros da alta magistratura)
e as diferentes categorias de clientes. Os
que ocupam as posições de maior prestí-
ocupantes das posições dominadas no
gio. Já na tradição anglo-americana, calca-
campo jurídico, por exemplo, tendem a
da no direito jurisprudencial e no primado
trabalhar mais para as clientelas das clas-
dos procedimentos, a valorização recai, ao
ses dominadas. Isso, inclusive, aumenta
contrário, na prática profissional.
ainda mais a inferioridade das posições
A posição que cada agente ocupa
que ocupam no interior do campo jurídi-
nesse espaço está relacionada com o grau
co, contribuindo para a perpetuação da
de apropriação do capital jurídico: a ob-
estrutura desse campo.
tenção de capital implica a ocupação de
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posição de maior vantagem em relação aos
direito em tempos de globalização. Nesse
demais. Esse processo acarreta diferen-
artigo – “A reestruturação global e o direi-
ciação e hierarquização interna ao campo.
to: a internacionalização dos campos jurí-
Por estarem situados nos dois polos
dicos e a criação de espaços transnacio-
antagônicos da divisão do trabalho, os de-
nais” –, o método é aplicado à analise
tentores dessas diferentes espécies de ca-
específica de um caso concreto: o estudo
pital jurídico desempenham funções que
da internacionalização dos campos jurídi-
podem ser consideradas complementares.
cos nacionais europeus ao longo do surgi-
É o contato com a realidade usufruído pe-
mento de um espaço jurídico “transnacio-
los práticos que permite a introdução de
nal”, fruto da criação da Comunidade
inovações no direito. Cabe aos juristas a
Europeia.
incorporação dessas mudanças ao sistema jurídico, garantido, inclusive, a perpetuação de sua coerência interna.
Tal processo foi marcado pelo confronto entre a antiga tradição jurídica europeia e as novas formas fortemente influenciadas pelo modo norte-americano
5.3. Desdobramentos das análises de Pierre Bourdieu Inúmeros pesquisadores contemporâneos vêm realizando estudos a partir do esquema analítico proposto por Pierre
de produção do direito. O contraste entre esses dois modelos está relacionado à maneira pela qual a hierarquia do campo jurídico é conformada: no caso europeu, são, sobretudo, os acadêmicos que detêm o mo-
Bourdieu. No domínio específico do cam-
nopólio da interpretação autorizada dos
po do direito, um grupo formado por seus
textos jurídicos; no caso norte-americano,
próprios colaboradores tem trabalhado no
tal posição é ocupada por grandes escritó-
desenvolvimento da agenda de pesquisa
rios corporativos.
inaugurada com a publicação de “A força
A autoridade jurídica, no antigo mo-
do direito”. Entre eles, o sociólogo francês
delo europeu, provinha da ciência do direi-
Yves Dezalay é quem vem obtendo maior
to e da crença na imparcialidade a ela atre-
destaque na continuidade dessa linha de
lada. No topo da hierarquia, estavam os
pesquisas.
líderes acadêmicos e a alta corte de juízes,
Um texto escrito por esse autor, em
todos ostentando perfil de independência
conjunto com David Trubek, ilustra muito
e distância em relação a qualquer interes-
bem o modo pelo qual a teoria dos campos
se comercial (embora os professores fos-
pode ser utilizada para compreender
sem eventualmente contratados por clien-
transformações recentes por que passa o
tes abastados que podiam pagar os altos
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custos de sua opinião jurídica oficial). Es-
jurídica, estão os praticantes da advocacia
ses juristas notáveis mantinham estreito
corporativa (além dos juízes das altas cor-
vínculo com a elite econômica e social, até
tes). Grandes escritórios jurídicos corpora-
porque as origens sociais coincidiam. As-
tivos atuam em várias áreas diferentes,
sim, podiam manter uma distância apa-
operam em escala nacional e regional, e,
rente da prática jurídica e da atividade
além do trabalho da advocacia litigiosa pro-
comercial. Essa aparência de autonomia
priamente dita, oferecem também serviços
dos produtores de direito era, inclusive, o
de consultoria, preparação de legislação,
que conferia legitimidade ao campo. No
regulamentação administrativa e prática
outro polo da divisão de trabalho e poder,
de lobby. Os advogados são recrutados a
estavam aqueles que praticavam o direito,
partir de seu desempenho acadêmico nas
que tinham contato com as realidades da
mais prestigiosas faculdades de direito. A
vida jurídica cotidiana: os advogados. A
hierarquia da educação jurídica é muito
prática estava diretamente orientada para
bem definida, o que contribui para a lógica
a resolução de litígios, o que era realizado
meritocrática do recrutamento. Os escritó-
mediante atuações individuais ou de em-
rios corporativos são entidades voltadas
presas de pequeno porte, especializadas
para o lucro e os advogados corporativos
em determinadas áreas do direito. Nesse
têm altos salários e identificam-se com a
modelo, orientado mais para regras e dou-
clientela, o que torna a relação entre hie-
trinas do que para a profissão propriamen-
rarquia social e campo jurídico mais direta
te dita, as universidades mais prestigiadas
e aberta do que no caso europeu. Por outro
não desempenhavam a função de porta de
lado, apesar dessa natureza empresarial da
entrada na profissão, mas a de polo no qual
profissão, há um espírito de objetividade e
um seleto grupo de antigos professores se
autonomia do campo jurídico, o que advém
empenhava nessa produção doutrinária.
do “cult of service to the law” (“servir e es-
Já o modelo norte-americano – denominado pelos autores de “cravathismo”1 – tem como centro, ao contrário, a grande empresa de direito. No pico da hierarquia 1.
Referência à Paul Cravath, advogado em Nova Iorque entre o final do século XIX e o início do século XX, e pioneiro na fundação do modelo de escritórios de direito modernos. O termo – utilizado pelos autores por analogia ao “fordismo” – refere -se a um sistema de produção do direito centrado em grandes escritórios com orientação comercial, funcionamento gerencial e atuação em larga escala.
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tar a serviço do direito”), ou seja, da busca pela garantia de que o sistema legal esteja a serviço de todos. Nesse sentido, advogados renomados também acumulam capital jurídico ao firmar compromissos com serviços públicos e realizar atividades de advocacia pro bono. Foram diversas as formas pelas quais o modo norte-americano de produção do direito passou a influenciar o antigo direito
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europeu. A criação da Comunidade Euro-
invadir a seara teórica, investindo no ensi-
peia, a abertura de fronteiras, a reestrutura-
no jurídico e na elaboração da doutrina.
ção das economias e o aumento do número
Com isso, surge uma nova geração de aca-
de empresas que operam simultaneamente
dêmicos capazes de, ao apresentar um du-
em diversos países europeus levaram ao sur-
plo perfil, contestar as hierarquias até en-
gimento de um novo mercado de atividades
tão vigentes: por um lado, estão orientados
jurídicas. E esse novo “mercado de direito
para a prática; por outro, são também ca-
europeu”, fortemente marcado pela incorpo-
pacitados para manter o tradicional privi-
ração de características oriundas do direito
légio professoral de dizer o direito. O “anti-
norte-americano, passou a exercer grande
go clube dos sacerdotes” (professores da
influência nos campos jurídicos de vários Estados nacionais. Esse cenário abre espaço para o ingresso, nesse incipiente mercado, de novos agentes, até então externos à tradição jurídica europeia: escritórios jurídicos norte-americanos [U.S. Law Firms], grandes firmas contábeis [Big Accounting Firms], assessoria jurídica interna das corporações europeias [House Counsel in European Corporations] e novos escritórios jurídicos multinacionais europeus [New European Multinational Law Firms].
Faculdade de Direito de Paris que até então dominavam o campo da produção doutrinária) vai aos poucos se dissolvendo, pois os jovens estudantes que poderiam vir a ocupar seus postos acabam indo trabalhar nos grandes escritórios de advocacia ou firmas de contabilidade. Os “melhores e mais brilhantes” advogados franceses, incluindo os que já ocupavam alguma posição de professor ou tinham aspirações acadêmicas, são atraídos por essas novas oportunidades. Sua inserção acadêmica é, assim, conjugada com o trabalho aplicado
O caso francês é mobilizado para ilus-
e com a internacionalização do aprendiza-
trar esse processo. O novo contexto impõe
do, pois começa a se tornar frequente que
mudanças para um campo jurídico até en-
esses advogados passem uma temporada
tão organizado seguindo fielmente a lógica
estudando nos Estados Unidos. Além dis-
do antigo direito europeu. Profissionais
so, esse novo contexto também altera a
que exercem atividades práticas, os quais
origem social dos advogados mais bem po-
até então ocupavam posição periférica na
sicionados no campo, já que os processos
antiga divisão europeia do trabalho jurídi-
de recrutamento vão sendo cada vez mais
co, com o surgimento desse novo mercado
pautados por critérios meritocráticos.
de direito europeu passam a desfrutar de
Os desdobramentos jurídicos oriun-
prestígio cada vez maior. Os escritórios
dos dessa integração econômica europeia
multinacionais de advocacia começam a
são, assim, descritos pelos autores a partir
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das transformações que os campos jurídi-
conforme as formações sociais. Em uma
cos nacionais vão sofrendo. Não obstante,
conferência proferida em Berlim Oriental,
essas mudanças na organização do direito
em outubro de 1989, ao analisar a dinâmica
também têm o efeito de contribuir para a
das sociedades do Leste Europeu, em espe-
crescente integração das economias e o
cial a República Democrática da Alemanha,
consequente surgimento de áreas jurídi-
ele mesmo aponta que a posição ocupada
cas transnacionais.
pelo capital econômico nas sociedades ca-
Vê-se aí mais uma característica que
pitalistas é substituída pelo que ele chama
distancia a vertente de pesquisas sobre o
de “capital político”: aquilo que “assegura
direito iniciada por Pierre Bourdieu da
aos seus detentores uma forma de apropria-
tradição do pensamento marxista. Para
ção privada de bens e de serviços públicos
além do movimento de determinação uni-
(residências, veículos, hospitais, escolas
lateral do direito pela economia, deve-se
etc.)” (BOURDIEU, 1997, p. 31). Apesar de
considerar também a situação inversa: as
essa sociedade ter se baseado em outra di-
influências que o próprio campo jurídico
nâmica de organização, e a importância re-
exerce tanto no espaço social como um
lativa de cada forma de capital variar, o es-
todo quanto no campo econômico mais es-
quema de análise é mantido.
pecificamente.
O mesmo raciocínio vale para a compreensão do direito no Brasil. O campo ju-
5.4. Considerações finais
rídico brasileiro não poderia ser decalcado por
diretamente nem do modelo francês nem
Bourdieu têm como principal parâmetro a
do norte-americano. Embora nossa tradi-
sociedade francesa e suas instituições. É
ção jurídica tenha como origem o direito
por meio desse referente que ele introduz
romano-germânico, a simples transposi-
suas concepções teóricas e discussões
ção da lógica de funcionamento do campo
conceituais. O esquema cognitivo desen-
francês para o caso brasileiro seria insufi-
volvido a partir daí, no entanto, é passível
ciente devido às nossas peculiaridades.
de ser mobilizado para a análise de outros
Não se pode, por exemplo, desconsiderar
casos empíricos.
tanto o caráter patrimonialista do Estado
As
pesquisas
desenvolvidas
Tratando da importância relativa dos
quanto a herança estamental que marca a
diferentes tipos de capital, por exemplo,
formação da sociedade brasileira. A res-
Bourdieu assinala que, embora na socieda-
salva vale também para a hegemonia glo-
de francesa os capitais econômico e cultu-
bal do direito norte-americano. Não obs-
ral detenham centralidade, isso pode variar
tante sua crescente influência sobre
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nossas instituições, não se pode simplesmente tomar a importação de modo automático, sendo necessário compreender os interesses dos agentes envolvidos nesse processo, bem como o sentido que os mecanismos importados assumem no contexto do direito brasileiro. Além disso, a própria gênese de um campo do direito no Brasil deve ser investigada. O esquema desenvolvido pelas pesquisas de Pierre Bourdieu nos levaria a indagações relativas às condições de autonomização desse campo, como se constitui historicamente, quem são seus agentes, quais posições ocupam e em que instituições, o que está em disputa, quais as hierarquias vigentes, os princípios de classificação operantes e os polos de tensão que configura. Sem dúvida, essa perspectiva enfatiza dimensões que ainda estão por ser exploradas no Brasil.
91
________. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997. ________. O poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil, 1998b. p. 133-161. ________. Lições da aula. São Paulo: Ática, 2003. ________. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. ________. Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ________. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.
Para saber mais sobre o pensamento de Pierre Bourdieu CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: EDUSC, 2001. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia das práticas. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994 (Coleção Grandes cientistas sociais). PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. São Paulo: FGV, 2000. WACQUANT, Loïc. Seguindo Pierre Bourdieu no campo. Revista de Sociologia e Política, n. 26, p. 13-29, 2006. ________. Pierre Bourdieu. In: STONES, Rob (Ed.). Key sociological thinkers. 2. ed. London and New York: Macmillan, 2008. p. 61-277; 411-414.
Bibliografia
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Textos sobre o direito em Pierre Bourdieu
DEZALAY, Yves; TRUBEK, David. A reestruturação global e o direito: a internacionalização dos campos jurídicos e a criação de espaços transnacionais. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e globalização econômica : implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 29 -80.
BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: O poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil, 1998. p. 209 -254. ________. A codificação. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 96 -107.
Outros textos de Pierre Bourdieu BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. ________. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994 (Coleção Grandes cientistas sociais).
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________. O big-bang e o direito: internacionalização e reestruturação do espaço legal. In: FEATHERSTONE, Mike (Org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 295-310. DEZALAY, Yves; GARTH, Bryant. A dolarização técnico-profissional e do estado: processos transnacionais e questões de legitimação na transformação do Estado. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, p. 163-176, 2000.
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6 Michel Foucault O direito nos jogos entre a lei e a norma
Márcio Alves da Fonseca
Michel Foucault produz seus traba-
introduziu o jovem filósofo no debate in-
lhos numa região limiar entre diversos
telectual de sua geração, cuja formação
campos de saber, em especial aqueles da
tem a marca dos estudos estruturalistas,
filosofia e da história. Sua formação em
dos debates da filosofia com a psicanálise,
filosofia, na École Normale Supérieure,
do existencialismo e de uma releitura do
permitiu ao pensador interessar-se desde
marxismo que buscava então fundamentar
cedo também pela história das ciências e
as diversas formas da militância política.
pela psicologia, assim como pelos campos
Em seu conjunto, os escritos de Fou-
da literatura e da medicina. Sua tese de
cault não estabelecem propriamente um sis-
doutorado, publicada em 1961 com o título
tema de pensamento. Entretanto, sua coe-
História da loucura na Idade Clássica ,
são e sua coerência são norteadas por uma
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978. Publicado pelas edições Gallimard, em 1961, o texto de História da loucura consistia na tese de doutoramento principal, orientada por Jean Hyppolite. Além deste trabalho, Foucault apresentou à banca examinadora a tese complementar, que consistiu na tradução e no comentário
à Antropologia de um ponto de vista pragmático, de I. Kant. A tese complementar permaneceu inédita até 2008, quando foi publicada pela editora Vrin. Atualmente, encontra-se publicada também no Brasil: FOUCAULT, M. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Loyola, 2011.
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questão filosófica ampla e que se faz presen-
mente ao sujeito que as representa, quer
te em toda a sua obra. Trata-se de empreen-
como a análise do valor das representa-
der uma problematização do presente histó-
ções, considerado relativamente a um co-
rico e do sujeito moderno, compreendidos
nhecimento (conteúdo, regra ou forma de
em sua singularidade e contingência. Desig-
conhecimento) tomado como critério de
nada por Foucault de “ontologia do presen-
verdade –, seu trabalho teria consistido
te” ou “ontologia de nós mesmos”, esta pro-
em elaborar uma “história do pensamen-
blematização contínua da atualidade serve
to”, que deveria ser compreendida como a
de suporte para as principais interrogações
análise de “lugares de experiência”, em
propostas pela filosofia de Foucault. No per-
que se articulariam, uns sobre os outros:
curso de suas pesquisas, de sua atividade de
primeiro, as formas de um saber possível;
ensino no Collège de France e de suas publi-
em segundo lugar, as matrizes normativas
cações, ela adquirirá diversas formas e se
do comportamento dos indivíduos; e, por
constituirá segundo diferentes ênfases.
fim, possíveis modos de constituição do
Na primeira aula do penúltimo curso2
sujeito ou de subjetivação3.
que profere no Collège de France, em 1983,
Ora, trata-se aqui dos três eixos se-
o filósofo descreverá claramente este per-
gundo os quais as interrogações de Fou-
curso e suas principais inflexões. Primei-
cault são elaboradas: o eixo que privilegia
ro, distingue seus trabalhos daquilo que
o estudo histórico de formações discursi-
considera os métodos da “história das
vas (saber); o eixo que privilegia o estudo
mentalidades” e da “história das representações e dos sistemas representativos”. Afirmará que, diferentemente de uma história das mentalidades – compreendida como a análise que vai dos comportamen-
das matrizes normativas de comportamento e das formas concretas de sua atuação sobre os indivíduos (poder); e, por fim, o eixo que privilegia o estudo de formas possíveis de subjetivação (ética).
tos efetivos às expressões que podem
Não devendo ser considerados como
acompanhar esses comportamentos – e,
modos de análise independentes ou desar-
também, de uma história das representa-
ticulados, mas diferentes perspectivas a
ções – compreendida quer como a análise do papel das representações relativamente aos objetos representados e relativa2.
FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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3.
Cf. FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros, cit., p. 4-5. Observamos aqui que utilizamos a expressão “lugares de experiência” em vez de “focos de experiência”, como consta na tradução brasileira do curso de 1983, por entendermos equivocada a tradução. Neste sentido, segue a referência também ao texto original em francês: FOUCAULT, M. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France (1982-1983). Paris, Seuil/Gallimard, 2008, p. 4-5.
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Michel Foucault
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partir das quais o pensador constrói sua re-
o eixo da ética procura estudar diferentes
flexão sobre o presente e o homem moder-
formas pelas quais o indivíduo foi levado a
no, cada um desses eixos realiza desloca-
constituir a si próprio como sujeito, Fou-
mentos importantes relativamente a formas
cault distancia-se da formulação de qual-
de análise e a domínios de conhecimento
quer teoria do sujeito ou história da sub-
estabelecidos com os quais o pensamento
jetividade, deslocando suas análises da
de Foucault dialogará. Desse modo, na me-
questão do sujeito para o problema das
dida em que o eixo da formação dos saberes
formas históricas de subjetivação, consi-
procura estudar a experiência como matriz
deradas precipuamente por meio das téc-
para a formação dos saberes de uma dada
nicas da relação consigo4.
época, Foucault se distancia de uma análi-
O tema do direito está presente nas
se do desenvolvimento ou do progresso dos
análises que o filósofo realiza a partir des-
conhecimentos e procura estudar as práti-
ses três principais eixos de interrogação5.
cas discursivas que, em determinada épo-
Esta presença, porém, não permite a apreen-
ca, puderam constituir-se como solo para
são nem de um conceito de direito nem de
certos conhecimentos. Procura estudar as
uma teoria sobre o direito. Apesar disso,
regras segundo as quais estas práticas dis-
trata-se de uma presença importante e re-
cursivas se organizaram, o jogo entre o ver-
corrente em quase todos os seus escritos.
dadeiro e o falso que por meio delas se constituiu, enfim, procura estudar diferentes formas históricas de constituição da verdade ou de veridicção. Quanto ao eixo do poder, uma vez que pergunta pelas matrizes normativas de comportamento e pelas práticas sociais que permitiram conduzir os comportamentos dos indivíduos, Foucault distancia-se de qualquer formulação de uma teoria geral sobre o poder, fazendo sua análise deslocar-se do problema da legitimidade do poder, do significado
Proporemos, a seguir, um breve itinerário para o estudo do tema do direito em Foucault. Este itinerário, ainda que não pretenda ser exaustivo, procurará indicar alguns dos trabalhos do filósofo que consideramos fundamentais para a compreensão da forma pela qual seu pensamento toca o direito, assim como a compreensão dos usos que Foucault faz do direito para constituir importantes aspectos de sua ontologia do presente.
das instituições de poder e das formas de dominação para o estudo das técnicas e dos procedimentos por meio dos quais se objetivou, em dada época, conduzir a conduta dos indivíduos e dos grupos. Finalmente, se
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4. 5.
Cf. FOUCAULT, M. id., p. 5 -7. Remetemos o leitor ao nosso estudo aprofundado acerca do tema, no livro: FONSECA, M. A. Michel Foucault e o direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. Em grande parte, as análises constantes deste capítulo retomam sinteticamente os momentos principais desse trabalho.
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6.1. O tema do direito em Foucault A busca por um conceito de direito ou uma teoria do direito em Foucault é equivocada, pois nem este conceito nem esta suposta teoria podem ser encontrados em seus escritos. A rigor, não há mesmo um objeto preciso que possa ser chamado “direito” a ser pesquisado em Foucault, mas apenas algumas imagens do direito, esboçadas em função de certos usos daquilo a que, em Foucault, pode-se designar com a palavra “direito”.
rização do modelo jurídico-discursivo do poder. Para Foucault, nesse modelo, o modo de exercício do poder seria dado pelo enunciado da regra ou da lei que, estabelecendo formalmente o lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, definiria claramente uma polaridade: de um lado, o polo que interdita, ordena e domina (denotativo da presença do poder); de outro, o polo que obedece, submete-se e é dominado (caracterizado pela ausência do poder). Para Foucault, ainda que esta repre-
Entendemos que um caminho ade-
sentação jurídico-discursiva do poder seja
quado para a pesquisa destas imagens e
amplamente desenvolvida no âmbito da fi-
destes usos é considerar suas implicações
losofia e da ciência política, ela é insufi-
com as análises do filósofo acerca da nor-
ciente para a compreensão das modalida-
malização. É a compreensão do problema
des concretas de exercício do poder. Desse
da norma nos diversos escritos do pensa-
modo, para além deste modelo de poder,
dor que permitirá uma apreensão clara,
que funciona segundo uma clivagem de
ainda que não evidente, de tema do direito
caráter jurídico, Foucault proporá o mode-
em seus diversos trabalhos.
lo da normalização, que irá comportar, em
Em A vontade de saber6, encontra-se uma das referências mais diretas que Foucault faz ao direito, quando sugere uma diferenciação entre o que considera
um primeiro momento, o estudo das disciplinas dos corpos e, num segundo momento, o estudo dos mecanismos de regulação biopolítica das populações.
dois modelos distintos do poder: o modelo
O estudo dos mecanismos disciplina-
da soberania (modelo jurídico-discursivo)
res e dos dispositivos biopolíticos de segu-
e o modelo da normalização (modelo
rança, abordados por Foucault em parte
disciplinar-normalizador).
significativa de seus livros e cursos, consti-
Segundo essa distinção, o direito é colocado como a referência para a caracte6.
FOUCAULT, M. A vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 79 -87.
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tui a analítica (ou genealogia) do poder empreendida pelo autor. Em conjunto, os trabalhos que compõem a analítica do poder propõem uma abordagem do poder a partir da perspectiva que considera os mecanis-
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Michel Foucault
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mos concretos de seu exercício, cujo resul-
tuamente. Trata-se de uma relação de im-
tado é a normalização das condutas e a
plicação recíproca entre o que Foucault
constituição de um tipo específico de sujei-
denomina direito e o que chama de nor-
to, o sujeito moderno, normalizado. Assim,
ma, que consiste precisamente em um se-
os dispositivos de normalização estudados
gundo uso, acompanhado de uma segun-
por Foucault são compreendidos como for-
da imagem do direito, presente em seus
mas concretas de exercício de poder que
trabalhos.
não têm por finalidade primeira a interdi-
Para além de ser compreendido como
ção e a obediência à forma geral da lei, mas
lei, o direito é apreendido aqui como vetor
antes a produção de comportamentos e a
dos mecanismos da normalização. Se a re-
constituição de subjetividades.
lação normalização/direito se apresenta
Desse modo, na distinção conceitual
sob a forma de uma oposição quando se
entre estes dois modelos de poder, o direi-
trata de distinguir duas concepções de po-
to servirá para caracterizar justamente o
der essencialmente diferentes (uma em
modelo da soberania, distinto do modelo
que o poder aparece como restritivo das
da normalização disciplinar e biopolítica.
ações, e outra em que se procura pensar
Deste uso do direito em Foucault, decorre
em seus mecanismos produtores), uma
uma primeira imagem do direito a ser des-
vez identificados os mecanismos do poder
tacada em seus escritos, a que denomina-
normalizador, trata-se de mostrar de que
mos: direito como lei. Nela, há uma clara
maneira seu funcionamento implica conti-
oposição entre o direito e a norma discipli-
nuamente as práticas do direito. Assim, a
nar e biopolítica.
normalização estabeleceria com o direito
Porém, esta oposição entre direito e
relações de implicação e de reciprocidade.
norma deve ser considerada apenas uma
Designamos esta imagem com a expres-
oposição conceitual, pois não se configura
são: direito normalizado-normalizador.
como uma oposição entre duas realidades
Finalmente, a leitura sistemática dos
ou dois âmbitos (o âmbito do direito e o
trabalhos de Foucault sugere ainda um
âmbito dos mecanismos da normalização)
terceiro uso e uma terceira imagem do di-
que estariam concretamente separados.
reito que pode ser ali apreendida. Enquan-
No que concerne ao campo das práticas
to a imagem do direito como lei expressa
concretas (e não ao campo estritamente
uma oposição conceitual entre os saberes
conceitual), as práticas atreladas ao direi-
e as práticas do direito e os mecanismos
to e os mecanismos da normalização não
da normalização, enquanto a imagem do
se opõem, ao contrário, colonizam-se mu-
direito normalizado-normalizador expri-
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me a colonização concreta entre os sabe-
Nessa imagem, o direito não se con-
res e as práticas do direito e os mecanis-
funde com os mecanismos da normaliza-
mos da norma, esta terceira imagem
ção descritos por Foucault em sua analíti-
remete a outra forma de oposição, presen-
ca do poder. O direito serve, ao contrário,
te em Foucault, entre os saberes e as prá-
para denotar a particularidade das práti-
ticas do direito e a normalização. Diferen-
cas da normalização relativamente ao do-
temente de uma oposição conceitual, esta
mínio formalizado da lei. O direito é enca-
nova oposição entre direito e norma
rado, portanto, como um sistema de leis e
refere-se ao campo das práticas. Trata-se
de aparelhos, independentemente de suas
de uma imagem do direito, esboçada em
implicações com a normalização.
alguns poucos escritos do filósofo, em que
Em História da loucura, por exem-
este considera práticas do direito que se-
plo, a imagem do direito como lei tem um
riam dotadas de um caráter de resistência
lugar importante. Neste livro, Foucault es-
e de contraposição aos mecanismos da
tuda três diferentes percepções históricas
normalização. O pensador falará, então,
da loucura da cultura ocidental: as percep-
de um direito novo, sendo esta a terceira
ções renascentista, clássica e moderna. De
imagem do direito que identificamos em
maneira especial relativamente a duas de-
seus trabalhos.
las – a percepção clássica e a moderna –, a
Passaremos a apresentar, esquematicamente, cada uma destas imagens.
consideração do direito enquanto lei permite a Foucault analisar o caráter de interdição inerente às medidas de internamento
6.2. O direito como lei
do louco. Na Idade Clássica, o louco, ao lado de outras figuras sociais igualmente ex-
Uma oposição conceitual entre o âm-
cluídas do mundo do trabalho e da produ-
bito do legal e o âmbito do normal permite-
ção, é internado nos hospitais gerais, que se
-nos apreender, em Foucault, a imagem do
apresentam como estruturas de segregação
direito identificado àquilo a que podemos
social, econômica e moral. Na época mo-
chamar de estruturas da legalidade, com-
derna, o internamento do louco no asilo psi-
preendidas como as próprias leis, os de-
quiátrico, no interior do qual a loucura será
cretos, os regulamentos, os ordenamentos,
percebida propriamente como doença men-
o edifício consolidado da jurisprudência e,
tal, também se apoia no papel de interdição
também, o aparato judiciário, integrado
da lei. A estrutura própria das instituições
pela função judiciária e pelos tribunais em
de internamento, seja o hospital geral ou o
suas diversas instâncias.
asilo, apresenta-se como uma estrutura
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“semijurídica”. Foucault descreverá tanto o
punição decorrente da reforma humanis-
asilo, preconizado por Pinel na França,
ta do direito penal da segunda metade do
quanto aquele idealizado por Tuke na In-
século XVIII. É no interior do estudo des-
glaterra como microcosmos jurídicos, com
sas duas formas de punição, anteriores à
seus procedimentos de inquérito, seus jul-
prisão, que a imagem do di reito enquanto
gamentos, suas penas e seus castigos.
legalidade terá seu lugar.
A imagem do direito como lei tam-
No estudo das diferentes formas pu-
bém ocupará um lugar importante em Vi-
nitivas abordadas em Vigiar e punir, in-
giar e punir 7. Neste livro, a normaliza-
teressa a seu autor estudar as transforma-
ção disciplinar será analisada como uma
ções nos modos de punição a partir de um
tecnologia positiva de poder e seus proce-
investimento político sobre o corpo. Se-
dimentos serão estudados em detalhe,
gundo Foucault, o que se reconhece por
tais como a distribuição espacial dos cor-
meio do corpo marcado ou dilacerado do
pos, o controle do tempo e das atividades,
supliciado é, acima de tudo, a lei. Lei que
a vigilância pan-óptica, a composição das
dá forma e expressa a vontade do sobera-
forças individuais em série. A descrição destes mecanismos terá como referência o domínio institucional constituído pela prisão. Segundo as análises de Foucault, a partir do início do século XIX, o aprisionamento será o modo de punição da quase totalidade dos crimes. Ela é a instituição que lhe permitirá descrever o funcionamento
do
poder
disciplinar,
como conjunto de estratégias de controle dos corpos que vinha se constituindo lentamente durante os séculos XVII e XVIII em vá rios domínios. Desse modo, a forma punitiva da prisão constitui o objeto central de Vigiar e punir. Para bem ca racterizá-lo, Foucault o oporá a duas outras formas punitivas: o suplício e a forma de
no, lei que fora desrespeitada e cujo efeito deverá evidenciar, segundo intensidades diversas, a dissimetria entre o poder do soberano e aquele do súdito que a desrespeitara e que, por isso, é punido. O que está em jogo no suplício é a lei que, na forma de sentença, é executada minuciosamente diante de um público atento, principal alvo e personagem do ritual político das penas físicas. Não há expressão mais clara da imagem do direito como lei, em Foucault, que em suas análises sobre o suplício. Nesse modo de punição, revela-se a economia de poder soberano, cujo funcionamento se dá pelo confronto entre a vontade do soberano expressa pelo comando legal, a desobediência a essa vontade co-
7.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
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metida por alguém e a imposição de uma sanção que se desenrola como resultado
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desta desobediência. Desse modo, o ritual
“ilegalismo”8. Foucault introduz esta no-
do suplício reativa o poder soberano, na
ção no curso La société punitive9 , por ele
medida em que manifesta publicamente o
proferido no Collège de France em 1973,
triunfo da lei sobre qualquer desobediên-
retomando-a como principal referência
cia a suas prescrições.
para as análises sobre a reforma humanis-
Assim como na forma punitiva do su-
ta do direito penal em Vigiar e punir.
plício, também será em referência a um qua-
Por meio da noção de ilegalismo, Fou-
dro geral de correspondência entre lei, cri-
cault procurará compreender o significado
me e pena que a reforma humanista do
real da reforma, que iria estabelecer uma
direito penal será estruturada. O ideal da
correspondência precisa entre os diversos
reforma se formula em oposição à desuma-
tipos de crimes e as diversas formas de
nidade do suplício corporal. Os principais
pena, e procurará compreender também a
reformadores – como Beccaria, Servan, La-
passagem desta forma punitiva para a pena
cretelle, Duport e Target – propalam a ne-
uniforme representada pela prisão, que se
cessidade de se estabelecer uma forma de
afirma a partir do início do século XIX.
castigo sem suplício, que respeitasse a “hu-
A noção de ilegalismo remete à ideia
manidade” do criminoso, por pior que tives-
de um jogo entre a legalidade formalmente
se sido seu crime.
estabelecida e as ilegalidades efetivamen-
Em sua análise da reforma humanis-
te praticadas. Trata-se de considerar que
ta, Foucault explorará o fundo utilitário
certo número de ilegalidades, em determi-
inspirador da reforma. Trata-se de organi-
nado momento, teriam seu lugar no inte-
zar uma justiça mais ágil e desembaraça-
rior dos processos econômicos e sociais
da, em face de transformações significati-
presentes em um grupo qualquer, sendo
vas nos domínios econômico, político e
portanto aceitas ou mesmo incentivadas, e
social da segunda metade do século XVIII.
que, em outro contexto, as mesmas ilegali-
No fundo, o que se denunciava era uma justiça penal irregular, devido à multiplici-
8.
dade de instâncias com poder de decisão que a compunham, e o que estava efetivamente em questão na reforma do direito penal da época era o estabelecimento de uma nova economia do poder de punir. Para explicitar essa nova economia punitiva, Foucault utilizará a noção de
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9.
O termo “ilegalismo” (illégalisme) é empregado por Foucault em Vigiar e punir e em outros escritos sobre o tema da reforma humanista do direito penal. Vale observar que as traduções disponíveis de Vigiar e punir para o português utilizam o termo “ilegalidade” (illégalité) no lugar de “ilegalismo”. Consideramos esta tradução inadequada, sendo que esta inadequação ficará clara no correr de nossa abordagem sobre o tema. FOUCAULT, Michel. La société punitive. Cours au Collège de France: 1972-1973. Inédito. Disponível para consulta em texto datilografado. Dactylographie établie par Jacques Lagrange (213 p.), arquivos da Bibliothèque Générale du Collège de France, p. 116 -144.
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Michel Foucault
101
dades poderiam deixar de ser toleradas e
dos direitos para os bens. Se os ilegalismos
passariam a ser perseguidas.
dos direitos eram necessários à economia
Para Foucault, entre o que é prescri-
burguesa liberal, os ilegalismos dos bens
to pela lei e as ilegalidades de fato pratica-
deverão ser duramente punidos, uma vez
das, não existe um sistema punitivo neu-
que ela tiver se estabelecido.
tro. Isso significa dizer que, concretamente,
Paralelamente às diversas atividades
nem toda prática ilegal deve ser punida e
que passam a ser consideradas ilícitas,
nem toda lei deve ser cumprida. A punição
será necessária uma codificação minucio-
será antes compreendida no contexto de
sa de todas essas práticas, fundamental
um jogo diverso de interesses e forças, em
para o exercício de uma punição que não
que muitas vezes legalidade e ilegalidade
poderá mais ser geral e uniforme, mas que
não se opõem no plano efetivo das práticas
deverá ser proporcional à gravidade de
socialmente aceitas.
cada crime. É aí que a reforma humanista
Relativamente à reforma humanista
encontra seu real significado.
de meados do século XVIII, por exemplo, as
A noção de ilegalismo, elaborada por
análises de Foucault mostrarão que haverá
Foucault, possibilita-nos pensar, para
uma importante inversão no eixo segundo
além da oposição legalidade-ilegalidade,
o qual os ilegalismos se organizavam. Este
na existência concreta de uma gestão de
eixo era descrito principalmente pelas inob-
práticas consideradas ilegais, em função
servâncias a direitos que, se respeitados
de um conjunto de elementos extrajurídi-
integralmente, representariam entraves ao
cos (econômicos, sociais, políticos), ainda
funcionamento geral dos diferentes grupos
que os limites em que esta gestão se efeti-
em relação ao crescimento econômico. Nes-
va possuam como referência principal a
se contexto, é significativa a tolerância de
própria lei, uma vez que esta diferenciaria
ilegalidades como a sonegação de impostos
previamente zonas de rigor e de abran-
e o contrabando. Impulsionado por esta to-
damento repressivos10. Podemos entender,
lerância, o crescimento econômico da bur-
portanto, que os ilegalismos circulam en-
guesia, em meados do século XVIII, ao mes-
tre o domínio formalizado da lei e os domí-
mo tempo em que se afirma, exigirá uma
nios não necessariamente formalizados
reorganização no eixo destes ilegalismos.
que constituem as práticas de ordem eco-
Com o aumento geral das riquezas obtido
nômica, social e política.
pela burguesia e o crescimento demográfico da época, será possível então entender a mudança do alvo principal dos ilegalismos
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10.
Cf. MONOD, J.-C. La police des conduites. Paris: Michalon, 1997, p. 80.
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102
Manual de Sociologia Jurídica
A noção de ilegalismo permite a Fou-
France da década de 197011, uma vez que,
cault distanciar-se de uma concepção de-
em conjunto e ao lado dos livros citados,
masiadamente rígida de lei. Esse distan-
esses cursos constituem o essencial da
ciamento nos ajudará a compreender, a
analítica do poder de Foucault, compreen-
seguir, a segunda imagem do direito pre-
dida como a análise dos mecanismos da
sente em seus trabalhos, diferente da mera
normalização disciplinar e da normaliza-
legalidade. Uma imagem que, distinta da
ção biopolítica.
lei e de suas estruturas formais, reporta-se fundamentalmente à normalização.
Para Foucault, as análises sobre o poder apoiadas exclusivamente em um modelo jurídico (que pergunta pela legitimi-
6.3. Direito e normalização
dade do poder) ou em um modelo institucional (que pergunta pelo significa-
Se, no plano conceitual, a lei e a nor-
do e pelo papel do Estado e de suas insti-
malização puderam ser descritas como rea-
tuições) seriam insuficientes para eluci-
lidades separadas, em alguns dos traba-
dar as formas complexas pelas quais as
lhos de Foucault, quando o autor as
relações de poder se estabelecem nas so-
considera no plano das práticas, elas serão
ciedades modernas. Seu esforço orienta-
compreendidas em suas inúmeras implica-
-se, assim, tanto no sentido de apontar
ções. Esboça-se, assim, uma segunda ima-
para os limites de uma concepção ontoló-
gem do direito nos escritos do filósofo: o
gica do poder quanto no sentido de deslo-
direito normalizado-normalizador. Nela,
car o foco das análises sobre o poder para
as estruturas da legalidade e os mecanis-
as diversas modalidades de seu exercício.
mos da normalização se interpenetram, sendo suporte uns dos outros. Esta imagem do direito está presente em Vigiar e punir, uma vez que a análise da forma punitiva consistente na prisão (terceira forma punitiva abordada no livro) terá o papel de descrever as funções e os instrumentos da normalização disciplinar. Ela se encontra também em A vontade de saber, livro em que Foucault introduz a análise da biopolítica. Está presente ainda em todos os cursos do Collège de
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11.
Os cursos são: FOUCAULT, M. Leçons sur la volonté de savoir. Cours au Collège de France. 1970 -1971. Paris: Gallimard/Seuil, 2011; FOUCAULT, M. Théorie et institutions pénales. Cours au Collège de France. 1972. Inédito; FOUCAULT, M. La société punitive. Cours au Collège de France. 1972-1973, op. cit.; FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. Curso no Collège de France (1973 -1974). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006; FOUCAULT, M. Os anormais. Curso no Collège de France (1974 -1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001; FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999; FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008; FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978 -1979). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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Michel Foucault
103
O poder será considerado menos como
Desse modo, na produção da verdade judi-
uma propriedade – algo que se possui e de
ciária, saber e poder não se encontram
que se dispõe – do que como uma estraté-
dissociados. A verdade é uma função esta-
gia. Para Foucault, o poder não se esgota
belecida no interior de certo jogo de saber/
nas instituições do Estado e no edifício do
poder que constitui o discurso e a prática
direito, mas se configura como uma rede
jurídicos. É nessa perspectiva que serão
de relações de forças na qual o próprio Es-
analisadas, no curso de 1971, formas de
tado e o direito encontram-se inseridos. O
saber/poder constitutivas das práticas ju-
poder não tem uma essência, é antes ope-
rídicas na Grécia antiga.
ratório. Não atua exclusivamente por violência ou repressão, é antes produtor de gestos, atitudes e saberes.
No curso do ano seguinte, intitulado Théories et institutions pénales e ainda inédito, Foucault estudará a formação do
Assim, em seus primeiros cursos,
inquérito como forma de produção da ver-
trata-se de abordar o tema do poder em
dade judiciária atrelada à formação do Es-
suas implicações com a questão da verda-
tado medieval, lentamente elaborada a
de e com a constituição dos sujeitos histó-
partir dos modelos de gestão e de controle
ricos, a fim de avançar para uma concep-
judiciários. No curso de 1973, também iné-
ção não ontológica do poder.
dito e intitulado La société punitive, es-
O curso de 1971, Leçons sur la vo-
tuda o significado da “função punitiva”
lonté de savoir, tem como horizonte o es-
presente nas sociedades enquanto expres-
tudo da função do discurso verdadeiro no
são privilegiada da implicação entre saber/
interior do enunciado da lei. A partir da
poder na constituição da verdade jurídica.
consideração de diferentes formas históri-
Relativamente às sociedades ocidentais
cas de produção da verdade judiciária,
modernas, entende que esta função puni-
Foucault sustentará a tese de que, se em
tiva é exercida, de maneira predominante,
todo discurso judiciário está implicada a
pela prisão. Daí a prisão ser o objeto cen-
verdade, esta não se apresenta a esse dis-
tral desse curso, assim como o será em Vi-
curso sob a forma da pura constatação,
giar e punir. Este percurso dos três pri-
como algo que lhe seria anterior e exterior.
meiros cursos do Collège de France é
O discurso jurídico não se ordenaria em
retomado também na série de conferên-
função de uma verdade primeira, que lhe
cias A Verdade e as formas jurídicas12 ,
seria ao mesmo tempo anterior e exterior,
proferidas por Foucault no Brasil, em 1973.
mas se estruturaria em função de uma verdade que é estabelecida segundo as regras que são interiores a esse discurso.
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12.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU, 2003.
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104
Manual de Sociologia Jurídica
Em conjunto, todos esses trabalhos
são sustentadas pelos mecanismos con-
estudam a normalização disciplinar, aque-
cretos da normalização. Pensemos, por
la que se efetiva sobre os corpos no interior
exemplo, nas medidas de apropriação dos
dos lugares institucionais. Ao descrever as
corpos a serem inseridos nas instituições
funções do poder disciplinar – caracterís-
disciplinares e nos regulamentos de tais
tico de instituições como a prisão, o hospi-
instituições, nas formas de saber produzi-
tal, a fábrica, o exército – tal como se es-
das sobre os indivíduos no interior das ins-
truturam a partir do final do século XVII,
tituições disciplinares e na incorporação
o filósofo explicita as técnicas de distribui-
destes saberes aos domínios formalizados
ção espacial individualizada, de controle
da lei e das instituições judiciárias.
minucioso do tempo e das atividades, de
Entretanto, a disciplina dos corpos
seriação e capitalização das forças dos in-
não é senão um aspecto da normalização
divíduos no interior destas instituições.
estudada por Foucault. A partir do ano de
Associados aos instrumentos de uma vigi-
1976, o filósofo se deterá sobre outra face
lância ininterrupta, de um sistema de san-
da normalização, relativa não somente aos
ções que consiste no exercício das ativida-
corpos individuais localizados em institui-
des esperadas e da elaboração de um saber
ções específicas, mas aos processos da
que tem a forma do exame, a disciplina
vida biológica das populações. Trata-se
constitui uma individualidade dócil e útil,
daquilo a que Foucault chamará de biopo-
adequada e produtiva. Nesse sentido, dirá
lítica, na medida em que se refere a consi-
Foucault, uma individualizada normaliza-
derar os mecanismos de regulação e de
da. A normalização disciplinar é historica-
seguranças que permitirão a apropriação
mente identificada por Foucault em sua
da vida biológica pelas estratégias políti-
simultaneidade à constituição das socie-
cas. Quando a vida biológica ingressa de-
dades capitalistas modernas, nas quais o
finitivamente nos cálculos da política,
controle dos corpos individuais se atrela
inaugura-se, segundo Foucault, a era do
aos mecanismos codificados da produção.
biopoder.
Daí, Foucault afirmar que a disciplina é uma anatomopolítica dos corpos.
A normalização biopolítica atua sobre os aspectos da vida biológica que, se
Nesse sentido, se consideramos este
considerados na perspectiva dos grupos
modo de efetivação da normalização disci-
humanos, permitem o estabelecimento de
plinar, a imagem do direito que se esboça
padrões de normalidade a partir dos quais
é aquela em que os saberes e as práticas
se estruturam as diversas formas de con-
jurídicas sustentam e, ao mesmo tempo,
trole. Desse modo, os processos como a
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Michel Foucault
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natalidade e a mortalidade, o controle das
ciedades modernas, segundo Foucault,
morbidades, as movimentações espaciais
cada vez mais a lei funciona como norma
das populações, as taxas dos acidentes po-
(disciplinar e biopolítica), cada vez mais a
dem se constituir objetos de governo e de
lei se confunde com os mecanismos da
gestão. Associada aos mecanismos da dis-
normalização.
ciplina dos corpos, a normalização biopolítica permite a regulação dos processos da vida das populações segundo formas de
6.4. Direito e prática da liberdade Foucault utiliza a expressão “direito
gestão e de governo racionais e complexos. Assim, a imagem de um direito normalizado-normalizador em Foucault se integraria pelas diversas formas jurídicas, como os decretos administrativos, as medidas de segurança, as decisões judiciárias e também as arbitragens que dispõem acerca de realidades, por exemplo: o papel e as funções dos órgãos públicos em face das necessidades das sociedades, as condições segundo as quais se desenvolvem as atividades produtivas dos indivíduos, os problemas de seguridade social, de regime
novo” na aula de 14 de janeiro do curso de 1976, Em defesa da sociedade13 . Com esta expressão, quer especular acerca de uma forma possível para o direito, que seria um “direito antidisciplinar” – ou seja, não seria vetor dos mecanismos de normalização – e que estaria, ao mesmo tempo, “liberto do princípio da soberania” – quer dizer, liberto das formas que o aprisionam numa estrutura de poder soberano, cujos instrumentos assegurariam a dominação e a obediência.
de trabalho, de saúde pública, de segu-
Ao explorarmos o significado possível
rança e de violência etc. Diversos campos
desta ideia esboçada por Foucault, é que
do direito poderiam, então, ser pensados
encontramos aquela que seria a terceira
em suas implicações com os mecanismos
imagem do direito presente em seu pensa-
da normalização biopolítica, particular-
mento, a que designamos justamente direi-
mente aqueles do direito administrativo,
to novo. Ela deve ser recolhida em momen-
do direito do trabalho, do direito previ-
tos esparsos dos trabalhos do filósofo e
denciário, do direito ambiental, dos direi-
pode ser localizada em duas posturas.
tos coletivos.
Em primeiro lugar, é esboçada em
É importante notar que esta segunda
uma postura, por assim dizer, negativa.
imagem do direito em Foucault não expri-
Trata-se da postura quase generalizada de
me um domínio independente das estruturas da legalidade. Ao invés disso, nas so-
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13.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade, cit., p. 47.
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desconfiança em relação a todas as formas
cas do direito que poderiam constituir-se
do direito formalizado tal como o conhece-
em modos de resistência e de oposição aos
mos. Em diversos momentos de seus tra-
mecanismos da normalização.
balhos, Foucault exprime esta atitude de
Para identificá-la, é necessário, por-
desconfiança em relação à forma da lei, da
tanto, interrogarmo-nos acerca da própria
produção legislativa, das instâncias de jul-
ideia de resistência em Foucault. A resis-
gamento e de aplicação das sanções. Isso
tência aos mecanismos da normalização
porque identifica nestas formas consolida-
deve ser pensada, segundo a perspectiva do
das precisamente uma associação entre
filósofo, tendo como referência principal o
aquilo a que chama de princípio da sobera-
problema do governo das condutas.
nia e mecanismos da normalização. Segundo Foucault, desconfiar da forma do direito seria interrogar-se acerca de um domínio de saberes e de práticas em que os mecanismos da normalização e a estrutura formal (apoiada no princípio de soberania) constituem uma unidade.
Nos cursos Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica, Foucault estuda em detalhes três formas racionalizadas e historicamente situadas de governo (ou gestão) das condutas dos indivíduos. Designa estas formas de gestão das condutas pela palavra “governa-
Relativamente a esta postura de des-
mentalidade”, sendo as três formas históri-
confiança de Foucault, podemos citar, por
cas de governamentalidade estudadas
exemplo, o artigo sobre a justiça popu-
nestes cursos: a razão de Estado (dos sécu-
lar14, no qual o filósofo coloca em questão
los XVI-XVII), o liberalismo (século XVIII)
a forma mesma do Tribunal, ao discutir de
e os neoliberalismos contemporâneos.
que modo esta forma teria por função histórica dominar as manifestações da justiça popular.
Ora, no próprio curso Segurança, território, população15 e também na conferência Qu’est-ce que la critique?16, pro-
Entretanto, esta postura negativa
ferida na Société Française de Philosophie
não é capaz de fornecer os contornos efeti-
naquele mesmo ano de 1978, Foucault afir-
vos à imagem de um direito novo em Fou-
mará que a resistência às governamentali-
cault. Ela deverá ser colocada ao lado da-
dades políticas, ou seja, às formas organiza-
quilo a que podemos considerar uma
das de condução das condutas dos homens
postura positiva do autor em face do direito. Esta atitude positiva se referirá a práti-
15.
16. 14.
FOUCAULT, M. Sobre a justiça popular. In: Microfísica do poder. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 39 -68.
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FOUCAULT. M. Segurança, território, população, cit., p. 253 e ss. FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique? Bulletin de la Société Française de Philosophie, t. LXXXIV, année 84, n. 2, p. 35 -63, 1990.
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Michel Foucault
107
(também denominadas de artes de gover-
A imagem de um direito novo deve
nar) deverá ser pensada como a atitude de
ser buscada, portanto, em práticas do di-
recusa em ser governado. Foucault chama-
reito que, de certo modo, sejam expressão
rá estes gestos de recusa e de oposição às
desta atitude crítica. Ela tomará forma
artes de governar de “atitude crítica”.
nas práticas que constituem uma oposi-
Para o filósofo, o problema da gover-
ção de indivíduos e de grupos às artes de
namentalidade encerra dois aspectos ne-
governar que se apoiam nos mecanismos
cessariamente implicados entre si. Um de-
de normalização.
les seria como governar a conduta dos
Podemos mencionar alguns exem-
homens, e o outro seria como não ser go-
plos deste tipo de práticas nas quais Fou-
vernado. A atitude crítica consistiria justa-
cault reconhece esta forma de atitude,
mente na arte de não ser governado, elabo-
consideradas então expressão concreta
rada e colocada em prática no interior e
daquilo que imagina ser um direito novo.
em correlação com as próprias artes de go-
Em 1981, Foucault redige um mani-
vernar. Para Foucault, “se a governamen-
festo por ocasião da criação, em Genebra,
talização é o movimento pelo qual se trata
de um Comitê Internacional contra a pira-
de sujeitar os indivíduos através de meca-
taria aérea, intitulado Face aux gouver-
nismos de poder que reclamam para si
nements, les droits de l’homme18. Nesse
uma certa verdade, no seio de uma reali-
breve texto, o autor faz referência a certo
dade social, [...] a crítica é o movimento
número de iniciativas humanitárias, como
pelo qual o sujeito dá a si mesmo o direito
os movimentos “Terra dos homens”, “Anis-
de interrogar a verdade sobre seus efeitos
tia internacional” e “Médicins du monde”.
de poder e interrogar o poder sobre seus
Compara, então, estas iniciativas com a
efeitos de verdade”17.
sua e de seus colegas ao escreverem aque-
Por isso, a atitude crítica seria uma
le manifesto. Foucault referia-se ao fato
atitude ao mesmo tempo moral e política,
dos redatores do manifesto, dentre os
uma maneira de pensar e de agir. Arte da
quais ele figurava, serem indivíduos co-
“não servidão voluntária” ou arte da “indo-
muns que se dispunham a falar de uma
cilidade refletida”, a atitude crítica, en-
dificuldade comum. Nenhum deles era
quanto recusa de ser governado, é a noção
obrigado a fazê -lo. E justamente do fato
que melhor exprime a forma que pode ter
de nenhum dentre eles ter sido nomeado
a resistência em Foucault. 18. 17.
FOUCAULT, M. id., p. 39.
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FOUCAULT, M. Face aux gouvernements, les droits de l’homme. In: Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. t. IV.
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108
para fazê-lo é que decorria seu “direito” de
inquietar-se com a vida social e com tudo
o fazerem.
que nela está implicado. Não é possível se-
Segundo Foucault, três princípios
parar, de acordo com Foucault, as tarefas
conduziam aquele gênero de iniciativas. O
entre os governos e os governados. Deve-
primeiro concernia à existência de uma
-se recusar esta separação, pois, segundo
“cidadania internacional”, que possui seus
ele: “cabe tradicionalmente aos indivíduos
direitos e que tem seus deveres, e que se
indignarem-se e falar; e cabe aos gover-
engaja em insurgir-se contra todo abuso
nantes refletir e agir. As iniciativas como
de poder, qualquer que seja seu autor,
aquelas citadas (Anistia Internacional, Ter-
quaisquer que sejam suas vítimas. O elo
ra dos Homens, etc.) exprimem a recusa
entre todos os indivíduos no interior dessa
em se aceitar esse ‘papel teatral da pura e
cidadania internacional seria o fato de to-
simples indignação’ que nos é proposto, a
dos serem governados: “após tudo [dirá
nós, indivíduos particulares. Tais iniciati-
Foucault] nós somos todos governados e, a
vas criaram um direito novo: ‘aquele dos
esse título, solidários”19. O segundo princí-
indivíduos particulares intervindo efetiva-
pio aponta para o dever dessa cidadania
mente na ordem da política e das estraté-
internacional de “sempre fazer valer aos
gias internacionais’” 23.
olhos e aos ouvidos dos governantes os so-
O que se depreende desta série de
frimentos dos homens” . Pelo fato de que-
exemplos é a ideia de um direito que seria
rerem “se ocupar da felicidade das socie-
objeto de uma transformação permanente.
dades, os governos se arrogam o direito de
Os exemplos citados por Foucault encer-
contabilizar o lucro e as perdas do sofri-
ram também a ideia de que os indivíduos
mento dos homens que suas decisões pro-
são continuamente chamados a participar
vocam ou que suas negligências per mi-
do jogo da regulamentação social, decor-
tem” . A esse respeito, dirá Foucault: “o
rente de uma negociação contínua, ao qual
sofrimento dos homens não deve jamais
Paolo Napoli se referirá como “jogo jamais
ser um resto mudo da política. Ele funda
definitivo, sempre elástico e transformável
um direito absoluto de se levantar e se di-
da regulamentação social” 24.
20
21
rigir àqueles que detêm o poder” 22. Por fim, o terceiro princípio se configura na responsabilidade de todo indivíduo de
Neste jogo, afirmará Foucault no artigo “Um sistema finito em face de uma
23. 19. 20. 21. 22.
FOUCAULT, M. id., p. 707. FOUCAULT, M. id., p. 708. FOUCAULT, M. id., p. 708. FOUCAULT, M. id., p. 708.
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24.
FOUCAULT, M. id., p. 708. NAPOLI, P. Face au droit: moments d’une experience foucauldienne. In: D’Alessandro, L.; Marino, A. Michel Foucault: trajectories au coeur du present. Paris: L’Harmattan, 1998, p. 183.
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Michel Foucault
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demanda infinita”: “Trata-se de saber, e
O direito como lei, o direito norma-
isso é um formidável problema ao mesmo
lizado-normalizador e o direito novo são
tempo político, econômico e cultural, so-
três figuras do direito que identificamos
bre quais critérios e segundo qual modo
nos escritos de Michel Foucault. Por meio
combinatório estabelecer a norma sobre a
delas, somos instigados a pensar o direito
base da qual poderíamos definir, em um
diferentemente. Elas nos sugerem pensar
momento dado, um direito [qualquer]” .
o direito a partir da indeterminação do
25
Em sua imprecisão de simples ima-
próprio objeto “direito”, a pensá-lo tam-
gem, o direito novo, na perspectiva de Fou-
bém apartado dos parâmetros coerentes
cault, possui então um ponto de ancora-
de uma teoria do direito. Entretanto, tal-
gem preciso, que consiste na ação refletida
vez seja justamente esta a contribuição
dos indivíduos. Como afirma Napoli, nesta
que o pensamento de Foucault pode trazer
imagem de um direito novo “a ação não é o
ao estudo do direito. Abordá-lo segundo
predicado de um enunciado legal, ela é, ao
um olhar não essencialista e histórico, ca-
contrário, o momento indiferenciado que
paz de perceber, por debaixo do edifício
funda a pretensão a novos direitos” .
lógico, as ambiguidades e as contradições,
26
Pensar o direito enquanto domínio de saberes e de práticas cuja verdadeira
mas para além deste mesmo edifício, também as possibilidades e os desafios.
legitimação não pode decorrer senão da prática refletida dos indivíduos, sem referência a qualquer princípio de totalização: é a esta ideia que o pensamento de Foucault remete quando nos sugere a imagem de um direito novo. Esta imagem é tênue, tem a consistência de uma simples atitude, mas atitude capaz de ultrapassar a finitude de um direito compreendido somente em termos de formalização, permitindo a abertura desse domínio à infinitude das situações humanas. 25.
26.
FOUCAULT, M. Un système fini face à une demande infinie. In: Dits et écrits, t. IV, cit., p. 377. NAPOLI, P. Face au droit: moments d’une experience foucauldienne, cit., p. 180.
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Bibliografia EWALD, F. Foucault. A norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993. FONSECA, M. A. Michel Foucault e o direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. FOUCAULT, M. Théorie et institutions pénales. Cours au Collège de France, 1972. Inédito. ________. La société punitive. Cours au Collège de France: 1972-1973. Inédito. Disponível para consulta em texto datilografado. Dactylographie établie par Jacques Lagrange (213 p.), arquivos da Bibliothèque Générale du Collège de France, p. 116 -144. ________. História da loucura na Idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978. ________. Sobre a justiça popular. In: Microfísica do poder. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 39 -68.
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________. Qu’est-ce que la critique? Bulletin de la Société Française de Philosophie, t. LXXXIV, année 84, n. 2. p. 35-63, 1990.
________. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France (1982-1983). Paris: Seuil/Gallimard, 2008.
________. Face aux gouvernements, les droits de l’homme. In: Dits et écrits, Paris, Gallimard, 1994. t. IV, p. 707-708.
________. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978 -1979). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________. Un système fini face à une demande infinie. In: Dits et écrits, t. IV, Paris, Gallimard, 1994, p. 367-383.
________. Segurança, território, população. Curso no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________. A vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997.
________. O Governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
________. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ________. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. ________. Os anormais. Curso no Collège de France (1974 -1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ________. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU, 2003. ________. O poder psiquiátrico. Curso no Collège de France (1973-1974). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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________. Gênese e estrutura da Antropologia de Kant. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Loyola, 2011. ________. Leçons sur la volonté de savoir. Cours au Collège de France. 1970 -1971. Paris: Gallimard/Seuil, 2011. MONOD, J.-C. La police des conduites. Paris: Michalon, 1997. NAPOLI, P. Face au droit: moments d’une expérience foucaldienne. In: D’ALESSANDRO, L.; MARINO, A. Michel Foucault: trajectoires au coeur du present. Paris: L’Harmattan, 1998.
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7 O Direito na Sociologia de Niklas Luhmann Guilherme Leite Gonçalves João Paulo Bachur
7.1. Niklas Luhmann: vida e obra Niklas Luhmann (8 -12-1927 – 6 -111998) é considerado um autor de difícil compreensão nas ciências sociais em geral e na sociologia do direito em particular – e isso por diversas razões, que não competem a esta apresentação introdutória esmiuçar1. Nas próximas páginas, pretendemos decifrar, pelo menos em parte e de
Trata-se de um autor profundamente vinculado à história do século XX: nascido pouco antes da crise econômica que definiria os rumos do capitalismo industrial, Luhmann participou em sua juventude da II Guerra Mundial nas trincheiras alemãs e foi prisioneiro das forças aliadas antes de se formar em direito. Foi funcionário público por quase uma década em Lüneburg, sua cidade natal, antes de se dedicar
maneira tão didática quanto possível, a ar-
integralmente à sociologia – o que somen-
quitetura da teoria luhmanniana, espe-
te ocorreria após 1960. Ao receber uma
cialmente no que se refere à posição do
bolsa de estudos para pesquisar teoria das
direito na sociedade moderna.
organizações na Universidade de Harvard, tomou conhecimento da sociologia estru-
1.
Para introduções mais amplas sobre o papel do direito na teoria dos sistemas de Luhmann, cf. Villas Boas Filho, 2009, e Gonçalves & Villas Boas Filho, 2013 (no prelo).
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turalista de Talcott Parsons. A estadia nos EUA representou uma virada em seu per-
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curso profissional. De volta à Alemanha
alguns volumes dedicados às relações en-
no início dos anos 1960, Luhmann havia
tre estrutura social e semântica.
decidido se dedicar integralmente à car-
Não obstante o desenvolvimento cen-
reira acadêmica. Obteve sua habilitação
tral da teoria dos sistemas sociais tenha
em Münster e, no ano de 1969, ainda no
tomado lugar no último quarto do século
contexto político marcado pelo movimen-
XX, ela é ainda muito pouco conhecida na-
to estudantil, tornou-se professor de so-
cional e mesmo internacionalmente – e, até
ciologia na recém-criada Universidade de
hoje, não é possível dizer que tenha alcan-
Bielefeld.
çado divulgação suficientemente expres-
Naquela ocasião, era preciso apresentar um projeto de pesquisa. Ao invés de preparar extensos relatórios com metodologia, resultados pretendidos, descrição das etapas etc., Luhmann sintetizou-o da seguinte forma: “Tema: Teoria da Sociedade; Duração: Trinta anos; Orçamento: Zero”. E, de fato, a construção de uma teoria geral da sociedade ocupou Luhmann por três décadas, até sua morte.
siva, contando com um acervo crítico relativamente reduzido e ainda em fase de consolidação. Há que se considerar inclusive que a recepção de Luhmann em sua própria terra natal foi bastante diluída, não sem razão, pelo impacto da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, equiparável em estatura teórica à iniciativa luhmanniana. A partir de uma polêmica com Habermas (LUHMANN; HABERMAS, 1971), que remonta à célebre querela en-
Nesse período, Luhmann desenvolveu es-
volvendo Theodor W. Adorno e Karl Po-
tudos sobre temas específicos (tais como
pper – a dialética contra o positivismo –, a
planejamento estatal, amor, poder, dogmá-
cena alemã na teoria social passou a se
tica jurídica, dentre outros), que na verda-
ocupar predominantemente da questão
de funcionariam como impulso para a
relativa a uma possível “segunda geração”
construção de uma teoria geral, cujo mar-
da teoria crítica da sociedade, herdeira da
co inicial é a publicação de Sistemas so-
chamada Escola de Frankfurt. Tal cir-
ciais, em 1984, e o fecho, a publicação de
cunstância permitiu a generalização de
A sociedade da sociedade, em 1997. Nes-
uma opinião prematura acerca da teoria
se ínterim, produziu uma ampla sequência
dos sistemas, conforme a qual esta teoria
de monografias sobre os sistemas sociais
se reduziria a uma sociologia conservado-
individualizados (economia, ciência, direi-
ra de viés tecnocrata, uma espécie de her-
to, arte, política, religião e educação), uma
deira radicalizada do positivismo.
coletânea de trabalhos preparatórios com
Fora da Alemanha, o desconheci-
o título de Esclarecimento sociológico e
mento de Luhmann é agravado pela au-
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O Direito na Sociologia de Niklas Luhmann
113
sência de traduções, concentradas princi-
sim à apresentação dos conceitos centrais
palmente em suas obras iniciais: o livro
de sua teoria.
Sistemas sociais só foi traduzido para o inglês e para o espanhol em 1995 e 1998, respectivamente, ou seja, mais de uma década depois de sua aparição; por sua vez, o livro A sociedade da sociedade, de 1997,
7.2. Conceitos centrais 7.2.1. Diagnóstico da modernidade: diferenciação funcional de sistemas
somente foi traduzido para o espanhol em
Não é incomum encontrar, no inte-
2007, dez anos após sua primeira edição.
rior da teoria social, descrições da passa-
As escassas traduções para o mundo
gem à modernidade apoiadas em um movi-
anglo-saxão e latino-hispânico foram bas-
mento guiado pelo conceito de progresso:
tante tardias e são ainda hoje relativamen-
seja como acúmulo de aquisições, técnicas
te incompletas. Por essa razão, a recepção
ou morais; seja como sucessão de etapas
internacional de Luhmann tem sido razoa-
de desenvolvimento – sugerindo em qual-
velmente lenta e restrita.
quer caso uma ideia de linearidade. Para
Há que se considerar, ainda, que Luhmann passou a ser difundido por intermédio do próprio Habermas, em uma apropriação bastante questionável do jargão sistêmico. Como consequência da proeminência de Habermas, é possível dizer que a teoria de Luhmann passou por uma difusão “de segunda mão”, que, no entan-
Luhmann, a modernidade é, ao contrário, compreendida pela noção de fratura: o mundo feudal-religioso se fragmenta em múltiplos circuitos comunicativos autônomos. Esses constituem aquilo que Luhmann designa sistemas sociais. Sistemas não são coisas, nem instituições; são estruturas discursivas que não se permitem reduzir umas às outras. Diferentemente
to, não será objeto desta apresentação in-
da Idade Média, em que o sentido da vivên-
trodutória da teoria dos sistemas2. Este
cia política, econômica, jurídica, científica
texto deve ser então entendido como um
e artística tinha de ser remetido à experiên-
esforço de suprir uma lacuna efetiva na
cia religiosa, a modernidade implica a pas-
compreensão de Luhmann. Passemos as-
sagem a uma sociedade sem centro, nem vértice, policontextual e policêntrica 3.
2.
De fato, “sistema” (restrito em Habermas ao mercado e à administração burocrática), “meios de comunicação simbolicamente generalizados” (restritos a dinheiro e poder) e “diferenciação” têm uma significação própria na teoria do agir comunicativo que não correspondem em absoluto às formulações luhmannianas. Não é o caso, porém, de tratar aqui dessa apropriação nem das críticas recíprocas feitas de um autor ao outro para não extrapolar os fins deste trabalho.
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Nesse sentido, evolução em Luhmann não significa aprimoramento de estruturas sociais, mas substituição de formas de dife3.
Cf., quanto a esse ponto, Bachur, 2011.
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114
Manual de Sociologia Jurídica
renciação. A primeira delas é designada di-
regulamentar a escassez; a tomada de de-
ferenciação segmentária e compreende os
cisões coletivamente vinculantes é exclusi-
primórdios da associação humana, fundada
vidade do sistema político; a produção de
no parentesco e no clã. Sua manifestação
conhecimento somente pode ser realizada
jurídica é o direito arcaico, oral e ligado à
pelo sistema científico; e assim por diante.
magia. A partir do momento em que um clã
Do ponto de vista jurídico, isto implicou o
se fecha em uma cidade, constituindo um
processo de positivação do direito, isto é, a
núcleo diferenciado do restante, tem-se a
eliminação de fontes extraju rídicas para
diferenciação centro/periferia. Esse pa-
determinar a validade das leis. Como ainda
drão de diferenciação caracteriza as altas
veremos, este processo é paradoxal porque
culturas da Antiguidade (Mesopotâmia,
se remete igualmente às relações entre po-
Egito, Grécia e Roma, para ficarmos com os
lítica e direito.
exemplos mais familiares). Sua expressão jurídica mais conhecida é o direito romano, já apoiado na escrita, mas ainda determinado tradicionalmente. Do centro dessa
7.2.2. Sistemas sociais e a crítica à teoria do sujeito
sociedade, emerge um estrato social deter-
“As reflexões seguintes partem do
minado que impõe à periferia uma relação
princípio de que existem sistemas” (LUH-
hierárquica, consolidando com isso a pas-
MANN, 1984, p. 30). Essa passagem, ex-
sagem à diferenciação estratificatória,
traída da abertura do primeiro capítulo de
cujo maior exemplo é o feudalismo euro-
Sistemas sociais, deixa claro que a teoria
peu. Baseada no estamento e na hierarquia
dos sistemas sociais não principia por uma
social rígida, a ordem feudal funda menta-
questão de teoria do conhecimento. A teo-
-se em uma concepção de direito natural,
ria dos sistemas não é mais um “método”
segundo a qual valores morais determinam
de análise da realidade efetiva tal como ela
a priori o conteúdo do direito positivo.
é: não há a bipartição entre o nível analíti-
Finalmente, a desagregação desenca-
co (construção de teorias) e o empírico
deada pela Reforma Religiosa põe em mar-
(aplicação de teorias). Isso só é compreen-
cha múltiplos processos de diferenciação
sível quando se tem em mente a afinidade
funcional de sistemas e, com isso, conso-
entre a teoria geral de sistemas, a ciberné-
lida a passagem à sociedade moderna. Nes-
tica e o construtivismo. Estes modelos
sas condições, cada sistema social desem-
pressupõem que os planos analítico e con-
penha uma função que é determinante
creto estão sujeitos à mesma unidade ope-
para a sociedade como um todo, em regime
rativa: operações demandam observações
de monopólio: somente a economia pode
do próprio processo operativo e não devem
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ser entendidas conforme o modelo sujeito/
ra que o mantenha como diferença em rela-
objeto. Nesse sentido, Luhmann afirma
ção às outras esferas sociais. Por essa ra-
que “nossa tese de que existem sistemas
zão, Luhmann define sistema com recurso
pode agora ser mais especificamente for-
à distinção sistema/ambiente. Só há siste-
mulada: existem sistemas autorreferen-
ma quando não é possível responder ponto
ciais” (idem, p. 31).
por ponto a todos os elementos presentes
A teoria dos sistemas sociais é cons-
no ambiente. Em resumo, os sistemas so-
truída de maneira radicalmente funciona-
ciais são mecanismos de redução de com-
lista (i.e., não substancializada): não se
plexidade, são estruturas simbólicas co-
trata de identificar as características es-
municativamente institucionalizadas pela
senciais dos sistemas – não há uma essên-
sociedade. São processos comunicativos.
cia da política, da economia, do direito,
Isso porque, para Luhmann, a única
mas apenas funções econômicas, políticas,
operação genuinamente social é a comu-
jurídicas etc., desempenhadas comunicati-
nicação, entendida como síntese de três
vamente. A teoria dos sistemas sociais au-
operações seletivas: (i) a seleção da in-
torreferenciais é formulada no registro da
formação; (ii) a seleção do ato de comu-
solução de problemas. Daí a relevância do
nicar a informação previamente selecio-
conceito de complexidade, entendido por
nada; e (iii) a seleção que se realiza no
Luhmann como horizonte de possibilida-
ato de compreender (ou não compreen-
des para a atualização de sentido.
der) a informação comunicada. Vale con-
O sistema é um desnível de complexi-
siderar que comunicação não é sinônimo
dade. É sempre muito menos complexo que
de linguagem: a linguagem é socialmente
seu ambiente. Na verdade, isso significa
indistinta e não tem uma orientação pre-
que, no ambiente, a complexidade não é es-
determinada porque ela apenas disponibi-
truturada por códigos, programas e fun-
liza (e não reduz!) complexidade, na for-
ções, tal como no sistema. O direito, e.g., ao
ma do código geral sim/não. A linguagem
se constituir como um sistema, dispõe de
passa por um processo evolutivo de dife-
um filtro para traduzir e tratar juridica-
renciação funcional que distingue meios
mente os inputs oriundos do restante da
especiais de comunicação generalizados
sociedade: o código lícito/ilícito. Isso signi-
simbolicamente, tais como amor, verdade,
fica redução de complexidade. Todos os fe-
dinheiro e poder. A linguagem funcional-
nômenos sociais são classificados como líci-
mente diferenciada é um código: um meio
tos ou ilícitos quando observados do ponto
de comunicação simbolicamente gene-
de vista do sistema jurídico. Sistema, nesse
ralizado que tem como função reduzir a
sentido, implica a existência de uma barrei-
complexidade da interação, substituindo a
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comunicação explícita por expectativas
se apreendermos definitivamente que a
que, por si só, são capazes de orientar a
autorreferência da consciência é radical-
ação (LUHMANN, 1985a, p. 28-31). O com-
mente diferente da autorreferência da co-
portamento humano é por isso definido
municação, e que uma não se deixa redu-
por um jogo incongruente de diferenças
zir à outra ou se deduzir a partir da outra.
comunicativas (no qual o indivíduo tem
Por isso, a diferença, no lugar da identida-
um papel contingente), e não pela raciona-
de. Os sistemas sociais não são racionais,
lidade abstrata de um sujeito autônomo.
apenas mantêm sua fronteira com o am-
Muitos críticos de Luhmann deixam de apreender o alcance de sua teoria porque deixam passar em branco as importantes implicações filosóficas decorrentes de
biente. Só a diferença radical entre consciência e comunicação permite a Luhmann escapar dos problemas da filosofia do sujeito (LUHMANN, 1984, p. 593 e ss.).
suas premissas. Nesse sentido, se a noção
A crítica luhmanniana à filosofia do
de comunicação for entendida sem recupe-
sujeito pode ser resumida nos seguintes
rar sua crítica à teoria do sujeito, parece
termos: a distinção entre sujeito e objeto é
não haver nela nada além de uma tautolo-
subjetivada, de forma a implicar uma
gia: uma teoria dos sistemas autorreferen-
apreensão subjetivista dos dois polos; o
ciais se ocupa de objetos autorreferenciais.
sujeito predomina sobre o objeto. Nesse
Mas a apresentação dos sistemas sociais
sentido, o sujeito é pensado como razão e o
como objetos autorreferenciais deve ser en-
objeto como coisa-em-si. Esse é, na verda-
tendida em toda a sua extensão. Por meio
de, segundo Luhmann, o verdadeiro pro-
desta formulação, Luhmann rompe defini-
blema: a unilateralidade subjetiva da filo-
tivamente com a filosofia do sujeito ao alo-
sofia do sujeito reifica a consciência e
car a autorreferência – sempre reservada à
subjetiva o mundo. Este processo provoca
consciência individual – na comunicação,
apenas a reificação da consciência, não a
i.e., em uma esfera objetiva: na sociedade4.
autorreferência propriamente dita. Se, pa-
Somente é possível entender a ruptura de Luhmann com a filosofia do sujeito
ra fazer referência a si mesmo, o sujeito precisa ganhar distância de si mesmo, é obrigado a se objetivar. Esta questão, intrínseca a qualquer estranhamento, subje-
4.
Apenas para contextualizar o leitor, a filosofia do sujeito pode ser definida como a compreensão da sociedade a partir do modelo do indivíduo racional. Toma-se como ponto de partida a consciência do homem para projetá -la em uma instância macrossocial, isto é, toma -se o homem como metáfora da sociedade e a sociedade como a projeção do homem. Para a filosofia do sujeito, a racionalidade da sociedade é pensada com base na razão humana.
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tivação ou exteriorização, leva a uma situação limite: identifica a razão a uma coisa e, com isso, subjetiva o mundo como razão. Note-se, portanto, que Luhmann faz mais justiça à primazia do objeto que
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os pretensos herdeiros de Adorno: ambos
lizar a observação que, como diferença,
são profundamente céticos quanto à possi-
tem de indicar um lado da forma, é dizer, o
bilidade do homem controlar a sociedade;
lado interno da forma. Para evitar o ponto
passa-se justamente o contrário, o objeto
cego, o observador que emprega o esque-
(a sociedade) impõe-se aos indivíduos.
ma de uma diferença deveria poder se abstrair desse esquema. Isso é efetivamente
7.2.3. A diferença sistema/ambiente
possível apenas por meio de uma outra observação que observará a primeira obser-
Como mencionado acima, um siste-
vação, isto é, uma observação de segunda
ma social se define pela forma sistema/
ordem. Este tipo de observação introduz
ambiente, entendida como forma de dois
uma segunda diferença que, novamente,
lados. Esta é a operação que marca a dife-
estará condicionada por seu próprio ponto
rença entre sistema e ambiente: sistema e
cego, que, por sua vez, será superada ape-
ambiente são os dois lados de uma forma
nas por uma outra observação geradora de
e, como tal, são lados separados, mas reci-
novo ponto cego, e assim indefinidamente.
procamente constitutivos, de maneira que
O direito, ao observar a sociedade com re-
é impossível pensar um sem o outro. A uni-
curso ao código lícito/ilícito, não consegue
dade da forma (i.e., uma eventual unidade
observar a diferença que fundamenta sua
entre o sistema e o ambiente que, em sen-
observação, pois isso implicaria empregar
tido hegeliano, recuperasse o que pudesse
o código lícito/ilícito sobre ele mesmo, ge-
existir de comum entre um e outro e ao
rando um paradoxo (o código lícito/ilícito
mesmo tempo superasse tanto um como
é lícito ou ilícito?). A sociologia do direito,
outro, impelindo a comunhão elementar
como observação de segunda ordem, pode
entre eles a um nível superior a ambos que
observar como o direito constrói sua pró-
os reconciliasse) é impossível e permane-
pria observação, mas não pode observar
ce apenas como diferença (LUHMANN,
seu próprio ponto cego: a verdade/falsida-
1997, p. 62-63).
de do código verdadeiro/falso no interior
Por este motivo, Luhmann afirma
do sistema científico.
que “a distinção que se emprega a cada
Segundo Luhmann, “o conceito de
momento para indicar um ou o outro lado
ambiente não deve ser mal-entendido
[da
sistema/ambiente] serve
como uma espécie de categoria residual.
como condição invisível para ver, como
Pelo contrário, a relação com o ambiente é
ponto cego” (1997, p. 69 -70). Toda obser-
constitutiva para a construção do sistema.
vação exige um ponto cego. O ponto cego é
[...] Para a teoria dos sistemas autorrefe-
a própria diferença empregada para viabi-
renciais o ambiente é, ao contrário, pres-
forma
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suposto de identidade do sistema, porque
sais, próprias da pré-modernidade, que,
identidade só é possível por meio da dife-
por meio de uma identidade religiosa ou
rença. [...] O ponto de partida de todas as
moral, concentram a comunicação social e
subsequentes pesquisas em teoria dos sis-
limitam as diferenças. As condições con-
temas é por isso não uma identidade, mas
temporâneas requerem formas menos sim-
uma diferença” (1984, p. 242-243). A dife-
plificadas e mais adequadas à organização
rença sistema/ambiente pressupõe que
da hipercomplexidade do ambiente. Os
não existem elementos que, per se, este-
sistemas sociais modernos são operativa-
jam confinados essencialmente a um siste-
mente fechados, isto é, referem-se somen-
ma ou ao ambiente. Tudo que acontece
te a si próprios. Na economia, só vale a ló-
pertence ao mesmo tempo a um sistema
gica econômica, não argumentos morais
ou a mais de um sistema e ao ambiente de
ou religiosos; no direito, a lógica jurídica; e
outros sistemas (1984, p. 243).
no sistema político, a política.
A diferença sistema/ambiente é cor-
Este fechamento se dá no plano das
relata à operação de observação. Seu pon-
estruturas e das operações dos sistemas.
to central é a diferença. E, no que diz res-
Isto não significa, entretanto, que os siste-
peito à mudança de paradigma operada
mas são autistas ou cerrados uns para os
por Luhmann, a questão fulcral está no
outros. Ao contrário, cada sistema pode
fato de que identidade e diferença não são
observar seu respectivo ambiente, ser “irri-
momentos reconciliáveis por uma identi-
tado” e oferecer prestações comunicativas
dade superior. O sistema se diferencia do
para outros sistemas (i.e., disponibilizar
ambiente e, nessa operação (que é sempre
estruturas que “ajudam” ou “atrapalham”
uma operação autorreferente), o sistema
outros sistemas – e o dinheiro é o exemplo
constitui sua identidade (idem, p. 112).
mais clássico). Paradoxalmente, o fechamento operativo do sistema é condição
7.2.4. Diferenciação funcional de sistemas como característica da sociedade moderna
para sua abertura cognitiva. As relações entre os sistemas jurídico, político e econômico ilustram muito bem esta definição: o aumento dos tributos, por exemplo, pode
A sociedade moderna é definida pela
suscitar queda nos lucros para a economia,
diferenciação de sistemas parciais distin-
questões de constitucionalidade das leis
tos, cada qual responsável pelo exercício de
para o direito e aumento da arrecadação
uma função específica infungível. Como
para a política. Cada sistema é diferencia-
visto, este pressuposto não é compatível
do entre si e cada um se apresenta para o
com concepções totalizantes ou univer-
outro como seu respectivo ambiente. As
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demandas externas são processadas pelo
semântica que vai do soberano (Hobbes) à
sistema de acordo com suas estruturas in-
soberania do Estado-nação e à democrati-
ternas: não há determinação ou causalida-
zação da formação da vontade política.
de. Diante do influxo ambiental, o sistema
Esta semântica organizou-se, gradativa-
produz irritações – na verdade, autoirrita-
mente, em torno da noção de povo.
ções –, que serão operacionalizadas de modo autorreferencial. Em outras palavras: os sistemas se abrem para o ambiente sem, todavia, perderem sua identidade, ou melhor, mantendo sua diferença.
7.3.2. A noção de povo “Povo”, como dizia Luhmann, é um mito, construído no século XVIII, destinado à justificação da representação política
Analisaremos a partir de agora como
e das relações de poder, formadas no início
Luhmann empregou essas referências con-
da modernidade (LUHMANN, 2002, p.
ceituais de sua teoria da sociedade para
333). Povo era considerado fonte, garantia
descrever o fechamento operacional do sis-
de legitimidade e fundamento de validade
tema jurídico. Tal fechamento operacional
da manifestação do poder político. A fór-
é especialmente elucidativo quando rela-
mula era notória: “todo poder emana do
cionado à autopoiese da política. Trata-se
povo”. Mas, como se aceitava a incapacida-
de capítulo fundamental da sociologia do
de popular de se autogovernar, era preci-
direito luhmanniana.
so, como dizia Montesquieu, que o povo fizesse, por intermédio de seus represen-
7.3. Teoria dos sistemas, direito e política 7.3.1. Sistema político
5
A política diferencia-se funcionalmente quando a tomada de decisões coletivamente vinculantes se separa de fundamentos religiosos e morais e recorre, por exemplo, ao argumento da razão de Estado. Nesse momento, a política funda-se a si mesma. A partir daí, desenvolve-se uma
tantes, tudo o que não poderia fazer por si mesmo (MONTESQUIEU, 1996, p. 170). Em outras palavras: o povo escolhia quem deveria governá-lo. A unidade do poder revelava, dessa forma, um paradoxo segundo o qual povo era, ao mesmo tempo, soberano e súdito (LUHMANN, 2002, p. 257). Dava-se, assim, continuidade a uma concepção de poder bidimensional e hierárquico que foi predominante na sociedade estratificada, na qual a estrutura social era dividida em parte superior e inferior. A filosofia política repetiu e reforçou, nas
5.
As considerações ulteriores sobre o sistema político e a constituição podem ser vistas de maneira mais ampla em Gonçalves, 2007.
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instituições políticas modernas, esta diferenciação superior/inferior (idem, p. 256).
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A hierarquia da estratificação foi apenas traduzida em hierarquia de ordens nas organizações políticas: de um lado, o representante; do outro, o representado (LUHMANN, 1997, p. 61).
7.3.3. Da bidimensionalidade à tridimensionalidade do poder No sistema político, a passagem da sociedade estratificada para a moderna é verificada por meio da superação da bidimen-
Bidimensionalidade, nestes termos,
sionalidade pela tridimensionalidade das
significa a possibilidade de distribuir e res-
formas de comunicação do poder (idem,
tringir a comunicação política a apenas
p. 61; LUHMANN, 2002, p. 255-256). As es-
dois destinatários – povo e representante
truturas políticas modernas não se redu-
–, que se orientam conforme o princípio da
zem à congruência entre mando e obediên-
hierarquia (idem, p. 62). Tal perspectiva
cia, como fazia a relação de domínio entre
observa a política como algo difuso social-
estrato superior e inferior. Elas são distin-
mente, que se confunde com outras esferas
guidas sobre a tripla diferenciação entre
sociais, e não como um sistema autônomo
público, política e administração. Alargam-
da sociedade. O poder é extraído de uma
-se, assim, os mecanismos de exercício do
fonte, o povo, que delega a administração
poder e aumenta-se a complexidade inter-
dos seus interesses ao representante políti-
na do sistema político. Ao se orientar con-
co. O poder político não se origina da polí-
forme seus próprios elementos, o sistema
tica, mas de um elemento externo que,
político rompe com o reducionismo opera-
num primeiro momento, age como quem
tivo produzido pela assimetria superior/in-
manda – estrato superior – para depois
ferior e conquista sua autonomia em rela-
obedecer – estrato inferior – ao represen-
ção às fontes externas do poder. Gera-se,
tante. O pressuposto desta hierarquia é a
por um lado, mais dependência no que diz
identidade – e não a diferença – entre po-
respeito à comunicação interna e, por ou-
der e povo. Sob estas condições, as alterna-
tro, mais autonomia em face do ambiente.
tivas políticas são baixas e pouco dinâmi-
Cada uma das esferas – público, política e
cas, pois estão limitadas à dicotomia
administração – são estruturas políticas
superior/inferior. Não há, em outras pala-
internas, diferenciadas entre si, mas inter-
vras, um nível de complexidade compatível
dependentes. Em outras palavras: o siste-
com o das estruturas contemporâneas do
ma político transforma-se em uma identi-
sistema político. A identificação do povo
dade à medida que se diferencia do resto
com o poder é uma simplificação do meca-
da sociedade e, para se referir como tal,
nismo de poder moderno, que reflete rela-
reproduz-se em outras diferenças. Esta é a
ções políticas mais próximas da estratifi-
forma pela qual o sistema político se fecha
cação do que do conceito de democracia.
operacionalmente.
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Cada um dos níveis de organização
uma determinação externa do poder políti-
do sistema político – público, política e ad-
co pelo povo por meio da figura do repre-
ministração – desempenha um papel rele-
sentante (idem, p. 256). Nas novas condi-
vante na orientação da interação deste
ções apresentadas, a representação política
sistema, vale dizer, na formação de sua
não pode mais servir para legitimar o poder
identidade com relação ao ambiente. O pú-
político por meio de fundamentos de vali-
blico, de acordo com Luhmann, não é uma
dade não políticos (idem, p. 333).
organização propriamente dita, mas com-
Sob a égide da teoria do poder, é pos-
preende um processo que demanda consi-
sível observar o circuito estabelecido en-
derável esforço organizativo (idem, p. 253).
tre público, política e administração por
Como se pode observar nas eleições políti-
meio de um movimento circular, que obe-
cas, ele aparece como voto, ou seja, como
dece a uma direção hierárquica: o público,
uma complexidade organizada, reduzida,
que era considerado povo, elege o político
procedimentalizada e autodirecionada. Não
na instituição do parlamento, que, por sua
é, de fato, organização, mas também não é
vez, produz as leis ou os meios para a ad-
caos. É uma ação organizada capaz de se-
ministração – ou executivo – tomar as de-
lecionar as premissas para a política. Esta,
cisões que submeterão o povo (LUH-
por sua vez, como diferenciação interna do
MANN, 1997, p. 64). O paradoxo desta
sistema político, prepara cada decisão que
circularidade hierárquica é que o povo,
vincula a coletividade. Tal influência no
como identidade abstrata, define as opera-
processo decisório só é possível de ser
ções do Legislativo e do Executivo e, tam-
exercida por meio de organizações, por
bém como tal, submete-se à natureza cole-
exemplo, os partidos políticos, as associa-
tiva da decisão. A abstração do conceito
ções e os sindicatos. Pode também estar
“povo” como fonte do poder vincula o
presente na própria administração, que,
“povo” como destinatário da decisão, sem
como a última esfera diferenciada, é a or-
que se respeitem as diferenças “popula-
ganização por excelência, em que se to-
res” de natureza cultural, histórica, econô-
mam as decisões vinculantes (idem, p.
mica etc. No poder moderno, por outro
254-255). O grande problema da concep-
lado, simultaneamente ao movimento cir-
ção de poder definida pela filosofia políti-
cular descrito, instaura-se um contramo-
ca no início da modernidade é que toda
vimento (idem, p. 64-66; LUHMANN,
esta complexidade era reduzida ao mito
2002, p. 258): a administração produz pro-
“povo”: ele definia o que era administra-
jetos para a política que, da sua parte, su-
ção, política e público. Não havia separa-
gere ao público, por meio dos partidos,
ção organizacional entre estas esferas, mas
quem deverá ser eleito. A circularidade de
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dupla direção é resultado da separação
Obviamente, o efeito inverso, a con-
das esferas no interior do sistema político
tracircularidade,
(CAMPILONGO, 2002, p. 90). A circulari-
mente a este processo. Quando o poder
dade e a contracircularidade bloqueiam a
político adquire autonomia, libera o povo
ordem hierárquica e tornam as relações de
do ônus da hierarquia. Estimula o reco-
poder muito mais complexas.
nhecimento da diferença e da complexida-
forma-se
simultanea-
de, que já não é mais redutível a um único
7.3.4. Povo/política/administração/ público
valor absoluto. Nas palavras de Luhmann, se, para o poder tradicional, a ordem hierárquica poderia ser expressa na fórmula
Para se diferenciar funcionalmente, o
segundo a qual “Povo = Política + Público
sistema político não pode conviver com
+ Administração”; a circularidade e a
uma ideia de povo enquanto identidade ab-
contracircularidade do poder moderno re-
soluta ou valor abstrato que determina as
produzem o esquema “Povo/Política/Ad-
relações políticas. Povo é diferença e com-
ministração/Público” (LUHMANN, 2002,
plexidade. Não há unidade no povo, mas
p. 257-258). Essas considerações são im-
indeterminação. No povo, existem diferen-
portantes porque, para a teoria dos siste-
tes pontos de vista, ricos e pobres, educa-
mas, a origem política do direito é reco-
dos e mal-educados, saudáveis e doentes.
nhecida sem ressalvas. Evidentemente, há
Como já foi afirmado, a soberania popular
um filtro que evita que a comunicação de
gera, paradoxalmente, a submissão do
um sistema se imponha ao outro de manei-
povo. O público é o elemento do sistema
ra direta – a constituição.
político mais sensível à complexidade presente no povo. Pode observar os problemas e expectativas dos indivíduos que compõem o que chamamos de povo. Por meio
7.3.5. Constituição como acoplamento estrutural entre política e direito
de filtros políticos que selecionam esta di-
A constituição é a forma pela qual o
versidade, o público escolhe politicamente
sistema político reage à sua própria auto-
as manifestações populares e as traduz
nomia: depende dos espaços decisórios de
conforme o código político. Depois desta
cada um dos elementos da tridimensiona-
seleção, ele influenciará a política, que, por
lidade. Imuniza, dessa forma, o poder das
sua vez, limitará a administração. As deci-
intervenções externas, como as da econo-
sões administrativas vincularão o público
mia ou da religião. A constituição tem de
e produzirão efeitos no povo, que reagirá
ser vista como ato produtor de instituições
pela diversidade de demandas políticas.
e procedimentos que reforçam a circulari-
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dade – e a contracircularidade – do poder
dentes: autorreferência de base, reflexivi-
político, e não como um apelo à constru-
dade e reflexão. O conjunto destas fases
ção de identidade de um povo.
corresponde à autopoiese de um sistema.
Observada como mecanismo de cria-
A primeira diz respeito à autorreprodu-
ção de instituições e procedimentos, a
ção dos elementos do próprio sistema
constituição é também fundamental para
(LUHMANN, 1987, p. 600 e ss). Para Luh-
o sistema jurídico, pois introduz regras in-
mann, como um elemento só existe em
ternas não apenas para aplicação das nor-
relação a outros, eles se remetem neces-
mas jurídicas individuais, mas também para a produção das normas jurídicas gerais e abstratas. Dessa forma, o sistema jurídico cria mecanismos de controle das tentativas de determinação externa sobre suas operações e bloqueia a possibilidade de indiferenciação com seu ambiente. Ao produzir autonomia, a constituição permite a “relação” entre direito e política. Como unidades distintas, estes sistemas podem produzir irritações recíprocas. Esta é a função da constituição como acoplamento estrutural: conecta os sistemas porque os separa. Isto significa a manutenção da diferenciação entre direito e política no interior da sociedade moderna. Nesse sentido, a constituição é o elemento que, paradoxalmente, produz abertura cognitiva e fechamento operativo para os sistemas polí-
sariamente entre si como redes recursivas, que, ao se diferenciarem conforme as possibilidades de relação, reduzem as alternativas disponíveis (diminuição de complexidade). Quanto ao direito, a referência entre elementos é dada pela vinculação aos valores lícito/ilícito e à função normativa (LUHMANN, 1993, p. 60). Note-se o paradoxo: da necessidade da relação, os elementos (jurídicos) constroem sua unidade (código binário e função), mas como é a própria unidade que possibilita a conexão, os elementos também são por ela construídos (LUHMANN, 1987, p. 43). Esta circularidade é verificada por meio de operações cuja recursividade inicia a diferenciação sistêmica do direito. Neves relacionou este momento ao conceito de legalidade (2000).
tico e jurídico (LUHMANN, 1990, p.
A segunda etapa, por sua vez, consis-
176 -220; NEVES, 1992, p. 61-75; e CORSI,
te na capacidade de um processo referir-
2001, p. 253-266).
-se a si mesmo e autoconstituir-se. Luhmann denominou-a de reflexividade, pois
7.3.6. Sistema jurídico
exprime a possibilidade do processo se submeter aos seus próprios meios para es-
Para se diferenciar funcionalmente,
colher seus atos e etapas que viabilizam a
o direito atravessa três fases interdepen-
tomada de decisão (LUHMANN, 1987, p.
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611). Quanto ao direito, Neves associa esta
jurídico que permite reconhecer aquilo que
etapa à noção de constitucionalidade: nor-
possui relevância para o direito.
mas que definem o processo de criação de outras normas (2000).
Este conhecimento se desenvolve pela alternância entre redundância (quando se
A terceira fase – reflexão – compreen-
reafirma a informação jurídica precedente)
de a autodescrição do sistema, isto é, a sua
e variação (quando se constroem razões
necessidade de se reconhecer como diver-
para discriminar os casos ou modificar a
so (LUHMANN, 1993, p. 498). Trata-se,
interpretação) (idem, p. 358 e ss.). Desta
em outras palavras, da elaboração de uma
alternância surgem técnicas, conceitos,
“teoria do sistema no sistema”, produzida
princípios e métodos. Quando o direito con-
discursivamente por meio de critérios e
segue sistematizá-los, estabiliza e comple-
argumentos próprios (LUHMANN, 1981,
menta seu processo de diferenciação (idem,
p. 422). Esta elaboração depende de cons-
p. 274 e 370). Luhmann considera que a
trução conceitual que descreva a identida-
dogmática jurídica é esta sistematização
de sistêmica e, por conseguinte, demarque
conceitual. Trata-se de construção seletiva
sua diferença em relação ao ambiente. Da
das abstrações conceituais originadas da
perspectiva do direito, isso significa que a
reflexão sobre a aplicação do direito que,
argumentação jurídica é responsável pelo
para orientar a práxis jurídica, estabelece
fechamento do processo de diferenciação.
inegáveis pontos de partida para as cadeias
Luhmann, nesse sentido, separa direito e
argumentativas e uma coerência histórica
Estado, atribuindo ao último a função de
(idem, p. 271 e 274; LUHMANN, 1974, p.
centro do sistema político e, portanto, am-
15). Conectada à autorreferência de base e
biente do sistema jurídico (LUHMANN,
à reflexividade, a consistência interna dos
1993, p. 189 e ss). Isto fica claro quando o
conceitos jurídico-dogmáticos autoriza que
autor nega a autoaplicabilidade do texto
o direito se abra para a complexidade social
legal: regras gerais e abstratas demandam
sem perder sua identidade, pois as deman-
interpretações e argumentações que justi-
das externas são recebidas conforme os li-
fiquem decisões sobre casos (idem, p. 346).
mites semânticos e procedimentais do sis-
Durante este processo, são estabelecidos
tema jurídico. Por isso, para Luhmann, o
formas e critérios de compreensão de re-
surgimento de uma dogmática jurídica
gras e casos que se transformam em refe-
avançada é condição para a estabilização
rência de comparação para eventos futuros
do direito como um sistema operativamen-
(idem, p. 352). Cria-se, assim, a partir da
te fechado e cognitivamente aberto (LUH-
experiência, um conhecimento tipicamente
MANN, 1993, p. 274).
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7.3.7. Função do direito: manutenção de expectativas normativas Ao completar sua autopoiese, o direito se especializa no exercício de uma função específica que responde a um problema gerado pela própria sociedade, trata-se do direito como mecanismo responsável pela estabilização congruente de expectativas normativas (idem, p. 124 -164). Este problema está relacionado com a distinção expectativas cognitivas/expectativas normativas. Enquanto as primeiras permitem adaptação à realidade porque se alteram e se reestruturam de acordo com as frustrações experimentadas e, com isso, proporcionam um ganho de conhecimento; as segundas sobrevivem à frustração. São estruturas contrafáticas porque não são revistas diante de um desapontamento.
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direta da consciência, mas como função das alternativas abertas pelo contexto. O objetivo era explicar os mecanismos sociais subjacentes às manifestações superficiais do comportamento individual observado diretamente. Nesse sentido, o valor informacional da ação adjudicada ao agente é tanto maior quanto mais variados sejam os cursos de ação disponíveis para ele (JONES e GERARD, 1967, p. 268269 e p. 306). Essa perspectiva permite romper com a visão do mundo como um universo de coisas dado, inerentemente estável: essa estabilidade não existe, mas é construída, pode ser observada como ajuste do comportamento individual à antecipação de estados e mudanças do ambiente conforme padrões mais ou menos regulares (idem, p. 256). Aprendizagem significa, en-
O importante não é investigar por
tão, a capacidade de recuperar um compor-
que as expectativas são frustradas (pois a
tamento pretérito selecionado como res-
possibilidade de desapontamento é intrín-
posta a um determinado estímulo e
seca ao conceito de expectativa), nem o
repeti-lo diante de um estímulo semelhan-
conteúdo de uma expectativa satisfeita ou
te (idem, p. 186 -187). O direito especializa-
frustrada, mas observar o que acontece
-se na garantia de expectativas que não
diante da frustração: se as expectativas
estão dispostas a tal aprendizagem. O di-
são mantidas, alteradas ou abandonadas.
reito generaliza congruentemente expec-
Apenas expectativas cognitivas permitem
tativas normativas. Em outras palavras,
aprendizagem. Luhmann entende “apren-
isto significa que o sistema jurídico cons-
dizagem” no sentido da psicologia social, e
trói mecanismos abstratos e indiferentes
não da pedagogia. A psicologia social in-
aos fatos: mesmo diante da frustração fáti-
corporou métodos experimentais de aná-
ca de uma expectativa, o direito é capaz
lise do comportamento individual na ten-
de mantê-la inalterada no tempo. Ele cria
tativa de explicá-lo não como decorrência
uma forma de imunização em relação aos
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desapontamentos produzidos na instância
curso de atos formalmente encadeados.
material. É, nesse sentido, uma fórmula
Procedimento é um sistema social, uma
abstrata. Nesse ponto, a convergência en-
solidariedade de sentido da ação fática,
tre a noção de Luhmann e a do jovem Marx
definido comunicativamente. A “intersub-
sobre a função do direito é considerável6.
jetividade” (ou, em termos técnicos mais condizentes com a teoria dos sistemas, o
7.3.8. Legitimação pelo procedimento
componente comunicativo), portanto, é o elemento central, entendido a partir do
Para manter intactas as expectativas
desempenho dos papéis sociais formal-
normativas, o sistema jurídico transforma
mente envolvidos e engajados na tomada
as expectativas cognitivas dos indivíduos.
da decisão pelo sistema.
Para isso, recorre ao procedimento. Há um mal-entendido generalizado acerca da formulação de Luhmann quanto à legitimação pelo procedimento, como se, com isso, o autor pretendesse uma extrapolação decisionista e legalista, como se o conceito de “procedimento” (“Verfahren”) de Luhmann fosse idêntico ao conceito de “processo” (“Prozess”) judicial, legislativo ou administrativo.
A teoria dos sistemas procura fugir ao estilo de argumentação da teoria jurídica, segundo o qual uma decisão seria legítima ou ilegítima conforme sua justiça, em uma tentativa de reconectar a legislação à moral. Para Luhmann, não se trata de questionar a possibilidade de um valor moral absoluto, mas conceder que, em uma sociedade complexa, não é possível decidir todos os conflitos sociais submetidos à
O fio condutor da análise de Luh-
política e assegurar, em todos os casos, a
mann pode ser sintetizado como segue: o
justiça da decisão (LUHMANN, 1980, p.
procedimento é um sistema social muito
24). Ao contrário da abordagem jurídica, a
especializado e transversal, i.e., ao mesmo
análise sociológica tem de ser capaz de ex-
tempo em que não é específico de sistema
plicar as funções latentes do procedimen-
algum, pode ser disponibilizado para qual-
to decisório juridicamente regulado. A
quer sistema parcial cuja rotina de decisão
grande vantagem da teoria dos sistemas é
esteja definida juridicamente. Por proce-
justamente permitir apreender a compli-
dimento, não se deve entender o simples
cada articulação entre objetivo oficial, a
proceder metodicamente, como o trans-
organização institucional e as funções latentes de uma determinada instituição. A
6.
Para um aprofundamento da relação entre Luhmann e o jovem Marx a respeito do direito, ver De Giorgi, 1998. Para a relação entre Luhmann e o Marx de O capital, ver Bachur, 2010.
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verdade de uma decisão jurídica não é, assim, concebida como um valor em si, mas como um mecanismo social que desempe-
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nha uma função para redução de comple-
sões, mas às decisões tomadas como pre-
xidade por meio da reestruturação comu-
missas de ação. A questão da convicção
nicativa das expectativas cognitivas dos
quanto ao acerto ou à correção da decisão é
envolvidos no procedimento (idem, p. 25;
deslocada para a aceitação do resultado de-
e LUHMANN, 1985a, p. 12).
corrente do procedimento, no qual a res-
Nesse sentido, nenhum procedimento
ponsabilidade pela decisão é dividida entre
pode prescindir de verdade. O procedi-
os agentes e diluída pela atuação conforme
mento opera a legitimidade ao exigir uma
papéis sociais juridicamente institucionali-
verdade funcionalizada pelo poder como
zados. A convicção é um objetivo exagerado
meio de comunicação simbolicamente ge-
diante das possibilidades do sistema políti-
neralizado, já que “Por meio do livre esta-
co; a legitimidade decorre muito menos das
belecimento da comunicação não se
convicções que de uma verdadeira “aceita-
pode alcançar nenhum objetivo” (LUH-
ção sem motivo”, generalizada e indepen-
MANN, 1980, p. 27). Essa afirmação é pe-
dente da aceitação individual envolvida nas
remptória na descrença quanto à possibili-
decisões especificamente consideradas.
dade de se alcançar, efetivamente, qualquer
A “aceitação”, em Luhmann, ocorre
medida empírica de consenso capaz de
“por quaisquer motivos”, sem que o motivo
fundar, moralmente, decisões obrigatórias
subjacente seja determinante na legitima-
(idem, p. 30).
ção da decisão; a convicção perde a cen-
A inversão de Luhmann é clara: a le-
tralidade como crivo da decisão, já que não
gitimidade não se dá após o processo de
se trata da internalização subjetiva de jus-
tomada da decisão, como um teste de vali-
tificativas, mas apenas e tão somente da
dade aplicável a posteriori; mas é uma
reestruturação das expectativas a partir
condição social prévia à própria decisão a
das decisões (logo, a despeito de qualquer
ser tomada, é uma condição indicada a
concordância substantiva quanto ao méri-
priori na interação política e jurídica, e
to da decisão). E o que explica a indiferen-
consolidada no decorrer do procedimento.
ça de Luhmann quanto aos motivos é, jus-
Nesse sentido, a legitimação pelo procedi-
tamente, a coerência interna de sua teoria:
mento nada mais é que a percepção cons-
a separação entre sistemas psíquicos e so-
ciente da contingência das decisões relati-
ciais permite que o procedimento seja en-
vas aos conflitos sociais.
tão considerado estritamente do ponto de
O procedimento juridicamente regu-
vista sociológico, como comunicação so-
lado – como mecanismo comunicativo –
cial, e não dependa, nessa medida, de con-
opera sob o esquematismo binário “sim/
dicionantes psicológicas excessivamente
não”, aplicável não ao conteúdo das deci-
instáveis. A legitimação pelo procedimen-
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to, como aceitação prévia e generalizada
é: como isso é feito? O procedimento juri-
sem motivos determinantes, é então des-
dicamente regulado se constitui como sis-
conectada da situação subjetiva interna.
tema social na medida em que se baseia na
É claro que Luhmann não ignora os impactos na personalidade daí decorrentes: a aceitação exige reestruturar expec-
comunicação diferida no tempo e estruturada institucionalmente. Ele é a história de uma decisão (idem, p. 34).
tativas. A aceitação é a articulação entre a decisão produzida pelo sistema, pelas expectativas e pela personalidade. As expectativas se adaptam à legitimação porque a personalidade tem de seguir independentemente da decisão tomada – ela precisa aprender a aceitar a decisão. A aceitação de uma decisão desfavorável pode pôr em risco a personalidade individual quando envolver a aludida capacidade de aprendizado. É dizer, a mudança na estrutura das expectativas não pode ser imputada ao indivíduo (i.e., ao sistema psíquico individual), simplesmente, como pura culpa, ruptura na biografia ou quebra de sua autorrepresentação, mas deve poder ser reportada a fatores exteriores a ele.
7.3.9. Procedimento como institucionalização da forma jurídica Como história de uma decisão, o procedimento ganha certa autonomia dentro de um sistema específico para chegar às decisões suportadas por esse sistema. Nesse sentido, o comportamento dos participantes é decisivo. Esse comportamento não é simplesmente dado pelo procedimento, mas funcionalizado sistemicamente, de maneira que a progressão do procedimento no tempo possa reduzir crescentemente a margem de atuação, forçando a tomada de decisão. Há um ritmo comum que condiciona a participação dos agentes e que impele o sistema a uma decisão final. Esse
Esse é o ponto central para a dimen-
ritmo comum é dado pelo fato de que
são comunicativa da legitimação pelo pro-
cada nova decisão toma como premissa
cedimento: a aceitação não decorre da
estrutural as decisões anteriores e se ante-
motivação internalizada subjetivamente,
cipa, assim, como premissa para as próxi-
revelada na ação ou na relação social, mas
mas decisões. Nesse sentido, a legitimação
de uma contínua transformação da estru-
pelo procedimento significa a instituciona-
tura de expectativas e dos mecanismos
lização, na forma jurídica, de uma apren-
sociais que forçam essa alteração – aquilo
dizagem contínua, mediante uma rees-
a que Luhmann chama “clima social”,
truturação permanente de expectativas
“condições sociais da institucionaliza-
cognitivas, a bem da preservação das ex-
ção da legitimidade”, desonerando o as-
pectativas normativas cristalizadas no
pecto pessoal dessas decisões. A questão
procedimento (idem, p. 35).
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Dessa perspectiva, a legitimação é
tem generalizar o outro como apoio social
obtida pela reestruturação permanente de
pressuposto, em contraponto à insatisfa-
expectativas perpetrada pela comunica-
ção gerada por uma decisão oficial: a obe-
ção que se vai saturando ao longo do pro-
diência é a solidariedade comunicati-
cedimento juridicamente regulado, que
va gerada pela dominação, por assim
tem de culminar em uma decisão. A apro-
dizer. Aquele que “obedece” à decisão ofi-
vação de uma lei, as eleições periódicas, os
cial – que não se revolta, a despeito de sua
julgamentos judiciais, as decisões admi-
insatisfação individual – somente o faz
nistrativas; todos esses exemplos de pro-
porque conta com a pressuposta compre-
cedimentos juridicamente regulados só se
ensão generalizada dos outros, cuja di-
fazem legitimar como comunicação insti-
mensão comunicativa é assegurada pelos
tucionalizada: o procedimento prevê re-
papéis sociais (idem, p. 44). O importante
gras de iniciativa e participação, prazos e
é a “generalização social” do resultado
recursos, testes e garantias múltiplas, mas
da decisão, que só pode ocorrer comunica-
também uma decisão última, a fim de que
tivamente – é essa generalização social
o conflito social subjacente à forma jurídi-
que permitirá a reestruturação de expec-
ca seja forçadamente convertido na busca
tativas de comportamento.
“cooperativa” por uma decisão.
É por essa razão que a legitimação
Ao regrar os papéis sociais, a forma
pelo procedimento é radicalmente comu-
jurídica institucionaliza a comunicação e,
nicativa: a decisão tem de ser vista como
com isso, generaliza as expectativas em um
obrigatória. A dogmática jurídica conhece
“outro” pressuposto como “consenso”, ou,
esse fenômeno sob a rubrica latina do non
pelo menos, como não discordância genera-
liquet. A obrigatoriedade da decisão apoia-
lizada. A legitimação pelo procedimento
-se no consenso presumido de terceiros,
juridicamente regulado não se processa,
pois uma decisão legislativa ou judicial im-
portanto, pela forma jurídica em si, pela di-
popular tem de ser vista como legítima por
mensão social comunicativa por ela ativada,
todos aqueles que observaram o procedi-
pois é pela estrutura de papéis sociais da
mento. A legitimidade do poder político
sociedade (não obstante sejam os papéis re-
não é então obtida a partir da internaliza-
grados juridicamente) que se dá a aceitação
ção subjetiva dos motivos de uma decisão
de uma decisão desfavorável. É a partir dos
qualquer; muito ao contrário, a legitimação
papéis que se tem o mecanismo de suposi-
ocorre a despeito da insatisfação individual;
ção de aceitação de resultado indesejável.
a decisão sobrevive ao inconformismo.
Os papéis sociais permitem generali-
Essa dinâmica tem o efeito de suavi-
zar a tomada de atitude do outro, permi-
zar e aprofundar, ao mesmo tempo, o con-
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flito social: suavizar na medida em que o
que argumentos de justiça e legitimidade
conflito se restringe ao desempenho de um
venham a ser levantados. Por mais que,
papel social; aprofundar na medida em que
conforme demonstrado, os processos de
toda a atuação conforme o papel social está
diferenciação funcional do direito e da po-
voltada para o conflito. O procedimento
lítica estejam diretamente relacionados à
permite desativar os conflitos sociais con-
perda de fundamentos morais absolutos
cretos e reestruturá-los em um nível social
da lei e do poder, a justiça e o consenso são
superior, mais abstrato, descolado das per-
fórmulas de contingência construídas pe-
sonalidades concretas, reduzindo a com-
las operações do sistema jurídico que, en-
plexidade do conflito ao mesmo tempo em
quanto tais, têm validade restrita ao fun-
que ele é agravado nos limites do procedi-
cionamento desse sistema. Nesse sentido,
mento – o que permite que o conflito seja
justiça e legitimidade são indispensáveis
mantido e conservado como sistema. Com
às operações jurídicas e políticas reais.
isso, a função do procedimento não é pro-
Todavia, o fato de que os sistemas do
duzir consenso ou evitar desilusões. Ao
direito e da política constroem noções de
contrário, é “a especificação do descon-
justiça, legitimidade, verdade e consenso
tentamento e o fracionamento e absor-
em seu funcionamento cotidiano não im-
ção dos protestos” (idem, p. 95 -98)7.
plica a existência substantiva de uma justiça, uma legitimidade, uma verdade ou
Conclusão: e a justiça?
um consenso que tenham de ser reconhecidos como tal por todos os possíveis ob-
Mesmo tendo visto que “o povo” e “a
servadores. Significa apenas que a verda-
verdade” de uma decisão funcionam de
de ou a legitimidade de uma decisão é
fato como “mitos” construídos interna-
construída no próprio processo de tomada
mente aos sistemas político e jurídico, as
dessa decisão – a rigor: que ela é indis-
noções de diferenciação do direito e de le-
pensável para os sistemas que têm de to-
gitimação pelo procedimento não ex-
mar decisões – mas que, do ponto de vista
cluem, em todo caso, a possibilidade de
de uma observação de segunda ordem, do
que decisões possam ser julgadas legíti-
ponto de vista da sociologia jurídico-po-
mas ou ilegítimas, justas ou injustas; nem 7.
Nota-se que, apresentado sob um viés crítico, Luhmann pode ser lido em continuidade a uma ampla tradição marxista de crítica à forma jurídica e, com isso, oferece uma alternativa radical ao debate contemporâneo dominante sobre direito e democracia.
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lítica, a verdade ou legitimidade da decisão não está relacionada a uma concepção substantiva de justiça, mas à reestruturação das expectativas daqueles que estão envolvidos ou que serão afetados pela decisão. Essa reestruturação é comunica-
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tiva, e não psicológica. A conclusão que se segue (a de que não existem conteúdos que a priori não possam ser aceitos no sistema jurídico) não deve ser entendida como apologia do legalismo de Hans Kelsen ou do decisionismo de Carl Schmitt, mas como uma contingência constitutiva da sociedade funcionalmente diferenciada; e, enquanto tal, incontrolável – pela moral, pela esfera pública ou por qualquer outra esfera que pleiteie se apresentar como instância totalizante de observação da sociedade.
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8 Habermas e Ambiguidade do Direito Moderno Felipe Gonçalves Silva
Jürgen Habermas nos apresenta uma
estruturais que nos cercam cotidianamen-
teoria social abrangente que atribui um pa-
te. Da mesma forma, veremos que o direito
pel central às instituições e práticas jurídi-
não será considerado pelo autor nem como
cas. As leituras mais usuais de sua obra a
um veículo unilateral de conquistas demo-
tratam meramente como uma “teoria do
cráticas, nem como um simples instrumen-
consenso”, marcada por uma caracteriza-
to de dominação político-econômica, mas
ção otimista e unilateral acerca das capaci-
como uma instância que se reproduz sob
dades do direito de conduzir a processos
uma tensão constante entre imperativos
robustos de democratização. Veremos, en-
sistêmicos e demandas provenientes da so-
tretanto, que tão importante quanto insis-
ciedade civil, na qual se manifestam de
tir nos potenciais democratizantes da livre
modo particularmente explícito os confli-
busca do consenso, interessa ao autor in-
tos, as lutas e as patologias da modernidade
vestigar as possibilidades de instauração
tardia. E, com isso, podemos apreender já
do dissenso sobre o solo das sociedades mo-
de saída a ambiguidade característica que
dernas, isto é, de práticas regulares e não
confere ao fenômeno jurídico.
coagidas de problematização, discordância
Compreender a especificidade de sua
e crítica acerca dos arranjos simbólicos e
teoria da modernização social e o papel
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cumprido pelo direito no interior dela são
emancipação inscritas, ainda que em ger-
os objetivos principais deste capítulo. Para
me, na própria realidade observada (NO-
isso, ajuda-nos inicialmente uma rápida in-
BRE, 2004). Dessa forma, a crítica se im-
cursão em sua trajetória intelectual. Ha-
põe em nome não de ideais ou princípios
bermas nasce em 1929 na cidade alemã de
de justiça abstratos, mas de potenciais
Düsseldorf. Após uma formação profunda-
emancipatórios existentes e não devida-
mente interdisciplinar, que inclui estudos
mente aproveitados na realidade social,
em filosofia, sociologia, história, psicolo-
levando a investigações que nos conduzam
gia, literatura e economia, Habermas pas-
à natureza desses potenciais, a seus blo-
sa a trabalhar em 1958 como assistente de
queios mais característicos e ao tipo de
Theodor Adorno no Instituto de Pesquisa
ação social capaz de superá-los.
Social em Frankfurt. Em 1964, torna-se
Em seu livro mais conhecido, Teoria
professor de filosofia e sociologia da Uni-
do agir comunicativo, publicado origi-
versidade Johann Wolfgang von Goethe,
nalmente em 1981, Habermas consolida
situada na mesma cidade, assumindo a ca-
uma compreensão da emancipação social
deira antes ocupada por Max Horkheimer,
que se vincula ao aproveitamento dos po-
com quem havia iniciado suas pesquisas
tenciais comunicativos liberados na mo-
de pós-doutoramento. Essas referências
dernidade. Para o autor, a instauração de
nos revelam sua jovem vinculação, manti-
processos sociais de reflexão e crítica ba-
da ao longo de toda a sua obra, à chamada
seados no entendimento comunicativo
“Teoria Crítica da Sociedade” – ainda co-
conteria uma força transformadora, capaz
nhecida por muitos como “Escola de
não apenas de diluir o dogmatismo pre-
Frankfurt”. Ao se vincular a essa tradição
sente na reprodução cotidiana dos saberes
intelectual, Habermas tem sua obra dedi-
culturais, como de moldar as normas e ins-
cada ao desenvolvimento de uma “crítica
tituições segundo o livre convencimento
social imanente”. Isso significa que a teo-
dos atores concernidos. O entendimento
ria social aqui conduzida não se limita à
comunicativo, pois, será apresentado como
descrição da rotina de funcionamento das
o único recurso capaz de possibilitar uma
estruturas e relações sociais observadas,
integração social não violenta e não alie-
mas busca submetê-las a um exame críti-
nada. Recurso, entretanto, que tão logo
co. Essa crítica, entretanto, não se pauta
disponibilizado pelos processos de moder-
em modelos de sociedade “utópicos” ou
nização social, coloca-se em risco de ser
“idealistas”, aplicados à sociedade investi-
progressivamente substituído pelas fontes
gada como um padrão normativo a si mes-
sistêmicas do mercado capitalista e do Es-
ma exterior, mas sim em possibilidades de
tado nacional, as quais operam a integra-
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ção social pelos meios instrumentais e lin-
sos democratizantes periféricos que emer-
guisticamente empobrecidos do dinheiro e
gem da sociedade civil e lutam por seu
do poder burocrático.
reconhecimento jurídico formal.
Em Direito e democracia, publicado em 1992, Habermas expõe sua compreensão mais sistemática acerca do fenômeno jurídico e de sua ligação necessária com uma ordem de legitimação democrática. O direito é ali introduzido em sua teoria da modernização como uma fonte ambivalente de integração social, a qual combina um instrumento não comunicativo por exce-
8.1. Sociedade tradicional e imunizações discursivas Como a maior parte dos diferentes modelos de teoria social já estudados neste volume, Habermas busca trabalhar as especificidades da sociedade moderna em atenção ao modo como esta se distingue de formas sociais anteriores, pré-modernas, às quais
lência – a ameaça de coerção física – à exi-
chama pelo nome de “sociedade tradicional”.
gência de ter seu uso acoplado a normas
Não se trata aqui de descrever os movimen-
geradas democraticamente, vale dizer, a
tos de transformação da sociedade tradicio-
normas geradas segundo processos discur-
nal em todas as suas etapas evolutivas, mas
sivos de formação da opinião e da vontade.
de salientar em bloco aquelas características
Como os demais âmbitos da sociedade mo-
essenciais que, uma vez abaladas, dariam
derna, entretanto, o direito tende a ver a
origem aos longos e inacabados processos
peculiaridade de seu componente comuni-
de modernização. É importante frisar que a
cativo, que nele se manifesta nas expectati-
oposição “moderno/tradicional” nos fala de
vas exigentes de sua legitimação democrá-
características predominantes a uma orga-
tica, suplantado pelo avanço progressivo de
nização social, não devendo ser tomada
imperativos funcionais, que o direito incor-
como uma distinção cronológica absoluta.
pora a partir de sua ligação direta com o
Dessa forma, ainda que, segundo a caracte-
sistema burocrático-estatal. Em outras pa-
rização habermasiana, possamos nos supor
lavras, veremos que o direito tende a bene-
vivendo em uma sociedade moderna, encon-
ficiar um funcionamento meramente sistê-
tramos muito frequentemente em nosso dia
mico de suas práticas e instituições. Para o
a dia formas de consciência e arranjos insti-
autor, entretanto, uma teoria crítica da so-
tucionais que mereceriam ser classificados
ciedade tem de evitar uma descrição con-
como tradicionais.
formista dessa tendência geral e elaborar
Em vista de uma compreensão inicial
diagnósticos sobre as possibilidades con-
do conceito, a sociedade tradicional pode
cretas de sua inversão, investigando impul-
ser aqui apresentada como um arranjo so-
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cial que suprime a possibilidade de proble-
âmbito dos interesses particulares, por
matização e a necessidade de justificação
sua vez, é reduzido e moldado por proces-
constante de suas formas de vida concre-
sos de individuação pouco reflexivos, limi-
tas, isto é, das convicções, práticas e insti-
tados em seu campo de escolhas e marca-
tuições identificadas à constituição e per-
dos pela conformação direta dos valores
manência do corpo social. Para além dessa
pessoais aos do grupo. No conjunto dessas
compreensão abrangente e ainda abstrata,
características, a possibilidade de dissen-
entretanto, é importante perceber certas
so nas interações espontâneas de seus
características adicionais que teriam per-
membros é considerada já significativa-
mitido a estabilização das sociedades tradi-
mente reduzida (HABERMAS, 1997a, p.
cionais em sua existência histórica, ante-
40 e ss.).
rior à modernidade capitalista. Isso nos leva
Habermas nos chama a atenção, en-
ao conhecimento de suas formas típicas de
tretanto, para uma ultraestabilização so-
imunização discursiva – quer dizer, de ca-
cial derivada não apenas das certezas in-
racterísticas tanto simbólicas quanto insti-
tuitivas do dia a dia, mas de sua ligação
tucionais que mantinham “bloqueadas” ou
com narrativas religiosas e suas autorida-
“adormecidas” as capacidades comunicati-
des impositivas. Com efeito, a sociedade
vas ligadas à livre contestação e à busca
tradicional teria a homogeneidade de suas
não coagida do consenso.
formas de vida vinculada a um complexo
Em primeiro lugar, Habermas nos diz
unificador de narrativas religiosas que
que a sociedade tradicional encontra-se
atribuiria significado e duração a cada ele-
historicamente vinculada a comunidades
mento singular do corpo social, desde os
pequenas, pouco diferenciadas funcional-
inúmeros componentes de seu legado sim-
mente e dotadas de grande homogeneida-
bólico (que orientam a compreensão do
de cultural. Isso permite uma sólida coe-
mundo e suas formas de avaliação ética),
são social baseada no pano de fundo
até as práticas e instituições ligadas ao
simbólico de valores e significados habitual-
modo como a vida se reproduz material-
mente não problematizados. A concatena-
mente (como a divisão do trabalho, os ins-
ção da ação entre seus membros exigiria
trumentos e materiais empregados no sis-
assim não mais que uma comunicação su-
tema produtivo, as modalidades da troca e
perficial e insipiente, já que fundada em
do consumo etc.). Por meio de textos reli-
certezas culturais compartilhadas, pres-
giosos, heranças mitológicas e encenações
supostas pelos falantes sem que estes ti-
ritualísticas, os dispositivos essenciais da
vessem a plena consciência de seu uso. O
ordem social deixam de fazer parte dos sa-
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Habermas e Ambiguidade do Direito Moderno
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beres implícitos do cotidiano, que escapa-
exatidão os planos discursivos que descre-
vam à comunicação, e passam a ser expli-
vem o mundo “tal como ele é” e sua justifi-
citados como conhecidos elementos da
cação “tal como deve ser”. Entretanto, ao
ordem do “sagrado”; os quais, entretanto,
estender a regulação ao campo do conven-
uma vez subtraídos do universo mundano,
cimento pessoal, a sociedade tradicional
não devem ser transformados em suas for-
neutraliza o último refúgio onde o dissen-
mas, usos e significados, mas reproduzi-
so poderia vir a surgir ainda que de modo
dos e respeitados por um misto de convic-
eventual e improvável, reforçando o poder
ção e medo (ibidem, p. 43; HABERMAS,
da tradição como aquilo que deve ser não
2012; ARAÚJO, 1996).
apenas obedecido, mas respeitado por
Neste ponto, entramos finalmente em contato com certos elementos importantes da estrutura normativa prevalecente nas sociedades tradicionais. Ao serem consideradas ao mesmo tempo como imposições sociais e como imposições sagradas, as normas se destinam ali tanto ao corpo quanto ao espírito do agente. E, com
convicção. Nesse sentido, Habermas nos fala de uma “fusão entre facticidade e validade” contida nas expectativas de cumprimento das normas tradicionais. Quer dizer, de uma indistinção entre a “coerção sancionadora”, que impõe o medo da represália, e a “coerção sublimada”, que se aceita pela força de seu convencimento.
isso, são direcionadas não apenas ao comportamento dos destinatários, mas também àquilo que pensam e exprimem ver-
8.2. Modernização social e colonização sistêmica
balmente. Isso implica que os desvios de
Os processos de modernização social
convicção, isto é, a problematização da
instauram condições de comunicação bas-
norma, seja sancionada mesmo em face de
tante modificadas: para Habermas, a mo-
um comportamento em conformidade a
dernidade é marcada pela diluição do mo-
ela. Significa também, e isso é de funda-
nopólio exercido pela autoridade religiosa
mental importância, que a validade da
sobre o pano de fundo simbólico da socie-
norma não se contesta: norma fática, im-
dade, o qual tem seus conteúdos diversifi-
posta por sua figura de autoridade, deve
cados e submetidos à possibilidade de te-
ser diretamente assumida como norma le-
matização e crítica. Ao mesmo tempo,
gítima. A rigor, a legitimidade da norma
importantes esferas da reprodução mate-
não se coloca ali sequer como uma questão
rial da sociedade são afastadas das exi-
proeminente, já que absorvida em narrati-
gências de entendimento comunicativo e
vas unificadoras que não distinguem com
passam a se auto-organizar segundo códi-
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gos próprios, pautados em interesses es-
nos processos sociais segundo os quais
tratégicos que envolvem controle e eficiên-
formamos nossa identidade pessoal. Estes
cia (HABERMAS, 2012, p. 276 e ss.).
se abrem à avaliação do pano de fundo
Temos aqui o que o autor chama de “desa-
cultural que orienta nossas interpreta-
coplamento entre mundo da vida e siste-
ções sobre nós mesmos e sobre o mundo,
ma”, isto é, a diferenciação de âmbitos da
permitindo a contestação das comunida-
vida social caracterizados por lógicas pró-
des linguísticas de nascimento, a incorpo-
prias, respectivamente a lógica comunica-
ração seletiva de seus conteúdos particu-
tiva e a lógica instrumental, as quais pas-
lares e sua combinação, de forma criativa
sam a conduzir processos de racionalização
e original, com uma diversidade sempre
apartados e conflitantes na modernidade.
maior de repertórios simbólicos agora dis-
O mundo da vida, isto é, o âmbito da
poníveis. Manifesta-se também no modo
vida social no qual se desenvolvem formas
como nos relacionamos com as normas so-
de interação baseadas no entendimento co-
ciais. Para Habermas, o direito positivo
municativo, continua a se reproduzir se-
moderno contribui de forma contundente
gundo um pano de fundo de significados
com a racionalização do mundo da vida,
dados previamente aos falantes. Para o au-
uma vez que desfaz a ligação direta com
tor, sempre que compreendemos ou expres-
os valores e deveres da tradição e prevê
samos algo, pressupomos uma rede de sig-
os próprios mecanismos responsáveis
nificados compartilhados e predefinidos
pelo reconhecimento da validade de suas
sem os quais não podemos dar início à inte-
normas, os quais passam a se afirmar
ração comunicativa. Isso não é diferente na
como procedimentos discursivos ligados
modernidade: o que distingue o mundo da
à formação democrática da vontade, aber-
vida moderno é que essa rede de significa-
tos à problematização e à participação
dos torna-se cada vez mais consciente, di-
dos cidadãos.
versificada e sujeita a problematizações por
Voltaremos nos itens seguintes a tra-
meio da própria prática comunicativa. Para
tar das características do direito moderno.
Habermas, pois, a modernidade abriria a
Nesse momento, cumpre completar a tese
possibilidade de contestar a herança sim-
de desacoplamento entre sistema e mundo
bólica em meio à qual fomos socializados e
da vida, bem como explicitar a natureza
transformá-la à luz das experiências que ti-
conflituosa de seus processos particulares
vemos por seu intermédio.
de racionalização. Apesar de ressaltar com
Essa “reflexividade” do mundo da
entusiasmo os potenciais de crítica intra-
vida moderno se manifesta, por exemplo,
mundana liberados com a diluição da so-
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Habermas e Ambiguidade do Direito Moderno
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ciedade tradicional, Habermas não deixa
mente ampliado quando consideramos as
de assumir as fragilidades do mundo da
condições de integração no plano da socie-
vida moderno em integrar uma sociedade
dade em seu todo, a qual passa a exigir na
secularizada e intensamente diversificada
modernidade não apenas a convivência de
tanto cultural quanto funcionalmente.
grupos de convicções muito díspares que
Como vimos, o mundo da vida tradicional
vivem sobre o mesmo território, como a sa-
permitia uma coesão social bastante sóli-
tisfação de necessidades materiais que
da e estável, à custa, entretanto, da liber-
crescem com o aumento significativo da
dade comunicativa de seus membros. Na
população, tais como trabalho, habitação,
modernidade, ao contrário, temos liberda-
alimento e circulação. Essas exigências
des mais amplas para decidir nossas práti-
imediatas não podem esperar os longos,
cas e convicções, mas também uma difi-
gravosos e incertos processos de consti-
culdade muito maior de integrá-las aos
tuição discursiva do consenso, o que tor-
demais parceiros de socialização. Quando
naria a modernização social inviável caso
os conteúdos do mundo da vida são proble-
não contasse com um meio de integração
matizados nas interações comunicativas
alternativo (ibidem, p. 330). Para Haber-
cotidianas, os sujeitos nela envolvidos pre-
mas, os sistemas instrumentais de ação
cisam reestabelecer o consenso perdido;
suprem essas exigências ao proporciona-
caso contrário, a relação pode ser suspen-
rem formas de integração social que se de-
sa ou mesmo se romper definitivamente. A
sacoplam do mundo da vida e estabilizam
produção do consenso entre os participan-
o risco de dissenso por dependerem muito
tes de uma interação comunicativa, por
pouco do entendimento comunicativo. A
sua vez, obriga-os à justificação daquilo
lógica sistêmica, pois, é voltada não ao
que se afirma por meio de argumentos ca-
questionamento e à produção de consenso
pazes de serem aceitos por ambos, levando
entre diferentes atores, mas sim à execu-
a processos de entendimento longos, exi-
ção instrumental de certos fins, ao cum-
gentes e que, como todos nós sabemos, po-
primento eficiente de objetivos determina-
dem vir a se mostrar completamente in-
dos, procurando reduzir, tanto quanto
frutíferos.
possível, as contingências da comunicação
Esse grande risco de dissenso já per-
(NOBRE, 2008; REPA, 2008).
ceptível no âmbito de nossas interações
Segundo Habermas, os dois sistemas
pessoais diretas, as quais envolvem atores
típicos da modernidade são encontrados
que compartilham universos simbólicos
no Estado burocrático e no mercado capi-
relativamente aproximados, é profunda-
talista, os quais, em nome de uma imple-
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mentação eficiente do controle social e da
anuência de parcela significativa dos atores
reprodução material, substituem a lingua-
concernidos. Habermas salienta em sua
gem argumentativa pelos meios padroni-
obra o conflito entre essas duas “racionali-
zantes e linguisticamente empobrecidos
dades” – a comunicativa e a instrumental –
do “poder” e do “dinheiro”. Com efeito, não
e nos diz que seu jogo de forças costuma ser
é possível argumentar muito diante de um
largamente vencido pelo componente sistê-
soldado armado ou das exigências buro-
mico. Para o autor, os sistemas tenderiam a
cráticas que nos são requeridas em repar-
desenvolver uma “dinâmica própria incon-
tições públicas, da mesma forma como não
trolável” e a provocar, por meio disso, uma
é necessária muita comunicação para se
“colonização do mundo da vida” (HABER-
comprar um produto ou para se demitir
MAS, 2012, p. 597). Habermas nos fala, as-
um funcionário em função dos interesses
sim, de uma tendência geral de coloniza-
de mercado. É claro que a comunicação
ção do mundo da vida pelo sistema, quer
nesses âmbitos sistêmicos de socialização
dizer, uma tendência observada nas socie-
pode eventualmente vir a acontecer. Habermas nos diz inclusive que dificilmente a ação comunicativa e a ação estratégica acontecem de modo puro em qualquer âmbito da sociedade. Entretanto, a comunicação argumentativa não é essencial ao cumprimento dos imperativos sistêmicos, além de ser bastante improvável e distorcer significativamente as condições discursivas ao colocar os agentes em posições hierárquicas muitíssimo desiguais.
dades capitalistas tardias de terem suas esferas de reprodução simbólica invadidas pela lógica instrumental da economia e do poder administrativo. Essa invasão é descrita nos termos de uma “monetarização” e uma “burocratização” crescentes da vida social, segundo as quais as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo entendimento recíproco de seus participantes, mas pelos meios padronizantes e linguisticamente empobrecidos do dinheiro e do poder burocrático. Com isso,
Podemos facilmente perceber o cará-
os potenciais comunicativos liberados na
ter conflituoso dessas duas lógicas de re-
modernidade correriam o risco de serem
produção social: de um lado, escutamos
neutralizados pela preponderância de uma
frequentemente que muito diálogo compro-
lógica sistêmica que não se detém aos ob-
mete a eficiência na execução de objetivos e
jetivos estritos de autopreservação social
tarefas prefixadas. De outro lado, a lógica
e reprodução material, mas avança em ca-
da eficiência, embora possa conduzir a re-
pilares cada vez mais profundos da vida
sultados quantitativamente vantajosos, ge-
cotidiana. Como resultados da colonização
ralmente suprime a reflexão, participação e
sistêmica, Habermas identifica diferentes
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formas de patologias sociais, tais como a
dissenso e desagregação que lhe é próprio.
reificação do comportamento, notada
Ao mesmo tempo, as exigências modernas
quando parceiros de uma interação social
de integração social mostram-se progres-
se reconhecem não como sujeitos dotados
sivamente supridas por mecanismos sistê-
de opinião e vontade próprias, mas como
micos que neutralizam o risco de dissenso
simples meios para a persecução de planos
fazendo uso dos meios não comunicativos
estratégicos; a perda de sentido, verifica-
do poder e do dinheiro. Nesse movimento,
da quando indivíduos perdem a capacidade
os potenciais comunicativos liberados com
de compreender e inter-relacionar reflexi-
a diluição da sociedade tradicional tendem
vamente as contribuições plurais e cada vez
a ser não apenas subutilizados, como su-
mais especializadas da cultura moderna; a
primidos em âmbitos cada vez mais alar-
anomia social, caracterizada pela perda
gados da vida social. Em Direito e demo-
de validade das normas de comportamento,
cracia, o direito é apresentado como a
as quais passam a ter seu respeito geral
única saída possível a esse dilema, isto é,
abalado ou garantido pela mera imposição
como um meio de integração ligado tanto
da força; além de uma grande variedade de
ao sistema quanto ao mundo da vida, o
psicopatologias, segundo as quais vemos
qual permite unir o mecanismo coercitivo
bloqueadas as capacidades de interação en-
de integração a exigências de sua legiti-
tre os indivíduos, os quais se mostram cada vez mais isolados física e emocionalmente no interior da massa populacional das grandes cidades (REPA, 2008; SOUZA, 1997).
8.3. Integração social e direito moderno
mação discursiva. Habermas nos mostra que o direito moderno se conecta diretamente aos meios de integração do sistema burocrático-estatal, já que recebe deste último a capacidade de manter as expectativas de comportamento por meio do uso coercitivo da
Após essas análises, Habermas nos
força. Ao mesmo tempo, entretanto, o direi-
diz que a compreensão dos processos de
to expõe seus imperativos sistêmicos de
modernização social nos conduz a uma si-
controle e eficiência às exigências de “ra-
tuação dilemática: a forma típica de inte-
cionalização comunicativa”. Habermas sa-
gração social não violenta – pautada na
lienta inicialmente que o direito moderno
possibilidade de crítica ininterrupta e no
limita o uso da coerção de um modo signi-
livre convencimento dos atores concerni-
ficativo, de forma a distingui-lo dos arran-
dos – revela-se incapaz de estabilizar pe-
jos normativos típicos da sociedade tradi-
rante toda a sociedade o profundo risco de
cional: a regulação coercitiva passa a ser
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dirigida ao comportamento externo dos
por sua criação legislativa, ligando à impo-
destinatários, afastando-se progressiva-
sição do direito coercitivo uma expectati-
mente de seus motivos e convicções pesso-
va de legitimidade a ser cumprida com a
ais (ibidem, p. 52, 150 e ss.). Para o autor,
implementação de processos de formação
essa limitação do uso da coerção contri-
democrática da vontade (HABERMAS,
buiria de forma decisiva com a “racionali-
1997a, p. 61). A formalização de tais pro-
zação” do mundo da vida. Com efeito,
cessos estrutura as condições de formação
quando as normas passam a ter suas impo-
discursiva da opinião e da vontade em ter-
sições coercitivas dirigidas meramente ao
mos institucionalizados, suprimindo boa
comportamento dos destinatários, sua va-
parte dos déficits organizacionais dos me-
lidade, compreendida como aceitação no
canismos comunicativos que emergem de
campo das convicções internas, desliga-se
modo espontâneo do mundo da vida. Se-
da simples facticidade de sua imposição,
gundo Habermas, apesar de seus muitos
podendo ser questionadas mesmo por
desvios e insucessos, o “procedimento de-
aqueles que as cumprem formalmente.
mocrático” nos revela a única fonte de legi-
Dessa maneira, o direito estabiliza as ex-
timidade adequada aos contextos pós-
pectativas de comportamento sem “frear a
-tradicionais modernos: na ausência de
mobilização comunicativa de argumentos”,
um mundo da vida homogêneo e protegido
pois permite a exposição do conteúdo de
contra problematizações, o direito moder-
suas normas ao exame crítico. Além disso, a
no não pode extrair a aceitabilidade de
preservação das convicções pessoais auto-
suas normas do “espelhamento” ou da in-
riza o exercício continuado de “discursos
corporação direta de valores e significa-
éticos”, por meio dos quais os valores e sig-
dos tradicionais, já que estes passam a
nificados do mundo da vida podem ser ex-
agregar em si mesmos conflitos, discor-
pressados e debatidos, contribuindo aos
dâncias e ressignificações constantes.
processos que nos levam à diversificação
Dessa forma, as normas jurídicas têm de
das formas de vida culturais e à formação
reivindicar sua própria legitimação como o
reflexiva das identidades, tanto individuais
resultado de processos discursivos inclusi-
quanto coletivas (HABERMAS, 2002).
vos, por meio dos quais a pluralidade das
No desenvolvimento histórico do di-
vozes e opiniões que emergem socialmen-
reito moderno, entretanto, os potenciais
te mostram-se aptas a gerar consensos e
de reflexão e crítica acerca das normas ju-
acordos temporários, motivados pela “for-
rídicas passam a ser agregados aos pró-
ça de convencimento” dos melhores argu-
prios procedimentos formais responsáveis
mentos disponíveis.
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Com isso, o direito é considerado por
midade discursiva, esta é estendida aos
Habermas um instrumento capaz de ali-
processos de aplicação normativa trans-
viar os sobrecarregados processos de en-
corridos nos tribunais e nas agências ad-
tendimento das tarefas de integração so-
ministrativas, onde as decisões devem ser
cial sem anular, em princípio, os potenciais
argumentativamente justificadas perante
comunicativos liberados na modernidade:
toda a comunidade jurídica como as mais
de um lado, a positividade do direito esta-
corretas tanto no que se refere à interpre-
biliza expectativas de conduta por meio de
tação do conjunto de normas positivadas
coerções impostas facticamente a seus
quanto às peculiaridades fáticas do caso
destinatários, sendo tal imposição consi-
concreto.
derada não uma expressão de mandamentos sagrados ou de leis naturais imutáveis, mas um “fragmento da realidade social produzido artificialmente, o qual só existe até segunda ordem, já que pode ser modificada ou colocada fora de ação em qualquer um de seus componentes singulares” (ibidem, p. 60); de outro lado, é a pretensão de legitimidade que empresta duração
Habermas tem consciência do “idealismo” presente nessas expectativas de legitimação discursiva do direito. Ele as considera, entretanto, como um idealismo inscrito no mundo, na medida em que compõem a validade da ordem jurídica e exercem influências concretas na estrutura de funcionamento de cada uma de suas
a determinadas normas para que se opo-
esferas institucionais. Para o autor, seria
nham à possibilidade presente de virem a
impossível explicar a adesão das massas
ser declaradas sem efeito, sendo tal pre-
ao direito posto em condições pós-
tensão alojada na expectativa de terem
-tradicionais (isto é, sua “aceitação social”
sido criadas pelos próprios destinatários
ou “empírica”) sem levar em conta as ex-
segundo processos democráticos inclusi-
pectativas de se fazerem cumpridas suas
vos, tanto do ponto de vista dos partici-
exigências de legitimidade democrática
pantes quanto dos temas e argumentos
(as quais conduzem, nos termos do autor,
apresentados. Dessa forma, Habermas es-
às condições de sua “aceitabilidade racio-
creve que “as leis coercitivas devem com-
nal”). Ao mesmo tempo, ao apresentá-las
provar sua legitimidade como leis da liber-
como um “idealismo” impregnado na or-
dade no processo de legislação” (ibidem, p.
dem jurídica, o autor já está nos adiantan-
53). Importante dizer que, embora o autor
do que tais expectativas de legitimidade
saliente o processo legislativo como o mo-
não podem ser consideradas plenamente
mento preponderante no qual o direito
realizadas. Elas, com frequência, são ob-
tem de cumprir as exigências de sua legiti-
jeto de um reconhecimento meramente
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formal, desvinculado de processos comuni-
Estado e do poder estrutural da socieda-
cativos autênticos, ou se mostram inteira-
de; tampouco revela se elas, apoiadas nes-
mente distorcidas em usos estratégicos
te substrato material, produzem por si
ou ideológicos, por meio dos quais o dis-
mesmas a necessária lealdade das massas”
curso jurídico é direcionado à legitima-
(ibidem, p. 62).
ção de uma distribuição desigual do poder social constituída tanto econômica quanto politicamente. Assim, o direito será considerado por Habermas um meio de integração social extremamente ambíguo. Ligado tanto ao mundo da vida quanto ao sistema, ele abre canais para que as demandas provenien-
8.4. Fechamento institucional e paradigmas jurídicos Direito e democracia é inteiramente desenvolvida em consideração a essa ambiguidade do direito, à qual Habermas chama a atenção desde o prefácio da obra até seus capítulos finais. Segundo Haber-
tes de interações comunicativas alcancem
mas, a observação realista das democra-
os sistemas econômico e burocrático com
cias contemporâneas nos obriga a perce-
a pretensão de seu direcionamento legíti-
ber que a reprodução do direito tende a se
mo; entretanto, os sistemas de ação po-
manter fechada aos núcleos institucionais
dem se servir da força legitimadora do di-
do Estado. E ainda que entre suas institui-
reito a fim de disfarçar a imposição de
ções o parlamento se apresente por princí-
seus imperativos funcionais, conferindo
pio mais aberto aos fluxos comunicativos
aparência de legitimidade a uma domi-
gerados socialmente, ele habitualmente se
nação sistêmica democraticamente ilegíti-
encontra configurado segundo composi-
ma: “Como meio organizacional de uma
ções duradouras de poder partidário que
dominação política, referida aos impera-
impedem, ou ao menos dificultam, a circu-
tivos funcionais de uma sociedade eco-
lação de novos fluxos de argumentos, te-
nômica diferenciada, o direito moderno
mas e problematizações (HABERMAS,
continua sendo um meio extremamente
1992b, p. 59 e ss.).
ambíguo da integração social. Com muita
Muito além desse tipo de “fechamen-
frequência o direito confere aparência de
to institucional”, que dificulta a inclusão
legitimidade ao poder ilegítimo. À primei-
de novos temas e atores nos processos de-
ra vista, ele não denota se as realizações
cisórios oficiais, Habermas insiste em
de integração jurídica estão apoiadas no
diagnosticar diversas formas de bloqueios
assentimento dos cidadãos associados, ou
à democratização inscritos no próprio solo
se resultam de mera autoprogramação do
da sociedade civil, tais como a parcialida-
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Habermas e Ambiguidade do Direito Moderno
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de e a cooptação da grande mídia, as desi-
dente compreensão do ambiente social na
gualdades de recursos comunicativos e
qual ele se encontra inserido. Para o autor,
educacionais entre a população e a inércia
esses laços de sentido presentes nos dois
política de cidadãos pressionados pelas
paradigmas predominantes na ordem jurí-
exigências sempre maiores do mercado de
dica contemporânea, a saber, o “paradig-
trabalho. Entretanto, o lado mais nocivo
ma liberal” e o “paradigma do Estado so-
do direito moderno, vale dizer, sua capaci-
cial”, tendem a deslocar dos processos
dade de conferir “aparência de legitimida-
democráticos a competência para a cria-
de” à imposição crescente dos imperativos
ção legítima de normas, bem como a jus-
sistêmicos, é explorado de forma mais
tificar por meio de seus discursos norma-
contundente em sua crítica aos paradig-
tivos a autoprogramação sistêmica dos
mas jurídicos predominantes na ordem
mecanismos de mercado e do aparato bu-
institucional contemporânea.
rocrático-estatal.
Habermas chama de “paradigma ju-
Segundo Habermas, o paradigma li-
rídico” as compreensões sociais que ser-
beral estaria fundado numa compreensão
vem como pano de fundo das práticas de
da sociedade que atribui centralidade às
criação e aplicação do direito (ibidem, p.
funções integradoras dos mecanismos es-
123). Com isso, o autor está assumindo
pontâneos de mercado e as justifica como
que o discurso jurídico nunca opera em
instâncias garantidoras da liberdade indi-
abstrato, isto é, que as argumentações em
vidual, a serem ali preservadas contra in-
torno da fundamentação e interpretação
tervenções políticas (HABERMAS, 1997b,
de direitos sempre se baseiam, mesmo que
p. 138). Uma tal sociedade econômica, ins-
de modo implícito, em uma determinada
titucionalizada principalmente por meio
compreensão da realidade social. Ao mes-
de direitos de propriedade e da liberdade
mo tempo, representações sociais compar-
de contratos, seria organizada segundo a
tilhadas entre os operadores do direito
autonomia individual dos sujeitos de direi-
geram padrões de entendimento mais ou
to, os quais, enquanto atores econômicos
menos homogêneos acerca daquilo que é,
independentes, procurariam encontrar
ou deve ser, o próprio sistema jurídico
sua realização e seu sucesso pessoal no
(SILVA, 2011, p. 323). Dessa forma, Haber-
cumprimento de interesses próprios. A
mas nos diz que a noção de paradigma ju-
maneira preponderante de justificação do
rídico nos permite identificar os “laços de
aparato jurídico em seu todo seria pautada
sentido” entre configurações determina-
ali nos estritos termos da “igualdade for-
das do sistema jurídico e uma correspon-
mal”, isto é, nos termos de uma distribui-
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ção idêntica de competências privadas en-
de renda potencialmente injusta. À fragili-
tre todos, independentemente de quaisquer
dade do indivíduo frente às assimetrias do
determinantes sociais, como classe, gênero
poder econômico, por sua vez, é ligada a
ou diversidade cultural. Dessa forma, o
expectativa normativa de que as contin-
modelo seria sustentado em pressuposi-
gências do mercado sejam controladas por
ções sociais ligadas à existência de condi-
meio das operações reguladoras de um Es-
ções não discriminatórias para o aprovei-
tado interventor, o qual complementa as
tamento das mesmas liberdades entre
liberdades privadas com direitos sociais à
todos, tais como o equilíbrio dos processos
saúde, à educação, ao trabalho e à habita-
econômicos organizados monetariamente,
ção. O sujeito de direito, que segundo a
a distribuição aproximadamente igual do
compreensão liberal detinha toda a liber-
poder social e o exercício em igualdade de
dade necessária à persecução de seus in-
chances das competências definidas pelo
teresses individuais, passa a figurar como
direito privado (SILVA, 2011, p. 323).
“cliente” de uma burocracia planejadora,
Habermas nos diz que o paradigma
tornando-se grande parte de suas liberda-
do Estado social nasce de críticas que res-
des de ação dependentes das atividades da
soam no interior da própria dogmática ju-
administração estatal (ibidem, p. 324).
rídica, as quais refutam tanto a imagem
Segundo Habermas, esse novo para-
social utilizada pelo modelo liberal, quan-
digma pode ser mais uma vez contestado
to sua capacidade de cumprir as preten-
em face dos instrumentos analíticos dis-
sões normativas por ele sustentadas. Com
ponibilizados por sua teoria social. Com
efeito, o modelo liberal ocultaria as hierar-
efeito, o paradigma do Estado social teria
quias sociais pautadas na desigualdade de
retirado o foco das operações anônimas
poder econômico, acabando por impedir
de um sistema econômico centrado no
possibilidades efetivas e igualitárias ao
mercado e o substituído pelas instâncias
exercício da liberdade que anunciava pro-
administrativas do sistema burocrático.
mover. Para o autor, o paradigma do Esta-
A regulação estatal teria se expandido ra-
do social vem acompanhado de uma nova
dicalmente no interior do Estado de bem-
compreensão da sociedade e da relação
-estar, cuja atividade, longe de se restrin-
entre Estado e indivíduo: surge a imagem
gir à regulação econômica, passaria a
de uma sociedade cada vez mais comple-
intervir de maneira indireta em âmbitos
xa, na qual a economia figura como uma
cada vez mais alargados do mundo da
esfera de ação funcional que expõe os ci-
vida. Importante dizer que a ampliação
dadãos a fragilidades de uma distribuição
do escopo regulatório não representa em
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si um problema para Habermas; ao con-
Mesmo em face da crítica a ambos os
trário, o combate à desigualdade material
paradigmas, o autor não defende a supres-
e a positivação de direitos sociais são de-
são das imagens sociais que habitam o dis-
fendidos como condições imprescindíveis
curso jurídico. Para ele, como vimos, toda
à garantia de “liberdades iguais” entre os
modalidade discursiva encontra-se impreg-
cidadãos. Para o autor, entretanto, os
nada dos contextos sociais dos quais emer-
avanços insuficientes no combate à desi-
ge e aos quais se dirige. Nesse sentido, a
gualdade teriam sido alcançados à custa
ilusão de um discurso jurídico neutro,
de restrições significativas da liberdade;
orientado estritamente por seus instru-
isto é, a mera realocação de recursos ma-
mentos formais de técnica decisória, ape-
teriais não seria capaz de incrementar
nas esconderia os próprios pressupostos
adequadamente a autonomia dos cida-
sociais adotados por seus operadores. Ao
dãos, mas teria o condão de gerar novos
mesmo tempo, o autor não pretende endos-
tipos de “dependência” dos beneficiários
sar uma nova imagem substantiva da socie-
dos programas assistenciais em relação
dade que pudesse substituir aquelas utili-
ao Estado. Além disso, o alargamento da
zadas pelos paradigmas anteriores. As
intervenção estatal não viria acompanha-
modificações aceleradas das sociedades
do de uma ampliação correspondente dos
contemporâneas e a capacidade de um
debates público -políticos a seu respeito.
mundo da vida pós-tradicional reelaborar
Ao contrário, a regulação social seria
constantemente seus significados transfor-
marcada por um movimento de profunda
mariam qualquer compreensão fixa da so-
burocratização, caracterizado pela subs-
ciedade em um engessamento inadequado
tituição dos debates normativos por ques-
do discurso jurídico. Segundo Habermas, a
tões técnico -administrativas e pelo afas-
teoria não tem o papel de determinar qual-
tamento dos próprios beneficiários dos
quer um dos componentes que constitui um
processos responsáveis por sua elabora-
paradigma jurídico, seja o modelo de socie-
ção. Com isso, os destinatários dos pro-
dade a orientar o raciocínio normativo, seja
gramas assistenciais veriam suas vidas
o modelo jurídico a ser a ela aplicado. Trata-
reguladas objetivamente pelo poder ad-
-se, ao contrário, de exigir uma “democrati-
ministrativo, tendente a reproduzir os
zação progressiva” de todas as interpreta-
estereótipos existentes sobre os “grupos
ções relevantes acerca do direito e da
desfavorecidos” em processos de decisão
sociedade; isto é, de submeter ao procedi-
nos quais eles mesmos não se mostram
mento democrático os laços de sentido que
devidamente
vinculam a autocompreensão social ao tipo
incluídos
1997b, p. 155 e ss.).
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(HABERMAS,
regulatório a ser aplicado a cada caso.
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8.5. Paradigma procedimental e esfera pública Habermas nos apresenta um novo paradigma jurídico chamado por ele de
mente pelo autor como uma exigência de “implementação mútua entre autonomia pública e privada” (NADAI, MATTOS, 2008; SILVA, 2008).
“paradigma procedimental” – e com isso
Nesse sentido, Habermas chama a
pretende indicar certos esforços em an-
atenção inicialmente para a existência de
damento à garantia e ao fortalecimento
propostas de reforma institucional, selecio-
do procedimento democrático (ibidem, p.
nadas entre vertentes da dogmática jurídi-
183). Tais esforços são considerados ele-
ca contemporânea que, por um lado, com-
mentos de uma contratendência, oposta à
batem os contornos burocratizantes do
autoprogramação sistêmica do Estado de
Estado de bem-estar e, por outro, recusam
direito, as quais, embora inconclusas e
explicitamente uma retomada do paradig-
ainda marginais, revelam tentativas ins-
ma liberal pelas vias do neoliberalismo
critas nas ordens jurídicas atuais de fazer
crescente. Habermas salienta uma diversi-
valer as exigências mais amplas de legiti-
dade de propostas de inclusão social no in-
midade democrática. Habermas é explíci-
terior dos procedimentos formais de toma-
to ao dizer que, apesar das críticas apre-
da de decisão, tais como a instauração de
sentadas ao Estado social, o paradigma
conselhos deliberativos regulares, meca-
procedimental não deve ser pensado
nismos de controle popular e instrumentos
como a interrupção dos processos de
de autogestão, procurando com isso redire-
“materialização do direito”, por meio dos
cionar a criação e a aplicação de direitos
quais as categorias jurídicas buscam cor-
sociais segundo possibilidades mais efeti-
rigir condições sociais assimétricas ao
vas de participação pública. Salienta tam-
exercício da cidadania entre todos. Ao
bém a existência de projetos que diminuem
contrário, o traço mais explícito do novo
as competências de criação normativa deti-
paradigma seria a tentativa de continuar
das pelas instâncias decisórias formais,
tais processos de materialização segundo
ampliando as possibilidades de decisão dos
“um nível de reflexão superior” (ibidem,
próprios cidadãos por meio da distribui-
p. 148); isto é, de permitir a transforma-
ção de direitos à “autogeração de normas”
ção das condições desiguais ao exercício
(HABERMAS, 1997b, p. 149 e ss.).
das liberdades individuais por meio de
Para Habermas, entretanto, um para-
processos democráticos inclusivos, aber-
digma procedimental concorrente não
tos à participação efetiva dos próprios
pode ser pensado apenas por meio de mu-
concernidos. Isso é traduzido normativa-
danças institucionais. Por maior que seja a
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ampliação das competências jurídicas e a
ta por padrões tradicionais e heterônomos
abertura dos processos decisórios vislum-
de interpretação, o Estado de bem-estar
bradas em tais projetos dogmáticos, as
teria consolidado em suas regulações pa-
tentativas de reforma institucional são
ternalistas as imagens depreciativas acer-
consideradas incapazes de produzir gran-
ca da “diferença entre os gêneros” e da
des efeitos caso não venham acompanha-
“divisão sexual do trabalho”, reforçando a
das de políticas transformadoras prove-
manutenção dos estereótipos sociais que
nientes da própria sociedade civil. Isto é,
atuam entre as causas da própria subordi-
de uma práxis política que se mostre apta
nação da mulher. Mostrando que a classifi-
a ocupar tais espaços institucionais e a
cação dos papéis e das diferenças entre
quebrar as constelações de poder que im-
gêneros repousa sobre camadas elementa-
primem aos processos democráticos um
res da autocompreensão cultural da socie-
funcionamento normalizante, transmitin-
dade, o feminismo contemporâneo teria
do a seu interior os impulsos renovadores
lutado pela submissão das categorizações
oriundos do debate público.
tradicionais da identidade feminina à dis-
Habermas insiste que a possibilidade
cussão pública constante, por meio da qual
de romper com a rotina de funcionamento
as próprias concernidas procuram refor-
das diferentes instâncias do poder estatal
mular reflexivamente suas categorias
exige a mediação de uma prática política
identitárias e decidir sobre o formato e a
de raízes não institucionais, mas direcio-
extensão dos direitos mais adequados a
nada às instituições. Nesse sentido, é no
seu reconhecimento jurídico.
movimento feminista contemporâneo que
Segundo Habermas, em vez de um ma-
o autor encontra o exemplo melhor acaba-
cromodelo social capaz de atribuir significa-
do do substrato político necessário ao
do a todos os casos que alcançam as arenas
novo paradigma (ibidem, p. 164 e ss.). Com
jurídicas, as lutas feministas nos revelam a
efeito, as lutas feministas das últimas dé-
necessidade de se unir o raciocínio jurídico à
cadas teriam implementado uma política
reflexão sobre as identidades e carências
deliberativa de mão dupla, voltada tanto à
particulares de grupos sociais que buscam
transformação dos comportamentos e sig-
transformar o modo como são reconhecidos
nificados culturais que definem as distin-
a partir do debate público. Apenas assim te-
ções tradicionais entre os gêneros no âm-
ríamos o rompimento com um “monopólio
bito da sociedade civil quanto à inscrição
geral das definições” e a consolidação de
dessas transformações na agenda político-
práticas plurais de autodeterminação demo-
-democrática. Na medida em que se orien-
crática, levadas a cabo por grupos que lutam
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pela criação e interpretação de direitos à luz
tor as únicas capazes de identificar os
de “suas experiências concretas de lesão à
problemas sociais com a sensibilidade e a
integridade, desfavorecimento e opressão”
linguagem específica dos próprios atingi-
(ibidem, p. 169).
dos e articulá-los em fóruns amplos, re-
Dessa maneira, a compreensão dos processos democráticos ganha em Habermas um sentido mais extenso, marcada pela combinação dos mecanismos formais de tomada de decisão – situados nas instâncias legislativas, administrativas e judiciais do aparato estatal – com dimensões subinstitucionais de deliberação pública. Com essa intenção, o autor salienta o papel fundamental desempenhado pela “esfera pública”, isto é, pelas redes de comunicação espontâneas que emergem da sociedade civil e se situam à margem do Estado. Ela se caracteriza por um conjunto de fluxos comunicativos de horizontes abertos, os quais permitem a comunicação de informações, argumentos e tomadas de posição entre públicos amplos e dispersos territorialmente. As contribuições discursivas são nela filtradas e sintetizadas, a ponto de se condensarem em opiniões públicas organizadas ao redor de temas específicos. Compondo a “periferia” dos processos democráticos, a esfera pública é descrita como uma caixa de ressonância para a percepção dos novos problemas sociais e sua transmissão aos centros institucionais de tomada de decisão.
ceptivos à pluralidade de suas vozes. Embora não possuam um caráter vinculante, os fluxos comunicativos aí acumulados mostram-se aptos a atingir o sistema burocrático-estatal na medida em que alcançam força suficiente para exercer “pressão” ou “influência” nas instituições formais de tomada de decisão, obrigando -as a inscrever suas reivindicações na agenda oficial dos problemas. Com efeito, Habermas nos diz que as contribuições da esfera pública não costumam ser espontaneamente incorporadas no funcionamento rotineiro das instituições. Sua inscrição exige lutas intensas de atores engajados – tais como movimentos sociais, organizações civis, sindicatos e intelectuais militantes –, capazes de convencer uma parcela significativa da opinião pública acerca da relevância dos temas e argumentos veiculados, gerando assim “crises de legitimidade” direcionadas à inércia das instituições. Segundo uma tal consciência de crise, os modos típicos de tratamento dos problemas pelas instituições do Estado passam a ser considerados destituídos de legitimidade democrática, mesmo que decididos em conformidade a suas competências formais, exigindo a
As deliberações levadas a cabo na
“reabertura dos processos decisórios” e a
esfera pública são consideradas pelo au-
eventual “revisão de suas decisões tendo
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em conta a persistente crítica pública”
crática não se faz meramente com a denún-
(ibidem, p. 117). Para gerá-la, o autor re-
cia de seus inúmeros insucessos. Trata-se
conhece a necessidade de se combinar os
de investigá-los como bloqueios a suas pos-
processos de argumentação com “ações
sibilidades emancipatórias reais. Estas se
espetaculares”, capazes de chamar a
fundam, como vimos, em potenciais comu-
atenção, tais como manifestações públi-
nicativos liberados com a diluição da socie-
cas, protestos em massa e atos de desobe-
dade tradicional, os quais encontram eco
diência civil:
tanto no campo das reformas institucionais quanto em práticas contestatórias oriundas
“Não é o aparelho do Estado, nem as grandes organizações ou sistemas funcionais que tomam a iniciativa de levantar esses problemas sociais. Quem os lança são intelectuais, pessoas envolvidas, profissionais radicais, ‘advogados’ autoproclamados, etc. Partindo dessa periferia, os temas dão entrada em revistas e associações interessadas, clubes, academias, grupos profissionais, universidades, etc., onde encontram tribunas, iniciativas de cidadãos e outros tipos de plataformas; em vários casos, transformam-se em núcleos de cristalização de movimentos sociais e de novas subculturas. [...] Às vezes é necessário o apoio de ações espetaculares, de protestos em massa e de longas campanhas para que os temas consigam ser escolhidos e tratados formalmente, atingindo o núcleo do sistema político e superando os programas cautelosos dos ‘velhos partidos’. [...] O certo é, no entanto, que nas esferas públicas políticas, mesmo nas que foram mais ou menos absorvidas pelo poder, as relações de forças se modificam tão logo a percepção de problemas sociais relevantes suscita uma consciência de crise na periferia” (ibidem, p. 115, 116).
da sociedade civil. Para Habermas, apesar de todas as suas mazelas, a “questão democrática” ainda não pode ser considerada superada. Vale dizer, embora constantemente ameaçada pela colonização sistêmica, ela nos revela uma notável capacidade de resistência que se manifesta tanto dentro quanto fora das instituições. A existência de lutas por democratização não é considerada pelo autor um fenômeno singular, passageiro e casual, mas sim um impulso abrangente que se desenvolve a partir de condições estruturais da modernização social: ela se alimenta não apenas das exigências de justificação discursiva típicas de um mundo da vida racionalizado, como das expectativas de legitimidade que passam a impregnar inclusive os sistemas econômico e estatal. Quando a economia e o Estado fazem uso da forma jurídica para a institucionalização consentida de seus arranjos funcionais, eles assumem, mesmo que a
Considerações finais
contragosto, a exigência de legitimidade democrática que acompanha os compo-
Habermas nos diz que uma com-
nentes de validade do direito moderno. Se-
preensão crítica da ordem jurídico-demo-
gundo o autor, a consciência dessa “dívida
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de legitimidade”, que nos apresenta os sis-
restringir a compreensão do direito ao
temas instrumentais como seus principais
sistema de normas legais (HABERMAS,
inadimplentes, motiva e fortalece a persis-
1997a, p. 66 e ss.). Sua importância atual,
tência dos movimentos democratizantes
entretanto, vai muito além do campo teó-
contemporâneos. E, diante da persistência
rico: com os processos de materialização
desses movimentos, uma compreensão do
do direito e o embate das imagens sociais
direito que ignore suas exigências de legiti-
que compõem os paradigmas jurídicos, a
midade democrática mostra-se tão limitada
reflexão sociológica passou a ser incorpo-
quanto a leitura que as supõe plenamente
rada ao raciocínio dogmático e, assim, a
cumpridas.
tomar parte na própria prática de funda-
Habermas assume que sua obra não
mentação e aplicação de direitos. Isso
pretende oferecer um arcabouço com-
não significa propriamente que os opera-
preensivo fechado, definitivo, acerca da
dores do direito utilizem em suas deci-
ordem jurídica. Ao contrário, ela busca
sões referências sociológicas explícitas
disponibilizar certas contribuições teóri-
(ainda que isso de fato aconteça em casos
cas que auxiliem o cumprimento das tare-
isolados), mas que seu campo profissional
fas de avaliação crítica do Estado demo-
tenha incorporado “uma relação interdis-
crático de direito. Tais tarefas exigem
ciplinar com as ciências sociais”, exigindo
esforços contínuos e sensíveis às peculia-
que a busca pelas respostas jurídicas
ridades que dão forma às muitas facetas
“mais corretas” envolvam uma compreen-
de uma ordem jurídica concreta. Exigem,
são adequada acerca da complexidade so-
do mesmo modo, a cooperação de diferen-
cial às quais se dirige.
tes disciplinas dedicadas a sua compreensão. Entre elas, a sociologia do direito cumpre um papel fundamental: seja como um estrato importante a qualquer teoria social, seja na constituição de uma disciplina jurídico-sociológica particular, a sociologia do direito vem sempre apresentar ao fenômeno jurídico um olhar diverso ao raciocínio estritamente normativo. Para Habermas, sua orientação empírica foi responsável por um “desencantamento” radical de tendências históricas que buscavam
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“
Hoje em dia, a doutrina e a prática do direito tomaram consciência de que existe uma teoria social que serve como pano de fundo. E o exercício da justiça não pode mais permanecer alheio ao seu modelo social. Uma vez que a compreensão paradigmática do direito não pode mais ignorar o saber orientador que funciona de modo latente, tem que desafiá-lo para uma justificação autocrítica. Após esse lance, a própria doutrina não pode mais evadir-se da questão acerca do paradigma ‘correto’. [...] E o paradigma procurado tem que adequar-se à compreensão mais apropriada das sociedades complexas” (HABERMAS, 1997b, p. 129).
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Bibliografia ARAÚJO, L. B. L. Religião e modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996. HABERMAS, J. Direito e democracia : entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. v. 1. ________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. v. 2. ________. A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito. In: HABERMAS, J. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2008. ________. Teoria do agir comunicativo. Sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes, 2012. v. 2. NOBRE, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. ________. Introdução. In: NOBRE, M.; TERRA, R. Direito e democracia. Um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008.
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153
NADAI, B.; MATTOS, P. T. Paradigmas de direito: compreensão e limites. In: NOBRE, M.; TERRA, R. Direito e democracia. Um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. REPA, L. Jürgen Habermas e o modelo reconstrutivo de teoria crítica. In: NOBRE, M. Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008. SILVA, F. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, M.; TERRA, R. Direito e democracia. Um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. ________. Entre potenciais e bloqueios comunicativos: Habermas e a crítica do Estado democrático de direito. Caderno CRH. Salvador: v. 24, n. 62, maio/ago. 2011. SOUZA, J. Patologias da modernidade. Um diálogo entre Habermas e Weber. São Paulo: Annablume, 1997.
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Parte II Direito, Sociedade e Estado: temas atuais
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9 Pluralismo Jurídico Principais ideias e desafios
Marcus Faro de Castro
9.1. Introdução No famoso Livro XI de sua obra tornada clássica, De l’esprit des lois, Montesquieu observa que nenhuma palavra recebeu significados mais contrastantes do que
rasse uma consequência da monarquia. Montesquieu conclui que, de um modo geral, cada um tende a chamar liberdade aquilo que é conforme a seus costumes e inclinações1.
a de “liberdade”. Como assinala o autor, al-
O comentário de Montesquieu ajuda a
guns entenderam por essa palavra a facili-
pôr em relevo o que está no cerne das dis-
dade de depor um governante tirânico. Ou-
cussões sobre “pluralismo jurídico”. As
tros, a facilidade de eleger a quem se deve
concepções sobre o que é valorizado mo-
obedecer. Outros, ainda, identificaram-na
ralmente, refletindo-se no que se conside-
com o direito de portar armas e praticar a
ra ser “justo” ou “bom” para a vida de cada
violência, ou com o privilégio de ser gover-
um, sempre variaram ao longo da história
nado por um homem de sua própria nação,
e entre diferentes espaços, culturas e
ou ainda com o uso de ostentar barbas lon-
agrupamentos sociais. Diante disso, não
gas. Segundo Montesquieu, houve quem
parece fazer muito sentido que o ensino
vinculasse a palavra “liberdade” ao regime republicano, mas também quem a conside-
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1.
Montesquieu [1748] (1964, p. 585).
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Manual de Sociologia Jurídica
jurídico e seu objeto – a saber, as normas e
O presente capítulo explorará o
instituições que incorporam as ideias so-
tema do pluralismo jurídico. No item 9.2,
bre o direito, tais como contrato, proprie-
será discutido brevemente como o pro-
dade, família, responsabilidade civil, tri-
cesso de unificação do direito ocorreu na
buto, crime etc. – espelhem um conjunto
Europa medieval, suscitando posterior-
único e muito restrito de formas intelec-
mente o aparecimento de ambientes mar-
tualmente elaboradas por alguns juristas,
cados pelo fenômeno do pluralismo jurí-
quase todas convergentes no sentido de
dico e seus desdobramentos. No item 9.3,
consagrar determinadas práticas sociais e
serão expostas algumas das principais
um tipo de ordem compatível com elas.
ideias abarcadas no processo de forma-
A observação do mundo, por mais ingênua que seja, revela, de fato, que a diversidade de concepções sobre o “bem”, o “correto”, o “desejável”, é enorme, e até mesmo potencialmente infinita. Por que, então, o direito ensinado nas universidades limita-se a insistir sobre um repertório muito limitado de regras, práticas e princípios? Por que o julgamento de uma demanda judicial
ção de argumentos relevantes acerca do “pluralismo jurídico” e serão indicadas algumas dificuldades conceituais surgidas dos debates sobre o tema. Recentes discussões sobre a dimensão global do pluralismo jurídico e seu interesse para a cooperação econômica internacional serão abordados no item 9.4. O item 9.5 concluirá com algumas observações finais.
não pode se dar, em parte ao menos, com base em recitações de poemas, no lugar da leitura de petições? Por que lendas religiosas ou artigos de fé não podem ser, em al-
9.2. A ascensão do monismo no direito ocidental e o surgimento do pluralismo jurídico
guns casos, a fonte de limitações jurídicas
A expressão “pluralismo jurídico” de-
inderrogáveis da propriedade e de certos
signa a existência simultânea e em um
contratos? Por que gerações futuras, en-
mesmo ambiente de mais de um conjunto
quanto projeções de indivíduos vivos no
articulado de regras, princípios e institui-
presente, não podem ser consideradas su-
ções com base nos quais a ordem social é
jeitos de direito? E por que a realidade, tal
construída e transformada. Porém, a ex-
como determinada pelos processos estatais
pressão tornou-se corrente e ativamente
e seu “direito”, é difícil de ser mudada?
debatida em meios do ensino jurídico ape-
Questionamentos como esses encontram-
nas na segunda metade do século XX, e
-se implícitos ou explícitos nos debates so-
constituiu, em grande parte, uma reação à
bre o pluralismo jurídico.
predominância de uma visão “monista” (e
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não “pluralista”) do direito. Será conve-
cer, especialmente a partir do século XII, o
niente, portanto, indicar como o monismo
acentuado interesse de certos atores polí-
surgiu no direito ocidental.
ticos no resgate do direito romano, no con-
É um fato conhecido que os diferentes povos ao longo da história e em distin-
tinente, e a confecção de um direito monárquico, na Inglaterra.
tas regiões criaram e cultivaram diferen-
No caso de Estados territoriais em
tes línguas, religiões, visões de mundo,
formação, como a França e a Inglaterra, a
técnicas, modos de vida e tradições. Qual-
elaboração do direito entremeou-se com a
quer representação gráfica da geografia
própria formação do Estado. Mas, no início
humana de alguma região, ou mesmo do
do segundo milênio da Era Cristã, diversas
mundo, em qualquer recorte sincrônico,
forças na Europa passaram a disputar en-
demonstra a existência de realidades
tre si a possibilidade de afirmar sua hege-
imensamente mais complexas do que as
monia política: a Igreja, o Sacro Impera-
aparentes nos mapas mais convencionais,
dor, os príncipes territoriais, as cidades e
que registram apenas a existência de ju-
ligas de cidades. Não se deve menosprezar
risdições de Estados territoriais sobera-
a capacidade que cada um desses atores
nos. Estas últimas são denotativas unica-
tinha de, em diferentes momentos e con-
mente do poder de comando e controle,
junturas, avançar em direção à concretiza-
exercido por Estados, sobre pessoas, es-
ção de suas ambições. A realização de
paços e processos existentes em territó-
alianças políticas, o fornecimento de víve-
rios delimitados. Mas o que se cristaliza,
res, a angariação e administração de leal-
na forma de tais territórios e da realidade
dades com base em liturgias políticas e/ou
objetiva presa a eles, tem o potencial de se
religiosas, a realização de guerras e cam-
modificar muito, com base no que a carto-
panhas militares, a provisão de meios fi-
grafia puramente político -territorial não
nanceiros – tudo isto fazia parte dos re-
mostra.
cursos empregados por esses atores na
Ora, as formas e os conteúdos das re-
busca da satisfação de suas aspirações.2 A
lações humanas adquiriram uma configu-
esses recursos, acrescentou-se a elabora-
ração específica nas ideias elaboradas por
ção de formas intelectuais e instituições
juristas europeus ao longo da Idade Média
jurídicas.
e projetadas nas instituições daí resultan-
Retrospectivamente, pode-se perce-
tes. Após a queda do Império Romano do
ber a ocorrência, nesse ambiente, de uma
Ocidente em 476 d.C., diversos processos se puseram em marcha de modo a favore-
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2.
Cf. Tilly (1992) e Braudel (1979, p. 99 -200).
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Manual de Sociologia Jurídica
condição de pluralismo jurídico. Diversos
resceu na Europa ocidental foram: (i) a fi-
grupos sociais submetiam-se a regras lo-
losofia do direito natural moderno (ou jus-
cais que diferiam de uma comunidade a
racionalismo), de caráter universalista; e
outra. Tratava-se de leis, costumes e atos
(ii) o princípio cujus regio, eius religio.
de autoridade, tais como conselhos muni-
De fato, o jusracionalismo tornou-se,
cipais, príncipes, bispos, barões, cavalei-
de longe, a principal doutrina da filosofia
ros andantes, que, embora quase sempre
política nos séculos XVII e XVIII3. Os prin-
estivessem sujeitos ao peso da influência
cípios dessa doutrina pregavam a existên-
da visão de mundo articulada pelo cristia-
cia de direitos naturais, que são os mes-
nismo, eram essencialmente de caráter lo-
mos para todos os indivíduos. Tais direitos,
cal e/ou pessoal. O trabalho dos pós-
ademais, eram considerados inatos em to-
-glosadores na elaboração do chamado jus
dos os indivíduos. Ao contrário do que
commune, no continente, distinguiu-se
afirmavam filósofos da antiguidade clássi-
pelo esforço de tentar conciliar diferenças
ca, para os quais apenas alguns indivíduos
jurídicas presentes entre diversas locali-
podiam ser virtuosos4, os filósofos do di-
dades, comunidades, tipos de autoridade e
reito natural moderno afirmavam a igual-
grupos sociais.
dade de todos os indivíduos, fazendo desa-
Nesse contexto, a ação dos grupos mais poderosos – príncipes territoriais aliados com cidades (burgueses) – deu-se no sentido de prestigiar a elaboração de
parecer, no plano da ideologia, e, portanto, no âmbito do discurso que justificava a existência das instituições, as diferenças entre eles.
um direito unificado e unificante, que, a
O esforço intelectual aí se deu no sen-
partir dos séculos XVII e XVIII, suplantou
tido de criar uma ideia completamente abs-
na prática o pluralismo jurídico dos sécu-
trata de indivíduo, mas que se projetasse
los anteriores. Com isso, o direito medieval
em certas instituições jurídicas, tais como a
romanístico e secular sobrepujou outros
propriedade individual e a liberdade indivi-
direitos no continente. E, na Inglaterra, o
dual de contratar. As diferenças entre iden-
direito do rei, produzido por seus juízes
tidades culturais, etárias, sexuais, étnicas,
em Westminster, sufocou completamente o prestígio das cortes senhoriais (mano-
3.
rial courts), tornando-se, assim, o direito
4.
comum do país (the commom law of the land). Os dois pilares jurídicos sobre os quais o direito unificado e unificante flo-
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Significativamente, a grande exceção à predominância da orientação jusracionalista, no século XVIII, foi Montesquieu. Platão e Aristóteles não afirmaram o ideal de uma sociedade igualitária, isto é, de uma sociedade que devesse ser organizada com base no princípio de igualdade entre todos os indivíduos. Apenas a confluência entre o estoicismo e o cristianismo, na Idade Média, conduzirá à visão individualista da ordem social e política.
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Pluralismo Jurídico
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de classe, casta, nacionalidade etc. e suas
normas vigentes sob sua autoridade, um
consequências práticas foram completa-
credo religioso distinto daquele professa-
mente “apagadas” na doutrina filosófica e
do pelos católicos. O princípio tornou-se,
no discurso técnico especializado dos juris-
assim, a pedra angular da soberania terri-
tas. Mas, ao mesmo tempo, grotescas e in-
torial, a autonomia externa, que passou a
congruentes reminiscências de “diferen-
caracterizar a configuração institucional
ças” entre pessoas tomaram as formas de
dos Estados modernos em suas relações
noções jurídicas hierarquizantes, mas ideo-
recíprocas5.
logicamente maquiadas, tais como: “nacio-
A formação do “monismo jurídico”
nal” versus “estrangeiro”; e civilmente “ca-
ganhou apoio, também, do influente traba-
paz” (o homem branco e proprietário)
lho de Savigny, no século XIX. Este autor
versus “incapaz” (todos os outros, espe-
se pôs a braços com o desafio de elaborar
cialmente as mulheres, os negros, as crian-
ideias que dessem sustentação à defesa e à
ças, os silvícolas, os trabalhadores, os sujei-
institucionalização de um direito único,
tos a enfermidades ou condições especiais,
um direito “nacional”, para a Alemanha da
físicas ou mentais). Todas essas elabora-
virada do século XVIII para o XIX. Esta
ções representaram, na prática, a consagra-
era uma Alemanha ainda legatária de uma
ção da família patriarcal e da propriedade
grande multiplicidade de jurisdições exis-
(tipicamente imóvel) administrada pelo pa-
tentes sob o Sacro Império Romano-Ger-
triarca, geradora de uma renda que fosse o
mânico. Entre as ideias elaboradas por
mais segura possível.
Savigny, estava a referência à “consciência
Por sua vez, o princípio cujus regio,
comum do povo”, que, ao ver do autor, era
eius religio, embora houvesse sido invo-
formada espontaneamente ao longo da
cado na Paz de Augsburgo (1555), somen-
história6. Esta “consciência comum” foi
te gerou um consenso político mais signifi-
considerada por Savigny como a fonte do
cativo quase um século mais tarde, quando
direito.
foi inscrito na Paz de Vestfália (1648). A
Porém, ao mesmo tempo, Savigny
tradução da frase latina é “quem tem a re-
distinguiu entre o que ele chamou de “ele-
gião tem a religião”. Seu significado práti-
mento político” do direito (a ligação entre
co estava em que o princípio passava a coi-
direito e a vida do povo) e o seu “elemento
bir intervenções, por parte de forças
técnico” (a “ciência do direito”, elaborada
externas (o Sacro Imperador), em territórios comandados por príncipes que escolhessem, como fundamento ideológico das
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5. 6.
Castro (2005, p. 102). Savigny [1814] (2006, p. 55).
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162
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por juristas). Portanto, para Savigny, o
dos revolucionários7. No século XIX, as
acesso intelectual consciente ao direito e à
guerras napoleônicas e, em seguida, a
sua organização normativa estaria com os
onda de colonização da África e da Ásia
juristas, não com o povo, nem com os repre-
foram os processos de propagação do di-
sentantes do povo nos parlamentos, que
reito unificante de base romanística, e
confeccionam as leis. Com isso, Savigny
também do common law inglês, da era vi-
abriu caminho para que o direito da Ale-
toriana, para diversas regiões do mundo.
manha passasse a corresponder a certas
A tendência monista foi reforçada,
noções abstratas e unificantes, que foram
ainda, pela elaboração, desde o século XVII,
destiladas como “conceitos jurídicos” por
de um direito “internacional”. O conjunto
seus seguidores, tais como Friedrich Pu-
de ideias que formou o campo doutrinário
chta, Bernard Windscheid e outros. Dessa
do Direito Internacional Público tratava,
“jurisprudência dos conceitos” (Begriffs-
sem competição significativa de outros dis-
jurisprudenz) derivou, ainda, a elabora-
cursos especializados, das relações entre
ção de uma “teoria geral do direito”, que
Estados territoriais soberanos8, deixando
deu mais energias ao impulso unificante
de lado inúmeras outras relações (entre
das ideias e instituições jurídicas elabora-
pessoas, organizações, comunidades, famí-
das e construídas entre os séculos XVII e
lias, grupos religiosos, associações, cidades
XIX na Europa ocidental.
etc.). No século XIX, a elaboração de for-
Portanto, um direito de origem euro-
mas intelectuais para esse direito unifican-
peia e base “monista” – também identifica-
te passou arrogantemente a se conceber
da como uma orientação “centralista” e
como um empreendimento benevolente e
“estatalista”, por oposição a conjuntos de
“civilizador”9 e seguiu as pegadas da cons-
normas locais, “descentralizados” e “não
trução das formas jurídicas do direito civil
estatais” – tornou-se hegemônico na Euro-
de orientação monista. Assim, Estado/indi-
pa e foi daí exportado para várias partes
víduo (ou sujeito de direito), tratado/con-
do mundo, entre os séculos XVIII e XX. No
trato, soberania territorial/propriedade de-
século XVIII, o direito do common law in-
signam isomorfismos dos dois campos do
glês foi exportado para a América, onde o
direito: o civil e o internacional clássico,
tratado de William Blackstone (Commentaries on the laws of England) tornou-se
7.
a referência básica inicial para a elaboração do direito nas colônias da Nova Inglaterra e até mesmo do direito da geração
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8. 9.
Cf. Horwitz (1977, p. 4 -16). Horwitz esclarece que o jusnaturalismo impregnado no common law britânico setecentista começará a ser rejeitado, nos Estados Unidos da América, na década de 1780. Castro (2005, p. 105 -115). Koskenniemi (2001).
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ambos de base romanista. O chamado Di-
meio do direito a populações locais”10. O
reito Internacional Privado foi elaborado
interesse dos colonizadores era sobretudo
também a partir do século XVII e comple-
extrativo. Isto favoreceu a presença, em
mentava convenientemente o Direito Inter-
várias partes do mundo, de “direitos” dife-
nacional Público, na medida em que organi-
rentes, existindo lado a lado, frequente-
zava regras e princípios destinados a
mente com superposições parciais e diver-
resolver, sem alterações de estruturas insti-
sos tipos de interação, ora mais, ora menos,
tucionais já definidas pelos demais campos
conflituosa. A partir daí, passou a ser pos-
doutrinários do sistema monista, proble-
sível contrastar claramente o direito “esta-
mas de escolha de jurisdições territoriais a
tal” metropolitano, de formação e orienta-
que deveriam se submeter questões deriva-
ção monista e caráter centralizador, e
das das relações transfronteiriças entre en-
outros direitos, mais ligados à vida e às
tidades não estatais (empresas, associa-
tradições das sociedades locais, submeti-
ções, indivíduos).
das ao jugo dos colonizadores.
O monismo jurídico, derivado dos
Com variações, o reconhecimento de
processos acima descritos, obviamente se
pluralidades de ordens normativas refe-
estabeleceu à custa de ações radicalmente
rentes a “outros” direitos de natureza local
opressoras de grupos que preferiam ou-
e descentralizada também ocorreu por
tros conjuntos de regras e instituições,
parte de potências colonizadoras de fora
existentes nas diversas regiões do mundo.
da Europa Ocidental. Este foi o caso dos
Na Europa ocidental, os outros direitos
“antigos impérios multinacionais”, tais
(costumes locais), distintos do direito es-
como os impérios Otomano, Austro-Hún-
tatal, foram praticamente suprimidos,
garo, Russo e Chinês11.
subsistindo apenas em versões fracas e subalternas, em certos enclaves culturais, em regiões como a Catalunha.
Em resumo, na Europa Ocidental, ao longo do tempo, diversas identidades foram efetivamente destruídas ou marginaliza-
Em outras partes do mundo, sujeitas
das, frequentemente mediante ações vio-
à colonização europeia, houve menos ne-
lentas (guerras), concomitantemente com
cessidade e interesse de destruir os costu-
a afirmação de um direito de feição monis-
mes e instituições locais. Conforme expli-
ta. De qualquer modo, a despeito da afirma-
cita Tamanaha, “na maioria dos casos, não
ção dos movimentos protestantes, às vezes
era necessário para os interesses coloniais, nem viável na prática, nem economicamente eficiente, estender o domínio por
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10. 11.
Tamanaha (2008, p. 382). Idem, p. 385.
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radicalmente opostos aos católicos, havia ali o fundo cultural e ideológico comum do cristianismo. Nas Américas, as populações autóctones foram mortas, restringidas, perseguidas, marginalizadas e submetidas a processos de catequização e confinamento a reservas. No Brasil, a importação de escravos negros, desvinculados à força de suas comunidades na África, segregou esta massa de trabalhadores nas senzalas e, após a abolição, nas favelas. Como se sabe, algumas comunidades rurais de ex-escravos se formaram em regiões isoladas e adquiriram identidades específicas. Tais comunidades ficaram conhecidas genericamente como “quilombos”. Em tudo isso, é perceptível um movimento em que um direito estatal, burocrático e centralista cresce e se estabelece definitivamente na Europa ocidental, em detrimento de outras ordens normativas que lá existiam, desde as que compunham o chamado folklaw, até os direitos das cidades, principados, corporações e outros. Em seguida, esse direito monista, oficial e centralista entra em contato com outras normatividades fora da Europa, causando o surgimento de situações variadas de pluralismo jurídico, em que diversos direitos de comunidades locais e descentralizadas passam a coexistir em múltiplas regiões com o
9.3. A evolução do debate acadêmico: principais ideias e dificuldades conceituais Após oferecer o quadro genérico, descritivo da ascensão do monismo e da subsequente formação do “pluralismo jurídico”, especialmente resultante da experiência da colonização – sobretudo, mas não exclusivamente, a colonização europeia da América, da África e da Ásia –, será importante indicar os delineamentos gerais da evolução do debate acadêmico sobre o tema. Nos parágrafos a seguir, serão indicados os principais conteúdos do processo de formação de argumentos relevantes acerca do “pluralismo jurídico” e serão apontados os principais desafios que os trabalhos analíticos e debates conceituais têm suscitado. A presença simultânea de “direitos” distintos num mesmo ambiente passou a chamar a atenção de acadêmicos, especialmente a partir da formação e da evolução das ciências sociais, sobretudo a sociologia e a antropologia, no final do século XIX e inícios do século XX. Com efeito, os antropólogos no início do século XX foram capazes de convincentemente argumentar que “outras” sociedades, distintas da europeia e de seus padrões culturais, também tinham seus “direitos”.
direito centralista, de origem europeia. E a
O estudo seminal de Bronislaw Mali-
capacidade desse direito oficial e monista
nowski sobre o “direito” dos trobriandeses,
de excluir e subjugar permaneceu, ao longo
publicado originalmente em 1926, tornou-
de todo o processo, como uma constante.
-se uma referência clássica na literatura so-
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bre pluralismo jurídico12. Malinowski refu-
tradição monista. Isto ocorreu, de início,
tou teses como a de que os padrões de
em especial por meio de estudos do direito
conduta dos selvagens responderiam a
em situações coloniais e pós-coloniais. As-
impulsos caracterizáveis como “desejos
sim, até os anos 1970, a ex pressão “plura-
animalescos do pagão”, ou ainda “emoção
lismo jurídico” referia-se essencialmente
desenfreada [e] excessos irrestritos”. Mali-
ao reconhecimento ou à incorporação de
nowski demonstrou, em contrário a tais te-
direitos locais descentralizados por direi-
ses, que muitos comportamentos dos tro-
tos estatais e metropolitanos: por exem-
briandeses resultavam de “um direito firme
plo, a incorporação dos direitos hindu e
e uma tradição rigorosa”. Além disso, Mali-
muçulmano pelo direito britânico na Ín-
nowski derrubou argumentos de que, nas
dia, ou as relações de reconhecimento,
sociedades primitivas, há uma necessária
superposição ou absorção do direito dos
dominação do indivíduo pela coletividade
Kapauku pelo direito holandês na Nova
e demonstrou que existem, em tais socie-
Guiné14.
dades, motivações individuais – e não im-
A partir dos anos 1970 e 1980, contu-
posições grupais – para agir. Com efeito,
do, houve uma evolução nos argumentos.
Malinowski verificou que existia entre os
Primeiro, as análises passaram a questio-
trobriandeses algo como um “direito civil”
nar situações de subordinação dos direitos
que era “muitíssimo refinado” (extremely
locais ao direito, “estatal” ou “oficial”. Isto
well developed), com regras relacionadas
significava valorizar a percepção de que di-
predominantemente a interesses dos indi-
reitos locais e descentralizados muitas ve-
víduos, não sendo apenas ou exclusivamen-
zes são semiautônomos, e por isso não são
te o assunto de um grupo13.
necessariamente absorvidos, ou de algum
A percepção, trazida pela antropolo-
modo contidos ou limitados, pelo direito es-
gia e pela sociologia, de que existem “di-
tatal. Em segundo lugar, autores passaram
reitos” ou ordens normativas comparáveis,
a argumentar que a interação entre ordens
mas não iguais, ao direito, estatal, centra-
normativas pode ser bidirecional, cada uma
lizante, típico da construção político-ins-
influenciando e modificando a outra ou ou-
titucional das sociedades da Europa oci-
tras, em um processo de mútua influência.
dental, evoluiu para se tornar o caminho
Assim, não se encarava mais com estranhe-
do desenvolvimento de argumentos críti-
za a possibilidade de que as regras, princí-
cos em relação às concepções jurídicas da
pios e instituições do “direito” de uma co-
12. 13.
Malinowski (1926). Malinowski (1926, p. 71-75).
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14.
Cf. Tamanaha (2008, p. 390) e Berman (2012, p. 45-47).
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munidade local na África ou na Ásia
tinção entre o direito de povos como os tro-
poderiam eficazmente influenciar o desen-
briandeses e o aspecto obrigacional de to-
volvimento de um direito “oficial”, metropo-
dos os outros tipos de relações existentes
litano. Em terceiro lugar, pesquisadores
na vida em sociedade18.
passaram também a caracterizar situações
As discussões sobre o pluralismo ju-
de pluralismo de modo a admitir uma varie-
rídico logo animaram professores de direi-
dade muito ampla de direitos não oficiais
to mundo afora a empregar as novas ideias
ou não estatais. Consequentemente, pas-
e percepções como meio de criticar a no-
sou a ser concebível a ocorrência de situa-
ção de que o conceito de direito corres-
ções de pluralismo jurídico em contextos
ponde a normas postas pelo Estado. Em
não coloniais e não rurais, mas sim plena-
outras palavras, os professores passaram a
mente urbanos, metropolitanos e ociden-
valer-se das pesquisas e ideias do pluralis-
tais. Com isto, vários autores acabaram
mo jurídico para criticar concepções for-
rejeitando completamente a ideia de que
malistas e “positivistas” de direito. Nos
apenas o direito “estatal” deve ser conside-
países de tradição anglo -saxã, formula-
rado “direito” .
ções juspositivistas derivadas da chamada
15
A evolução desses argumentos teve
“jurisprudência analítica” de John Austin
uma inflexão importante na defesa, reali-
e H. L. A. Hart foram objeto de crítica. Nos
zada por John Griffiths, em seu influente
ambientes acadêmicos mais ligados à tra-
artigo de 198616, da noção de “campo social
dição do direito europeu continental (ro-
semiautônomo”, elaborada nos anos 1970
mano-germânico), o alvo principal das crí-
pela antropóloga Sally Falk Moore17. A ideia
ticas foram sobretudo as ideias de Hans
era que essa noção (campo social semiautônomo) seria uma alternativa às concepções derivadas da abordagem de Malinowski,
Kelsen. Barzilai caracterizou com propriedade este aspecto da formação das ideias acadêmicas sobre pluralismo jurídico:
que Moore considerava inadequada por ser
“O surgimento do pluralismo jurídico consti-
excessivamente ampla, dificultando a dis-
tuiu uma revolta [...] contra tentativas oci15.
16. 17.
Cf. Berman (2012, p. 47). Exemplos de estudos de pluralismo jurídico em ambiente urbano contemporâneo podem ser encontrados em Grillo (2009). Para uma discussão sobre a diferenciação entre o pluralismo “clássico”, que aborda cenários coloniais e pós-coloniais, e o “novo” pluralismo, que trata de múltiplas situações em contextos não coloniais, ver Merry (1988). Griffiths (1986). Ver Moore (2000, p. 54 -81).
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dentais, que – ao contrário do que fizeram o judaísmo rabínico (fundamentalmente até o século XVIII), a Shari’a islâmica e o budismo – procurou separar direito, política e religião.
18.
Cf. Tamanaha (2008, p. 391-392).
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167
Além disso, foi uma revolta contra tentativas
formal, organizado com significativa parti-
liberais de ‘purificar’ o direito de conteúdos
cipação da sociedade local. Esse “direito
políticos e de constrangimentos derivados da
de Pasárgada” representaria, na visão do
existência das classes sociais. O pluralismo
autor, uma alternativa de organização jurí-
jurídico foi uma revolta contra um projeto que
dica emancipatória diante do direito fe-
havia resultado [no direito da] jurisprudência
chado, burocrático e opressor do Estado21.
analítica positivista”19.
Ainda no Brasil, a crítica ao positivismo jurídico, trazida com o trabalho
Para Barzilai, o pensamento jurídico
“pluralista” de Santos, acabou atraindo (e
positivista foi o resultado de influências de
confluindo com) uma crítica derivada di-
vários autores, incluindo, entre os mais co-
retamente do marxismo, consubstancia-
nhecidos, Austin, Hart e Kelsen.
da na obra do jurista Roberto Lyra Filho.
Seguindo esta tendência de crítica ao
Este autor entendia que o direito positivo
positivismo jurídico, no Brasil, onde a jus-
(estatal) “é entortado pelos interesses
tificação teórica do direito oficial se fun-
classísticos” 22. Mediante uma argumenta-
damentava muito frequentemente no pen-
ção reminiscente de ideias gramscianas,
samento de Kelsen, o tema do pluralismo
adotou uma visão da sociedade e do direi-
jurídico foi impulsionado por duas princi-
to segundo a qual diversos “grupos em
pais contribuições. O primeiro impulso ad-
conflito [...] torna[m] precário e de legitimi-
veio da tese de doutorado do sociólogo
dade muito discutível o bloco dominante de
português Boaventura de Sousa Santos,
normas, sobretudo porque as ‘subculturas’
defendida em 1973 na Universidade de
engendram contrainstituições” 23.
Yale20. Nessa contribuição inicial, Santos
Lyra Filho considerava ultrapassadas
apoiou-se em teorias da argumentação ju-
as discussões que aceitavam a validade da
rídica e em pressupostos derivados da so-
contraposição entre direito natural e posi-
ciologia marxista para pesquisar o discur-
tivismo. Para ele, “[s]omente uma nova
so jurídico praticado em uma favela
teoria realmente dialética evita a queda
carioca, que ele denominou de Pasárgada.
numa das pontas da antítese”24. Na prática,
Para o autor, o discurso jurídico praticado
isto se relacionava à proposta de promover
na favela constituía um direito não oficial,
“um ‘uso alternativo’ do direito positivo e
reconhecido e prezado pela comunidade. Tratar-se-ia de um direito aberto, pouco
21. 22.
19. 20.
Barzilai (2008, p. 400). Cf. Carvalho (2010).
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23. 24.
Cf. idem, p. 16 -17. Lyra Filho (1995, p. 8). A primeira edição desta obra é de 1982. Lyra Filho (1995, p. 59). Lyra Filho (1995, p. 26).
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Manual de Sociologia Jurídica
168
estatal [...] [para] explorar contradições
ticamente a capacidade de resistência e de
[desse direito] em proveito não da classe e
articulação da sociedade civil”30. Nesse
grupos dominantes mas dos espoliados e
sentido, a ideia de pluralismo jurídico, se-
oprimidos” . Nesse sentido, defendeu que
gundo este autor, deve contribuir para
o direito deve ser informado pela ideia um
promover “uma cultura jurídica contra-
tanto genérica de “humanismo dialético” .
-hegemônica, marcada pelo pluralismo
Subsequentemente, diversos trabalhos que
comunitário-participativo e pela legitimi-
procuram explicitamente seguir a confluên-
dade construída [...] mediante as práticas
cia dos argumentos de Santos e Lyra Filho,
internalizadas por uma extensa gama de
e daí derivar frutos, escolheram o nome
novos atores sociais”31.
25
26
“Direito Achado na Rua” para designar a sua orientação27. O segundo principal impulso da crítica pluralista ao positivismo no Brasil ori-
Wolkmer considera o pluralismo jurídico uma ferramenta adequada a um projeto de emancipação de grupos oprimidos na América Latina. Em suas palavras,
ginou-se do trabalho de Antonio Carlos [A] razão de ser de uma forma teórica e “prática de Direito mais comprometida com
Wolkmer, destacando-se a sua tese de doutorado sobre o tema, defendida no início
nossa sociedade latino-americana está na transgressão ao convencional instituído e injusto, na possibilidade de se revelar como recurso estratégico de resistência a diversas modalidades de colonialismos (acadêmico, cultural e institucional) e de contribuir, responsavelmente, para a construção criativa e empírica de uma sociedade mais comprometida com valores nascidos de práticas sociais emancipadoras”32.
da década de 1990, na Universidade Federal de Santa Catarina 28. Wolkmer também adota argumentos de feição gramsciana, defendendo que a ideia de pluralismo jurídico deve ser usada “como estratégia contra-hegemônica no redimensionamento da teoria jurídica” 29. Para Wolkmer, o pluralismo jurídico
Como se vê, as elaborações sobre o
alinha-se com o esforço de “repensar poli-
pluralismo jurídico no Brasil são acentua25. 26.
27.
28. 29.
Lyra Filho (1995, p. 45). Para uma discussão das ideias de Lyra Filho sob o prisma do pluralismo jurídico, ver WOLKMER (2012, p. 138 -143). Ver também COSTA (s/d). Cf. Wolkmer (2012, p. 141-143). Boa parte dos trabalhos desta orientação volta-se para a capacitação de assessores jurídicos populares. A abordagem, segundo WOLKMER (idem, p. 142), pretende “estabelecer a legitimidade jurídica de movimentos populares”. Cf. Carvalho (2010, p. 27). Wolkmer (2012, p. 251-260).
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damente convergentes entre si. Contudo, assim como ocorreu no âmbito da literatura sobre pluralismo jurídico como um todo, alguns dos principais argumentos sobre o 30. 31. 32.
Idem, p. 252. Idem, p. 260. Idem, p. 263.
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tema suscitaram críticas, às vezes oriun-
Uma segunda crítica, que se imbrica
das de simpatizantes do ideal de emanci-
com a primeira, refere-se ao fato de que os
pação realizada por meio de uma crítica ao
autores favoráveis ao pluralismo não che-
monismo e ao positivismo.
gam a propor um conceito claro do que en-
De fato, enquanto crítica ao juspositi-
tendem por “direito”, quando descartam a
vismo e a argumentos de filosofia do direi-
visão monista. Não há, na literatura, uma
to que podem oferecer fundamentos para
definição clara de “direito”, aceita unifor-
a existência de instituições jurídicas ad-
memente pelos defensores do pluralismo.
ministradas sob a orientação monista, o
Como determinar se uma dada conduta ou
pluralismo jurídico permanece sujeito, ele
procedimento constitui parte de um direi-
mesmo, a críticas que não podem ser des-
to? Afinal, a sustentação radical do plura-
prezadas. Uma primeira crítica decorre do
lismo implica em que algo diferente do que
fato de que “pluralismo jurídico” pode se
está sendo afirmado como norma não pode
referir a uma situação de fato (é o que se
ser invalidado. E, se nenhuma norma pode
designa por social fact legal pluralism),
ser invalidada, qualquer norma é válida,
ou, alternativamente, ao caráter normativo de argumentos favoráveis ao pluralismo (normative legal pluralism). No primeiro caso, a investigação empírica constata o fato de uma pluralidade de ordens normativas; no segundo, o pesquisador parte do pressuposto normativo de que a ausência da pluralidade é em si um mal. Neste últi-
inclusive uma que prescreva o contrário de outra, inicialmente considerada. Consequentemente, nenhuma norma é realmente obrigatória, isto é, nenhuma pode existir enquanto tal. A confusão gerada em grande parte deriva da imprecisão conceitual. Nesse sentido, Tamanaha registra:
mo caso, a pluralidade de ordens normativas é tratada como um desiderato. O pro-
de seu aparente sucesso, a noção “deApesar pluralismo jurídico tem sido marcada por
blema é que quase nunca é muito clara a
uma profunda confusão conceitual e muitas
separação entre os argumentos sobre plu-
vezes por desentendimentos acalorados. [...] A questão ‘o que é o direito?’ [...] jamais foi
ralismo enquanto fato social e os argu-
resolvida [no âmbito da literatura], apesar do
mentos normativos sobre o pluralismo
esforço por parte de teóricos do direito e de
jurídico. Como observou Twining, “há
cientistas sociais”34.
uma tendência na literatura de se escorregar do descritivo para o prescritivo”33. 34.
33.
Twining (2010, p. 473).
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Tamanaha (2008, p. 390 -391). Para uma discussão que procura enfrentar essa deficiência, pondo -se em defesa do pluralismo, ver Benda-Beckmann (2002).
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Uma terceira crítica diz respeito ao
Críticas comparáveis foram dirigidas
fato de que, na literatura sobre pluralismo
a argumentos pluralistas, no contexto do
jurídico, não há discussão suficiente sobre
debate brasileiro sobre o tema37. Uma des-
relações de poder, que ocorrem em muitas
sas críticas derivou de uma pesquisa empí-
situações, até mesmo entre “novos sujeitos
rica realizada por Junqueira e Rodrigues no
de direito” e no interior de grupos da so-
Morro da Coroa, no Rio de Janeiro38. Esses
ciedade civil que se proponham a resistir
pesquisadores verificaram que, no Morro,
ao direito “oficial”. É neste sentido que
ao lado da “comunidade” (a associação de
Barzilai alerta: “[a]s pesquisas sobre o plu-
moradores), traficantes de droga desempe-
ralismo jurídico têm mostrado a tendência
nhavam um papel crucial na determinação
de não prestar atenção ao [uso do] poder
de normas locais, impondo sua vontade ar-
político” 35.
bitrária em casos que variavam desde a
Dois exemplos de uso do poder opressor por parte de grupos da sociedade civil, dados por Barzilai, são: (i) feministas afro-americanas têm, em vários casos, impedido que mulheres de seu grupo, espancadas por maridos ou companheiros, adotem uma identidade feminina mais convencional e recorram à polícia (o “direito oficial”)
conciliação de partes em conflitos de vizinhança até a castração de estupradores e a morte sumária de assaltantes39. Como destacado pelos autores, “[n]a imposição da ‘ordem’, a boca de fumo aplica um código penal próprio, cujas penalidades variam da prisão domiciliar, expulsão temporária, impedimento de circulação em determinada área, tiro na mão, até, para os casos mais
para superar sua situação de maus-tratos,
graves, a pena de morte” 40. A crítica de que
perpetuando assim a opressão de várias
tende a ocorrer uma romantização do plu-
delas; (ii) em Israel, elites de comunida-
ralismo jurídico tal como tem sido desen-
des locais de muçulmanos, incluindo os
volvido na literatura brasileira também foi
anciãos (Hammula) e juízes comunitários
articulada por outros autores, com base em
(Kadi), têm impedido que casos de adesão
outros pressupostos41.
à prática de “assassinato por motivo de honra” (Katal al-Sharaf ala’ila) sejam denunciados à polícia, por medo que isto acabe minando sua estrutura comunitária de poder36. 35. 36.
Barzilai (2008, p. 397). Idem, p. 412-413.
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37. 38. 39. 40. 41.
Cf. Carvalho (2010, p. 18 -22). Ver Junqueira e Rodrigues (1992). Junqueira e Rodrigues (1992, p. 13 -14). Junqueira e Rodrigues (1992, p. 14). Assim, por exemplo, a crítica de Marcelo Neves (1991). Neves sublinha que as propostas do pluralismo jurídico (especialmente os argumentos e construções de Boaventura de Sousa Santos) “podem transformar-se em expressões ideológicas ou mitos, que conduzem antes a equívocos do que à explicação e superação do problema” (idem, p. 21).
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Além disso, ao lado da crítica à au-
estimulado autores a recorrer à ideia de
sência de discussões sobre relações de po-
pluralismo para tratar do declínio de cons-
der, a crítica à imprecisão conceitual tam-
truções jurídicas do direito internacional
bém se aplica à literatura brasileira sobre
clássico. A isso têm se somado discussões
o pluralismo jurídico. Conforme reconhe-
que abrangem a emergência e a intensifi-
ceram Albernaz e Wolkmer, as várias defi-
cação das relações “transnacionais”, ou
nições dos fenômenos jurídicos desenvol-
seja, transfronteiriças, tanto sociais (orga-
vidas por autores pluralistas “sugerem que
nizações não governamentais, movimen-
ainda não se tem uma concordância sobre
tos sociais, redes etc.) quanto econômicos.
o conceito de juridicidade” nessa literatu-
Estes tópicos serão abordados a seguir.
ra42. Em outras palavras, consoante os mes-
Como sugerido no item 9.2, o direito
mo autores, “os conceitos de que se dispõe
internacional que se desenvolveu desde o
até o momento conferem uma delimitação
século XVII até recentemente pode ser en-
pouco precisa de onde cessa o direito e de
tendido como um desdobramento coerente
onde começa o âmbito da vida social” .
do monismo jurídico, aplicado às relações
43
As dificuldades apontadas, portanto, permanecem no âmago dos debates e constituem um convite ao aprofundamento das pesquisas.
internacionais. As construções intelectuais mais importantes relativas a esse direito podem ser descritas nos termos postos por Berman:
“
Tratava-se de um universo jurídico com dois princípios orientadores. Primeiro, entendia-se que o direito era estabelecido apenas por atos de entidades oficiais, sob a autoridade do Estado. Segundo, o direito era visto como uma função exclusiva da soberania estatal”44.
9.4. A dimensão global do pluralismo jurídico Além do surgimento de condições que deram origem ao pluralismo jurídico associado à colonização e à descoloniza-
Ora, a intensificação do comércio de
ção, como indicado no item 9.2, e além das
longa distância e diversos outros meios de
ideias sobre o pluralismo que, nos aspec-
comunicação, inclusive sistemas de satéli-
tos ressaltados no item 9.3, puseram em
te, telefonia etc., tornou insustentável esse
xeque as concepções genéricas sobre o di-
foco exclusivo no Estado, que era a marca
reito ligadas ao monismo, é preciso focali-
da orientação monista. No lado econômi-
zar, também, tendências recentes que têm
co, a desregulamentação das contas de ca-
42. 43.
Albernaz e Wolkmer (2010, p. 204). Idem, p. 204 -205.
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44.
Berman (2012, p. 51).
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pital em diversos países do Norte global,
mentos de decisão”, emergiu no estudo das
também a partir dos anos 1970, deu mais
relações internacionais e, indo além das
liberdade a certos grupos privados para
antigas categorias do direito internacional
comprar e vender divisas e movimentar o
“soberanista”, passou a dar muito mais fle-
capital internacionalmente, aumentando
xibilidade a formulações sobre as realida-
assim a vulnerabilidade cambial de várias
des locais, internacional e global em trans-
economias de países em desenvolvimento.
formação47.
Isso tudo levou autores da Teoria das Rela-
Não obstante, as agências de coopera-
ções Internacionais a reconhecer, a partir
ção internacional, a partir dos anos 1980,
dos anos 1970, que uma série de relações
passaram a propagar um receituário de re-
transfronteiriças – eles se referiram à ima-
formas econômicas que ficou conhecido
gem metafórica de uma “tapeçaria de di-
como “Consenso de Washington”. Em con-
versas relações”45 – se intensificaram e mu-
sequência, a cooperação econômica inter-
daram a realidade. Por isso, Berman dirá,
nacional passou a insistir intensamente na
em relação aos princípios já indicados:
adoção de tais reformas nos diversos paí-
“ambos esses princípios soberanistas [i.e.,
ses que procuravam assistência multilate-
presos à ideia de soberania] foram erodi-
ral. Porém, tendo constatado dificuldades
dos com o tempo”46.
de implementar tais reformas em muitos
É importante registrar que os fatos
países, as agências voltaram-se, nos anos
acima descritos transformaram e intensi-
1990, para as chamadas “condicionalida-
ficaram as relações humanas transnacio-
des relacionadas à governança”, que enfati-
nais em uma escala global. Tais relações
zavam reformas institucionais, inclusive
cresceram e passaram a mudar a realidade
reformas das instituições jurídicas em
sem que o direito internacional ou interno,
muitos países do mundo. Estas condiciona-
ambos de feição monista, pudessem, da-
lidades relacionadas à governança, em es-
das as suas limitações, conferir à realida-
pecial, partiam do pressuposto de que as
de emergente um adequado tratamento
“boas” políticas econômicas somente se-
intelectual e analítico. Tanto assim que o
riam adequadamente implementadas se
conceito de “regime internacional”, desig-
um conjunto de reformas (em áreas como
nando “conjuntos de princípios, normas,
as leis de falências, leis trabalhistas, direito
regras, implícitos ou explícitos, e procedi-
dos contratos, direitos previdenciários, propriedade intelectual, direito concorrencial
45.
46.
Os autores foram R. Keohane e J. Nye. Cf. Castro (2005, p. 127). Berman (2012, p. 5 -521).
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47.
Ver Castro (2005, p. 131-134).
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173
etc.) conformassem o arcabouço jurídico
referente à influência de entidades como a
dos países destinatários de financiamentos
Organização Mundial do Comércio (OMC)
internacionais ao modelo recomendado pe-
e outras, é o da “generalização de sistemas
las agências. Tratava-se do que o economis-
constitucionais marcados por mecanismos
ta Ha-Joon Chang chamou de “instituições
diversificados e parcialmente internacio-
de padrão global” (global standard ins-
nalizados [...] de ‘freios e contrapesos’, que
titutions) , que eram, em realidade, pre-
articulam pluralidades variadas de centros
tendidos transplantes de instituições e con-
de autoridades”51. Um segundo aspecto
cepções jurídicas anglo-americanas. Um
refere-se a um “processo de acentuado ‘es-
rótulo genérico para a designação de tais
vaziamento’ de conteúdos estáveis (ou re-
reformas jurídicas, adotado especialmente
conhecíveis por meio de referências ao pas-
pelo Banco Mundial, foi a expressão rule
sado tradicional ou histórico) para a
of law .
‘propriedade’ e para a categoria ‘direito’
48
49
Todo esse processo de propagação,
subjetivo”52. Finalmente, um terceiro as-
via cooperação econômica internacional,
pecto destaca o papel da “propagação das
de instituições e ideias jurídicas, encaradas
tecnologias da informação como itens de
como uma “dotação jurídica” (legal endow-
consumo de massa” e seus efeitos sobre a
ment) modelar, necessária ao bom desem-
formação de múltiplas coalizões transna-
penho econômico de qualquer país no mun-
cionalizadas de grupos de interesses “com
do, constituiu mais uma etapa de afirmação
orientações que disputam por meio da par-
de concepções do monismo jurídico, em si
ticipação política, eleitoral e não eleitoral,
mesmo inconciliável com a pluralidade de
a prevalência de estratégias de investimen-
diferentes “direitos” mundo afora.
to e acumulação, de um lado, e de práticas
Mas a obsolescência das categorias do direito de orientação monista atingia as
de consumo com significado cultural, religioso, moral, de outro”53.
instituições desse direito como um todo.
Como apontado acima com relação
Faria, em seu livro sobre Direito e Con-
ao terceiro aspecto da crise do direito, no
juntura , procurou retratar aspectos des-
novo contexto, acentuou-se o papel políti-
sa crise do direito. Por sua vez, Castro
co de “identidades” as mais diversas (abra-
(2006) destacou três aspectos relevantes e
çadas por movimentos ambientalistas, fe-
recentes de tal crise. Um primeiro aspecto,
ministas, de direitos humanos, incluindo
50
48. 49. 50.
Chang (2007). Cf. Santos (2006). Ver Faria (2008).
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51. 52. 53.
Castro (2005, p. 59). Idem, ibidem. Idem, ibidem.
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os “direitos” de indígenas, minorias étni-
Mas a verdade é que o debate está em
cas, sexuais, religiosas) 54, várias delas com
aberto. Evidentemente, é impossível saber
articulações políticas transnacionais e até
se alguma das três principais propostas de
globais. Diante das novas realidades, vários
reforma do direito internacional (frag-
juristas passaram a discutir o que chama-
mentação, constitucionalismo, pluralis-
ram de “fragmentação” do direito interna-
mo) prevalecerá, ou se surgirão ainda ou-
cional. Outros, alarmados com a perda da
tras propostas. Igualmente, é impossível
unidade e coerência das categorias jurídi-
saber se alguma “principal” visão jurídica
cas diante dos novos fatos, passaram a pro-
sobre o mundo das relações locais e globais
mover um esforço de “constitucionalizar” o direito internacional. Finalmente, ainda outros juristas consideram que o “pluralismo jurídico” oferece um conjunto de deba-
em interação, que contemple preocupações de defensores do “pluralismo jurídico”, tornar-se-á preponderante em algum momento no futuro.
tes útil para a construção de novas categorias jurídicas, que deem conta das novas
9.5. Observações finais
realidades, em que as relações globais e locais se interpenetram55.
Em seu conhecido e instigante ensaio sobre a construção ou compreensão
Ao se referir à visão pluralista do di-
dos fatos da realidade local, o antropólogo
reito internacional, Koskenniemi indica a
Clifford Geertz explora o que ele chama de
possibilidade (que ele rejeita) de que re-
“sensibilidades jurídicas” de três culturas
gimes internacionais acabem substituin-
distintas: a islâmica (haqq); a índica (dhar-
do Estados. Berman, a seu turno, defende
ma); e a malaia (adat) 57. Estas maneiras
uma visão pluralista com base em uma
de perceber e organizar a consciência so-
“teoria das normas sociais”. Esta possibi-
bre o que aparece como local, conforme
lidade, segundo o autor, “tem o benefício
demonstra Geertz, são diferentes manifes-
de teorizar comunidades transnacionais mais amplas baseadas na persuasão retórica de longo prazo, no lugar das interações face a face”56.
tações do que chamamos “direito”. E, para Geertz, o direito é em si mesmo “um modo característico de imaginar o real”, mas, ao mesmo tempo, remete a diferentes concepções sobre o que é considerado verdadeiro, obrigatório, válido, meritório, consensual,
54. 55.
56.
Ver Castells (1999). Koskenniemi (2007) discute com grande riqueza de detalhes essas três recentes linhas de argumentação sobre o direito internacional. Berman (2012, p. 51).
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moral, e assim por diante.
57.
Geertz (1983).
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O ensaio de Geertz, como tantos ou-
Talvez esse setor guarde uma dimensão
tros estudos que vêm sendo realizados por
estratégica especial no conjunto das mui-
cientistas sociais e juristas há cerca de um
tas relações que hoje se entrecruzam e se
século, parece indicar que não se pode ig-
misturam, ao redor do mundo, para resul-
norar o apelo que as ideias sobre o “pluralis-
tar nas realidades locais que fazem as pes-
mo jurídico” lançam para os que se interes-
soas mais, ou menos, felizes. E talvez por
sam pelo aprimoramento do direito e das
isso, economistas e juristas, tais como
instituições jurídicas. Hoje, a literatura so-
Chang, Rodrik e Unger60, venham insistin-
bre pluralismo jurídico é muito diversa e
do na necessidade de se reinventar ideais
abarca, além das formulações apontadas,
e práticas (o que inclui a reinvenção da
outras que pretendem combater a predomi-
linguagem jurídica), na direção de um plu-
nância de instituições forjadas sob o monis-
ralismo institucional.
mo. De fato, como sublinha Tamanaha, “[a]
Sobre isso, vale a pena observar que
literatura que invoca a noção de pluralismo
discussões sobre “sistemas não estatais de
jurídico cobre um amplo espectro [de refe-
justiça” e seu papel enquanto parte das en-
renciais], desde o pós-modernismo até os
grenagens que formam os meios de gover-
direitos humanos, as abordagens feminis-
nança da economia têm começado a inte-
tas ao direito costumeiro, o comércio in-
ressar autores e organizações da área da
ternacional e muito mais”58. Além disso,
cooperação internacional61. Agora, declina a
uma investigação filosófica sobre a diversi-
tendência de se considerar completamente
dade no direito e nas instituições poderia
anômalas, para fins de organização da go-
ainda encontrar em Aristóteles certamente
vernança de interesse da cooperação inter-
o primeiro pensador a defender uma visão
nacional, iniciativas como a adotada na Bo-
pluralista da política59.
lívia em 2009, em que um dispositivo
De qualquer modo, no debate atual,
constitucional assegurou às comunidades
não deixa de chamar atenção o fato de
rurais tradicionais (naciones y pueblos
que, em sua onda mais recente, a insistên-
indígena originario campesinos) o di-
cia sobre o “monismo jurídico” gravitou
reito de organizar a sua própria justiça,
em torno de normas, concepções e insti-
para aplicar em seus territórios os preceitos
tuições que estruturam juridicamente
emanados de sua cultura em matéria civil
economias e seus meios de governança.
ou criminal62. O mesmo pode ser dito sobre
58. 59.
Tamanaha (2008, p. 391). Uma discussão sobre a vertente pluralista da filosofia política, inaugurada com Aristóteles, pode ser encontrada em Castro (2005, p. 13 -95).
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60. 61. 62.
Ver Chang (2007), Rodrik (2008) e Unger (2006). Ver, por exemplo, Faundez (2011). Ver, por exemplo, Faundez (2011). O artigo 190 da constituição boliviana de 2009 dispõe: “Las naciones y pueblos
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propostas como a discutida na África do Sul, de conferir um papel relevante a cortes de justiça tradicionais, o que potencialmente afetaria a maneira como os direitos tradicionais de cerca de 20 milhões de habitantes de regiões rurais naquele país organizam suas vidas e sua economia63. Sejam quais forem as reformas de ideias e instituições jurídicas que as diversas sociedades no mundo adotem, as discussões acadêmicas sobre o pluralismo jurídico, ao que parece, continuarão no futuro previsível, em sua ampla diversidade, a valer como uma fonte de inspiração para quem busca inovar sem destruir diferenças nos modos de se perceber o mundo e interagir com ele, preservando, ao mesmo tempo, a pluralidade de maneiras de se organizar e dar significado à vida em sociedade.
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10 Transformações da Cidadania e Estado de Direito no Brasil Raphael Neves Lost my job, found an occupation. Cartaz anônimo no Occupy Wall Street
A cidadania virou um termo corrente
to clássico sobre o tema. Escrito quatro
não só nos trabalhos acadêmicos do direito,
anos após a derrocada de Churchill e do iní-
da sociologia e da política, mas também na
cio do welfare state inglês a partir das re-
linguagem política do cotidiano. Por que es-
formas sociais promovidas pelo governo
ses discursos se multiplicam? De onde vem
Trabalhista, busca mostrar que a noção de
a capacidade de mobilização em torno de
cidadania só poderia atacar a desigualdade
uma noção aparentemente tão abstrata?
se passasse a incluir uma dimensão social.
Longe de buscar uma resposta definitiva a
Nele, Marshall aponta que “cidadania é um
essas perguntas, este trabalho é uma tenta-
status concedido àqueles que são membros
tiva de recuperar alguns dos pressupostos
integrais de uma comunidade”. Nesse senti-
que tornam a cidadania tão relevante para
do, ele reafirma a antiga noção aristotélica
entender as lutas políticas contemporâneas.
de cidadania como pertença a uma comuni-
Mais especificamente, de buscar entender
dade política (politike koinonia), na qual
como essas lutas se articulam com a noção
os indivíduos estavam sob uma mesma or-
de cidadania no contexto brasileiro.
dem jurídica e possuíam laços de amizade
O ensaio de T. H. Marshall “Cidadania
(philia) que reforçavam sua coesão social.
e Classe Social”, de 1949, tornou-se um tex-
Mas se engana quem acha que a cidadania
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seja algo estático. Continua Marshall, “[t]
em relação à hierarquia burocrática do
odos aqueles que possuem o status são
funcionalismo estatal, e assim por diante.
iguais com respeito aos direitos e obriga-
Em muitos casos, essas diferentes dimen-
ções pertinentes ao status”1. Ao contrário,
sões podem se combinar formando o que
a cidadania é uma instituição dinâmica e,
Marshall chamou de estratificação multi-
uma vez que esses direitos e obrigações
dimensional3.
não estão definidos de saída, ela pode variar tanto para aprofundar como para combater as desigualdades. Cabe aos sujeitos dessa comunidade política, isto é, aos próprios cidadãos, buscar a realização e a ampliação do conteúdo e da abrangência da cidadania. Marshall pôde distinguir, graças a Max Weber, três dimensões da estratificação social: econômica, de status social e de poder político. Para Weber, “as ‘classes’ se estratificam de acordo com suas relações com a produção e aquisição de bens; ao passo que os ‘estamentos’ [i.e., grupos de status] se estratificam de acordo com os princípios de seu consumo de bens, re-
É em resposta a essas desigualdades que a cidadania se desenvolve. Nesse sentido, Marshall mostrou como a cidadania evoluiu na Inglaterra sob três aspectos. Em um primeiro estágio, a cidadania civil foi constituída no século XVIII e garantiu os direitos necessários para a liberdade individual: direitos de propriedade, liberdade e acesso à justiça. Em um segundo momento, surgiu a cidadania política no século XIX, que garantiu o direito à participação e ao voto. A terceira e última etapa ocorreu com a cidadania social no século XX, que garantiu a segurança econômica e, mais do que isso, o “direito de participar, por completo,
presentado por ‘estilos de vida’ especiais”2.
na herança social e levar a vida de um ser
Enquanto o primeiro gera desigualdades
civilizado de acordo com os padrões que
de natureza econômica, o segundo produz
prevalecem na sociedade”4.
distorções na distribuição de “honra”.
A explicação proposta por Marshall
Quanto à dimensão política, em socieda-
não deve, porém, ser tomada de forma
des democráticas não existe estratificação
acrítica. Sua periodização das três etapas
em termos de poder de voto. Porém, é cla-
da cidadania encaixa-se como descrição
ro que há uma diferenciação quanto ao ta-
da experiência da população de homens
manho dos grupos ou partidos políticos, e
brancos trabalhadores e não problematiza, por exemplo, as hierarquias de raça e gê-
1.
2.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 76. WEBER, Max. Classe, estamento, partido. In: WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p. 226.
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3. 4.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status, p. 119. Ibid., p. 63 -4.
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Transformações da Cidadania e Estado de Direito no Brasil
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nero5. A fim de evitar esse tipo de dificul-
são tacitamente pressupostos por movi-
dade, vamos elaborar aqui uma noção nor-
mentos sociais e atores políticos da socie-
mativa de cidadania que está diretamente
dade civil em suas reivindicações por jus-
relacionada com as lutas sociais no inte-
tiça na esfera pública7.
rior do Estado democrático de direito.
O paradigma da redistribuição foca
Para essa tarefa, vamos utilizar uma cate-
formas socioeconômicas de injustiça, en-
gorização proposta pela filósofa norte-
raizadas na estrutura econômica da socie-
-americana Nancy Fraser.
dade. Como exemplo, pode-se citar: a ex-
Fraser parte do diagnóstico segundo
ploração (ou seja, ter os frutos do trabalho
o qual os conflitos políticos no final do sé-
expropriados por outros); a marginaliza-
culo XX passaram a incorporar demandas
ção econômica (ser obrigado a um traba-
pelo “reconhecimento da diferença” de
lho indesejável e mal remunerado ou não
grupos nacionais, étnicos, raciais, de gêne-
ter acesso a trabalho nenhum); e a priva-
ro, dentre outros. No que ela chama de
ção (não ter acesso a um padrão adequado
conflitos “pós-socialistas”, a identidade de
de vida). Em geral, esse paradigma tem re-
grupo prevalece sobre o interesse de clas-
cebido a atenção de pensadores liberais
se na determinação da mobilização políti-
como John Rawls, Ronald Dworkin e Amar-
ca. Ao mesmo tempo, persiste a velha desi-
tya Sen. Independentemente das diferentes
gualdade material e a injustiça econômica.
matizes teóricas, o importante aqui é um
Por isso, ela faz uma distinção analítica e
comprometimento com o igualitarismo.
assume que a justiça hoje exige tanto “re-
O paradigma do reconhecimento, por
distribuição” quanto “reconhecimento”6.
sua vez, tem por alvo as injustiças cultu-
Posteriormente, ao elaborar melhor essa
rais e simbólicas, que se radicam nos pa-
distinção, a autora afirma que não consi-
drões sociais de representação, interpre-
dera ambas as categorias como paradig-
tação e comunicação. Esse tipo de injustiça
mas filosóficos, mas paradigmas popula-
inclui: a dominação cultural (ser subme-
res ( folk paradigms) de justiça, ou seja,
tido a padrões de interpretação e comunicação associados a uma cultura alheios ou
5.
6.
FRASER, Nancy; GORDON, Linda. Contract versus charity: why is there no social citizenship in the United States? Socialist Review, v. 22, n. 3, p. 45, 1992. Originalmente publicado pela New Left Review na edição de julho -agosto de 1995, o artigo em português encontra -se em: FRASER, Nancy, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje : novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 245 -282.
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hostis à sua própria); o não reconhecimento (invisibilidade diante de práticas
7.
FRASER, Nancy. Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and participation. In: HONNETH, Axel; FRASER, Nancy (Ed.). Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London; New York: Verso, 2003, p. 11.
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representacionais, interpretativas e comu-
raciais identificados com trabalhos supér-
nicativas de uma cultura); e o desrespeito
fluos ou como underclass. Além disso, a
(ser difamado ou desqualificado nas re-
dimensão redistributiva deve incluir as mu-
presentações culturais públicas ou nas in-
lheres que realizam o trabalho doméstico
terações da vida cotidiana) 8. Esse paradig-
e materno, provendo a sociedade com tra-
ma remonta à tradição hegeliana e designa
balho assistencial não remunerado. O pa-
“uma relação recíproca ideal entre sujeitos
radigma do reconhecimento, por sua vez,
na qual cada um vê o outro como igual e,
inclui as vítimas de injustiça que se asseme-
ao mesmo tempo, distinto. Considera-se
lham ao que Weber chamava de grupos de
essa relação constitutiva da subjetividade;
status. Definidas não pelas relações de pro-
alguém só se torna um sujeito individual
dução, mas pelas relações de reconheci-
em virtude de reconhecer e ser reconheci-
mento, essas vítimas possuem menos res-
do por outro sujeito”9. Sem adotar uma
peito, estima e prestígio que outros grupos.
versão específica da teoria do reconheci-
O caso típico da sociologia weberiana é a
mento, hoje representada por autores co-
casta inferior, um grupo de status cujos pa-
mo Charles Taylor e Axel Honneth, Fraser
drões culturais são marcados como menos
subscreve apenas um entendimento mais
valorosos. O conceito pode abranger outros
geral e comum dessas versões, ou seja, a
casos em que um baixo estigma recai sobre
injustiça cultural.
gays e lésbicas, grupos raciais e mulheres10.
Os dois paradigmas também assu-
A distinção entre ambos os paradig-
mem diferentes concepções de coletivida-
mas também ocorre em relação aos remé-
des vítimas de injustiça. No paradigma da
dios que servem para combater a injustiça.
redistribuição, os sujeitos coletivos que so-
Do lado do paradigma redistributivo, o re-
frem injustiça são “classes” definidas eco-
médio é algum tipo de reestruturação
nomicamente por uma relação com o mer-
político-econômica. Isso inclui a própria
cado e os meios de produção. Um exemplo,
ideia de redistribuição de renda e, além dela,
central na filosofia de Marx, é o da classe
a reorganização da divisão do trabalho, os
operária, cujos membros devem vender seu
controles democráticos do investimento e a
trabalho a fim de receber os meios para a
transformação de outras estruturas econô-
subsistência. Mas, segundo Fraser, o para-
micas. O remédio no paradigma do reconhe-
digma redistributivo pode incluir outros
cimento significa alguma espécie de mudan-
casos, como o de imigrantes ou minorias
ça cultural ou simbólica. Daí a importância
8. 9.
Ibid., p. 13. Ibid., p. 10.
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10.
Ibid., p. 14 -5.
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de medidas como a valorização da diversida-
buição e do reconhecimento. Percebendo
de cultural e a transformação mais radical e
que muitos movimentos sociais, como os
abrangente dos padrões sociais de represen-
movimentos feministas, por exemplo, não
tação, interpretação e comunicação. No caso
se limitam mais a reivindicações no contex-
da redistribuição, as distinções de classe são
to territorial do Estado, Fraser propõe o
percebidas como injustas e as lutas sociais
que ela chama de “reenquadramento”:
se direcionam para abolir tais diferenças. No
“
O mau enquadramento [misframing] surge quando o quadro do Estado territorial é imposto a fontes transnacionais de injustiça. Como resultado, temos divisão desigual de áreas de poder às expensas dos pobres e desprezados, a quem é negada a chance de colocar demandas transnacionais”12.
caso do reconhecimento, as diferenças são tratadas de dois modos. Quando algumas variações culturais são hierarquizadas ao longo do tempo, busca-se uma política de revalorização das culturas menosprezadas (a cultura afro-brasileira, por exemplo): o que se quer é celebrar, não eliminar, as diferenças. Quando, ao contrário, falsas distinções são construídas (por exemplo, a ideia de que “as mulheres não servem para liderar”) a fim de criar uma hierarquização, o papel das lutas sociais é desconstruir essas diferenças11.
Ao se confrontar com esse mau enquadramento, o feminismo tornou visível uma terceira dimensão da justiça, para além da redistribuição e do reconhecimento. Fraser vai chamar essa terceira dimensão de representação.
É claro que esses remédios podem ser mais ou menos radicais. Formas paliativas, que Fraser chama de “remédios afirmativos”, atacam apenas os resultados dessas injustiças. Já os “remédios transformativos” buscam remodelar as estruturas que as produzem. Além disso, Fraser aponta para o caráter bivalente de certas categorias, notadamente raça e gênero. Tanto um quanto outro sofrem de injustiças socioeconômicas, como também de falta de reconhecimento.
Segundo ela, a representação não diz respeito apenas à questão de dar voz política igual a mulheres em comunidades políticas já constituídas, mas “reenquadrar as disputas sobre justiça que não podem ser propriamente contidas nos regimes estabelecidos”13. Fraser tem em mente que o movimento feminista não pode se restringir a contextos nacionais quando decisões tomadas dentro de um território afetam mulheres fora dele. Com efeito, isso não se aplica somente ao movimento femi-
Posteriormente, Fraser acrescentou outra categoria aos paradigmas da redistri11.
Ibid., p. 15.
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12.
13.
FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 2, p. 291-308, 2007, p. 304 -5. Ibid., p. 305.
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Neste contexto, é muito importante o modo como a emergência do neoliberalismo intercepta tudo isso, porque, sem dúvida, formas de ‘terceira via’, que eu assumo que também existam no Brasil, enfrentam estas questões admitindo mais desigualdade econômica e flexibilização de mercado, ao mesmo tempo em que se sobrepõem às demandas multiculturais em franca expansão”14.
nista. Questões de segurança, meio ambiente, guerras, dentre outras, afetam diferentes grupos no mundo todo. Daí a necessidade de se estender as lutas sociais também para buscar representação em espaços transnacionais de tomada de decisão. É claro que a representação não serve apenas para pensar problemas transnacionais. Em regimes autoritários, como no período ditatorial do Brasil, a luta por representação democrática encontra-se en-
Para Fraser, portanto, são os próprios movimentos sociais que acabam por priorizar uma dimensão da luta em relação a outra, a depender do contexto político.
tre as prioridades da agenda política. A
Nos itens seguintes, buscamos apre-
preponderância de uma ou outra dimen-
sentar as transformações da cidadania no
são de justiça pode variar com o contexto.
Brasil levando em conta essas três dimen-
Isso fica claro em uma entrevista publica-
sões de justiça propostas por Fraser na or-
da recentemente, na qual Fraser faz um
dem em que elas acabaram se sobressain-
breve diagnóstico de como as lutas sociais
do desde o período da democratização, a
acabaram se desenvolvendo no contexto
saber, representação, redistribuição e re-
latino-americano, em especial no Brasil,
conhecimento.
levando em conta os três paradigmas.
“
[T]enho a impressão de que, na América Latina, em geral, o paradigma distributivo tenha sido muito forte. No Brasil, a experiência de ditadura militar e de autoritarismo como um todo pôs a questão da representação mais ao centro por um longo tempo. Poderia ser dito que houve uma mudança da redistribuição para a representação por razões absolutamente compreensíveis, mas que o poder do paradigma da ideologia redistributiva é ainda forte na memória brasileira e, certamente, volta rapidamente após o retorno da democracia. Então, o paradigma do reconhecimento surge mais tarde, talvez em um contexto de emergência de vários outros movimentos que não são centrados em uma questão de classe.
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10.1. Representação Quando se fala em direitos políticos no Brasil, é quase impossível dissociar essa ideia da luta por democratização no país. O movimento pela anistia dos perseguidos políticos e por eleições diretas foram fundamentais para o surgimento da Nova República. Em 1986, uma Assembleia Na-
14.
FRASER, Nancy, Entrevista a Ingrid Cyfer e Raphael Neves. In: ABREU, Maria (Org.). Redistribuição, reconhecimento e representação – Diálogos sobre igualdade de gênero. Brasília: Ipea, 2011, p. 212.
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cional Constituinte foi eleita e, após mais
-ditadura tenha sido uma concessão pater-
de um ano de trabalho, consultas a espe-
nalista do Estado, como ocorrera com os
cialistas e organizações da sociedade civil,
direitos sociais e trabalhistas do período
estava pronto um projeto para uma nova
getulista. Ao contrário, a cidadania foi fruto
carta constitucional. Finalmente, em 1988,
da própria luta política pela redemocratiza-
a nova Constituição foi promulgada.
ção e da participação da sociedade civil.
A maioria dos países que passaram
Contrariando o modelo francês, no qual um
pela transição democrática no final dos
poder constituinte originário cria uma nova
anos 1980 e começo dos 1990, não só na
constituição ex nihilo – ou seja, a partir do
América Latina como também no Centro e
nada – e a noção de cidadania é derivada da
Leste Europeus, buscaram garantir liber-
própria constituição, e o modelo alemão,
dades por meio de constituições. Em casos
segundo o qual a cidadania resulta da reali-
como esses, parte da mudança depende de
dade pré-política da nação16, os países da
acordos entre as principais lideranças po-
terceira onda de democratização tiveram
líticas amplos o bastante para permitir a
de contar com entidades políticas anterio-
institucionalização de um novo ordena-
res à nova ordem. Famílias, grupos infor-
mento democrático. A fim de garantir sua
mais, associações voluntárias, dentre ou-
legitimidade, essas constituições tiveram
tros, fazem parte de uma sociedade civil
de assegurar direitos civis, políticos e so-
diferenciada que se contrapõe ao Estado e
ciais, além de mecanismos que garantis-
a organizações privatistas do mercado17.
sem o caráter público e democrático dos
Sem compreender o papel da sociedade ci-
processos políticos15. Ao invés de ocorrer um processo lento de ampliação dos direitos de cidadania, como sugerido por Marshall, nesses países tais direitos surgiram em bloco. O que não significa, porém, que sua realização, interpretação e ampliação
vil nesse processo de transição, não se pode entender a formação da cidadania no Brasil mais recente. Todavia, uma das críticas ao processo constituinte brasileiro é a de que a falta
não se tenham dado – ou se deem até hoje – de forma gradual. A institucionalização em uma só tacada de direitos, contudo, não significa que a cidadania que emergiu no Brasil pós15.
ARATO, Andrew. Civil society, constitution, and legitimacy. [s.l.]: Rowman & Littlefield Publishers, 2000, p. 167.
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16. 17.
Idem, p. 170. Sobre sociedade civil, a referência indispensável continua sendo COHEN, Jean L; ARATO, Andrew. Civil society and political theory. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1992. Mais recentemente, algo semelhante se deu com a onda de democratizações na chamada “Primavera Árabe”. Veja, por exemplo, o ensaio de BENHABIB, Seyla. The Arab spring: religion, revolution and the public square. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2012.
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de uma ruptura legal com o ordenamento
monarca soberano pelo pouvoir consti-
anterior (basta lembrar que a Assembleia
tuant (poder constituinte). Tanto o poder
Nacional Constituinte foi convocada pela
quanto a lei estavam agora subordinados
Emenda 26/85) teria comprometido a legi-
ao povo. Na Revolução Americana, ao con-
timidade e o processo de democratização
trário, a fonte de poder coube ao povo. E
que se seguiu. É como se a Constituição de
Arendt é muito clara ao explicar que essa
1988, apesar de todos os seus méritos, es-
revolução preservou o poder que já havia,
tivesse ainda amarrada juridicamente à
antes mesmo da independência, em órgãos
ditadura. Mas isso é um equívoco.
políticos de decisão democrática. Ou seja,
Ao refletir sobre o fracasso de Napo-
por meio da Revolução, os norte-americanos
leão ao tentar dar a priori uma constitui-
conseguiram fundar uma nova ordem polí-
ção à Espanha, Hegel afirma que “uma
tica com base em uma cultura política já
constituição não é algo meramente feito:
existente (a mesma que Tocqueville des-
ela é o trabalho de séculos” . Nesse senti-
creve em Democracia na América). A
do, uma constituição genuína não é uma
fonte da autoridade legal, por sua vez, cou-
obra de experts, mas sim o resultado de um
be à constituição. Os revolucionários norte-
processo histórico. Como mostra o sociólo-
-americanos optaram por redigir um novo
go húngaro Andrew Arato, mesmo períodos
documento que, apesar de poder ser emen-
de transição podem ter momentos conser-
dado, estava muito menos sujeito à vontade
vadores. A continuidade, que está longe de
política da maioria.
18
ser uma exceção brasileira, tem diferentes faces, dependendo do que se quer manter com a mudança, sejam os órgãos políticos, a cultura política ou a própria lei. Na versão de Hannah Arendt, essa diferenciação pode ser reduzida a dois aspectos: a fonte do poder e a fonte da autoridade legal19. Durante a Revolução Francesa, os revolucionários uniram essas duas coisas ao substituir o
Essa separação analítica permite agora entender a opção de continuidade legal de alguns países que passaram pela terceira onda de democratização. De fato, eles inverteram a escolha dos constituintes norte-americanos ao construir o elemento de continuidade primariamente na dimensão do direito, evitando-se assim um hiato legal. Com efeito, como argumenta Arato, a maioria dos constituintes do Centro e Leste
18.
19.
HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do estado em compêndio. Tradução de Marcos Müller. In: Textos Didáticos Unicamp, O Estado – III Parte – 3ª Seção, 257-260. Campinas: Unicamp/IFCH, 1998. § 274. ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. [s.l.]: Companhia das Letras, 2011, cap. 4.
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Europeus20 tomaram o caminho oposto da
20.
As duas grandes exceções são Romênia e Rússia, onde houve uma ruptura em relação às antigas constituições de tipo soviético. No caso dos países do Cone Sul, as duas ex-
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Convenção da Filadélfia e da Assembleia
caso brasileiro, ainda que a composição da
Constituinte francesa, escolhendo manter
Assembleia Nacional Constituinte tenha si-
e usar as regras de revisão de suas consti-
do predominantemente conservadora, com
tuições em vigor. No processo, ao contrário
enorme influência do chamado “Centrão”,
dos norte-americanos, esperavam remover
formado por PMDB, PFL, PDS, PTB e ou-
ou mudar todas as instituições que lhe fo-
tros partidos menores, houve uma grande
ram herdadas. Ao contrário das organiza-
mobilização popular. Além de uma minoria
ções políticas com as quais se deparavam
atuante de parlamentares, cuja base era
os Founding Fathers, os pais fundadores
composta de movimentos sindicais e outras
norte-americanos, as associações e movi-
organizações da sociedade civil, houve
mentos da sociedade civil dos países da ter-
também Comitês Pró-Participação Popular
ceira onda não tinham nenhum status legal
que, espalhados por todo o território nacio-
nos regimes anteriores à transição. As ne-
nal, acompanhavam e repercutiam as vota-
gociações de transição e o exercício de po-
ções dos temas de interesse da população.
der na Polônia, na Hungria, na Tchecoeslováquia e na Bulgária (poderíamos incluir aí também a África do Sul pós-Apartheid) se deram, portanto, por meio de mesas-redondas com grupos políticos recém-surgidos. Nesse período, poucos teriam aceitado
Graças ao próprio Regimento Interno da Assembleia Constituinte, mais de cem emendas populares foram apresentadas, contendo 15 milhões de assinaturas22. O fato de não ter havido uma ruptura
a premissa de Hans Kelsen, segundo a qual
jurídica drástica não impediu, porém, que a
usar a própria regra de revisão de uma
Constituição de 1988 trouxesse várias ino-
constituição necessariamente envolve a
vações. Da perspectiva do paradigma da re-
permanência da constituição original21.
presentação política, ela eliminou a barreira
Evidentemente, em todos esses casos o que se buscava era fundar uma nova ordem política sem violência e sem violação de direitos. Para tanto, a transição ocorreu sem deixar uma grande lacuna jurídica. No
ao direito de voto aos analfabetos, possibilitou o surgimento de vários partidos políticos e ampliou consideravelmente os mecanismos de participação por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14)23. Com isso, por exemplo, foi possível
21.
periências em que a continuidade é mais evidente são Chile e Uruguai, que mantiveram a mesma constituição, depois emendadas. A ditadura argentina não se deu ao trabalho de criar uma nova constituição, mas apenas ditar atos, que foram posteriormente revogados no governo Alfonsín. Já o Paraguai promulgou uma nova constituição em 1992. ARATO, Andrew. Civil society, constitution, and legitimacy, p. 172.
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aprovar, em 2010, a Lei Complementar n. 22.
23.
Programa Diário da Constituinte, de 14-8-1987. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2012. CARVALHO, José M. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 200. Esse livro faz um ótimo balanço sobre o desenvolvimento histórico da cidadania no Brasil.
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135, também conhecida como “Lei da Fi-
gãos colegiados”. Também na área de
cha Limpa”, que proíbe que políticos con-
assistência social, a Constituição prevê a
denados por certos crimes em decisão
participação da população por meio de or-
transitada em julgado ou proferida por ór-
ganizações representativas (art. 204, II).
gão colegiado possam se candidatar no
Por fim, o Estado também deve promover
prazo de oito anos. Essa norma surgiu a
programas de assistência integral à saúde
partir de um projeto de lei de iniciativa po-
da criança, do adolescente e do jovem, ad-
pular que contou com cerca de 1,3 milhão
mitida a participação de entidades não go-
de assinaturas (cerca de 1% de todo o elei-
vernamentais (art. 227, § 1º). Além dos
torado brasileiro). A participação direta
dispositivos na Constituição, há várias dis-
também está prevista na esfera estadual
posições infraconstitucionais que preve-
(art. 27, § 4º) e municipal (art. 29, XII e
em a participação popular, como o Estatuto
XIII). Não se trata de dispositivos isolados
da Cidade (Lei n. 10.227/2001). Segundo
prevendo, aqui e ali, formas de participa-
Leonardo Avritzer, “o próprio processo cons-
ção direta, mas, nas palavras de um espe-
tituinte se tornou a origem de um conjunto
cialista, “de uma arquitetura que se desdo-
de instituições híbridas que foram normati-
bra para os entes federados” .
zadas nos anos 90, tais como os conselhos
24
Uma outra forma de participação prevista na Constituição é a que possibilita a
de política e tutelares ou as formas de participação a nível local”25.
atores da sociedade civil deliberar junto aos
Isso mostra que a Constituição de
órgãos públicos e às instâncias decisórias
1988 institucionalizou a própria participa-
sobre a formulação de políticas, especial-
ção democrática que levou à transição. Ao
mente as que tratam de seguridade social e
invés de uma “cidadania passiva”, que é
reforma urbana. O parágrafo único do art.
“outorgada pelo estado, com a ideia moral
194 determina, em seu inciso VII, por exem-
do favor e da tutela”, a Constituição criou
plo, que a seguridade social deve ser orga-
mecanismos permanentes para a expres-
nizada com base em um “caráter democrá-
são da vontade política e para a “cidadania
tico e descentralizado da administração,
ativa”, que “institui o cidadão como porta-
mediante gestão quadripartite, com parti-
dor de direitos e deveres, mas essencial-
cipação dos trabalhadores, dos empregado-
mente criador de direitos para abrir espa-
res, dos aposentados e do Governo nos ór-
ços de participação política” 26.
24.
AVRITZER, Leonardo. Reforma política e participação no Brasil. In: ANASTASIA, Fátima; AVRITZER, Leonardo (Org.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 36.
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25. 26.
Ibid. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova, n. 33, p. 5 -16, 1994, p. 9.
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10.2. Redistribuição Além da representação, a Constituição de 1988 garantiu diversos direitos sociais. Também incluiu como seus objetivos “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, além de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
189
digo Penal de 1890 (arts. 205 e 206) previa pena de prisão e multa para grevistas. Apesar das concessões trabalhistas durante a ditadura Vargas, a Constituição de 1937 considerava a greve e o lock-out “recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital” (art. 139). Apenas com o fim do Estado
regionais” (art. 3º, I e III). Boa parte dos di-
Novo e com a Constituição de 1946, foi asse-
reitos sociais está prevista no art. 7º da
gurado o direito de greve, depois usurpado
Constituição, que garante a proteção ao em-
pela ditadura graças à Lei n. 4.330/64, co-
prego contra despedida arbitrária, seguro-
nhecida como “Lei Antigreve”29. A Constitui-
-desemprego, salário mínimo, participação
ção garantiu ainda o direito de greve aos
dos trabalhadores nos lucros das empresas,
servidores públicos (art. 37), porém essa
jornada de trabalho de oito horas diárias,
matéria nunca foi regulamentada. Apenas
férias, licença-maternidade e licença-pater-
em 2007, ao julgar os Mandados de Injun-
nidade27, dentre outros direitos28.
ção 670, 708 e 712, o Supremo Tribunal Fe-
A Constituição garantiu também a liberdade de organização sindical (art. 8º) e o direito de greve (art. 9º). Uma dimensão
deral (STF) decidiu que se aplicava aos funcionários públicos a lei de greve vigente no setor privado (Lei n. 7.783/89).
da importância disso pode ser entendida à
Uma medida mais recente e cujos im-
luz do passado, uma vez que o direito de
pactos a longo prazo ainda não estão muito
greve dos trabalhadores não foi reconheci-
claros é a consolidação de programas so-
do em boa parte da história do Brasil. O Có-
ciais de renda mínima. O mais importante deles, o Bolsa Família, atende mais de 13
27.
28.
Na Suécia, a licença dos pais é de 15 meses, podendo ser distribuídos tanto para o homem quanto para a mulher, desde que cada um tire uma licença de, no mínimo, 2 meses. Como Fraser argumenta, gênero é uma categoria bivalente. Por isso, a licença-paternidade não é apenas uma medida redistributiva, mas também de reconhecimento, pois obriga o homem a assumir uma função assistencial em relação ao recém -nascido. Hoje, discute -se naquele país ampliar essa licença-paternidade para, no mínimo, três meses: The Wall Street Journal, For Paternity Leave, Sweden Asks if Two Months is Enough, 31-7-2012. Uma boa análise dos direitos sociais da Constituição pode ser encontrada em: OLIVEIRA, Carlindo Rodrigues de; OLIVEIRA, Regina Coeli de. Direitos sociais na constituição cidadã: um balanço de 21 anos. Serviço Social & Sociedade, n. 105, p. 5 -29, 2011.
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milhões de famílias com renda per capita igual ou inferior a R$ 70. Programas como esse são meros remédios afirmativos ou são remédios transformativos? Fraser tem uma resposta interessante para isso. Em abstrato, programas que garantem uma renda básica que permite a todos os cidadãos ter um padrão mínimo de vida, independentemen-
29.
Ibid., p. 17-18.
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te de sua participação na força de trabalho,
çam, ao invés de transformar, a divisão se-
deixam intacta a estrutura dos direitos de
xual do trabalho. Uma forma de evitar isso,
propriedade. Portanto, diz a autora, eles
conclui Fraser, é combinar renda mínima
são aparentemente afirmativos. Em um re-
com serviços de assistência, como creches
gime neoliberal, programas de renda míni-
públicas de qualidade e de fácil acesso.
ma podem ainda ter o efeito perverso de
Tais políticas de inclusão podem ter o ca-
subsidiar trabalhadores temporários e de
ráter de uma “reforma não reformista”: ao
baixa renda ou desvalorizar os salários. Em
satisfazer certas necessidades básicas, pre-
uma social-democracia, ao contrário, Fra-
param o caminho para mudanças mais ra-
ser afirma que os efeitos podem ser total-
dicais e profundas e geram um efeito cu-
mente diferentes30.
mulativo ao longo do tempo33.
Defensores de programas de renda mínima31 argumentam que, se os benefí-
10.3. Reconhecimento
cios forem bons o suficiente, eles podem
As lutas por reconhecimento torna-
alterar a balança de poder entre capital e
ram-se uma importante forma de reivindi-
trabalho, criando um terreno mais favorá-
cação no final do século XX. Movimentos
vel para mudanças futuras. Assim, no lon-
como o feminista, de lésbicas e gays, da
go prazo, esses mecanismos tendem a se
população negra, dos povos indígenas, de
consolidar como remédios transformati-
pessoas com deficiência e imigrantes
vos. Um grande problema, porém, é que a
(para citar alguns exemplos) ganharam
renda mínima pode não afetar as desigual-
um enorme destaque nos jornais, nos cír-
dades de gênero. Ao assegurar uma renda
culos governamentais e partidários e no
básica, tais programas podem fazer com
judiciário. Todavia, seria uma inversão fal-
que as mulheres deixem seus postos de
sa e cruel supor que essas lutas só passa-
trabalho para ficar em casa cuidando dos filhos32. Em outras palavras, eles refor30.
31.
32.
FRASER, Nancy. Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and participation, p. 78. Uma boa introdução sobre o tema, disponível em português: PARIJS, Philippe Van; VANDERBORGHT, Yannick. Renda básica de cidadania : fundamentos éticos e econômicos. Rio de Janeiro: Record, 2006. Em inglês, uma expressão usada para indicar a diminuição das oportunidades de trabalho para mulheres é Mommy Track, ou seja, o mercado “rastreia” (track) as mulheres para lhes oferecer vagas com menor remuneração em função do seu afastamento em casos de gravidez.
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33.
FRASER, Nancy. Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and participation, p. 79. No caso brasileiro, é importante que se diga, mais de 90% dos titulares do benefício do Bolsa Família são mulheres. A conclusão de uma análise empírica revela, porém, que Fraser pode estar certa: “A defesa da família como foco de preocupação é uma característica constitutiva de políticas de combate à pobreza como o PBF. Na medida em que a defesa da família é operacionalizada com foco nas funções femininas, logo essas políticas familistas reforçam a associação da mulher à maternidade”. MARIANO, Silvana Aparecida; CARLOTO, Cássia Maria. Gênero e combate à pobreza: Programa Bolsa Família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, p. 901-908, 2009, p. 905.
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fizeram das organizações estudantis e sindicais urbanas e rurais entidades quase monopolizadoras da luta social, e o debate em torno do desenvolvimento social galvanizou os intelectuais mais proeminentes do período. É como se o problema racial no Brasil estivesse definitivamente resolvido. Na agenda política da esquerda, a luta pela segunda abolição foi subsumida pela luta pelo socialismo”37.
ram a existir agora, depois de terem sido capazes de romper o discurso hegemônico e serem ouvidas na esfera pública. É como dizer que, para que surgissem uma Nísia Floresta34 ou um Abdias do Nascimento35, fosse preciso antes estarmos preparados para ouvir o que eles têm a nos dizer. É por isso que a categoria do reconhecimento busca articular, sem a pretensão de dar a
Ao dar exclusividade ao que aqui chama-
última palavra, os discursos que já exis-
mos de paradigma redistributivo, a agenda
tem e se erguem contra injustiças cultu-
política foi dominada por discursos que
rais em diferentes níveis da sociedade ci-
abafaram outros tipos de luta social. De
vil, e não só da esfera pública política 36.
forma análoga, as políticas de identidade
Nesse sentido, a noção de cidadania é
nos Estados Unidos entraram, ainda que
muito importante, porque é flexível o sufi-
involuntariamente, em sinergia com o ideá-
ciente para incluir novas reivindicações.
rio neoliberal e devastaram o edifício de
Ela não privilegia a priori uma dimensão
proteção social construído a duras penas
de redistribuição ou reconhecimento (ou
desde o New Deal38.
qualquer outra) e, portanto, está aberta a atender a agenda do dia, funcionando um pouco como o que Arendt chamou de “direito a ter direitos”. Isso pode evitar erros históricos, como o que aponta Antonio Sérgio Guimarães em relação ao movimento negro no Brasil:
“É verdade, todavia que, na Segunda República, os conflitos de classe e o anti-imperialismo
Felizmente, esse quadro tem mudado no Brasil. O papel do reconhecimento na formulação de políticas de ação afirmativa talvez seja um bom exemplo. Com a decisão em 2012 da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, o STF garantiu que outras universidades pudessem seguir o exemplo da UnB e reservar parcela de suas vagas a estudantes negros, índios ou pobres. Essa é uma
34.
35.
36.
Nísia Floresta (1810 -1885) foi uma das precursoras do feminismo no Brasil. Em 1832, publicou o Direito das mulheres e injustiça dos homens. Abdias do Nascimento (1914 -2011) foi um ativista, político e artista negro. Criou o Teatro Experimental do Negro, foi deputado federal e senador. FRASER, Nancy. Distorted beyond all recognition. In: HONNETH, Axel; FRASER, Nancy (Ed.). Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London; New York: Verso, 2003, p. 207-208.
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política que não só tem uma dimensão redistributiva, afinal se trata de repartir um 37.
38.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Cidadania e retóricas negras de inclusão social. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 85, p. 13 -40, 2012, p. 20. FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação, seção 3.
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192
bem público, as vagas, como uma impor-
“
a identificação das terras pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos deve ser realizada segundo critérios históricos e culturais próprios de cada comunidade, assim como levando-se em conta suas atividades socioeconômicas. A identidade coletiva é parâmetro de suma importância, pelo qual são determinados os locais de habitação, cultivo, lazer e religião, bem como aqueles em que o grupo étnico identifica como representantes de sua dignidade cultural”40.
tante função de reconhecimento. Primeiro, porque reconhece e repara uma injustiça histórica. Em segundo lugar, porque a discriminação ao longo de séculos gerou hierarquias assimiladas tanto por discriminados quanto por discriminadores39, impactando e desfavorecendo os estudantes negros que hoje tentam entrar na universidade. Outra ação importante, até o momento não julgada, é a Ação Direta de Inconsti-
Se esse entendimento se confirmar, o Estado brasileiro reconhecerá na própria
tucionalidade (ADI) 3.239 sobre o Decreto
identidade desse grupo um critério válido
n. 4.888/2003 e da política de reconheci-
para a garantia de direitos.
mento das antigas colônias de ex-escravos,
Por fim, é necessário levar em conta
os quilombolas. Essas comunidades têm seu
também a luta de gays e lésbicas por reco-
direito de propriedade assegurado pela
nhecimento. Um passo importante nessa
Constituição (art. 68, ADCT). Além do as-
direção ocorreu quando o STF, em 2011,
pecto de justiça material pela distribuição
declarou a constitucionalidade da união
das propriedades que historicamente foram
homoafetiva na ADI 4.277 e na ADPF 132.
ocupadas por esses grupos, o Estado reco-
O Tribunal considerou que o art. 1.723 do
nhece e busca preservar seu valor cultural
Código Civil, que afirma ser “reconhecida
(como indica o art. 216, § 5º, da Constitui-
como entidade familiar a união estável en-
ção). Um dos pontos questionados do referi-
tre o homem e a mulher”, deve ser inter-
do Decreto é o de que ele seria inconstitu-
pretado conforme a Constituição. Uma vez
cional por eleger o critério da autoatribuição
que a Constituição proíbe “preconceitos
(art. 2º) para identificar os remanescentes
de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-
das comunidades quilombolas, ou seja, ca-
quer outras formas de discriminação” (art.
beria aos próprios membros da comunidade, e não a terceiros, declarar-se quilombolas. Em seu parecer, a Procuradoria-Geral da República afirma que
3º, IV) e que “todos são iguais perante a lei” (art. 5º, caput), o Código Civil não pode ser usado para impedir outras for40.
39.
IKAWA, Daniela. Ações afirmativas em universidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 175.
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BRASIL. Parecer da Procuradoria-Geral da República, ADI 3.239 (§ 40). Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2012.
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193
mas de união estável que não sejam entre
Da perspectiva da representação, é
homem e mulher. Em outras palavras, o
preciso multiplicar as esferas de participa-
Estado brasileiro reconhece que pessoas
ção junto aos órgãos estatais de decisão.
do mesmo sexo têm o direito, como quais-
Instrumentos importantes no fomento ao
quer outros cidadãos, de formar uma uni-
desenvolvimento têm gerado desigualdades
dade familiar.
regionais e setoriais sem que a população atingida faça parte desse processo. O Ban-
Considerações finais
co Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, tem in-
Tentamos analisar aqui o avanço em
vestido maciçamente em algumas empresas
termos de direitos de cidadania pelo qual
(só em 2009 foram R$ 137 bilhões) sem que
tem passado o Brasil desde a promulgação
às vezes isso leve em conta os impactos de
da Constituição de 1988. Para isso, utiliza-
suas atividades. Um documento denomina-
mos as categorias da representação, redis-
do “Carta dos Atingidos pelo BNDES” cha-
tribuição e reconhecimento como forma
ma a atenção para esse fato:
de organizar e entender como se dá a ex-
“
Os projetos financiados destroem milhares de formas de trabalho nas comunidades impactadas e os empregos criados pelos financiamentos, além de insuficientes, aumentam a superexploração do trabalho, o que inclui muitas vezes a prática do trabalho escravo. As grandes obras de infraestrutura e a reestruturação dos processos produtivos, que automatizam e terceirizam a produção, afetam ainda mais os trabalhadores e as trabalhadoras. O resultado é um grande contingente de desempregados e lesionados, com direitos cada vez mais reduzidos”42.
pansão da cidadania. O enfoque em uma “ampliação de direitos” não deve, porém, encobrir que, na trajetória das lutas sociais por uma cidadania mais inclusiva e igualitária, também podem ocorrer retrocessos. Na verdade, as “forças desestabilizadoras” da cidadania são muitas. De um lado, há “as limitações do Estado para institucionalizar volumes conflitantes de interesses populares, e para impor as decisões vinculantes”. De outro, fatores como a própria diferenciação social, que pode criar novas estratificações41. 41.
LAVALLE, Adrián Gurza. Cidadania, igualdade e diferença. Lua Nova, n. 59, p. 75 -93, 2003, p. 80 -1. Um exemplo de problema que um novo tipo de estratificação social pode trazer é a xenofobia. À medida que o Brasil passe a receber mais imigrantes de regiões em conflito, como o Haiti, ou de países vizinhos, medidas de redistribuição e reconhecimento devem ser tomadas para incluir esses novos grupos.
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É importante que os cidadãos atingidos sejam ouvidos. Uma das críticas à polêmica hidrelétrica de Belo Monte tem sido que as populações indígenas afetadas pela construção não foram devidamente con42.
A Carta foi lançada por uma rede de organizações da sociedade civil conhecida por Plataforma BNDES: .
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sultadas. Isso significa que o poder decisó-
Bibliografia
rio precisa efetivamente levar em conta a
ARATO, Andrew. Civil society, constitution, and legitimacy. [s.l.]: Rowman & Littlefield Publishers, 2000.
vontade dos cidadãos. E de pouco ou nada vale o argumento elitista de que só os mais instruídos devem poder decidir, pois a política é um campo prático. Quanto mais os cidadãos forem chamados a participar das escolhas que afetam suas vidas, maior será seu engajamento e sua educação política43. O paradigma redistributivo nos leva a pensar, por sua vez, nas melhorias socioeconômicas que precisam ser conquistadas. Para citar apenas um exemplo, o salário mínimo em julho de 2012 era de R$ 622,00. Um valor muito longe do salário mínimo necessário para, de acordo com a Constituição, atender às necessidades básicas de “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social” (art. 7º, IV), ou seja, R$ 2.519,97 . 44
Por fim, o reconhecimento tem o papel de trazer a público formas de discriminação e violência simbólica ocultas em nossa sociedade. Falar em direito ao reconhecimento é combater as práticas veladas de desrespeito e também a violência gratuita e cruel de que são vítimas certos grupos, é “tirá-las do silêncio que pode servir para manter sua existência”45. 43.
44.
45.
PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. São Paulo: Paz e Terra, 1992. Fonte: . Acesso em: 13 ago. 2012. LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 2, n. 2, p. 64 -95, 2005, p. 77.
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ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução de Denise Bottmann. [s.l.]: Companhia das Letras, 2011. AVRITZER, Leonardo. Reforma política e participação no Brasil. In: ANASTASIA, Fátima; AVRITZER, Leonardo (Org.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 35 -43. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova, n. 33, p. 5 -16, 1994. BENHABIB, Seyla. The Arab spring: religion, revolution and the public square. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2012. BRASIL. Parecer da Procuradoria-Geral da República, ADI 3.239 (§ 40). Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2012. CARVALHO, José M. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2001. COHEN, Jean L.; ARATO, Andrew. Civil society and political theory. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1992 (Studies in contemporary German social thought). FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje : novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001. p. 245-282. ________. Distorted beyond all recognition. In: HONNETH, Axel; FRASER, Nancy (Ed.). Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London; New York: Verso, 2003. p. 198 -336. ________. Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and participation. In: HONNETH, Axel; FRASER, Nancy (Ed.). Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London; New York: Verso, 2003. p. 7-109. ________. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 2, p. 291-308, 2007. ________. Entrevista a Ingrid Cyfer e Raphael Neves. In: ABREU, Maria (Org.). Redistribuição, reconhecimento e representação – diálogos sobre igualdade de gênero. Brasília: Ipea, 2011. p. 201-13. Disponível em: .
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195
FRASER, Nancy; GORDON, Linda. Contract versus charity: why is there no social citizenship in the United States? Socialist Review, v. 22, n. 3, p. 45, 1992.
MARIANO, Silvana Aparecida; CARLOTO, Cássia Maria. Gênero e combate à pobreza: Programa Bolsa Família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, p. 901-908, 2009.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Cidadania e retóricas negras de inclusão social. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 85, p. 13-40, 2012.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do estado em compêndio. Tradução de Marcos Müller. In: Textos Didáticos Unicamp, O Estado – III Parte – 3ª Seção, 257-260. Campinas: Unicamp/IFCH, 1998.
OLIVEIRA, Carlindo Rodrigues de; OLIVEIRA, Regina Coeli de. Direitos sociais na constituição cidadã: um balanço de 21 anos. Serviço Social & Sociedade, n. 105, p. 5 -29, 2011.
IKAWA, Daniela. Ações afirmativas em universidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PARIJS, Philippe Van; VANDERBORGHT, Yannick. Renda básica de cidadania: fundamentos éticos e econômicos. Rio de Janeiro: Record, 2006.
LAVALLE, Adrián Gurza. Cidadania, igualdade e diferença. Lua Nova, n. 59, p. 75 -93, 2003.
PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 2, n. 2, p. 64 -95, 2005.
WEBER, Max. Classe, estamento, partido. In: WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 211-228.
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11 Reforma do Judiciário Entre legitimidade e eficiência
Jacqueline Sinhoretto Frederico de Almeida
Introdução O resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) realizada pelo IBGE em 2010 mostrou uma mudança significativa na utilização da justiça nas duas últimas décadas. O le-
programa com financiamento estatal. Significa dizer que, atualmente, as possibilidades de administrar conflitos no âmbito estatal se ampliaram e se diversificaram e que usar a justiça é mais do que abrir um processo formal que será julga-
vantamento publicado em 1990 revelou
do por um juiz. Os dados mostram um au-
que apenas 45% das pessoas que tiveram
mento da utilização da via judicial clássi-
conflitos judicializáveis haviam efetiva-
ca, mas evidenciam também a importância
mente recorrido à justiça. Em 2010, este
da simplificação processual e da concilia-
número cresceu: 58% responderam ter
ção. Uma das reformas mais importantes
procurado a justiça e mais 12% buscaram
da justiça no Brasil contemporâneo foi
o juizado especial, o que soma 70%. É
propiciada pela criação dos juizados es-
digno mencionar ainda que, entre os que
peciais, com a Lei n. 9.099/95, e as possi-
não procuraram a justiça, 27% adminis-
bilidades de administração de conflitos e
traram o conflito por meio de mediação/
programas especiais criados pelos Tribu-
conciliação, podendo ter utilizado algum
nais de Justiça em todo o País.
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Manual de Sociologia Jurídica
Desde os anos 1970, o tema da refor-
relações com as diferenças sexuais, religio-
ma do Judiciário passou a fazer parte da
sas, raciais, afetaram o cotidiano de todas
agenda internacional. Algumas mudanças
as classes, em praticamente todos os paí-
históricas despertaram a atenção dos cien-
ses do mundo (em alguns, já no pós-guer-
tistas sociais para o campo jurídico. Boa-
ra; em outros, mais recentemente).
ventura Sousa Santos (1996) destaca as
Antes de tudo, iniciava-se um ques-
transformações globais da esfera estatal e
tionamento do estatuto da igualdade for-
da esfera econômica, trazidas pelo declínio
mal diante das desigualdades de fato,
do modelo do Estado Providência e sua
abrindo a crítica do tratamento desigual da
substituição por formas estatais marcadas
lei às demandas dos diferentes segmentos.
pelas reformas de cunho neoliberal, com
Essas transformações, que redefiniram a
objetivo de reduzir a participação do Esta-
micropolítica do cotidiano, também impac-
do como agente econômico, desregulamen-
taram o sistema judicial na medida em que
tando a economia. O modelo do bem-estar
invocaram novos direitos, os quais trouxe-
estava assentado no compromisso fordista,
ram uma inovação, por não serem postula-
que estabelecia um padrão para as lutas
dos e tutelados individualmente, requeren-
sociais e para a participação das classes
do a criação de institutos processuais
populares na redistribuição da riqueza.
inéditos, como as ações judiciais coletivas.
Seu declínio intensificou a expressão dos
Ao crescimento da demanda por tute-
conflitos por novas vias e canais de resolu-
la judicial motivado, de um lado, pelo declí-
ção, incrementando o apelo à via judicial.
nio do Estado de Bem-estar social e, de ou-
Coincidentemente ao aumento de deman-
tro, pelo surgimento dos “novos direitos”,
da para garantia judicial de direitos sociais
designa-se explosão de litigiosidade, isto
ameaçados pelas reformas, um novo pro-
é, uma requalificação da busca dos tribu-
cesso de codificação de direitos surgia,
nais para a garantia de direitos já efetivados
provocado pela emergência de novos sujei-
e para a efetivação de direitos recém-con-
tos sociais protagonistas de novos confli-
quistados e ainda não institucionalizados
tos: de gênero, ambientais, de defesa de
(SANTOS, 1995; SANTOS et al., 1996).
minorias étnicas e culturais. Tão impor-
Num famoso estudo, Cappelletti e
tantes para as transformações jurídicas da
Garth (1988) identificaram três “ondas”
contemporaneidade quanto aquelas ocorri-
nas políticas públicas de acesso à justiça. A
das na esfera econômica e na esfera das
primeira consistia na oferta de serviços de
nações, as transformações culturais que
assistência jurídica gratuita ou subsidiada,
reorganizaram a família, o trabalho femi-
de caráter assistencialista e individualista.
nino, a ecologia, as políticas do corpo, as
Era isso que a segunda onda procurava
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Reforma do Judiciário
199
corrigir, ao viabilizar a representação de
em Defensorias Públicas e as resistências
interesses coletivos, por meio de instru-
corporativas à diversificação de canais de
mentos jurídicos para a postulação da pro-
acesso gratuito e simplificado ao Judiciário
teção judicial de direitos difusos e coleti-
também limitaram o desenvolvimento das
vos. A terceira onda abrange tanto as
“ondas” de ampliação do acesso à justiça no
reformas institucionais e legais no sentido
Brasil (ALMEIDA, 2006; SECRETARIA DA
da informalização dos procedimentos ju-
REFORMA DO JUDICIÁRIO, 2004 e 2006).
diciais (como a criação de cortes de pequenas causas) quanto o investimento em alternativas extrajudiciais de resolução pacífica de disputas.
11.1.1. A redemocratização e o enfrentamento da violência: a origem da PEC 96/92 O caso brasileiro, entretanto, teve
11.1. O contexto da reforma no Brasil
outras especificidades. Ao final da ditadu-
No Brasil, o movimento das “três on-
ra militar, o Brasil não conheceu o proces-
das” não se deu nos mesmos moldes da dis-
so de uma justiça de transição. Os crimes
cussão dos países centrais. A assistência
da ditadura foram anistiados e o véu da
judiciária gratuita foi, até os anos 1980, pra-
conciliação recobriu até mesmo as possibi-
ticamente a única política pública compen-
lidades de revelar a localização dos desa-
satória nessa área. A sociedade civil é que
parecidos políticos.
desempenhou papel preponderante na am-
A tortura largamente praticada na
pliação de oportunidades de solução de
repressão política, e normalizada na re-
conflitos, responsabilizando-se pela educa-
pressão aos crimes comuns, foi criminali-
ção em direitos, oferta de assistência jurídi-
zada, mas não combatida. Ainda hoje, lar-
ca gratuita aos cidadãos, difundindo uma
gos segmentos das polícias e da sociedade
cultura cívica que valorizava o conheci-
acreditam que ela é instrumento necessá-
mento e a defesa dos direitos, principal-
rio para produzir a verdade na investiga-
mente os interesses coletivos (CAMPILON-
ção criminal (VARGAS, 2012). Corpos po-
GO, 1994). Após a abertura democrática e,
liciais especializados no combate violento
sobretudo, após a edição da Lei n. 9.099/95,
a crimes políticos assumiram novas fun-
que regulamentou os juizados especiais cí-
ções, com métodos muito similares, como
veis e criminais, iniciativas de ampliação
é o caso da ROTA em São Paulo (BAR-
da oferta de serviços judiciais vêm se multi-
CELLOS, 1992; CALDEIRA, 2000).
plicando, ao espírito da “terceira onda”.
As ditaduras brasileiras do século XX
Contudo, a falta de investimentos estatais
sempre estiveram “legalizadas” por meio
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Manual de Sociologia Jurídica
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de reformas constitucionais, como as ocor-
grossas camadas de trabalhadores rurais e
ridas em 1937 e 1969. A repressão política
urbanos.
durante a ditadura militar contou com os
A Constituição de 1988 procurou res-
procedimentos do devido processo, con-
ponder a isto com a universalização de di-
forme estabelecidos pela Lei de Segurança
reitos sociais e com o restabelecimento
Nacional e pelos Atos Institucionais. A re-
dos direitos políticos. Os direitos civis –
pressão política foi “judicializada”, isto é,
vida, integridade, dignidade, igualdade,
os acusados de crimes políticos eram for-
acesso equitativo à justiça, liberdades e
malmente acusados e julgados por tribu-
garantias individuais –, se não estavam
nais. Se por um lado isto possibilitou o uso
abertamente cassados, também não foram
do Judiciário para defender a vida e os di-
enfaticamente assegurados, para além das
reitos de presos políticos, por outro “nor-
belas letras da Constituição Cidadã (CAR-
malizou” a repressão e corresponsabilizou
VALHO, 2002).
toda a instituição, o que foi prejudicial a uma possível reforma democrática do Judiciário ao final da ditadura (PEREIRA, 1998; SADEK, 2002).
A democratização política coincidiu com a persistência da violência policial (letalidade, brutalidade, discriminação racial e social, tortura, tratamento desigual), com
O contexto da redemocratização não
o crescimento da violência difusa (aumento
chegou a produzir uma ruptura legislativa,
dos homicídios, armamento da população
organizacional ou institucional que sinali-
civil, ajustamentos violentos de conflitos),
zasse de maneira inequívoca o início de
com a organização de grupos criminais, so-
uma nova era nos tribunais, nas prisões ou
bretudo ligados aos tráficos de drogas e ar-
nas polícias.
mas, com crises sucessivas da administra-
O Brasil iniciou o regime democráti-
ção prisional e das FEBEMs (mortalidade,
co com um imenso déficit de cidadania,
violência, superlotação, condições indig-
que os sociólogos diagnosticam como um
nas, controle de facções), com a atuação de
processo inverso ao dos países europeus.
grupos de extermínio, chacinas, lincha-
As lutas sociais conseguiram avançar na
mentos (ADORNO, 1999). As graves viola-
proteção de direitos trabalhistas e previ-
ções aos direitos humanos faziam parte do
denciários durante governos autoritários
cotidiano de governos eleitos pelo voto, mas
que suspenderam direitos civis e políticos.
que tinham dificuldades de exercer o con-
A “cidadania regulada” (SANTOS, 1987)
trole civil das forças policiais e das institui-
condicionava o exercício de direitos aos
ções coercitivas. Os reformistas sofriam a
controles do emprego formal e excluía
oposição de largos setores dentro das polí-
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Reforma do Judiciário
201
cias e do Judiciário, da maior parte dos veí-
frente à aprovação de leis conservadoras e
culos de comunicação e de uma população
dissonantes da opção garantista adotada
assustada com o crescimento da desordem
pela Constituição, como é o caso da Lei dos
civil, convencida de que a violência é o re-
Crimes Hediondos, de 1990.
médio mais eficaz para a violência (CALDEIRA, 2000).
O Congresso Nacional, ao invés de priorizar a reforma institucional, preferiu
Nesse contexto, encontravam-se re-
prosseguir na aprovação de leis penais mais
lações inequívocas entre a falta de eficiên-
duras e exclusivamente punitivas, sempre
cia da polícia e da justiça para investigar
acrescentando a novos delitos a etiqueta de
os crimes comuns – e também o crime or-
hediondos, com ares de “legislação de
ganizado – e os desvios de função e desa-
emergência” (AZEVEDO, 2003; CAMPOS,
parelhamento da polícia ocorridos duran-
2010). O homicídio qualificado passou a ser
te a ditadura militar. Como corpos de defesa do Estado e de suas políticas autoritárias, as polícias e o Judiciário não estavam em condição de responder às demandas de defesa dos cidadãos (ZALUAR, 2009; ADORNO, 1996).
hediondo a partir de 1995, mas isto não provocou nenhum efeito sobre a escalada dos homicídios nas grandes cidades1. O efeito mais visível da mencionada lei foi um crescimento rápido da população prisional e, por consequência, dos efeitos perversos de uma administração penitenciária que já vi-
Em 1991, o deputado Hélio Bicudo
via de crises sucessivas. No mesmo período
(PT-SP), conhecido militante na área dos
em que maximizou o penal, o Congresso
direitos humanos, redigiu um projeto de
discutiu e aprovou reformas de caráter neo-
emenda constitucional (PEC 96/92) que
liberal, enxugando serviços públicos, direi-
propunha alterações visando reduzir a im-
tos previdenciários e trabalhistas.
punidade de graves violações aos direitos
A década de 1990 chegou ao fim com
humanos, impetradas sobretudo por agen-
um balanço negativo da democratização do
tes do Estado, com o objetivo de provocar o
sistema de justiça. Perpetuavam-se as ocor-
debate sobre a democratização do sistema
rências de graves violações dos direitos hu-
de justiça. Hélio Bicudo acreditava ser ne-
manos, com casos de repercussão interna-
cessário politizar este debate no Congresso Nacional para dinamizar as reformas institucionais vistas como condição para o enfrentamento da violência, incluindo a democratização interna das instituições de justiça. Era também uma forma de fazer
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1.
Em 1980, havia 11,7 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2010, a taxa era de 26,2, representando um crescimento real de 124%. Em 30 anos, mais de um milhão de pessoas foram assassinadas. O crescimento da taxa era impulsionado, sobretudo, pela participação de jovens de bairros pobres das grandes cidades, tanto como vítimas quanto como autores (WAISELFISZ, 2011).
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Manual de Sociologia Jurídica
cional2 (ADORNO, 1999) e também os casos
listas, é também porque a atuação do Judi-
cotidianos de assassinatos, linchamentos,
ciário começou a transcender o modelo do
espancamentos e toda sorte de maus-tratos
juiz como mero aplicador da lei, consagrado
e violações no ambiente doméstico, nas
no sistema de Civil Law. O fenômeno do
lutas pela terra e no trabalho no campo
constitucionalismo democrático, típico
(MESQUITA NETO e ALVES, 2007). A vio-
das democracias do pós-guerra, representa
lência ganhou dimensões de epidemia (ZA-
a preocupação com a efetividade de direi-
LUAR, 1999), e a produção social do medo
tos fundamentais constitucionais nas di-
da violência (CALDEIRA, 1989; FEIGUIN e
versas esferas da vida social, introduzindo,
LIMA, 1995; ADORNO, 1996) introduziu
com isso, princípios de justiça social na
modificações na socialidade, nas relações
aplicação do direito (VIANNA et al., 1997;
entre as classes sociais e entre os cidadãos
DIMOULIS, 2008). O Judiciário passou a ser
e o Estado. Ao final da década, a questão da
um ator relevante no processo de efetiva-
segurança ganhou alto grau de politização,
ção dos direitos sociais; ao incorporar um
marcando o discurso eleitoral de todos os partidos. O tema da reforma do sistema de justiça como etapa necessária da democratização da sociedade perdia, com isso, espaço para o tema do combate à violência.
sentido prospectivo nas suas decisões, passou a partilhar da formulação de políticas públicas ao lado do Executivo e do Legislativo. A atividade de interpretação das normas tornou-se mais complexa por envolver, além da coerência interna das normas, a rea-
11.1.2. Politização da justiça e judicialização da política Se os estudos sobre o sistema de justiça transcenderam o interesse dos especia-
lização de princípios defendidos na Constituição, mas ainda não institucionalizados. O juiz passa, então, de intérprete cego da lei a “legislador implícito” (VIANNA et al., 1999). O processo de judicialização da política não é uniforme, linear ou homogêneo
2.
Entre os casos, estão: o Massacre do Carandiru, em que 111 presos foram executados durante a repressão a uma rebelião; as rebeliões na Febem de São Paulo; o assassinato de oito crianças que dormiam numa marquise ao lado da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, por policiais militares em 1993; a chacina de 21 pessoas na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, promovida por 52 policiais militares; o assassinato de 19 trabalhadores rurais sem-terra pela Polícia Militar do Pará, em Eldorado dos Carajás, em 1996, por ocasião da desocupação de uma estrada por onde passava uma marcha de 1.500 pessoas; o assassinato do índio pataxó Galdino, em 1997, por jovens de classe alta de Brasília que atearam fogo a seu corpo enquanto dormia num ponto de ônibus.
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para todos os países, muito menos aceito acriticamente por todos os analistas. Se nos anos 1970 já era percebido e debatido na Europa, no Brasil só passou a fazer sentido no processo de democratização. O fenômeno do constitucionalismo democrático é uma das variáveis que Tate e Valinder (1995) consideram para qualifi-
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Reforma do Judiciário
car o movimento de judicialização da política. A construção de parâmetros institucionais de independência do Judiciário em relação aos demais poderes é outra variável. A terceira é o acionamento judicial por atores políticos com a finalidade de obter resultados não alcançados pela ação do Executivo e do Legislativo.
203
11.1.3. (In)segurança jurídica e desenvolvimento econômico A explosão da litigiosidade, associada a um potencial uso político do Judiciário por movimentos de direitos e por grupos políticos de oposição às reformas do Estado na década de 1990, contextualiza outro fator de pressão por reformas da jus-
No caso brasileiro, percebe-se que as
tiça no Brasil, baseadas no discurso que
três variáveis se manifestaram durante os
aponta certo padrão de funcionamento do
anos 1990, período no qual a reforma do
Judiciário como vetor de resistência ao de-
Judiciário foi discutida. A constitucionali-
senvolvimento econômico do País.
zação de direitos em 1988 é vista como avanço democrático e como conquista de autonomia e fortalecimento institucional do sistema de justiça. Além disso, como já indicado, as pressões sociais por direitos constitucionalizados potencializaram a politização da justiça com a finalidade de expansão de direitos e conquistas igualitárias (como é o caso de movimentos feministas e de moradia), ou para a defesa de interesses de grupos políticos como forma auxiliar de ação partidária (como foi o caso do uso do Judiciário pela oposição às privatizações durante o governo FHC). Isto impactou o rumo dos debates e o re-
O discurso dominante sobre Judiciário e economia (CUNHA e ALMEIDA, 2012) sustenta que a ausência de segurança jurídica e previsibilidade do ordenamento jurídico no Brasil afeta o desenvolvimento econômico do País (ARIDA et al., 2005; SECRETARIA DA REFORMA DO JUDICIÁRIO, 2005; PINHEIRO e CABRAL, 1998). De acordo com esse diagnóstico, a ausência de coordenação administrativa e jurisprudencial do Judiciário representa obstáculos para a ampliação do mercado de crédito e atração de investimentos estrangeiros no Brasil.
sultado final da reforma, que se distanciou
Postula, ainda, que a morosidade judi-
da preocupação com os direitos civis e se
cial impacta a recuperação de crédito e os
aproximou de discussões sobre a eficiên-
custos da litigância (PINHEIRO e CABRAL,
cia econômica do Judiciário, como a cen-
1998; PINHEIRO, 2005; FACHADA et al.,
tralização da gestão judicial, a criação de
2003) e que a pulverização da jurisdição e a
órgão de controle externo e a ampliação
ausência de coordenação administrativa e
do controle concentrado de constituciona-
jurisprudencial do Judiciário permitem que
lidade (SADEK e ARANTES, 2001).
juízes decidam pelo descumprimento de
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contratos (PINHEIRO, 2000) e criam incer-
sos, do controle externo do Judiciário e
teza jurisdicional (ARIDA et al., 2005; SE-
das reformas do processo de execução,
CRETARIA DA REFORMA DO JUDICIÁ-
medidas que compuseram o núcleo da re-
RIO, 2005). Esses problemas seriam mais
forma de 2004. Também é perceptível no
evidentes em certas áreas da atividade judi-
papel de especialistas em gestão pública e
cial, afetando dimensões específicas da ati-
privada nos debates da reforma de 2004 e
vidade econômica: liminares proferidas pela
sua implementação (ALMEIDA, 2010).
justiça de primeira instância suspendendo
Três hipóteses explicam a prevalên-
privatizações; a tendência da Justiça do Tra-
cia dessa agenda racionalizadora sobre a
balho, alegada por seus críticos, de julga-
pauta do acesso à justiça e da efetivação
mento favorável aos trabalhadores; a inércia
de direitos na reforma do Judiciário no
da justiça civil e da segurança pública no
Brasil (CUNHA e ALMEIDA, 2012).
cumprimento de mandados de reintegração de posse de terras ocupadas por movimen-
A primeira diz respeito à maior inserção do País na ordem global e ao seu ali-
tos pela reforma agrária; as decisões judi-
nhamento às diretrizes de organismos
ciais que obrigam o fornecimento gratuito
multilaterais para reformas do Estado, in-
de tratamentos médicos não previstos na
cluindo a do Judiciário (SADEK e ARAN-
oferta de serviços públicos de saúde.
TES, 2001). Nesse aspecto, o discurso do-
Apesar de se basear em uma visão
minante é resultado da incorporação local
monolítica do direito e da justiça, com
de debates globais influenciados pela pro-
pouca fundamentação empírica que não a
dução acadêmica norte-americana sobre
opinião de empresários e juízes, e de igno-
direito e economia e por organismos como
rar o papel da produção legislativa desor-
o Banco Mundial e o Banco Interamerica-
denada na criação da insegurança jurídica
no de Desenvolvimento (ALMEIDA, 2010;
(FALCÃO et al., 2006), o discurso domi-
PAIVA, 2012).
nante foi influente na tramitação e na
A segunda hipótese refere-se à corre-
aprovação da Emenda Constitucional
lação de forças internas ao campo político
45/2004. Isso fica evidente em estudo pu-
e à justiça brasileiros. As vantagens do re-
blicado pela Secretaria de Reforma do Ju-
ceituário reformista proposto pelo discur-
diciário (2005) que reproduz os principais
so dominante são positivas para os capita-
argumentos do discurso dominante e rea-
listas em geral, bem como para as elites
firma a importância, para resolução dos
políticas e jurídicas que tiveram aumenta-
problemas diagnosticados, da súmula vin-
dos seus poderes por meio de medidas que
culante e da repercussão geral dos recur-
reforçam a decisão dos tribunais superio-
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Reforma do Judiciário
205
res (súmula vinculante e repercussão ge-
da inércia que causaria insegurança e de-
ral dos recursos) e submetem tribunais e
sordem no campo, a atuação judicial em
juízes de instâncias inferiores a um con-
conflitos de terra tende a ignorar a função
trole disciplinar e administrativo centrali-
social da propriedade no tratamento civil e
zado (Conselhos Nacionais de Justiça e do
a criminalizar os movimentos pela refor-
Ministério Público). Essas reformas, con-
ma agrária no tratamento penal (LIMA e
tudo, mantiveram inalterada a relação en-
STROZAKE, 2011; SINHORETTO e AL-
tre as elites políticas e jurídicas no que se
MEIDA, 2006; MATIAS et al., 2010); em
refere às suas redes de relações e à nomea-
oposição à suposta preferência pelos tra-
ção política para as cúpulas da justiça
balhadores, a Justiça do Trabalho é alvo
(ALMEIDA, 2010).
da ação protelatória de empresas resisten-
A terceira hipótese é a da dispersão dos resultados empíricos que poderiam construir um diagnóstico alternativo sobre as relações entre Judiciário e economia. Apesar da farta produção sobre o funcionamento da justiça brasileira que, ao identificar os obstáculos ao acesso à justiça e à efetivação da cidadania, fundamenta reformas democratizantes, os atores ligados a essa agenda não articularam um diagnóstico alternativo sistemático com foco nas relações entre Judiciário e economia, perpetuando a falsa oposição entre desenvolvimento econômico (aumento da renda bruta e dos ganhos do capital) e desenvolvimento social (ampliação dos direi-
tes ao pagamento de créditos trabalhistas (PINHEIRO, 2001) e desaguadouro de práticas empresariais de informalização e precarização das relações de trabalho; antes de promover a revisão indiscriminada de contratos, a eficiência da justiça civil (por meio dos juizados especiais) tem sido afetada negativamente pela massa de processos, oriundos de relações contratuais desiguais, que a ineficiência na oferta de bens e serviços e nos canais de atendimento ao consumidor de empresas e bancos terceiriza ao Judiciário (DOLCI e ALMEIDA, 2010; SINHORETTO, 2011).
11.1.4. Histórico da Emenda 45/2004
tos de cidadania). Há outras dimensões da
A emenda constitucional proposta
relação entre Judiciário e economia (rela-
por Hélio Bicudo foi retomada na revisão
cionadas à propriedade, às relações de tra-
constitucional de 1993-1994, e o seu con-
balho e ao consumo) que não são enfren-
teúdo foi reformulado por contribuições
tadas adequadamente pelo diagnóstico
que visavam outras demandas de reforma
dominante e que não foram tratadas por
da Justiça, consolidadas num relatório que
medidas de reforma: ao contrário da alega-
deu novos contornos à discussão, incluin-
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Manual de Sociologia Jurídica
206
do a polêmica proposta da súmula de efei-
híbrido4, que congestiona os tribunais su-
to vinculante, sem aprovação por falta de
periores e permite a pulverização de de-
consenso .
cisões sobre constitucionalidade de leis
3
A PEC 96/92 modificada voltou a ser
por toda a primeira instância; nesse as-
discutida em 1995 por uma comissão da
pecto, a solução teria sido ineficaz. A se-
Câmara dos Deputados que, após 10 meses
gunda dimensão, a do controle externo
de audiências públicas, apresentou um pa-
do Poder Judiciário, desejável para sua
recer incluindo a súmula vinculante e a criação do CNJ. O relatório foi criticado por sua tendência de centralização judicial e redução do acesso à justiça, e não houve condições de votá-lo. Em 1999, a comissão foi reativada, à época em que o Senado Federal instaurou a CPI do Judiciário, tendo como alvo principal a Justiça do Trabalho, acusada de corrupção e nepotismo. A CPI foi interpretada pelos magistrados como pressão para barrar sua interferência na política econômica. Contudo, a opinião geral era de que o Judiciário precisava de transformação para o resgate de sua legitimidade e confiança. No contexto, a comissão da Câmara propunha-se como alternativa para debater reformas, tendo seu relatório votado em 2000. Sadek e Arantes (2001) identificaram três dimensões principais da reforma proposta. A primeira delas seria o controle constitucional dos atos legislativos, pensado em 1988 como um sistema 3.
Para uma revisão histórica detalhada da tramitação da PEC 96/92, ver Sadek e Arantes (2001) e Renault e Bottini (2005).
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transparência, sofreu críticas pela escolha do modelo do CNJ como órgão centralizado (SADEK, 2001; BICUDO, 2004; CINTRA JR., 2004; COMPARATO, 2004; FARIA, 2004; VIEIRA, 2004). Na terceira dimensão, do acesso à justiça, o relatório teria trazido propostas desarticuladas, cujos efeitos não seriam necessariamente de democratização. Com Lula na Presidência da República, o novo Ministro da Justiça reafirmou compromisso com a reforma e a democratização das instituições, retomando a referência do período da abertura política. Em abril de 2003, foi criada a Secretaria de Reforma do Judiciário. A reação corporativa agressiva da cúpula do Judiciário, contra as reformas do Judiciário e da Previdência (que também afetou a situação funcional dos magistrados), combinava-se com a redução da tolerância da população com a baixa eficiência da justiça (SADEK, 2004). Tornava-se difícil resistir à necessidade do controle externo. Novos 4.
Para compreensão do modelo brasileiro híbrido de controle constitucional, ver Arantes (1997).
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Reforma do Judiciário
207
escândalos envolvendo juízes federais e mi-
Embora a reforma do Judiciário te-
nistros do STJ reforçavam a ideia de que os
nha demonstrado a necessidade e a possi-
controles internos não coibiam atividades
bilidade de mudanças, muitos a veem co-
criminosas e práticas corporativistas. Enti-
mo tímida, insuficiente, conservadora e
dades internacionais, como a Anistia Inter-
até pouco eficaz. Não há consenso na ma-
nacional e a ONU, inseriram em seus relató-
gistratura sobre a existência e a composi-
rios de 2003 denúncias e recomendações
ção de um conselho fiscalizador5. A ado-
focalizando a falta de independência do Ju-
ção da súmula vinculante é criticada por
diciário brasileiro na apuração de graves
reduzir a liberdade de decisão dos juízes
violações aos direitos humanos, a qual tinha
de primeira instância, e por não garantir
se tornado um aspecto secundário na trami-
necessariamente segurança jurídica e pa-
tação da PEC. No ano seguinte, o Brasil re-
dronização de decisões (SADEK, 1995;
cebeu a visita de um relator especial das
COMPARATO, 2004; VIEIRA, 2004; CUNHA
Nações Unidas para observar o sistema de
e ALMEIDA, 2012). O aperfeiçoamento da
justiça criminal.
eficiência judicial na punição de graves
A Emenda Constitucional 45 foi apro-
violações aos direitos humanos, apesar da
vada no Senado em 07 de julho de 2004,
federalização do julgamento dos crimes
tendo como pontos principais a criação do
mais graves, deixou a desejar com a manu-
CNJ, a adoção da súmula vinculante e da
tenção do julgamento de policiais milita-
repercussão geral dos recursos, a extinção
res pela Justiça Militar (exceto nos crimes
dos Tribunais de Alçada, o deslocamento
dolosos contra a vida), do foro privilegiado
de competência para a Justiça Federal das
(VIEIRA, 2004; BICUDO, 2004) e das defi-
graves violações de direitos humanos, a
ciências nas instituições da justiça crimi-
autonomia administrativa e financeira das
nal (MISSE, 2006; LIMA, 2007). Apenas a
Defensorias Públicas, a criação de varas
autonomia das Defensorias Públicas pare-
agrárias, novos critérios de promoção nas
ce poder produzir algum efeito concreto
carreiras e mudanças na competência da
no aumento da oferta de acesso à justiça
Justiça do Trabalho. Estes foram os pon-
para a população mais pobre.
tos em que a Secretaria da Reforma do Judiciário conseguiu consenso entre lideranças do Congresso e da justiça. Também foi lançado um pacote de reformas infraconstitucionais da legislação processual, muitas delas ainda em tramitação.
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5.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Juízes para a Democracia defenderam propostas mais amplas de controle democrático. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por sua vez, sempre foi contrária ao CNJ, tendo ajuizado duas ações no STF, nas quais questionava a constitucionalidade do órgão, sendo derrotada em ambas.
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Entretanto, é pequena a expectativa
Judiciário por meio da sua aproximação
de que a Emenda 45 produza efeitos im-
com a “realidade social”. Esse projeto este-
portantes sobre o aumento da oferta de
ve na base de movimentos críticos, como o
prestação jurisdicional e sobre a participa-
“direito alternativo” (ENGELMANN, 2006;
ção popular na administração da justiça.
GUANABARA, 1996), surgidos no interior
As mudanças mais significativas nesses
dos grupos profissionais com o objetivo de
aspectos têm brotado de iniciativas de
reformulação de suas práticas judiciais e
alguns magistrados em implementar ex-
de atender às demandas sociais por direi-
periências inovadoras na gestão de varas e
tos, em oposição ao paradigma dominante
fóruns e no acesso alternativo à justiça6.
da neutralidade judicial e da estrita vinculação à lei. Trata-se de associar a ideia de
11.2. A reforma como democratização da justiça Vimos, portanto, que os debates públicos sobre a reforma do Judiciário estão estreitamente relacionados com o processo de redemocratização do País. Observamos também que, por conta dessa associação, o debate vai muito além do Poder Judiciário, tratando-se, na verdade, de uma discussão sobre a reforma da justiça. Os debates acadêmicos e políticos sobre a reforma do Judiciário pontuam diferentes sentidos da democratização da justiça (ALMEIDA, 2010). Um primeiro sentido de democratização vem dos anos 1980 e associa a reforma à necessidade de legitimação do Poder 6.
Ver, no site do Ministério da Justiça, o banco de dados do Prêmio Innovare, destinado a divulgar experiências de gestão modernizada, e o mapeamento “Acesso à justiça por sistemas alternativos de administração de conflitos”, que identificou experiências de resolução alternativa no País, indicando que parte significativa delas é criada e mantida pelo próprio Poder Judiciário.
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democratização a uma mudança cultural das instituições e dos operadores do sistema de justiça, no sentido da criação de uma cultura jurídica democrática7. Um segundo sentido, que decorre do anterior, é o da democratização do acesso à justiça, por meio da ampliação da oferta de meios de resolução de conflitos. Foi sustentado por movimentos de direitos humanos, do direito alternativo e de juristas “democráticos”, mas encontrou respaldo entre operadores do direito em geral e especialistas em direito processual. Este foi o projeto de democratização que orien-
7.
Trata-se de buscar maior aproximação do Poder Judiciário com a realidade social, invertendo assim o descolamento ensejado pelo mito da neutralidade do Direito e seus operadores: “A grande questão, na verdade, é aquilo que muitos parecem não ver: o estar formado numa cultura jurídica incapaz de entender a sociedade e seus conflitos e a má vontade em discutir a democratização efetiva deste ramo do Estado. Como tornar o Judiciário permeável aos anseios de uma sociedade que deseja expor seus conflitos, mas também deseja submetê -los a um certo ordenamento legal, com a ajuda de instituições capazes de permitir a convivência ordenada – e não só a repressão desordenada?” (FARIA e LIMA LOPES, 1989, p. 163).
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Reforma do Judiciário
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tou as principais reformas no Brasil, desde
Finalmente, uma quarta dimensão
o fim dos anos 1970, como as leis dos Jui-
da democratização da justiça é a diversifi-
zados Especiais, da Ação Civil Pública e o
cação social das carreiras jurídicas e a
Código de Defesa do Consumidor .
articulação entre essa diversificação so-
8
A terceira perspectiva de democrati-
cial e as outras dimensões da democratiza-
zação da justiça é a democratização das
ção da justiça baseadas em mudanças cul-
carreiras jurídicas. Esse projeto busca o
turais, acesso e democracia interna.
fortalecimento das garantias funcionais e o
O aumento do pluralismo ideológico
estabelecimento de condições objetivas de
na magistratura e em outros grupos de ju-
acesso e progressão nas hierarquias inter-
ristas (VIANNA et al., 1997; ENGEL-
nas. Pode ser entendido como desdobra-
MANN, 2006) está relacionado à entrada
mento de outros movimentos democrati-
no sistema de justiça de novos atores, por-
zantes mencionados anteriormente, que
tadores de perfis sociais que os diferen-
objetivavam maior aproximação da realida-
ciam da tradicional e relativamente homo-
de social e ampliação do acesso à justiça.
gênea elite jurídica10. A literatura diverge,
Esse sentido de democratização inter-
contudo, em relação ao alcance dos proje-
na do Judiciário esteve bastante presente
tos democratizantes da justiça brasileira.
na mobilização corporativa na Assembleia
Pode-se dizer que há duas grandes ten-
Nacional Constituinte, na Reforma do Ju-
dências de análise (SINHORETTO, 2011):
diciário de 2004 (especialmente no projeto
na primeira, tende-se a valorizar os efeitos
original) e no uso instrumental do Conse-
de ruptura e de mudança no sistema de
lho Nacional de Justiça pelas bases e asso-
justiça, como efeito das mudanças institu-
ciações profissionais em torno de questões
cionais (especialmente a partir da Consti-
como provimento de cargos, progressão na
tuição de 1988) e da politização dos gru-
carreira e eleições para órgãos de cúpula
pos e das práticas profissionais; e na
(ALMEIDA, 2010)9.
segunda, fortemente baseada em estudos sobre a justiça criminal, tende-se a valori-
8.
9.
Guanabara classifica esses movimentos de reforma como sendo reformas “a partir de dentro e pelo alto” (GUANABARA, 1996, p. 414); Vianna e outros (1999) classificam -nos como movimentos de autorreforma, sem maior mobilização social nesse sentido, e que buscam reelaborar a articulação teórica entre acesso à justiça e democratização. Em comentário à Emenda Constitucional 45/2004, o desembargador José Renato Nalini afirma que “O modelo de Judiciário brasileiro já teria sido otimizado se as estruturas do Poder não oferecessem resistência ao estabelecimento de maior horizontalidade na tomada de decisões administrativas” (2005, p. 161).
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zar os obstáculos e as resistências a uma efetiva democratização do direito e da prática da justiça e à incorporação de valores democráticos e igualitários pelos agentes 10.
O ingresso de novos grupos no campo jurídico deu-se em decorrência da expansão do ensino jurídico a partir da década de 1960 e dos efeitos da mobilidade social experimentada pelo Brasil no mesmo período.
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Manual de Sociologia Jurídica
e corporações do campo. A primeira ten-
nos controversas, como acesso à justiça,
dência estaria baseada na análise de ma-
segurança jurídica e determinadas propos-
croprocessos sociais e políticos, enquanto
tas de controle externo (ALMEIDA, 2010).
a segunda enfocaria microprocessos e re-
No que se refere à democratização in-
lações de poder presentes no cotidiano
terna, o processo político da reforma de
das instituições e do funcionamento do
2004, mesmo que tenha resultado em ine-
sistema de justiça. Uma terceira tendência
gáveis ganhos de transparência, racionali-
buscaria justamente explorar as contradi-
dade e organização das carreiras jurídicas
ções entre as dinâmicas de conservação e
de Estado, foi todo conduzido por elites ju-
de mudança no sistema de justiça, nas prá-
rídicas cujas posições eram há muito con-
ticas profissionais e no funcionamento de
solidadas, com participação inclusive na
suas instituições.
Assembleia Nacional Constituinte de 1986.
Além disso, é preciso considerar que
Além disso, o espaço político criado para a
os grupos com projetos democratizadores
atuação das lideranças associativas das
considerados mais radicais (voltados para
profissões jurídicas se deu por meio da sua
a transformação da cultura jurídica e das
centralização em torno das posições insti-
hierarquias internas das instituições) não
tucionais de cúpula, especialmente as de
alcançaram posições dominantes no cam-
nível nacional (STF, OAB, Procuradoria-
po jurídico e nos círculos das elites jurídi-
-Geral da República, CNJ, CNMP e Minis-
cas que influenciaram a reforma do Judi-
tério da Justiça).
ciário. Segundo Engelmann (2006), não só
Essas posições de elite, que domina-
os juristas mais críticos foram acomodados
ram os processos de reforma institucional
num espaço acadêmico minoritário e com
desde 1980, sofreram poucos impactos da
reduzido impacto sobre o sistema de justi-
massificação e da diversificação social das
ça, como também o discurso de politização
carreiras jurídicas nas últimas décadas.
e crítica à tradição jurídica acabou sendo
Isso porque o poder da administração da
incorporado pelas elites tradicionais, ainda
justiça estatal organiza-se não somente
que de forma moderada, passando a com-
em bases institucionais, observado o orga-
por o repertório dos debates sobre a re-
nograma previsto pelo desenho constitu-
forma. A incorporação e a moderação do
cional, mas também a partir de posições
discurso radical reduzem nos projetos re-
de poder baseadas em capitais simbólicos
formistas a pauta de aproximação com os
(reconhecimento, prestígio, faculdades de
movimentos sociais e a democratização
origem) que muitas vezes ignoram o dese-
das carreiras e instituições, para se debru-
nho federativo e multiprofissional do siste-
çarem preferencialmente em questões me-
ma de justiça (ALMEIDA, 2010).
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Reforma do Judiciário
11.2.1. Juizados especiais A criação dos juizados especiais foi o movimento mais importante de reforma no que tange à administração da justiça e à democratização de seu acesso ao cidadão comum (VIANNA et al., 1999; SADEK, 2002). Sua criação veio responder, com as tintas típicas do caso brasileiro, à expansão do direito e do uso do Judiciário,
211
Trata-se da inversão de um fluxo de conquistas que faz com que a expansão do acesso à justiça no Brasil não esteja ligada à participação da sociedade civil, mas seja resultado de um movimento de autorreforma do Poder Judiciário, fomentada pelo centro (VIANNA et al., 1999), pela elite jurídica – ao contrário de outros países latino-americanos, onde as reformas têm
diante da diminuição da capacidade do
revitalizado instituições tradicionais de
Executivo em fornecer respostas efetivas
mediação de conflitos associadas a sensi-
às demandas por justiça distributiva (GA-
bilidades jurídicas e moralidades locais.
RAPON, 1999). É uma iniciativa própria
A criação dos juizados de pequenas
da “terceira onda” de acesso à justiça
causas brasileiros inspirou-se nas Small
(CAPPELLETTI e GARTH, 1988), cujas
Claims Courts de Nova Iorque, que proí-
principais inovações estão na facilitação
bem o acesso de pessoas jurídicas e privile-
do processamento das “pequenas causas”
giam a informalidade do processo, a orali-
e acesso aos indivíduos mais pobres, o que
dade e as técnicas de mediação e arbitragem
teria contribuído para dar realidade aos
(algo comum aos países da Common Law,
novos direitos.
ao passo que os países da Civil Law imple-
Uma matriz crítica à informalização a
mentaram outros tipos de reforma).
relaciona à resposta conservadora de fle-
Os antecedentes da Lei n. 9.099/95
xibilização da garantia de direitos recém-
remontam à criação dos Conselhos de Con-
-conquistados por segmentos mais popu-
ciliação e Arbitragem, no Rio Grande do
lares, despolitizando a conquista desses
Sul, nos anos 1980, que visavam ampliar o
direitos pela necessidade de negociá-los
acesso à justiça, na chave da democratiza-
individualmente na arena judicial (NA-
ção social. A experiência local atraiu a
DER, 1994).
atenção do Ministério da Desburocratiza-
A singularidade da experiência na-
ção, cuja agenda de racionalização da má-
cional de informalização é que ela emerge
quina administrativa elegia o Judiciário
sem que a política de assistência judiciária
como instituição central para uma reforma
individual estivesse universalizada e sem
de eficiência (VIANNA et al., 1999). No
que a postulação de demandas coletivas
contexto do regime autoritário, a discus-
tivesse demonstrado efeitos concretos.
são ficou limitada à simplificação de proce-
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dimentos e celeridade, excluindo da pauta
mum. Numericamente, a implantação dos
a democratização da cidadania. Foi aprova-
juizados especiais ampliou o acesso à jus-
da em 1984 uma lei para as “pequenas cau-
tiça e imprimiu rapidez e informalidade à
sas”, combinando mecanismos judiciais e
justiça (CUNHA, 2008), mas há conclu-
extrajudiciais, mantendo as formas alter-
sões divergentes quanto ao caráter demo-
nativas sob o controle dos juízes e abrindo
cratizante da instituição.
um campo de ação inovadora. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e juristas ligados ao movimento democrático criticavam na lei a marca de racionalização econômica, a serviço unicamente do desafogamento da justiça, por meio da perda de certeza jurídica, flexibilização de garantias e exclusão da advocacia e do Ministério Público (ALMEIDA, 2006). A Constituição de 1988 previu a criação de juizados especiais, inovando na extensão às infrações penais de menor potencial ofensivo – o que coincidia com uma tendência internacional de crítica à “inflação penal” e defesa de despenalização e descriminação. Com isto, uma nova lei passou a ser discutida, sendo aprovada em
O primeiro efeito dos JECrims foi desafogar as delegacias e varas criminais, resultando em controle mais efetivo de condutas que anteriormente não seriam judicializadas, como casos de violência doméstica e consumo de drogas. Nos juizados cíveis, o efeito de desafogamento das varas não foi tão evidente, porque eles passaram a atender uma demanda diferente da que ingressa nas varas comuns, sobretudo nos conflitos entre indivíduos e empresas. As pesquisas realizadas constatam que, em muitos lugares, ao invés de terem sido criados novos postos, com a ampliação da estrutura judicial (cargos e espaços), os juizados passaram a funcio-
1995, estabelecendo a competência dos jui-
nar junto das varas comuns como uma op-
zados para causas cíveis de até 40 salários
ção de rito para o processamento de um
mínimos, introduzindo a obrigatoriedade
conflito (CUNHA, 2001; DESASSO, 2001;
de representação por advogado nas causas
OLIVEIRA e DEBERT, 2007).
acima de 20 salários mínimos, e infrações
Isto contribui para o trânsito de lógi-
apenadas em até 2 anos. Em 1999, estendeu-
cas de administração de conflitos diver-
-se a competência para causas movidas por
sas, muito frequentemente constatado nos
microempresas. Em 2001, foram criados os
JECrims (AMORIM et al., 2003). A conci-
Juizados Especiais Federais.
liação e a transação penal, que em termos
Os juizados expandiram-se pelo País,
teóricos teriam significado a introdução
respondendo em alguns Estados por uma
de princípios e institutos de tradição dia-
movimentação superior à da justiça co-
logal, possibilidades de participação popu-
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lar na administração da justiça, acabaram
racionalização e acabam por adotar padro-
na prática sendo colonizados pelas con-
nizações para solucionar conflitos de na-
cepções e práticas penais punitivas, tute-
turezas diversas. O pagamento de cestas
lares e hierárquicas, convertendo em im-
básicas como resultado da transação pe-
posição de pena antecipada aquilo que o
nal foi amplamente criticada por juristas,
espírito dos legisladores imaginava como
por contrariar garantias, mas também pelo
possibilidade de negociação e diálogo en-
movimento feminista que acusou a banali-
tre as partes.
zação no tratamento dos conflitos envol-
Pesquisas realizadas concluem que a
vendo a violência contra a mulher (já que
burocratização dos procedimentos dos JE-
entre 70% e 90% dos conflitos administra-
Crims significa a inversão dos princípios inovadores da Lei n. 9.099/95, aproximando-os da lógica da justiça criminal concebida como uma “linha de montagem”, organizada para melhorar a produtividade e alcançar a punição com o mínimo dispêndio de recursos, onde a produção de acordos e transações torna-se um fim em si (AZEVEDO, 2000; BATITTUCCI et al., 2010; AMORIM et al., 2003). O predomínio da lógica burocrática e da racionalização tem imprimido nas salas de conciliação do País uma pressão dos
dos pelos JECrims envolviam a violência de gênero). A reação à padronização veio com a Lei Maria da Penha, que vedou a possibilidade de administração alternativa dos conflitos domésticos; de um lado, combateu o que era visto como banalização ou penalização ínfima da violência; de outro, eliminou a possibilidade de qualquer forma de mediação extraprocessual, a despeito dos interesses individuais dos protagonistas dos conflitos.
Considerações finais
conciliadores para a realização de acordos
Os juizados mudaram as condições
também nos juizados cíveis. O preparo dos
do acesso à justiça no Brasil. Isto não sig-
conciliadores para exercer função tão re-
nifica que os problemas do acesso tenham
levante tem sido questionado. Em muitos
sido resolvidos. Diversos estudos das ciên-
Estados, como em São Paulo, é uma fun-
cias sociais têm apontado para a pouca
ção voluntária e gratuita, exercida funda-
mobilização da linguagem dos direitos nas
mentalmente por estudantes de Direito
sessões de conciliação, além da pressão
interessados nos créditos de estágio, per-
autoritária para o fechamento de acordos.
manecendo pouco tempo na função. Mes-
Por isso, pode-se concluir que o movimen-
mo aqueles que têm um preparo profissio-
to de expansão da oferta de justiça estatal
nal maior sofrem a pressão da lógica de
não coincide exatamente com a expansão
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do Estado de Direito a novas camadas so-
articulada de serviços públicos, que nem
ciais, nem a mudanças culturais entre usuá-
sempre funciona. Depende também de mu-
rios e operadores do sistema. Em muitos
danças organizacionais nas instituições da
casos, o juizado representa uma porta de
segurança e da justiça criminal, que não
acesso subalterna para os casos considera-
ocorreram (AZEVEDO, 2008; PASINATO,
dos pelos administradores judiciais como
2012). Parecem existir dois cenários: em
menos relevantes (SINHORETTO, 2010),
alguns casos, tem persistido a negociação
casos que nunca tensionarão o direito es-
informal de transações de pena, mesmo ve-
tatal, que nunca serão objeto de aprecia-
dada pela lei, em nome da conservação da
ção dos tribunais e que, por isso, não leva-
família e em detrimento dos direitos indivi-
rão à institucionalização de novos direitos.
duais de vítima e acusado; em outros, o pre-
Como se faz a seleção dos casos?
domínio da dimensão punitiva do agressor
Como é o preparo dos conciliadores? Que
tem prevalecido sobre a promoção dos di-
técnicas de conciliação têm sido aplica-
reitos da vítima, já que é mais fácil superlo-
das? Quais os resultados disso para a cida-
tar prisões do que criar e fortalecer servi-
dania? São todas perguntas que nos levam
ços de assistência, educação, habitação e
à formulação de novas demandas por
renda. A solução da obrigatoriedade do in-
transparência e controle social das formas
quérito policial – cartorial e burocrático por
da justiça estatal no Brasil.
natureza – e do processo penal com o desfe-
A Lei Maria da Penha permite com-
cho prisional fez retroagir a possibilidade
preender como a justiça vem vendo politi-
de autonomia dos indivíduos na adminis-
zada por segmentos sociais em luta por no-
tração de seus conflitos e reduziu a multi-
vos direitos, mas também os limites das
plicidade infinita dos conflitos domésticos
alterações legislativas numa realidade so-
e de gênero a uma única forma de adminis-
cial em que a proteção dos direitos indivi-
tração possível.
duais depende de uma articulação muito mais ampla de serviços públicos, atores e agências institucionais. Muito além de seu caráter punitivo, a legislação inovou na criação de medidas de proteção à vida e à integridade física das mulheres em situação de violência. Nesse aspecto, ela é uma legislação moderna, com uma concepção
Tanto a experiência dos juizados como a da Lei Maria da Penha demonstram que os principais obstáculos à democratização da justiça e à efetividade dos direitos civis não foram frontalmente atacados por nenhuma das reformas ocorridas desde os anos 1970, incluindo a reforma de 2004.
de proteção integral às mulheres em situa-
Estes obstáculos localizam-se funda-
ção de violência que depende de uma rede
mentalmente no modo de funcionamento
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das organizações judiciais e policiais, na
reito à vida, em que a desigualdade social
cultura jurídica predominante pelas quais
brasileira se torna cruelmente explícita.
são operadas: orientada por saberes e prá-
Assim, no relatório por eles divulgado
ticas que reforçam a desigualdade de di-
(ENASP, 2012) apreende-se que os princi-
reitos entre as classes, grupos étnicos, gê-
pais entraves para a eficácia da investiga-
neros, origens sociais (LIMA, 2007). Essas
ção criminal dos crimes de homicídio são
persistências só foram possíveis pela capa-
problemas estruturais das polícias civis,
cidade das corporações profissionais em
que têm dificuldades de realizar as tarefas
afastar da pauta das reformas mecanismos
elementares da investigação (preservação
de controle social da administração da jus-
dos locais de crime, perícias, comunicação
tiça. Os dispositivos criados não foram
com outros órgãos). O controle da ativida-
avaliados em função dos efeitos concretos
de policial tanto interno quanto externo é
no cotidiano das relações de poder entre
também considerado um entrave para a
cidadãos e agentes estatais, e só acentua-
eficiência, bem como a capacitação dos re-
ram a hierarquia entre as cúpulas das or-
cursos humanos. Contudo, a conclusão do
ganizações e as suas bases – nas quais
relatório não se resume a apontar deficiên-
concretamente se localizam os problemas
cias materiais; reconhece-se que o princi-
de carência material e de recursos huma-
pal entrave é a ausência de “tradição de
nos, excesso de demanda e de controles
trabalho conjunto e articulado”. A despeito
puramente burocratizados.
dos estudos sobre a polícia terem diagnos-
Este diagnóstico é claro até mesmo
ticado esses problemas estruturais desde
para os órgãos centralizados como o CNJ e
os anos 1980 (incluindo a crítica ao carto-
o CNMP, os quais juntamente com o Minis-
rialismo do inquérito policial, às formas de
tério da Justiça, identificaram na impuni-
produção da prova e da verdade judicial),
dade dos crimes dolosos contra a vida um
suas contribuições nunca foram levadas
dos problemas cruciais da justiça. Ao ado-
em conta pela elite dos reformadores.
tar como meta a redução desta impunida-
O problema é o mesmo se considerar-
de, a Estratégia Nacional de Justiça e Segu-
mos a justiça em geral, incluindo a justiça
rança Pública, criada pelos três órgãos em
civil. A criação do CNJ e de suas funções de
2010, retornou ao problema que, no início
planejamento e controle administrativo não
da democratização, impulsionou os movi-
foram suficientes para a reestruturação dos
mentos pela reforma da justiça: a dificulda-
órgãos judiciais. A imposição de metas de
de de assegurar o exercício igualitário de
produtividade aos juízes não veio acompa-
direitos fundamentais, a começar pelo di-
nhada de capacitação dos recursos huma-
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nos atuantes no atendimento direto às demandas dos cidadãos, sequer de um debate consistente sobre funções administrativas e jurisdicionais no interior do Judiciário. Num contexto em que os juizados especiais foram esquecidos pela reforma de 2004 (mesmo já dando sinais de esgotamento desde o fim da década de 1990), a pressão por produtividade pode ampliar a precarização da oferta de justiça à população mais pobre, já visível na prática da informalização de procedimentos conduzidos por leigos despreparados e subordinados ao controle judicial, sem que isso represente uma participação popular efetiva na administração horizontal dos conflitos ou o aumento na qualidade do exercício de direitos. Em ambos os casos, percebe-se que a razão da ineficácia das reformas está, em primeiro lugar, na insistência em reformas constitucionais e legislativas de pouca penetração no funcionamento cotidiano das instituições de justiça. Em segundo lugar, na concentração das decisões sobre a gestão e a reforma da justiça em grupos de elites profissionais e burocráticas, tendo como resultado, para a sociedade civil, a ausência de canais para participar da definição das políticas judiciais.
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12 Acesso à Justiça A construção de um problema em mutação
Carmen Silvia Fullin
12.1. A emergência do tema do acesso à justiça e sua conceituação Como aponta Mauro Cappelletti (1988, p. 8), mesmo que a expressão “acesso à justiça” seja de difícil definição, ela pode resumi-
venção de uma problemática ligada a este tema, têm a ver com transformações históricas sobre a ideia de Estado e de seu papel na regulação da vida social. Por isso, se em um primeiro momento o acesso à justiça dentro
damente significar duas coisas: primeiro, a
de uma perspectiva liberal resumia-se ao
possibilidade de as pessoas revindicarem di-
entendimento de que todo cidadão tem li-
reito e/ou resolverem conflitos no Judiciário;
berdade para litigar em nome da defesa de
segundo, a possibilidade de terem acesso a
seus interesses, nos anos 1960 esta interpre-
resultados que sejam individual e social-
tação foi severamente modificada. A partir
mente justos. Assim, mais do que dispor
de então, seu conteúdo foi revestido de um
concretamente do direito de recorrer aos tri-
significado mais exigente, associado à ideia
bunais, a expressão tem um conteúdo mais
de promoção de igualdade social; tarefa
abrangente e exigente relacionado à efetiva-
esta, naquele momento, assumida em vários
ção de justiça social dentro dos tribunais.
países que adotavam políticas de bem-estar
Entretanto, o que se compreende e o que se
(welfare state). Nesse contexto, poder lu-
define por acesso à justiça, assim como a in-
tar no judiciário pela concretização desta
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igualdade passou a ser uma questão de justi-
sociedades ocidentais modernas e capita-
ça social; portanto, acessar a justiça deixou
listas, desenvolveu-se a crença de que cabe
de significar somente a possibilidade de ter
a um segmento deste poder estatal, o Judi-
o judiciário à disposição, mas, além disso,
ciário, “dizer o direito”, isto é, solucionar
dispor de condições reais (econômicas, cul-
controvérsias, processar e gerir desacordos
turais, institucionais) para acioná-lo. Em ou-
envolvendo violações à lei, por meio de pro-
tras palavras, o acesso aos tribunais passou
cedimentos racionais. Assim, estabeleceu-
a ser visto como um problema social a ser
-se que é tarefa dos juízes auxiliados por
debatido e gerido pelo poder público.
uma equipe de funcionários, seguindo pro-
Entretanto, é preciso ter em conta
cedimentos públicos e previstos nos códi-
que a construção do problema do acesso à
gos, determinar o que é o justo, o certo ou o
justiça também está relacionada à valori-
errado, diante de um desentendimento en-
zação da participação do Estado na regu-
tre as partes. É, portanto, um corpo de es-
lação e no controle de conflitos sociais.
pecialistas no processamento racionalizado
Assim, a emergência de políticas de pro-
de conflitos o responsável por colocar um
moção deste acesso também estão rela-
fim nas disputas, evitando que esta seja re-
cionadas à necessidade, em um dado con-
solvida por meios privados, reputados como
texto, de fortalecimento da noção e do
mais violentos.
sentimento de que as instituições estatais
Sob a égide deste modelo de organi-
são o melhor e mais seguro destino para
zação política e jurídica – a qual Max We-
resolução de disputas e afirmação de di-
ber (1984 [1922]) caracterizou como bu-
reitos, reforçando-se assim a centralidade
rocrática – é que a acessibilidade aos
do papel do Estado na vida social.
mecanismos institucionais considerados
Por isso, é possível afirmar que o pro-
mais “civilizados” (pacíficos) para resol-
blema do acesso à justiça encontra-se tam-
ver os desacordos relacionados ao des-
bém historicamente articulado à afirmação
cumprimento da lei começa, em determi-
de uma forma específica de organização
nado momento histórico, a ser associada
política e jurídica que marca as sociedades
a uma garantia de cidadania. Recorrer
ocidentais capitalistas modernas. É nelas
aos tribunais significa, então, não somen-
que se desenvolve a concepção de que o Es-
te ter a possibilidade de obter vias mais
tado, composto por um conjunto de indiví-
pacíficas de entendimento para uma con-
duos organizados em diferentes funções,
trovérsia, mas, sobretudo, ter acesso à
detém o monopólio legítimo do uso da força
efetivação de direitos, sejam eles civis,
para administrar os conflitos sociais. Nas
políticos ou sociais.
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É nos países centrais, no contexto
direito promoveu a judicialização das re-
do pós-guerra, quando se desenvolvem os
lações sociais – tal como definido por
chamados Estados de bem-estar social
Vianna et al. (1999) –, conferindo centrali-
(welfare state) e quando são intensifica-
dade política ao poder Judiciário.
das as relações de consumo e os novos
Em contrapartida, a crise econômica
movimentos sociais invadem a cena pú-
que afetou as políticas de bem-estar no fi-
blica, que esta dimensão do acesso à jus-
nal da década de 1970 e início dos anos
tiça ganha notoriedade. Assim, no mesmo
1980 em países centrais reforçou ainda
momento em que políticas de bem-estar
mais essa centralidade, contribuindo para
consagraram direitos sociais e econômi-
que o Judiciário se constituísse, inclusive,
cos (direito ao trabalho, ao salário justo, à
na instância para pleitear direitos sociais
empregabilidade, à saúde, à educação, à
precarizados pelo próprio Estado. Diante
habitação etc.) como deveres do Estado, a
disso, o Judiciário constitui-se no lugar
expansão industrial vista no pós-guerra
para o qual passaram a desaguar as expec-
fortalece as reivindicações consumeris-
tativas pela concretização de igualdade
tas por proteção legal. Em paralelo, fora
social e justiça distributiva, configurando-
do tradicional campo das mobilizações
-se algo que o sociólogo português Boa-
operárias, grupos de afrodescendentes,
ventura de Sousa Santos (1995) chamou
mulheres, ambientalistas, estudantes or-
de “explosão de litigiosidade”. Este fenô-
ganizam-se em movimentos sociais e ado-
meno indica o quanto os tribunais ganha-
tam a linguagem reivindicativa dos direi-
ram importância enquanto um terreno de
tos, isto é, elaboram suas demandas
lutas pela afirmação da cidadania. Dispor
políticas em termos jurídicos, traduzindo
de meios para socorrer-se do Judiciário
seus apelos por igualdade em lutas pela
para defender um direito, isto é, dispor do
criação de leis.
direito de recorrer e usufruir do serviço
O aumento e a diversidade dos novos
público de resolução de conflitos tornou-
direitos registrados em diferentes legisla-
-se um direito fundamental “cuja denega-
ções promoveram a abertura de novos cam-
ção acarretaria a de todos os demais”
pos de litigação, isto é, os tribunais foram,
(SANTOS, 1995, p. 167).
pouco a pouco, tornando-se o lugar privile-
Entretanto, a mesma recessão econô-
giado para que os direitos legalmente con-
mica que fragilizou a promoção de direitos
quistados fossem judicialmente efetivados.
sociais pelos Estados de bem-estar tam-
Dito de outro modo, a regulamentação cres-
bém comprometeu os investimentos públi-
cente de várias esferas da vida social pelo
cos em serviços judiciários necessários
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para responder à “explosão de litigiosida-
preender o modo pelo qual os cidadãos co-
de”. O descompasso entre o aumento ex-
muns relacionam-se com os tribunais, com
pressivo na demanda por tais serviços e a
o intuito de identificar quais são os princi-
falta de incremento na qualidade de sua
pais impedimentos encontrados para que o
oferta contribuiu para o desdobramento
direito ao acesso à justiça seja usufruído.
da chamada crise da administração da jus-
São complexos os processos que influem na
tiça, isto é, no comprometimento do aces-
tomada de decisão em recorrer ao sistema
so dos cidadãos ao aparato público de efe-
judiciário. Em geral, as pesquisas demons-
tivação de direitos. Nesse contexto, não
tram como elementos de ordem econômica,
somente os desafios para propor uma ação
social e cultural tanto podem barrar a en-
judicial, isto é, provocar o judiciário, mas
trada de reivindicações no sistema de justi-
também questões e debates relacionados à
ça quanto comprometer a “igualdade de
qualidade e ao estilo de serviço prestado
armas” entre as partes em uma disputa ju-
pelo judiciário ganham destaque.
dicial, gerando desigualdades. Entre os obstáculos analisados que
12.2. A identificação das barreiras de acesso à justiça
bloqueiam o desejo de recorrer ao judiciário, o econômico é muitas vezes o mais aparente. O pagamento de honorários ad-
Vários são os motivos que mais repe-
vocatícios e o risco de arcar com custas
lem do que aproximam o cidadão comum
processuais por quem perde a disputa
dos tribunais. Embora a constatação deste
(ônus da sucumbência) podem tornar o
problema e saídas para resolvê-lo não se-
envolvimento em uma contenda judicial
jam uma novidade1, é no contexto da crise
pouco vantajoso, sobretudo no caso de tais
da administração da justiça que este tema
despesas excederem o montante da con-
torna-se uma questão relevante para os
trovérsia. Note-se que a desproporção en-
governos, mobilizando também investiga-
tre o valor da causa em questão e o dispên-
ções de cientistas sociais e juristas, as
dio de recursos para sua judiciarização
quais impactaram os rumos de reformas
tende a ser maior para os economicamente
judiciárias adotadas em vários países.
mais precarizados, cujos bens patrimo-
Desde então, inúmeras pesquisas vêm
niais em disputa são de pequena monta.
sendo produzidas com o objetivo de com-
Assim, demandantes envolvidos neste tipo de contenda podem ser mais vitimizados
1.
Tal constatação remonta ao início do século XX, quando países como Alemanha e Áustria desenvolveram estratégias pontuais como criação de centros de consulta jurídica em sindicatos alemães (SANTOS, 1995).
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pelos obstáculos econômicos. Esta vitimização é agravada pela lentidão processual, que pode converter-se em um custo adi-
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cional, pressionando o demandante a acei-
de moral sobre as partes) de modo a evitar
tar acordos em torno de valores muito in-
a frieza, a radicalidade e a impessoalidade
feriores ao que teria direito.
da intervenção judicial. Considerem-se
Se o obstáculo econômico é mais evi-
ainda como barreiras culturais de acesso
dente, sobretudo em questões envolvendo
ao judiciário a pouca familiaridade, a des-
bens patrimoniais, ele não atua isolada-
confiança e mesmo a distância geográfica
mente para determinar a escolha pelo re-
de determinados segmentos sociais com
curso aos tribunais. Há, em paralelo, um
relação a advogados (privados ou públi-
conjunto de fatores sociais e culturais in-
cos), inviabilizando esclarecimentos que
terligados e não menos decisivos. “Litígios
potencializem a litigação2.
são construções sociais” (SANTOS, MAR-
Ingressar em juízo significa também
QUES e PEDROSO, 1996), ou seja, a trans-
sujeitar-se a adentrar por um ambiente te-
formação de um conflito em uma deman-
mido pelo poder de mudar destinos, in-
da judicial é apenas uma das alternativas,
compreensível na sua lógica de funciona-
não necessariamente e nem a mais prová-
mento fortemente apoiada no uso de um
vel. Para isso, é necessário não somente o
vocabulário e de uma linguagem impene-
conhecimento dos direitos disponíveis,
trável, repleto de formalismos e rituais,
mas o reconhecimento de que o problema
desconhecidos do senso comum. Um espa-
vivenciado lesou um direito exigível juridi-
ço em que elementos arquitetônicos, a ves-
camente. Realizada esta etapa, é preciso
timenta, os gestos, as posturas dos que lá
haver disposição para litigar contra quem
circulam reforçam hierarquias sociais,
lesou tal direito. A depender do tipo de re-
criando um ambiente pouco acolhedor. Es-
lação social entre as partes – vizinhança,
tes elementos, somados às incertezas e
trabalho, família, lazer, consumo – e da
tensões envolvidas em um processo judi-
hierarquia entre elas, pode haver, por par-
cial, têm chamado a atenção para a exis-
te do lesado, maior ou menor pressão ou
tência de barreiras de caráter psicológico
interesse em levar seu adversário às bar-
que também afetam o interesse por “bri-
ras dos tribunais. Tornar público um con-
gar na justiça”. Há, portanto, o custo psí-
flito levando-o à justiça pode gerar uma
quico da litigância, isto é, um desgaste
ruptura ou uma transformação da relação
emocional que o demandante deve estar
entre as partes, por vezes prejudicial ou
disposto a enfrentar. Acrescente-se que
pouco desejada pelo(a) lesado(a). Há situações nas quais outras formas de intervenção social sobre o desentendimento são acionadas (apelo a pessoas com autorida-
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2.
A respeito das etapas que devem ser superadas para a transformação de um conflito em litígio, sugerimos um exame mais exaustivo da “pirâmide de litigiosidade” apresentada por Santos, Marques e Pedroso (1996).
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em determinados países a experiência co-
ciários pelo cidadão, ou o que podemos cha-
tidiana de determinados segmentos so-
mar de barreiras externas ao acesso à justi-
ciais com altos índices de violência policial
ça, alguns estudiosos focam suas análises
tende a gerar descrédito e pavor em rela-
no modo como o sistema de disputa judicial
ção a tudo que se relaciona ao uso do ser-
compromete a paridade, isto é, “a igualdade
viço público de resolução de conflitos.
de armas” entre as partes em litígio. Mais
É importante levar em consideração
do que saber se os cidadãos têm iguais con-
que as barreiras culturais e sociais são evi-
dições de servirem-se das instituições judi-
dentemente atenuadas ou agravadas de-
ciárias, eles têm entendido que é preciso
pendendo do grau de vulnerabilidade so-
verificar se, uma vez dentro dele, esta igual-
cial da parte lesada, vulnerabilidade esta
dade se mantém. Neste aspecto, destacam
ligada a variáveis como gênero, raça, ida-
barreiras internas ao acesso à justiça am-
de, escolaridade, local de moradia, entre
pliando o sentido desta expressão – que
outras. Há, portanto, grupos sociais que,
não se resume no potencial diferenciado
segundo tais variáveis, podem ter, em de-
dos cidadãos para ingressar em juízo, mas
terminados tipos de conflito, menor aces-
em verificar se, iniciada a disputa e no seu
sibilidade ao serviço público de adminis-
processamento dentro do sistema de justi-
tração de conflitos3.
ça, cada um dos lados mantém condições
Além de questões referentes ao que impede o livre consumo dos serviços judi-
equilibradas de participação no jogo. Como se sabe, as instituições judiciárias são inertes, cabendo ao demandante –
3.
Pensemos, por exemplo, em duas situações contrastantes que insinuam relações distintas com o consumo de serviços de justiça: a situação de uma mulher negra, moradora de rua, vítima de furto; e a de um empresário branco do setor imobiliário que deseja discutir judicialmente a desapropriação de um de seus imóveis pela prefeitura. O serviço público de administração da justiça tende a ser mais acessível e interessante para qual deles? Com respeito ao modo pelo qual o sistema de justiça reproduz desigualdades raciais, mencione -se a pesquisa de Adorno (1995) sobre crimes violentos julgados na cidade de São Paulo em 1990. O autor conclui que, apesar de negros e brancos cometerem crimes em iguais proporções, os primeiros tendem a ser maior alvo de vigilância policial, enfrentam mais obstáculos de acesso à justiça criminal e revelam mais dificuldades de usufruir do direito à ampla defesa. Como consequências, tendem a receber tratamento penal mais rigoroso. As conclusões desta pesquisa permitem refletir a respeito de graus de confiabilidade também diferenciados que brancos e negros podem nutrir em relação aos serviços públicos ligados ao judiciário.
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superadas as barreiras externas mencionadas – levar sua reclamação aos tribunais. Uma vez instalado o litígio, as partes devem produzir suas provas e argumentos para que o juiz reaja e tome decisões. Pelo modo como o conflito se estrutura dentro do processo judicial, as partes são tidas como portadoras dos mesmos recursos econômicos, com iguais oportunidades de investigação, e das mesmas habilidades jurídicas. Entretanto, Marc Galanter (1974) chama a atenção para as assimetrias que se reproduzem, a despeito da aparente neutralidade das regras do jogo, quando em confronto o que
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denomina “jogadores habituais” (repeat
brar estratégias protelatórias mais vanta-
players) e “participantes eventuais” (one-
josas e, portanto, ter uma cartela maior de
shotters)4. Os primeiros correspondem aos
jogadas e mais liberdade para ousar em
que comparecem regularmente em juízo,
lances cujos resultados, apesar de duvido-
envolvidos em litígios sempre muito seme-
sos, podem abrir precedentes favoráveis
lhantes. São promotores de justiça, empre-
para casos futuros, sempre semelhantes;
sas de telefonia, seguradoras de automó-
detêm recursos políticos para propor alte-
veis, agências imobiliárias, em geral pessoas
rações legais que lhes favoreçam. Como
jurídicas ou entes governamentais. Já os
diria Galanter, são, em suma, mais podero-
“participantes eventuais” correspondem
sos e ricos que os participantes eventuais.
aos que pouco frequentam os tribunais, em
Ainda quanto a barreiras internas
geral pessoas físicas com pouca ou nenhu-
que podem gerar desigualdades ao longo
ma experiência com serviços jurídicos, por
da disputa afetando seus resultados, é im-
exemplo, um acusado criminalmente, um
portante mencionar aquelas decorrentes
consumidor de produto defeituoso ou de
da composição do campo profissional da
serviço insatisfatório, um reclamante por
advocacia. “Jogadores habituais”, isto é,
acidente de trânsito ou o inquilino de um
empresas e entes governamentais, contam
apartamento residencial.
com serviços jurídicos regulares e contí-
Independentemente do lado que ocu-
nuos, permitindo inclusive a realização da
pam em uma contenda – seja como autores
advocacia preventiva. Esses profissionais
ou réus –, os “jogadores habituais” são be-
têm grandes compromissos com sua clien-
neficiados por várias razões: têm conheci-
tela, a qual, não raro, compõe o quadro de
mento acumulado a respeito do litígio que
funcionários da própria empresa ou gover-
costumam enfrentar; têm acesso direto
no em que eles trabalham. O controle so-
aos especialistas no tipo de causa que liti-
bre a qualidade de sua atuação é, portan-
gam; são mais familiarizados com o siste-
to, mais competente e mais acirrado, as
ma de justiça; têm condições econômicas
relações de fidelidade mais estreitas. Além
para melhor suportar a morosidade do ju-
disso, equipes de advogados ligados a
diciário e os riscos de uma decisão judicial
“jogadores habituais”, dada a recorrência
desfavorável; suas condições econômicas
com que frequentam o ambiente forense,
favoráveis também lhes permitem mano-
podem ter melhores condições para mobilizar informações estratégicas junto a es-
4.
Adotamos as expressões em português para repeat players e one-shotters sugeridas por Ana Carolina da Matta Chasin na versão traduzida deste importante texto de Marc Galanter (1974), em vias de publicação pela editora Saraiva.
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creventes e demais funcionários do judiciário. As vantagens da habitualidade de sua clientela é transferida para eles, per-
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mitindo-lhes desenvolver o know -how
cialidades de acesso à justiça (ECONOMI-
tático sobre como produzir a melhor prova
DES, 1999).
e manejar estratégias processuais. Distinto é o tipo de serviço advocatício ao qual pode estar exposto um “participante eventual”. O contato com um profissional não especializado ou não habituado à causa em questão pode gerar uma atuação mais estereotipada e pouco criativa. Outro aspec-
12.3. Movimentos e reformas A crise da administração da justiça no final da década de 1960 em países capitalistas centrais alavancou uma série de reformas visando atacar as diversas bar-
to importante reside nas lealdades que de-
reiras de acesso que vinham sendo diag-
terminados profissionais da advocacia esta-
nosticadas. Além de passar a ser tratado
belecem com a burocracia judicial na qual
como um dos direitos humanos fundamen-
atuam, em detrimento da fidelidade à sua
tais, o acesso à justiça tornou-se também
clientela. Advogados que prestam serviços
uma questão política. Afirmar o monopó-
para uma clientela transitória, composta de
lio da administração de conflitos, abrindo
pulverizados “participantes eventuais”, po-
caminhos e facilitando a entrada de de-
dem estar mais compromissados com o fun-
mandas dos cidadãos junto ao judiciário,
cionamento da rotina forense da comarca
passou a ser também uma maneira de afir-
que frequentam do que com o interesse de
mar a pujança e o poder de um Estado
seu cliente. No longo prazo, tais compromis-
cujas promessas e capacidade de garantia
sos (ligados, por exemplo, ao comprometi-
dos direitos sociais (welfare state) esta-
mento do advogado em evitar recursos que
vam cada vez mais fragilizadas. Ressalte-
protelem a decisão judicial e congestionem
-se que, nesse momento, a insatisfação po-
os trabalhos da comarca) lhe permitem ob-
pular com a qualidade e a morosidade de
ter determinados resultados profissional-
tais serviços já era bastante difundida, in-
mente mais vantajosos (BLUMBERG, 1972).
clusive pelos meios de comunicação (SAN-
Todas essas observações permitem notar que as barreiras do acesso à justiça relacionam-se também ao estilo e à qualidade de serviços advocatícios oferecidos ao cidadão. Nessa vertente, questões relacionadas à qualidade do ensino jurídico e à ética profissional ensinada em faculdades
TOS, 1995). A popularização dos serviços de administração de justiça tornou-se um dos alvos de reformas priorizando o maior acolhimento de demandas das chamadas pequenas causas, vividas no dia a dia do cidadão comum, consumidor e morador dos centros urbanos.
de direito também têm sido apontadas
O processualista italiano Mauro Ca-
como variáveis que interferem nas poten-
ppelletti teve posição de destaque na sis-
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tematização do crescente e variado con-
aos investimentos públicos em assistência
junto de experiências institucionais ligadas
judiciária gratuita para os pobres com o
à ampliação do acesso que vinham sendo
intuito de driblar as barreiras de caráter
difundidas em várias partes do mundo.
econômico. Ter um advogado remunerado
Baseando-se em uma monumental pesqui-
pelo Estado passou a ser visto como um
sa comparativa feita em diversos países5,
direito, e a precariedade dos modelos de
identificou que três conjuntos de reformas
assistência judiciária prevalecente até en-
vinham se dando, mais ou menos de modo
tão, dependentes da caridade de advoga-
cronológico, no Ocidente. Denominou-os
dos privados para suprir as demandas dos
as “três ondas do movimento de acesso à
mais empobrecidos, mostrou-se evidente,
justiça”, expressão que se tornou clássica por apresentar com clareza a correspondência entre as mudanças institucionais e as transformações no significado do “acesso à justiça”.
sobretudo em uma economia de mercado na qual os profissionais mais experientes e competentes tendem a dedicar-se às causas mais lucrativas. Reformas, seja em favor do sistema judicare, com a oferta de advogados particulares cadastrados e
Atento aos métodos de pesquisa pro-
reembolsados pelo Estado para atuar em
venientes de outros ramos do saber – como
causas de interesse individual, seja em fa-
a Sociologia, a Antropologia e a Ciência Po-
vor da criação de equipes de advogados
lítica –, bem como ao exame de culturas e
remunerados exclusivamente pelo Estado,
realidades jurídicas diversas, Cappelletti
alocados em escritórios de vizinhança
verificou como primeira onda de incre-
para atuar de modo educativo, preventivo
mento ao acesso à justiça aquela destinada
e também como “jogadores habituais” em demandas coletivas dos mais empobreci-
5.
Esta pesquisa, chamada de “Projeto de Florença”, contou com o importante financiamento da Fundação Ford e, apesar de incluir observações feitas em trinta países (na Europa Ocidental, no Leste Europeu, na Ásia, na América do Norte, na Oceania e na América Latina), não envolveu o Brasil. Os resultados desta investigação desenvolvida ao longo de cinco anos foram publicados, entre 1978 e 1979, em quatro volumes respectivamente intitulados: Access to justice: a world survey (coordenado por Cappelletti e Garth), Access to justice: studies of promising institutions (coordenado por Cappelletti e Weisner), Access to justice : emerging perspectives and issues (coordenado por Cappelletti e Garth), Access to justice in an anthropological perspective; Patterns in conflict management: essays in the etnography of law (coordenado por Cappelletti e Koch). O primeiro volume foi traduzido para o português pela ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie Northfleet, e publicada no Brasil em 1988.
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dos, tiveram destaque. A segunda onda veio, segundo o autor, para enfrentar o problema da representação dos interesses difusos. Relacionou-se às diversas reformas processuais feitas para viabilizar o reconhecimento jurídico de sujeitos coletivos de direito, tais como grupos de indivíduos lesados em relações de consumo ou em danos ambientais, ou mesmo prejudicados em políticas governamentais. Com isso, coletividades
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ganharam legitimidade ativa para ingres-
sociais mais empobrecidos, não se efetiva-
sar em juízo em um sistema processual
ria apenas com o direito à assistência judi-
que tradicionalmente absorvia demandas
ciária gratuita. Assim, a partir de um novo
individuais e promovia decisões judiciais
enfoque sobre o problema do acesso à jus-
com efeitos limitados às partes em dispu-
tiça, tais reformas caracterizam-se pela
ta. Ao lado de institutos processuais extre-
incorporação de inovações ousadas, como
mamente inovadores – como as ações cole-
a criação de cortes especializadas na re-
tivas (class action norte-americanas) –,
cepção de determinados tipos de conflituo-
esta onda promoveu incrementos institu-
sidade cotidiana (relações de vizinhança,
cionais variados para tornar possíveis a
inquilinos e proprietários, consumidores e
identificação, a aglutinação e a represen-
fornecedores etc.), caracterizadas pela
tação judicial de demandas coletivas, não
dispensa de advogados, pela participação
raro fragmentadas e dispersas. Assim, no-
de leigos ou paraprofissionais6 como jul-
vos atores governamentais – como o om-
gadores da contenda, pela utilização de
budsman do consumidor (Suécia), o ad-
mecanismos destinados a dar agilidade –
vogado público (EUA) –, junto a órgãos
enfatizando procedimentos orais e a ob-
tradicionais como o ministério público, além de grupos de advogados mantidos por associações sem fins lucrativos, assumiram atribuições importantes do agenciamento de tais interesses. O autor identifica a terceira onda do movimento de acesso à justiça em um complexo de reformas focado em mudanças na forma de processar e prevenir os conflitos nas sociedades modernas. Tal onda de reformas não desprezou as inovações introduzidas nos momentos anteriores, quando o maior desafio estava associado à superação das barreiras que impediam o acesso aos serviços de um advogado, em favor de um interesse indivi-
tenção de soluções mais mediadas entre as partes –, pela concentração e simplificação de etapas processuais e pela gratuidade das custas do processo. É marcante em tal onda de reformas o deslocamento ou desvio de determinado tipo de conflituosidade para estruturas menos formais de solução de litígios, nas quais o juiz togado tem uma atuação totalmente reformulada. Nelas, ele deixa de protagonizar a produção do desfecho, posicionando-se de modo mais periférico. Trata-se de um afastamento ligado à abertura de uma atuação mais propositiva das partes em conflito, conferindo poder a per-
dual ou coletivo. Entretanto, esta terceira onda emergiu da constatação de que o direito ao acesso à justiça, para segmentos
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6.
São assistentes jurídicos com diversos graus de treinamento e conhecimento em direito, isto é, não necessariamente advogados.
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sonagens inéditos na cena judicial, como conciliadores,
mediadores
e
árbitros.
Entende-se que, uma vez mais afastadas de um processo decisório centrado no juiz togado, acima e distante das partes, e envolto em complexos procedimentos, as partes podem ter acesso a decisões mais rápidas, participativas – e, por isso, mais definitivas
229
12.4. Os meios alternativos de administração de conflitos A terceira onda de reformas identificada por Cappelletti ainda na década de 1970 continua se constituindo, de lá para cá, como a principal tendência das políticas judiciárias em diferentes continentes. Paralelamente, uma farta literatura nas
– e também menos custosas. O que se ob-
ciências sociais vem se debruçando sobre
serva nesse movimento é, portanto, uma
este fenômeno, cuja variedade de nomen-
clara associação entre métodos tradicio-
claturas – informalização da justiça (Abel),
nais de solução de conflitos oferecidos pelo
soft justices, ordem negociada (Le Roy),
Estado à morosidade, à onerosidade, ao ex-
justiça negocial (Tulkens; Kerchove), jus-
cesso de hierarquia e, em decorrência, à
tiças do diálogo (Beraldo de Oliveira), jus-
inacessibilidade e ao distanciamento dos
tiça de proximidade, entre outras – indica
tribunais em relação ao cidadão comum.
a multiplicidade de experiências e suas
O acesso à justiça passa a ser associa-
interpretações.
do ao direito a um sistema judicial eficien-
Em geral, os meios alternativos de ad-
te, no qual as decisões sejam rápidas, par-
ministração de conflitos correspondem a
ticipativas, baratas, e, por isto, mais
mecanismos que não necessariamente ope-
atraentes para o cidadão e menos custosas
ram fora do controle do Judiciário. São cha-
para os cofres públicos. Neste aspecto, a
mados de alternativos por incorporarem
terceira onda de reformas também pode
estratégias que se apresentam como opos-
ser interpretada como um desdobramento
tas aos modelos tradicionais, nos quais a
da mencionada crise da administração da
participação das partes na condução do
justiça. Descongestionar os tribunais por
processamento do conflito é mínima, uma
intermédio de uma gestão de conflitos que
vez que seguem determinações processuais
confira melhor desempenho e credibilida-
rigidamente estabelecidas que convergem
de ao judiciário foi também uma das ra-
morosamente para a decisão unilateral do
zões que deram força e alcance a essa vaga
juiz. Os mecanismos mais difundidos são a
de inovações conhecida na literatura como
arbitragem, a mediação e a conciliação.
movimento ADR, isto é, alternative dis-
A arbitragem, ou juízo arbitral, ca-
pute resolution, cujo centro irradiador foi
racteriza-se pela presença de julgadores
a América do Norte.
com formação técnica ou jurídica, defini-
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dos e remunerados pelas partes para pro-
sistem as partes na busca de uma decisão,
mover decisões sobre a contenda, com po-
sem dispor de poder para resolver a ques-
deres reconhecidos em lei, a qual também
tão ou impor sua decisão. Por isso, em
limita as possibilidades de recurso da deci-
tese, ambos estabelecem uma relação
são dos árbitros junto aos tribunais. Em ge-
mais horizontalizada com as partes na
ral, é permitida em questões que não vio-
produção de um desfecho.
lem determinadas garantias fundamentais.
A conciliação consiste em um proce-
Apesar de estar sob algum controle estatal,
dimento oferecido às partes para que evi-
é chamada de “justiça privada”, pois a es-
tem, se desejarem, o processo judicial. É,
colha do terceiro e suas atribuições na disputa são previamente convencionadas pelas partes (BONAFÉ-SCHMITT, 1999). Seu uso encontra-se previsto em muitos contratos comerciais entre corporações interessadas em solucionar de modo rápido eventuais controvérsias relativas a vultosas quantias monetárias, pagando altos preços pela intervenção de um árbitro. Embora não haja um consenso sobre o que distingue a mediação e a conciliação – em alguns contextos culturais suas distinções são tênues, em outros são tratadas como sinônimos7 –, há pesquisadores que identificam tentativas de diferenciação, sobretudo entre aqueles que vêm se profissionalizando em tais práticas (SAMPAIO e BRAGA NETO, 2007; MELLO e BAPTISTA, 2011; PEDROSO, 2002). Por este prisma, é possível apontar que, distintamente do árbitro, o conciliador e o mediador as-
7.
Esta observação é válida também para a doutrina jurídica, na qual parece também não haver consenso a respeito dos critérios que distinguem uma e outra prática. Cappelletti e Garth (1988) não mencionam diferenças entre tais procedimentos e parecem tratá-los unicamente como conciliação.
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portanto, preliminar à decisão do juiz, podendo ser uma etapa obrigatória ou facultativa. Sua finalidade é promover um desfecho célere conduzido por um terceiro imparcial, incumbido de auxiliar a construção de um acordo factível para as partes que, em geral, não compartilham de uma história de vida em comum. Na mediação, há, sobretudo, o estímulo ao diálogo entre as partes, que dividem uma história de relacionamento. Portanto, esse é o foco central de um procedimento cujo desfecho é a consequência. O mediador atua como facilitador da comunicação entre as partes, convidadas a tomar suas decisões com olhos no futuro do relacionamento estremecido por ocasião da desavença. É importante lembrar que, com exceção da arbitragem, a implementação e regulamentação de tais mecanismos têm tido um alcance também destacado no âmbito da justiça penal. Neste aspecto, a flexibilidade de procedimentos adotados no processamento do conflito – por intermédio da conciliação ou da mediação – ca rac-
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teriza-se também por desfechos envolven-
como um novo paradigma, ou ainda como
do a determinação de medidas punitivas
um novo modelo de justiça (JACCOUD,
distintas do encarceramento e, por isso,
2003), ela tem como princípio propiciar es-
chamadas de alternativas penais (entre
paços de interação nos quais vítima e
elas, sanções de natureza civil que possam
agressor dialoguem sobre o episódio con-
incluir o interesse da vítima – como a repa-
flituoso vivido, com vistas a estabelecer a
ração material do dano –, sanções de cu-
reparação (material e/ou moral) dos da-
nho terapêutico focadas no tratamento do
nos gerados pela infração. O crime não é
autor, ou ainda sanções de caráter comuni-
apreendido como uma violação à lei, passí-
tário, como o trabalho não remunerado em
vel de resposta centrada no seu autor, mas
instituições assistenciais).
como a ruptura da relação entre duas ou
É possível associar esta tendência ao aparecimento, também nos anos 1970, de movimentos sociais norte-americanos preocupados com a defesa dos interesses das vítimas em face do modo pelo qual o modelo ocidental de justiça penal processa conflitos. A constatação de que o promotor de justiça assume o lugar da vítima, privando-a de participar de negociações com o autor que possam redundar em resultados mais satisfatórios para ambas as partes, fomentou o amplo movimento de mediação vítima-agressor (victim-offender mediation), cuja repercussão também atingiu a Europa, notadamente a França, com experiências associadas ao que se denomina mediação penal (BONAFFÉ-SCHMITT, 1995).
mais pessoas, cujos efeitos podem ser de ordem física, patrimonial e também emocional. Por isso, são criadas situações de interlocução entre as partes, mediadas por membros da comunidade, psicólogos, assistentes sociais treinados para ser facilitadores deste encontro. Nelas, são adotadas práticas dialógicas que envolvem conversas com familiares sobre o acontecimento, círculos restaurativos nos quais envolvidos direta ou indiretamente no conflito discutem o ocorrido. Nessa perspectiva, a justiça restaurativa questiona a finalidade do modelo adversarial de intervenção penal, centrado no castigo do agressor pela pena estatal e no silenciamento da vítima, como estratégia eficaz de solução de controvérsias. A partir de no-
Nos países de tradição anglo-saxô-
ções como reconciliação, participação co-
nica, este movimento contribuiu para a
munitária e responsabilização do agressor,
emergência da chamada justiça restaurati-
propõe-se uma abordagem mais contextua-
va. Apesar de corresponder a uma hetero-
lizada do conflito em detrimento do mode-
geneidade de experiências institucionais e
lo penal tradicional, que conduz vítima e
ser vista ora como um movimento, ora
agressor a polarizações em uma disputa
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cujo objetivo principal é concluir o proces-
referindo -se à multiplicidade de mecanis-
so pela absolvição ou pela condenação.
mos – transação penal, composição civil,
Ao lado deste movimento de reavalia-
suspensão condicional do processo etc. –
ção do modo pelo qual o crime é processado
baseados na necessidade de concessões
na justiça, está a crescente discussão, ini-
recíprocas entre acusação e defesa, as
ciada no contexto dos anos 1970, sobre os
quais estabelecem negociações que, entre
limites do encarceramento como estratégia
outros efeitos, abreviam a solução da con-
de reabilitação dos apenados. O problema carcerário também ganha repercussão na década de 1980, com a expansão e a sobrecarga do sistema carcerário, medida pelo aumento da população prisional, e as discussões sobre a capacidade estatal de gerir tal contingente. Neste contexto, de demandas por maior participação das vítimas na justiça penal e crise no sistema carcerário, é que sanções alternativas para conflitos reputados como leves e menos complexos, aplicadas por meio de procedimentos informalizados, ganham crescente investimento. Mais do que alternativas à prisão, tais punições são incorporadas nestes procedimentos como mecanismos estratégicos de abreviação do processo, visando a economia de tempo e de recursos públicos. Quanto a isso, nota-se a tendência marcante nos sistemas penais de tradição civilista da adoção de procedimentos
trovérsia. Um exemplo está na transação penal por meio da qual o promotor público, ao invés de decidir processar o suposto infrator, propõe -lhe o acatamento de uma punição leve. Neste caso, cabe ao suposto infrator decidir se aceita a proposta, abrindo mão de provar sua inocência, ou se recusa a proposta do promotor, tornando -se réu em um processo no qual terá oportunidade de provar sua versão dos fatos e eventualmente ser absolvido. Nessa transação – em alguns aspectos semelhante ao plea bargaining norte-americano –, o processo é evitado pelo promotor, que propõe uma solução punitiva alternativa ao cárcere, desde que haja o consentimento do suposto infrator para o estabelecimento de tal negociação.
12.5. A terceira onda e suas ambiguidades: uma conclusão
consultivos – até então mais recorrentes
Em diferentes análises empíricas a
nos sistemas continentais – que depen-
respeito da profusão de métodos alternati-
dem do consentimento das partes, sobre-
vos de solução de conflitos que caracterizam
tudo daquela que figura como infrator. É
a terceira onda do movimento de acesso à
neste aspecto que alguns analistas falam
justiça, tem sido recorrente a perspectiva de
em contratualização da justiça penal,
que este fenômeno caracteriza-se por uma
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profunda ambiguidade quanto aos seus pro-
vantajosos para ambas as partes. Para ela, a
pósitos. Se de um lado a flexibilidade e a ho-
valorização de métodos pautados na ideia
rizontalidade que o caracterizam insinuam a
de pacificação, harmonização e negociação
presença de uma abertura do Judiciário para
de interesses, louvados como estratégias
procedimentos mais participativos, am-
modernas de solução de disputas em detri-
pliando, desse modo, o acesso à justiça, por
mento da litigação tradicional, tem se de-
outro tal fenômeno é também lido como as-
monstrado, em certos domínios do direito,
sociado à necessidade de conter a sobrecar-
mais favorável aos economicamente mais
ga de demanda por serviços de administra-
fortes. Com isso, questiona até que ponto
ção da justiça em um contexto de crise fiscal
procede esta “ideologia da harmonia”, as-
e de legitimidade do Estado. Por isso, tais
sentada na ideia de que o consenso obtido
reformas teriam limites muito evidentes do
por meios informais é sempre melhor para
ponto de vista da ampliação do acesso a uma
ambas as partes.
justiça que assegure o equilíbrio entre as
Além deste tipo de crítica, outras
partes. Em sua pesquisa em Juizados Espe-
apontam que o investimento em mecanis-
ciais Cíveis na cidade de São Paulo, Chasin
mos flexíveis de solução de conflitos con-
(2007) demonstrou como aspectos da infor-
siste prioritariamente em uma estratégia
malidade, tais como a dispensabilidade de
para desviar (diversion) a litigação de
advogados nas audiências de conciliação e o
massa ligada à pequena conflituosidade
baixo grau de profissionalização de concilia-
do cidadão comum para alternativas infor-
dores premidos pela necessidade de fechar
mais, em geral mais rápidas e baratas. O
mais acordos em menos tempo, abrem cami-
resultado de tal investimento reflete-se na
nho para a produção de assimetrias entre as
“segmentação no mercado de acesso ao di-
partes e impedem o exercício do diálogo a
reito e à justiça dividida entre uma justi-
respeito da violação de direitos.
ça profissional e institucionalizada para
Em outro contexto, Laura Nader cha-
certas categorias sociais e uma justiça
ma atenção para o fato de que “estilos de
‘profana’ informal e desprofissionalizada
disputas são um componente de ideologias
para grupos sociais mais desfavorecidos”
políticas, sendo frequentemente resultado
(LAURIS, 2009). Neste ponto, polemiza-se
de imposição ou difusão” (1994, p. 18). Com
se a agilidade de procedimentos e a atua-
isso, a autora introduz uma leitura crítica
ção de intermediadores fiéis ao adágio po-
ao que considera aceitação generalizada de
pular “mais vale um mau acordo que uma
modelos de justiça consensuais como se
boa demanda” não estariam contribuindo
fossem, em si mesmos, mais benéficos ou
para o acesso a uma justiça de “segunda
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classe”, na qual garantias processuais se-
de escolher entre o processo e a punição
riam violadas em favor de um serviço de
sumária, discute-se até que ponto esta
administração da justiça instantâneo.
margem de escolha restringe-se às deter-
No âmbito das relações de consumo,
minações do promotor que toma desde
estudos como o de Abel (1981) demonstra-
logo o suspeito como culpado. Nesses ter-
ram que a justiça informal contribui para
mos, tais mecanismos de justiça penal ins-
pulverizar e individualizar demandas cole-
tantânea revelam-se mais voltados para a
tivas contra empresas. Constituindo -se
promoção da agilidade, do barateamento
como arenas de negociações monetárias,
dos serviços de administração de confli-
rápidas e baratas para os consumidores in-
tos, além de favorecer o controle e a puni-
satisfeitos, os mecanismos informais neu-
ção de meros suspeitos. Note-se, ainda,
tralizam e refreiam reclamações que, orga-
que tais mecanismos têm sido assimilados
nizadas coletivamente, poderiam ameaçar
para infrações consideradas menos com-
interesses empresariais. Com isso, apazi-
plexas e gravosas, relacionadas em geral à
guam determinados segmentos e abafam
criminalidade cotidiana e de massa, isto é,
conflitos que podem potencializar mudan-
às pequenas incivilidades urbanas – como
ças mais amplas nas relações de consumo
pichações, consumo de drogas, lesões cor-
possivelmente mais favoráveis à coletivi-
porais –, as quais podem, assim, ser puni-
dade de consumidores.
das de modo mais rápido e econômico
No campo penal, a difusão de meca-
para o Estado. Por isso, autores apontam
nismos negociais tem gerado discussões
que a incorporação de mecanismos infor-
acerca dos riscos que a flexibilização e a
mais no âmbito da justiça penal, mais do
simplificação de procedimentos podem
que consistir em uma alternativa punitiva
trazer para o direito de defesa daqueles
não carcerária – tida como menos agressi-
que figuram como infratores. Assim, ques-
va para os pequenos infratores –, ofere-
tiona-se até que ponto a transação penal
cendo oportunidades mais participativas
favorece, principalmente, a punição preci-
no jogo processual, são, na verdade, estra-
pitada do suposto infrator. Se de um lado
tégias de punir em maior escala, de forma
este mecanismo evita as delongas do pro-
mais eficiente, mais barata e mais visível
cesso descongestionando os tribunais, de
(KAMINSKI, 2009). Por meio de tais críti-
outro amplia os poderes do promotor, que
cas, pode-se perceber o quão complexo é
pode determinar uma punição sem pro-
o debate acerca da ampliação do acesso à
vas. Se em princípio tais mecanismos su-
justiça em âmbito penal e como esta pode
gerem uma justiça penal mais participati-
se constituir em uma via de mão dupla
va na qual o suposto infrator tem liberdade
(FULLIN, 2012).
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Acesso à Justiça
235
Quanto à justiça restaurativa, apesar
tencialidades e limites de cada experiên-
da heterogeneidade de experiências e de
cia, mas, sobretudo atentar para a necessi-
modelos, as críticas mais frequentes di-
dade constante de redefinição do problema
zem respeito ao risco de seu potencial ino-
do acesso à justiça.
vador, quanto à forma de conceber o crime e a punição, ser reduzido à técnica de resolução de conflito disponível às partes, atuando em paralelo à justiça penal. Nesse aspecto, as práticas restaurativas tenderiam a ser aplicadas de forma complementar, sem introduzir parâmetros de atuação alternativa no interior da justiça penal. A experiência restaurativa tenderia a ficar encapsulada do lado de fora da justiça penal, promovendo, além disso, fenômenos não menos preocupantes como o da múltipla sanção, isto é, o acúmulo, para o infrator, da punição determinada na sentença e da reparação dos danos decidida em âmbito restaurativo (RAUPP e BENEDETTI, 2007). Por este critério, paradoxalmente, a justiça restaurativa favoreceria a ampliação do acesso à justiça pela via da ampliação da punição. Não se trata de desconsiderar, diante da já mencionada heterogeneidade de experiências que abrigam os métodos alternativos de resolução de conflitos, as dimensões emancipatórias presentes na terceira onda de acesso à justiça. O que as críticas demonstram é a necessidade de constante contextualização de tais reformas à luz de transformações sociais, políticas e econômicas mais amplas. É este exercício que permite refletir sobre as po-
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13 Movimentos Sociais e Direito O Poder Judiciário em disputa
Evorah Lusci Cardoso Fabiola Fanti
A relação dos movimentos sociais com
ternativo. Ambas correspondem ainda a
o direito é ambígua. Ora suas demandas
um contexto político autoritário e a um di-
encontram-se à margem do direito, ora os
reito excludente e excessivamente forma-
movimentos sociais utilizam o direito e as
lista. O debate sobre o pluralismo jurídico
instituições estatais para promovê-las. O
é influenciado principalmente pela pes-
processo de democratização e a permeabili-
quisa de Boaventura de Sousa Santos, so-
dade das instituições por meio de diversos
bre o direito e as formas de solução de
mecanismos de participação estimulam a
conflitos produzidos por moradores de
mobilização social em torno desses espaços
uma favela brasileira, que recebeu o nome
do Estado, o que também altera o tipo de
fictício de Pasárgada (SANTOS, 1977, p.
ação política dos movimentos sociais e sua
5 -125). Para algumas leituras desse traba-
linguagem. É a diferença entre lutar “contra”
lho feitas à época, essa forma do direito
o direito ou “à margem” dele e “por” direitos.
local representava uma forma de direito
A sociologia jurídica no Brasil surge e
emancipatória, menos formal, mais con-
se dissemina enquanto disciplina na déca-
sensual e democrática, pois era produzida
da de 1980 e tem como agendas iniciais de
e aplicada diretamente pelos atores so-
estudo o pluralismo jurídico e o direito al-
ciais envolvidos e prescindia do aparato
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estatal, que, na maioria das vezes, era
[...]. Nos últimos anos, o próprio sistema ju-
alheio ou persecutório a essa comunidade.
rídico brasileiro [...] reconheceu e integrou,
Outras leituras entendiam que essa produ-
ao menos no plano normativo, assim como
ção local mimetizava as formas do direito
no jurisprudencial, vários princípios que
“do asfalto” e buscava, assim, suprir uma
inspiram essas e outras lutas coletivas com
lacuna do aparato do Estado, sem, no en-
base na noção de direitos” (OLIVEIRA,
tanto, contar com as mesmas garantias
2003, p. 219-220). Faria e Campilongo apon-
formais deste, ou seja, também poderia ser
tam no mesmo sentido, quando dizem que
um direito excludente.
há “um aspecto até agora pouco explorado
O direito alternativo, por sua vez, foi
pelos estudiosos: a influência e o condicio-
influenciado pelo debate sobre o “uso al-
namento que esses movimentos imprimem
ternativo do direito”, na Itália. Um movi-
sobre a legislação, notadamente quanto à
mento de magistrados que teve por objeti-
alocação de recursos e implementação de
vo produzir novas interpretações jurídicas,
políticas públicas” (1991, p. 58-59).
alheias ao formalismo jurídico e à tradição
A democratização e o processo de ela-
civilista, para levar em consideração de-
boração da nova Constituição, fruto de in-
mandas sociais. Essa é uma atuação den-
tensa mobilização social, trazem consigo
tro do sistema jurídico e por seus próprios
um novo aparato do Estado, dentro do qual
operadores, mas ainda assim crítica ou
o direito está em disputa por um maior nú-
contrária à própria forma do direito.
mero de atores. Novos direitos, novos ins-
Em uma reavaliação da trajetória dos
trumentos processuais, novas funções para
estudos de “direito alternativo” e “pluralis-
o Ministério Público, novos mecanismos de
mo jurídico” no Brasil, Luciano Oliveira
participação no Poder Executivo. Embora
aponta o caminho para outra agenda de es-
em um primeiro momento tenha ficado
tudos da sociologia jurídica, em que haveria
mais evidente a mobilização social em tor-
uma relação mais integrada entre movi-
no do Poder Legislativo pós-Constituinte1,
mentos sociais e direito: “parece-me que
para a positivação de novos direitos ou re-
hoje, no Brasil, as lutas sociais que se de-
gulamentação de outros, e do Poder Execu-
senvolvem em torno da ideia do direito assemelham-se mais a um reconhecimento e integração ao sistema jurídico do que a
tivo, por conta da permeabilidade de partidos políticos, criação de conselhos e conferências (SCHATTAN; NOBRE, 2004),
uma ‘alternatividade’ ou a um ‘pluralismo’, que acaba se manifestando mais como um subproduto da segregação e do abandono
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1.
Algumas entidades da sociedade civil se especializaram nesse campo de incidência política no Congresso Nacional, após a Constituinte.
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Movimentos Sociais e Direito
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atualmente observa-se também a mobiliza-
das sociais. Há, ainda, um uso propositivo
ção social em torno do Poder Judiciário. Os
do Poder Judiciário, baseado nessa nova
casos difíceis do Supremo Tribunal Fede-
concepção de que o próprio Poder Judiciá-
ral, com realização de audiências públicas,
rio pode ser um espaço de disputa do sen-
são um exemplo dessa mobilização.
tido de direitos já existentes ou para o re-
Essa nova forma de articulação com
conhecimento de novos direitos.
os espaços institucionais do Estado é
A relação dos movimentos sociais
acompanhada por uma transformação na
com o Poder Judiciário revela o caráter
própria organização dos movimentos so-
ambíguo da sua própria relação com o di-
ciais e pela apropriação da linguagem do
reito – ora “à margem”, ora integrados. O
direito como um instrumento de atuação
primeiro caso ocorre, por exemplo, quan-
política desses movimentos. Houve a proli-
do o Poder Judiciário decreta a reintegra-
feração e a profissionalização de entidades
ção de posse de um terreno, prédio ou ter-
da sociedade civil que passam a trabalhar
ra, retirando ou despejando o Movimento
com a linguagem dos direitos.
de Moradia ou o Movimento dos Trabalha-
Mas, por que apenas mais recente-
dores Rurais Sem-Terra (MST) que antes
mente o Poder Judiciário parece emergir
os ocupava. Ao contrário, quando o Supre-
como um espaço em disputa para os movi-
mo Tribunal Federal autoriza a união está-
mentos sociais de forma mais clara? Várias
vel entre pessoas do mesmo sexo, ele con-
hipóteses explicativas podem ser levanta-
tribui para a realização de uma importante
das. Esse movimento em direção ao Poder
demanda do Movimento LGBT (Lésbicas,
Judiciário pode revelar a superação de
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
uma determinada concepção de direito
Transgêneros), que ficou sem apoio políti-
pelos movimentos sociais na qual o espaço
co no Congresso Nacional por muitos anos.
de criação do direito é o Poder Legislativo,
A esse desempenho das cortes estão
cabendo ao Poder Judiciário apenas sua
relacionadas diferentes formas de mobili-
aplicação. Essas opções estratégicas po-
zação social em torno do direito e do Poder
dem ter sido frustradas, por exemplo, por
Judiciário. Enquanto os movimentos so-
as vitórias no reconhecimento de novos di-
ciais por terra e moradia têm uma relação
reitos no Poder Legislativo não terem sido
muito mais reativa e defensiva em relação
acompanhadas em alguns casos pela sua
ao Poder Judiciário e a outras instituições
implementação pelo Poder Judiciário, ou
do direito, como o Ministério Público, por
por o Poder Legislativo ter sido aberta-
serem criminalizados em razão de suas de-
mente refratário a determinadas deman-
mandas sociais estarem “à margem do
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direito”2, movimentos sociais como o LGBT
permeáveis a essas demandas sociais. Isso
procuram explorar uma agenda mais pro-
porque a mera positivação de direitos não
positiva e inclusiva em relação ao direito e
altera necessariamente o Judiciário que os
ao Poder Judiciário, buscando o reconheci-
aplica, tornando também o funcionamento
mento de novos direitos, que não são obti-
deste Poder alvo da ação daqueles que tra-
dos em espaços políticos majoritários, en-
balham com a linguagem de direitos.
xergando o Poder Judiciário como um possível espaço de transformação social, sendo o direito a nova linguagem dessa disputa política. Outra relação com o Poder Judiciário pode ser a de garantir a efetivação dos direitos já positivados no plano Legislativo, ou seja, a disputa agora poderia ser para que não haja retrocessos nessas conquistas legislativas, por exemplo a defesa da constitucionalidade da Lei Maria da Penha no Supremo Tribunal Federal. No entanto, mesmo em relação aos movimentos sociais com uma postura tradicionalmente mais reativa em relação ao direito, há uma tendência recente de também incorporar a linguagem do direito3 e, a partir das dificuldades de acesso ao espaço de disputa do Poder Judiciário, a agenda propositiva de direitos se transforma em uma agenda de reforma das instituições do direito, para que sejam mais
Em qualquer um dos casos, o Poder Judiciário está sendo disputado pelos movimentos sociais – seja por ser um espaço de disputa de interpretação do direito, mais uma rodada de deliberação política na qual é preciso participar, seja por institucionalmente poder ser objeto de reformas que o tornem mais permeável às demandas sociais. Essa aproximação dos movimentos sociais a este espaço institucional do Estado também pode provocar outra leva de transformações em como os movimentos sociais se organizam. A imersão na dinâmica de funcionamento do Poder Judiciário (linguagem técnica jurídica, tempo do processo, respeito aos procedimentos) pode afetar o modo de ação política dos movimentos sociais. As entidades sociais incorporam ainda mais a linguagem dos direitos, passam a ser compostas também por advogados. O Judiciário pode ser um espaço de
2.
3.
A própria necessidade de defesa em relação à persecução do Estado provoca a mobilização social jurídica. Essa aproximação pode se dar de diversas formas. Desde a contratação de equipe de advogados dentro das entidades ligadas aos movimentos de moradia para elaborarem diferentes estratégias de atuação judicial até a criação de turma especial para o ensino do direito para assentados do MST, em parceria com universidades (“Justiça garante continuidade do curso de Direito para assentados em Goiás”. Disponível em: ).
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atuação menos acessível, no qual se exige uma argumentação jurídica, que articule elementos da dogmática jurídica, não tão permeável a outras linguagens. O estudo da relação entre movimentos sociais, direito e Poder Judiciário pode
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ser um novo campo a ser explorado no Bra-
ções e estratégias legais tiveram papel
sil. E esse trabalho pode ser feito em diálo-
proeminente, poucos deles desenvolveram
go com estudos já desenvolvidos em outros
análises conceituais sobre como o direito e
países, com maior trajetória de judicializa-
o Poder Judiciário têm influência nas lutas
ção de demandas por parte da sociedade
desses movimentos. Por sua vez, o campo
civil. É claro que a presença/ausência des-
da sociologia do direito norte-americana,
ses estudos é reflexo da intensidade da mo-
apesar de ter explorado longamente as cam-
bilização social jurídica em torno do Poder
panhas de litígio, ações judiciais e aspira-
Judiciário em cada um desses países. Nos
ções normativas de justiça social baseadas
EUA, essa produção acadêmica inaugura
em direitos e a relação destas com os movi-
um novo campo, denominado Law and So-
mentos sociais, permaneceu preso a uma
ciety, e surge após a experiência dos movi-
perspectiva institucionalista, centrada nas
mentos pelos direitos civis e políticos, que a
cortes, focando seus estudos na jurispru-
partir da década de 1960 utilizaram clara-
dência dos tribunais e nas ações de elites
mente o Poder Judiciário como uma via de
legais, e ficando, assim, distante das ações
ação política, buscando transformação so-
dos movimentos sociais na prática e da teo-
cial e reconhecimento de novos direitos,
ria que os analisa (McCANN, 2006, p. 17).
que não eram obtidos nos espaços políticos
A partir de meados da década de 1990,
majoritários, como o Poder Legislativo.
iniciou-se um crescente interesse pelo es-
Este capítulo procura abrir caminho para
tudo da relação entre direito e movimentos
esta literatura, com o objetivo de estimular
sociais, principalmente na literatura norte-
futuros estudos sobre mobilização social
-americana4. Ao longo dos anos, tais estu-
jurídica na sociologia jurídica brasileira. 4.
13.1. Movimentos sociais, direito e Poder Judiciário: uma aproximação teórica Apesar da evidente relação entre movimentos sociais, direito e Poder Judiciário, é notável a pouca frequência do estudo desse tema na literatura especializada. Nos Estados Unidos, a despeito dos estudiosos dos movimentos sociais relatarem em seus trabalhos muitos casos nos quais reivindica-
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De acordo com McCann, a partir de meados da década de 1990, iniciou-se um produtivo diálogo que conectou dois diferentes modos de análise da relação entre direito e movimentos sociais: de um lado, os autores que centravam suas análises nas cortes, com uma abordagem “de cima para baixo”; e, de outro, os estudos menos centralizados na questão legal e mais voltados para os movimentos sociais em si e sua relação com o direito (2006, p. 18). É possível remontar as origens dessa agenda de pesquisa ainda na década de 1980. Em uma entrevista, McCann afirma que “a teoria do movimento social nos Estados Unidos nos anos 80 estava realmente tomando algum impulso. Assim, um dos principais objetivos desde o início era fundir a teoria do movimento social com várias formas de teoria da mobilização jurídica (legal mobilization) e adicionar algumas abordagens de estudos de consciência jurídica (legal consciousness). Era uma espécie de aproximação entre tradições distintas” (McCann, 2009, p. 176).
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dos ampliaram consideravelmente este campo de pesquisa. Contudo, como aponta McCann, houve pouco desenvolvimento no que o autor chama de uma “estrutura teórica generalizável” ou de “teoria comparativa analítica” para o entendimento do engajamento dos movimentos sociais com o direito em perspectiva comparada (2006, p. 19). No caso brasileiro, os trabalhos que buscam entender esta relação são ainda bastante escassos5, tanto do ponto de vista dos estudiosos dos movimentos sociais como por parte das análises sobre o direito e o Poder Judiciário realizados pela ciência política6 ou pela sociologia do direito7.
5.
6.
7.
Uma exceção é o trabalho de Maciel (2011) sobre a mobilização do direito pelo Movimento Feminista no caso da Campanha da Lei Maria da Penha. O papel desempenhado pelo Poder Judiciário no contexto democrático, o processo de tomada de decisão dos tribunais e os efeitos práticos e políticos da atuação das cortes têm sido objeto crescente de estudos da ciência política nas duas últimas décadas. No caso brasileiro, a maior parte dos trabalhos nesta área tem se focado em analisar o desempenho do Poder Judiciário como instituição política, tendo como principal objeto de estudo o uso do Supremo Tribunal Federal (STF) como arena de disputa por meio do sistema de controle concentrado de constitucionalidade por ele realizado. Apesar das significativas contribuições de tais estudos à compreensão do Poder Judiciário nacional, esta corrente do judicial politics não permite abarcar adequadamente o papel dos tribunais como espaço de mediação entre sociedade civil e Estado. A ênfase institucionalista desta corrente de estudo foca -se nas relações estabelecidas entre Poderes do Estado, dando pouca atenção à atuação da sociedade civil nos processos políticos. Alguns estudos latino-americanos de sociologia jurídica podem ser mencionados nessa mesma linha de mobilização social jurídica (legal mobilization): no Brasil, Cecília MacDowell Santos (2007), em trabalho sobre mobilização jurídica e ativismo social transnacional, a partir de estudos de casos brasileiros no sistema interamericano: na Colômbia, os trabalhos de Isabel Cristina Jaramillo e Tatiana Alfonso (2008), sobre a estratégia de litígio de uma ONG no tema de aborto na
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O objetivo deste trabalho é o de explorar duas vertentes da literatura internacional que buscam entender o papel do direito, das estratégias legais e do Poder Judiciário no contexto de ação coletiva de atores da sociedade civil, principalmente dos movimentos sociais. A primeira delas, de cunho mais notadamente institucional, é a noção de oportunidade legal (ou legal opportunity), desenvolvida no interior da Teoria do Processo Político. A segunda é a noção de mobilização do direito (ou legal mobilization) surgida no interior de uma concepção mais culturalista do direito e do Poder Judiciário, que os entende não só em sua dimensão instrumental relativamente à ação coletiva, mas também em seus aspectos simbólicos. Ambas as vertentes, apesar de serem muito pouco aplicadas ou discutidas frente ao contexto brasileiro, trazem análises e conceitos bastante importantes para entender a relação entre movimentos sociais, direito e Poder Judiciário, dando origem a uma série de debates e estudos na literatura internacional.
13.2. Teoria do processo político, estrutura de oportunidades políticas e oportunidades legais A noção de oportunidades legais surge no contexto da literatura mais recente sobre Corte Constitucional, Julieta Lemaitre Ripoll (2009), traçando um histórico e diferenciando os tipos de relações com o direito por parte de diferentes movimentos sociais, e César Rodríguez Garavito (2010), em estudo mais centrado em inovações da Corte Constitucional em um caso de grande mobilização social, sobre migrantes internos (desplazados).
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movimentos sociais, mais especificamente
constrições ou limitações externas ao gru-
da Teoria do Processo Político. Tal teoria
po” (TARROW, 1999, p. 89). A ideia de opor-
pensa os movimentos sociais no contexto de
tunidade política é usada, portanto, para
suas trajetórias de ação, remetendo-se às
explicar por que movimentos sociais ado-
mudanças de fatores políticos exógenos e
tam certas estratégias específicas em suas
conjunturais que favorecem sua emergência,
tentativas de influenciar decisões políticas,
manutenção e/ou declínio. De acordo com
e não outras. De acordo com esta ideia, tan-
Tarrow, o problema central que envolve a
to fatores estruturais como contingentes,
ação coletiva é de como criá-la, mantê-la e
formais ou informais, delineiam as oportu-
coordená-la “entre participantes que care-
nidades políticas, as quais podem ser ex-
cem de recursos mais convencionais e de
ploradas por movimentos sociais e grupos
objetivos programáticos mais explícitos”
de interesse de acordo com seus objetivos
(TATAGIBA, 2007, p. 15).
(TARROW, 1999). Uma vez que a estrutura
A Teoria do Processo Político utiliza-
das oportunidades políticas muda, é de se
-se da noção de estrutura de oportunida-
esperar que as estratégias de ação adota-
des políticas para compreender “a relação
das por movimentos sociais e grupos de in-
adaptativa e dinâmica existente entre a
teresse mudem também (WILSON e COR-
ação coletiva e o Estado; ou entre os movi-
DERO, 2006, p. 326-327).
mentos sociais e os condicionantes políti-
Com o fortalecimento do Poder Judi-
co-institucionais de seu contexto históri-
ciário em muitos países, em especial na-
co” (OLIVEIRA, 2009, p. 33). Para Tarrow,
queles que passaram recentemente por
oportunidades políticas seriam “sinais con-
processos de (re)democratização, foi aber-
tínuos – embora não necessariamente per-
to um novo tipo de estrutura de oportuni-
manentes, formais, ou nacionais – percebi-
dade política, a qual tem sido chamada de
dos pelos agentes sociais ou políticos que os
oportunidade legal. Nesses contextos, as
encorajam ou desencorajam de utilizar os
cortes têm emergido como “participantes
recursos com os quais contam para criar
ativas no processo político”, oferecendo
movimentos sociais” (1999, p. 89). A noção
um espaço frequentemente privilegiado
de oportunidades políticas não considera
para cidadãos individualmente, movimen-
apenas “estruturas formais, como as insti-
tos sociais e grupos de interesse apresenta-
tuições, mas também as estruturas de
rem suas demandas, bem como garantindo
alianças geradas pelos conflitos, que con-
a eles “nova voz” em um canal político que
tribuem para a obtenção de recursos e
antes estava fechado a estes atores sociais
criam uma rede de oposição frequente a
(WILSON e CORDERO, 2006, p. 327-328).
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Manual de Sociologia Jurídica
Tal noção de “oportunidade legal”
dizem respeito à natureza das normas e
surgiu recentemente, em estudos como o
ações judiciais disponíveis, às regras que
de Hilson (2002) e Andersen (2004)8, e diz
regulam o acesso ao Poder Judiciário e à
respeito à análise do papel do direito e dos
disponibilidade de recursos para assistên-
tribunais no contexto da ação coletiva, vale
cia jurídica em um certo contexto10 (CASE
dizer, da escolha da litigância como estraté-
e GIVENS, 2010, p. 223). Para Case e Gi-
gia de atores coletivos para alcançarem
vens, as estruturas de oportunidades le-
seus objetivos políticos. Vanhala define a
gais podem ser classificadas em um conti-
estrutura de oportunidades legais como “o
nuum liberal-conservador. Tais estruturas
ambiente político-jurídico que fornece in-
são mais liberais quando facilitam a liti-
centivos e constrangimentos para indiví-
gância estratégica como mecanismos de
duos e organizações da sociedade civil rea-
influência na elaboração de políticas pú-
lizarem o litígio, afetando suas expectativas
blicas e mais conservadoras na medida em
de sucesso ou fracasso” (2006, p. 554).
que a limitam (2010, p. 223).
De acordo com Hilson, assim como as oportunidades políticas9, as oportunidades legais possuem características contingentes e estruturais. A principal característica contingente seria a receptividade dos tribunais a argumentos políticos, em dada circunstância. Neste caso, a preferência política dos juízes pode variar consideravelmente entre os diferentes níveis das cortes no interior da hierarquia do sistema judiciário (HILSON, 2002, p. 243244). As três principais características estruturais, relativamente mais estáveis, 8.
9.
Tais pesquisas utilizam a noção de oportunidade legal como ferramenta para entender a atuação dos movimentos feminista, ambientalista, de defesa do bem -estar dos animais e de gays e lésbicas no contexto da União Europeia e do movimento gay nos Estados Unidos, respectivamente. Em apertada síntese, Hilson afirma como as características estruturais das oportunidades políticas, a abertura ou fechamento do sistema político; e como a característica contingente, a receptividade das elites políticas à ação coletiva (2002, p. 242).
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10.
Wilson e Cordero (2006) apontam que, de acordo com Charles Epp (1998), “não é apenas a existência de uma oportunidade legal associada a juízes ativistas que permite que indivíduos e minorias persigam sua agenda de direitos com sucesso. Ao invés disso, Epp argumenta: ‘A combinação da consciência legal com uma carta de direitos, bem como um Judiciário disposto e capaz, aumenta a perspectiva da revolução dos direitos, mas o suporte material para a busca continuada de direitos ainda é crucial’ (p. 17). Isto é, na maioria dos casos buscar a opção legal é em geral um longo e dispendioso processo que requer recursos consideráveis por parte do autor da ação legal a fim de ser bem-sucedido, porque uma revolução dos direitos requer a ‘litigância generalizada e contínua’ (p. 18)” (p. 327). Contudo, ao analisar o uso da recém -reformada Corte Constitucional da Costa Rica pelo movimento gay para alcançar suas demandas, Wilson e Cordero apontam em sentido contrário: “O ponto interessante dos casos, entretanto, é que os gays, seja individualmente ou por meio de organizações nascentes, frequentemente usaram a corte na tentativa de ampliar sua agenda. Contrariamente às expectativas de Epp (1998), então, é possível que grupos gays mal organizados e com poucos recursos recebam proteção de seus direitos constitucionais das cortes por meio de oportunidades legais. Mesmo que nem todos os casos tenham sido bem -sucedidos, o baixo custo, o acesso livre e a rápida resolução dos casos permite a grupos e indivíduos apresentar com rapidez outro caso diretamente à corte constitucional sem a necessidade de incorrer em grandes custos financeiros ou precisar mobilizar um grande número de adeptos para ação coletiva” (WILSON e CORDERO, 2006, p. 337).
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Andersen (2004) aprofunda esta dis-
zes podem uniformemente aceitar a reivin-
cussão e aponta que as três principais di-
dicação (e então ela também estaria fora do
mensões da estrutura de oportunidades
sistema judicial), ou podem se dividir a res-
políticas (acesso à estrutura institucional
peito das implicações legais relativas àque-
formal, a configuração de poder no que diz
la reivindicação. Neste último caso, é esti-
respeito a temas importantes e a disponibi-
mulada a proposição de novos litígios a
lidade de aliados) também são dimensões
respeito daquela reivindicação e a “muni-
relevantes da estrutura de oportunidades
ção legal” é fornecida para ambos os lados
legais. Assim, em primeiro lugar, a exten-
da disputa. Andersen acredita que a pers-
são do acesso de movimentos sociais às
pectiva de juízes individualmente pode afe-
cortes também molda a emergência, o pro-
tar o progresso e os resultados dos litígios
gresso e os resultados obtidos com a ação
envolvendo movimentos sociais. A autora
legal (legal action). Os mecanismos e ca-
afirma que casos que tocam mais direta-
racterísticas do processo judicial modelam
mente em “fissuras” legais e/ou políticas são
o acesso às estratégias legais de várias e
mais propensos a provocar discordâncias
importantes formas, incluindo aí o que
significativas entre os juízes. Ademais, mu-
pode ser levado ao Judiciário, quem tem le-
danças nos quadros da magistratura podem
gitimidade para levar tais questões aos tri-
abrir ou fechar canais de oportunidade para
bunais e onde o litígio judicial pode ocorrer
ações legais (ANDERSEN, 2004, p. 9-10).
(que tribunal é competente para julgar o litígio). Assim, as exigências de acesso às cortes modelam as opções disponíveis para os atores sociais que desejam mobilizar o direito em nome dos objetivos dos movimentos sociais (ANDERSEN, 2004, p. 9-10).
A terceira dimensão da estrutura de oportunidades legais seria a presença de aliados ou oponentes dos movimentos sociais. Nesse sentido, Andersen afirma que aliados podem custear as despesas substanciais de se levar um caso às cortes, ofe-
A segunda dimensão da estrutura de
recer assistência na elaboração de estraté-
oportunidades legais seria a configuração
gias legais ou apresentar um amicus
de poder das elites ligadas ao Poder Judi-
curiae11 em determinado processo (o que
ciário, sendo estas formadas principalmen-
pode ser um sinal da importância do caso
te por juízes. A autora argumenta que quando uma determinada reivindicação é levada às cortes, há três tipos de respostas possíveis: ou os juízes podem uniformemente rejeitar a reivindicação (e então ela estaria fora do sistema judicial), ou os juí-
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11.
“Amicus Curiae é um instituto processual que consiste na admissão, em determinados processos, da manifestação de órgãos ou organizações da sociedade civil destinada ao fornecimento de subsídios e informações relevantes para o deslinde da causa”. Cf. BOTALLO, Eduardo Domingos. Lições de direito público. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005 apud MACIEL, 2011, p. 106.
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em consideração, prover argumentos legais
uma influência importante na decisão dos
suplementares e aumentar a credibilidade
movimentos sociais acerca de quais estra-
para as demandas propostas). Por sua vez,
tégias de ação irão adotar, deve-se recor-
os oponentes dos movimentos sociais se-
dar que outros fatores também são signifi-
riam seus opositores nas ações judiciais,
cativos em suas escolhas, tais como:
assim como os aliados de seus opositores, e
recursos disponíveis; identidade do movi-
trabalhariam para minar suas ações judi-
mento social; e ideias e valores que seus
ciais da mesma forma que os aliados traba-
membros compartilham (HILSON, 2002,
lham para apoiá-las. A autora argumenta
p. 240 -241).
que a proposição de ações judiciais pelos
Uma das principais críticas que pode
movimentos sociais é uma atividade estra-
ser apresentada a esta noção de oportuni-
tégica que busca redefinir uma condição
dades legais é a de que ela aborda a ques-
legal existente como injusta e identificar
tão da relação entre movimentos sociais,
uma forma de redirecionar a questão. Os
direito e Poder Judiciário a partir de uma
litigantes “opositores” procurarão evitar
perspectiva “de cima para baixo”, ou seja,
que esta redefinição seja alcançada com su-
bastante focada nas instituições e em fa-
cesso (ANDERSEN, 2004, p. 9-10).
tores institucionais. Nesse sentido, Va-
Hilson (2002) argumenta que a falta
nhala (2006) aponta que a base legal
de oportunidades políticas pode influen-
substantiva e a presença de uma estrutu-
ciar atores coletivos a adotar oportunida-
ra de oportunidades legais não são ele-
des legais como estratégia de ação . Nesse
mentos suficientes para explicar por que
sentido, Wilson e Cordero apontam que a
movimentos sociais optam pela estraté-
existência de novas oportunidades legais
gia de encaminhar suas demandas pela
pode significar que estratégias de encami-
via judicial. De acordo com a autora, é ne-
nhamento de demandas pela via do Poder
cessário também observar a questão “de
Legislativo ou por meio de um sistema de
baixo para cima”, ou seja, centrada no
lobbying tornem-se menos importantes e
ponto de vista dos atores sociais. Assim,
necessárias para movimentos sociais e in-
movimentos sociais estariam mais pro-
divíduos na medida em que estes podem
pensos a adotar o litígio como estratégia
reclamar seus direitos nas cortes (2006, p.
de ação quando há uma transformação
347). Contudo, Hilson ressalta que, apesar
interna na identidade ou nos valores da
das oportunidades políticas e legais terem
organização ou quando novas organiza-
12
ções emergem no interior do movimento 12.
Para o autor, somente a litigância realizada nas cortes pode ser considerada como estratégia legal (HILSON, 2002, p. 243).
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com a ideia de que seus membros são titulares de direitos e as cortes são o canal
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apropriado para perseguir seus objetivos
ponto de partida para entender tal noção
políticos13 (VANHALA, 2006, p. 555).
é a definição de Frances Zemans (1983, p.
A ferramenta analítica que melhor
700) que afirma que o direito é mobiliza-
preenche esta necessidade de se analisar a
do quando um desejo ou necessidade é
relação entre movimento social, direito e
traduzido em demandas que afirmam di-
Poder Judiciário a partir de uma perspec-
reitos (2008, p. 523). Esta definição evi-
tiva “de baixo para cima” e centrada no
dencia um dos pontos centrais dos estu-
agente social é a noção de mobilização do
dos de McCann: o de que o direito deve
direito. Tal noção, que tem como seu prin-
ser entendido como uma prática social,
cipal estudioso Michael McCann, será ex-
como um mediador das relações sociais,
plorada no próximo item.
cujo papel na sociedade vai muito além do âmbito das instituições estatais. O objeti-
13.3. Mobilização do direito14
vo primordial de McCann é o de analisar as diversas e complexas formas de como o
Michael McCann desenvolveu um
direito é mobilizado em diferentes mo-
extenso trabalho acerca da relação entre
mentos da luta política para a transforma-
movimentos sociais e direito, sendo um
ção social. Para McCann, os discursos ju-
dos principais resultados desses estudos a
rídicos são constitutivos das interações
construção de uma estrutura teórica para
práticas entre os indivíduos e, como tais,
analisar a chamada mobilização do direi-
fornecem algumas das mais importantes
to . De acordo com McCann, um bom
“estratégias de ação” por meio das quais
15
os cidadãos rotineiramente negociam as 13.
14.
15.
A autora ainda completa: “...uma transformação dentro do movimento social mais amplo poderia também incluir a emergência de novas organizações que desde seu início compreendem a condição de membro não como passiva, objeto de caridade, mas ao contrário como cidadãos ativos com direitos, e têm como interesse inerente o uso das cortes para reforçar essa identidade dentro da sociedade como um todo” (VANHALA, 2006, p. 556). O termo original em inglês “legal mobilization” pode ser traduzido como “mobilização legal” ou “mobilização do direito”. Optou-se pela segunda expressão, pois, assim como aponta Maciel, a palavra “direito” tem um sentido mais amplo que a “lei”. Segundo a autora, “o direito como fenômeno social não se restringe, ou não se esgota, na sua forma legal que é apenas uma das suas expressões possíveis” (2011, p. 106). McCann aponta que o fenômeno da mobilização do direito foi explorado em uma série de trabalhos durante as décadas de 1960 e 1970 (2008). Segundo o autor, tais trabalhos se focaram na análise da “mobilização do direito por indivíduos que buscavam principalmente a resolução de confli-
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relações sociais. Este entendimento implica no fato de que, em alguma medida, o conhecimento do direito antevê a atividade social, ou seja, convenções jurídicas herdadas moldam os próprios termos do entendimento, aspirações e interações entre os cidadãos (1994, p. 6). O autor afirtos privados” ou no desenvolvimento de abordagens da mobilização legal para a compreensão de “atividades de reforma social”. McCann ressalta que, apesar de tais estudos terem grande importância para o desenvolvimento de sua própria análise da mobilização do direito, eles silenciaram ou foram especulativos a respeito de alguns temas que são o centro de sua análise (1994, p. 5).
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ma que estes símbolos e discursos jurídicos
não só o direito formal-estatal é um “labi-
fornecem recursos relativamente maleá-
rinto” de tradições legais diverso, indeter-
veis que são rotineiramente reconstruídos
minado e, às vezes, até contraditório, mas
na medida em que os cidadãos buscam
há também uma multiplicidade de tradi-
avançar no que diz respeito a seus interes-
ções legais “locais” (indigenous) relativa-
ses e projetos na vida cotidiana. Assim, os
mente autônomas que competem por proe-
discursos jurídicos oferecem um meio po-
minência dentro das diversas subculturas
tencialmente flexível tanto para reconfi-
e terrenos institucionais da sociedade. O
gurar os termos de arranjos passados
autor ainda aponta que, mesmo quando
como para expressar aspirações de novas
grupos que lutam por mudanças sociais
formas de direitos (1994, p. 7).
adotam convenções legais compartilha-
McCann aponta que a noção de mobi-
das, é necessário notar que o entendimen-
lização do direito está baseada em algu-
to e os usos dessas convenções podem va-
mas premissas. A primeira delas seria a de
riar drasticamente. A terceira premissa
que práticas legais e discursos de direitos
assinalada por McCann é a de que tanto as
não estão limitados às normas formais e
normas e práticas jurídicas oficiais como
instituições estatais. Segundo o autor, os
as “locais”, em geral, apenas contribuem
cidadãos cotidianamente mobilizam estra-
de forma parcial, limitada e contingente
tégias jurídicas para negociar trocas e re-
na maioria dos domínios das atividades
solver disputas em diversos âmbitos da
dos cidadãos. Isso quer dizer que o direito
vida social, sem depender de intervenção
raramente é uma força exclusiva na práti-
oficial direta para tanto (1994, p. 7-8).
ca social de fato. Assim, as convenções ju-
Como consequência, McCann assinala que
rídicas constituem apenas uma dimensão
a abordagem da mobilização do direito
altamente variável em um misto complexo
“desloca o foco dos tribunais para os usuá-
de fatores interdependentes que estrutu-
rios e utiliza o direito como um recurso de
ram o entendimento e as ações dos indiví-
interação política e social” (2010, p. 182).
duos (1994, p. 7-9).
O ponto de vista adotado é o dos atores so-
Segundo McCann, essas premissas
ciais que mobilizam estratégias legais em
dão à abordagem da mobilização do direito
sua ação coletiva, muito mais do que o
uma visão mais expansiva, sutil e complexa
ponto de vista da instituição, ou seja, do
do papel que o direito e o Poder Judiciário
Poder Judiciário. Uma segunda premissa
desempenham nas lutas políticas. As táti-
seria de que a ordem legal é mais “pluralis-
cas e práticas jurídicas utilizadas pelos
ta” do que monolítica. Segundo o autor,
movimentos sociais, em especial aquelas
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que recorrem às normas formais e aos tri-
lização do direito em dois níveis: o “nível
bunais, têm múltiplas motivações e efeitos
instrumental ou estratégico” e o nível do
complexos (1994, p. 9-10). McCann aponta
“poder constitutivo da autoridade judi-
que o poder indireto do direito e do Poder
cial”. No nível instrumental ou estratégico,
Judiciário na sociedade é fundamental: o
analisa-se como as ações e decisões judi-
autor acredita que sua influência é menos
ciais conformam o cenário estratégico de
linear, menos direta e não está sujeita a
outros atores estatais e dos agentes so-
análises causais, como em geral indicam
ciais. Em outras palavras, tal nível de aná-
os estudiosos do tema16. O autor ressalta que tais efeitos indiretos podem ser relevantes, por exemplo, para a construção do próprio movimento social, para gerar apoio público para novas reivindicações de direitos e para alavancar outras táticas políticas (1994, p. 10). Nesse sentido, os tribunais seriam “importantes por configurarem o contexto no qual os usuários da justiça se engajam em uma mobilização do direito”, ou seja, tal importância “se dá em fun-
lise busca entender como “as deliberações e ações de diversos agentes sociais são formadas por entendimentos acerca das normas estabelecidas pelos tribunais, bem como pelas expectativas de sua provável atuação em áreas incertas do direito” (2010, p. 184). Assim, as cortes não apenas teriam o papel de decidir qual o significado de direitos em disputa, mas também acabam por prevenir, incitar, estruturar, des-
ção de como os usuários interpretam e
locar e transformar conflitos na sociedade
agem com relação aos seus sinais” (2010,
rotineiramente (2010, p. 185).
p. 183). O autor acredita que as cortes au-
O Poder Judiciário também tem um
xiliam de forma ativa a compor o “panora-
importante papel para a mobilização do di-
ma ou a rede de relações na qual se encon-
reito em uma segunda dimensão, que o au-
tram as demandas judiciais em curso dos
tor denomina “poder constitutivo da autori-
cidadãos e organizações” (2010, p. 183).
dade judicial”17. Tal dimensão é mais difusa
De acordo com McCann, o Poder Ju-
e de difícil compreensão e se configura nos
diciário tem uma importância para a mobi-
“modos pelos quais as práticas de construção jurídica dos tribunais são ‘constitutivas’
16.
Nesse sentido, McCann se diferencia do mainstream da ciência política que estuda os tribunais na medida em que esta busca entender os efeitos diretos e lineares das decisões do Poder Judiciário em outras instituições do Estado e na sociedade a partir de análises causais. De acordo com o autor, “os tribunais não são apenas solucionadores de conflitos” e “também não é poder essencial dos tribunais estabelecer regras a serem seguidas por outros atores” (McCANN, 2010, p. 183).
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de vida cultural” (2010, p. 188). Esta dimensão está bastante vinculada à linha
17.
De acordo com McCann, “este entendimento é menos proeminente entre os cientistas políticos, mas é desenvolvido por estudiosos sociojurídicos interdisciplinares” (2010, p. 188).
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“culturalista” de análise do direito, das estratégias legais e do Poder Judiciário desenvolvida inicialmente por Stuart Scheingold (2004)18. Tal análise se foca no papel que as cortes desempenham na “construção de significados jurídicos, nos meios judiciais de se saber o que define uma coletividade ou comunidade” (2010, p. 189). Nesse sentido, o direito se configura em “uma linguagem, um conjunto de lógicas, valores e entendimentos que as pessoas conhecem, esperam, aspiram e se sentem portadoras”, ou ainda é “um conhecimento
“
[...] não é produto identificável das decisões jurídicas individuais dos tribunais. Esse poder é expresso no legado cultural acumulado das ações judiciais e práticas de rotina ao longo do tempo. Essas convenções jurídicas são, por sua vez, apreendidas, internalizadas e normalizadas pelos cidadãos através de muitas formas de participação cultural – educação formal, comunicação de massa, cultura popular, experiências pessoais diretamente dentro das definições institucionais legalizadas. E, nessas formas, os conhecimentos, convenções e justificativas legais fundamentais transmitidos pelos tribunais são reproduzidos e reforçados no interior de múltiplas práticas, relações e arranjos que estruturam a vida diária por toda a sociedade” (2010, p. 190).
instrumental sobre como agir para alcançar estes fins” (2010, p. 189). Assim, os tri-
Para McCann, este “poder constituti-
bunais têm uma função fundamental de
vo” do direito gerado em parte pela atua-
refinar, complementar e ampliar a lingua-
ção das cortes tem um efeito profundo e
gem do direito na sociedade. E esta lingua-
duradouro sobre a formação das identida-
gem, por sua vez, é a linguagem básica de
des, consciências, e a construção dos inte-
um território, refletindo em grande medida
resses dos sujeitos (2010, p. 190).
os princípios, valores e lógicas que constituem um povo (2010, p. 189). De acordo com McCann, tal “poder constitutivo”
Muitas das ideias apresentadas acima são desenvolvidas e discutidas por McCann em seu principal estudo, Rights at work: pay equity reform and the politics of legal mobilization (1994). Tal trabalho tem como objeto de estudo empírico o movimento so-
18.
Stuart Scheingold (2004) trouxe contribuições pioneiras para o campo de estudos das relações entre direito, política e transformações sociais a partir de sua visão “culturalista” deste fenômeno. Em seu Politics of rights, o autor apresenta várias intuições antropológicas a respeito da ressonância cultural e do poder simbólico dos direitos que vão sendo apontados ao longo de sua análise cultural da lei – por exemplo, o papel que as ideias ligadas ao direito podem desempenhar na política e a necessidade de examinar as consciências dos vários atores abarcados nos processos que envolvem o direito e a política. Esta visão “culturalista” do direito emerge durante os anos 1980 e 1990 e tem sua versão mais bem -acabada no trabalho de Michael McCann (PARIS, 2010, p. 18 -19).
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cial de mulheres nos Estados Unidos que lutou pela equidade de salários no final dos anos 1970, início dos anos 1980. O autor aponta para o fato de que os discursos legais e mecanismos institucionais não só forneceram recursos cruciais para tais lutas como também moldaram consideravelmente o terreno no qual essas lutas por novos direitos foram travadas (1994, p. 278).
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McCann afirma que, independentemente
plexo repertório de estratégias discursivas
dos resultados que os movimentos sociais
e arcabouços simbólicos que estruturam as
obtêm nos tribunais, a luta política estrutu-
relações sociais em curso e as atividades de
rada em torno dos direitos tem importante
construção de sentido entre os cidadãos
poder de organizar e mobilizar não só pes-
(1994, p. 282). Citando Thompson (1975) e
soas em torno da causa, mas também gru-
Scheingold (2004), McCann afirma que,
pos políticos que têm as mesmas deman-
longe de ser um código uniforme que vin-
das, mas estão desconectados. Assim, o
cula as pessoas, os direitos podem ser mais
direito e as táticas legais têm uma impor-
bem entendidos como um terreno continua-
tante função na construção do próprio mo-
mente contestado de poder relacional entre
vimento social e de sujeitos sociais ativos
cidadãos (1994, p. 283).
que lutam por suas demandas (1994).
Pode-se dizer que uma das grandes
McCann também identifica a impor-
contribuições de McCann para o campo de
tância dos recursos legais nas manobras
estudos da relação entre o direito e movi-
dos movimentos sociais para compelir o
mentos sociais é o aprofundamento da con-
Estado a fazer concessões em suas políti-
cepção “culturalista” do direito, na qual o
cas públicas já estabelecidas, ou mesmo
autor desenvolveu sua teoria acerca da mo-
nas fases de desenvolvimento e implemen-
bilização do direito. O autor entende o “di-
tação delas (1994). O autor também reco-
reito como prática social”. Este está entre-
nhece a importância do legado jurídico
laçado com a política e o aparato legal, é
das conquistas dos movimentos sociais
pensado como arma instrumental ao mes-
para outras lutas. Nesse sentido, o autor
mo tempo em que encarna e promove ideias
fala da formação de uma consciência dos
e discursos que existem em uma relação
direitos (legal consciousness), na qual os
complexa com outros discursos culturais e
direitos se tornam cada vez mais significa-
políticos (PARIS, 2010, p. 20).
tivos tanto como um discurso moral quan-
Outra importante contribuição de Mc-
to como um recurso estratégico para as
Cann para este campo de estudos foi ter
lutas contra as relações de poder presen-
localizado a mobilização do direito no inte-
tes na sociedade (1994, p. 278 -281).
rior de um contexto político e social mais
Para McCann, a estrutura da mobili-
amplo. O autor traçou os contextos relevan-
zação do direito está fundamentada em
tes para a mobilização do direito no interior
uma interpretação do direito como elemen-
dos esforços dos movimentos sociais, prin-
to constitutivo da sociedade (1994, p. 282).
cipalmente colocando as reivindicações e
Os direitos, segundo esse autor, podem ser
atividades ligadas ao direito dentro de uma
entendidos como consistindo em um com-
perspectiva ampla e processual de cálculo
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das ações e objetivos de tais atores. Nesse
ções comunitárias e etc.” (CABALLERO,
sentido, ele examinou o papel que o direito
2011, p. 8). As noções aqui apresentadas
desempenhou em diferentes fases de ativi-
fornecem ferramentas analíticas distintas
dades dos movimentos sociais. McCann
para dar conta de diferentes aspectos des-
também traçou os contextos de ação dos
ta questão: o ponto de vista da instituição,
movimentos sociais colocando-os dentro de
mais bem entendido a partir da noção de
um contexto político e social mais amplo
oportunidade legal, e o ponto de vista da
(PARIS, 2010, p. 20).
ação coletiva, mais bem entendido a partir da noção de mobilização do direito.
Considerações finais Feita esta breve apresentação das noções de oportunidade legal e de mobili-
Assim, deve-se levar em consideração que o Poder Judiciário tem se configurado como uma das alternativas que os movimentos sociais possuem para o enca-
zação do direito, pode-se apontar para a
minhamento de suas demandas, não ape-
necessidade de se aprofundar os estudos
nas como forma de se encontrar uma reso-
acerca da relação entre movimentos so-
lução judicial para elas, mas como meio de
ciais, direito e Poder Judiciário, princi-
inscrever ou reinscrever determinado
palmente no contexto brasileiro, e incor-
tema no debate público. Com efeito, o en-
porar tais análises nos estudos da ação
caminhamento de uma demanda para o
coletiva. A “utilização da linguagem dos
Poder Judiciário não tem necessariamente
direitos na mobilização social” ou a me-
o objetivo único (ou mesmo primordial) de
diação de manifestações políticas ou mo-
que determinada ação seja julgada proce-
bilizações sociais por meio da linguagem
dente e que seu objetivo mais imediato
dos direitos é um fenômeno observado
seja alcançado. Em muitos casos, as ações
em todo o mundo (CABALLERO, 2011, p.
judiciais podem significar uma tentativa
7-8). O direito e o Poder Judiciário têm
de amplificar demandas particulares em
ganhado cada vez mais importância na
termos mais abrangentes, gerar discussão
atuação de movimentos sociais, podendo-
pública e, eventualmente, forçar a inscri-
-se falar mesmo de uma “constitucionali-
ção de temas e objetivos na agenda política
zação dos movimentos sociais” que se ca-
oficial. O fenômeno descrito acima nos re-
racterizaria por um “uso crescente, em
mete a uma compreensão do Poder Judiciá-
massa e expansivo da linguagem dos di-
rio não como mero output do sistema polí-
reitos e das instituições judiciais por par-
tico, mas como mais um de seus inputs;
te de cidadãos, organizações de direitos
vale dizer, como meio de acesso de deman-
humanos, movimentos sociais, organiza-
das formuladas pela sociedade civil e pelos
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movimentos sociais ao interior do proces-
da ciência política e das ciências sociais.
so político formal. Por outro lado, o direito
Fica clara, então, a necessidade de alargar a
tem se mostrado um campo em que ocor-
agenda de pesquisa no Brasil e incluir estu-
rem disputas culturais e políticas impor-
dos da relação entre movimentos sociais,
tantes. Ele pode ser entendido como um
direito e o Poder Judiciário, abarcando as
recurso cognitivo e moral “para a constru-
reflexões apresentadas acima. Sua inserção
ção de quadros interpretativos, isto é, para
pode se dar em diferentes áreas, desde os
a conversão ou a tradução de problemas
estudos da ciência política, descentralizan-
sociais em problemas jurídicos e para a
do a análise do Poder Judiciário a partir de
criação de identidades coletivas calcadas
suas decisões (output) e reconhecendo
na ‘consciência dos direitos’” (MACIEL,
nele um espaço de intensa mobilização so-
2011, p. 101). Em outras palavras, “os agen-
cial (input) antes, durante e após seu pro-
tes coletivos valem-se de estratégias de
cesso decisório, e nas ciências sociais, in-
mobilização do direito tanto para (re)defi-
corporando aos estudos dos movimentos
nir problemas sociais e situações de injus-
sociais sua inter-relação mais próxima com
tiça como para alcançar resultados políti-
a linguagem do direito e as instituições ju-
cos práticos” (MACIEL, 2011, p. 101).
diciais. É neste diálogo entre áreas que a
Nesse sentido, a adequada descrição e
sociologia jurídica pode contribuir mais,
avaliação destes fenômenos exige a supera-
dando continuidade aos seus estudos sobre
ção das compreensões tradicionais do Po-
movimentos sociais no processo de demo-
der Judiciário e o alargamento dos estudos
cratização brasileira, agora produzindo
sobre movimentos sociais no que se refere
também estudos empíricos que apresentem
às suas estratégias de mobilização, atuação
a linguagem do direito e das instituições,
política e relação com as instituições esta-
especialmente o Poder Judiciário, recente-
tais. A literatura norte-americana vem
mente cada vez mais apropriadas pelos mo-
cumprindo estas tarefas há algumas déca-
vimentos sociais.
das, procurando compreender a intensa mobilização social em torno do Poder Judiciário desde a década de 1960, com a ação do movimento de direitos civis e políticos. Diante dessa aproximação recente no caso brasileiro entre movimentos sociais e Poder Judiciário, pode ser bastante frutífero dialogar com essa literatura, especialmente em como ela organiza o debate no campo
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14 Como Decidem os Juízes? Sobre a qualidade da jurisdição brasileira
José Rodrigo Rodriguez Carolina Cutrupi Ferreira
14.1. Direito e realidade Como decidem os juízes? Que tipo de raciocínio os magistrados utilizam de
dos juízes, ou seja, com a descrição empírica da fundamentação de acórdãos e sentenças (TAMANAHA, 2009).
fato para julgar os casos concretos? Que
Aprendemos como os juízes pensam,
argumentos e operações mentais eles mo-
normalmente, ao ler textos de Teoria Ge-
bilizam? Como organizam as suas senten-
ral dos diversos ramos do direito (Direito
ças? No Brasil, tais perguntas têm sido
Civil, Direito Tributário, Direito do Traba-
respondidas tradicionalmente pela Filo-
lho etc.), manuais de Introdução ao Direi-
sofia e pela Teoria do Direito, não pela
to e trabalhos de Filosofia do Direito. Em
Sociologia Jurídica. Há pouca tradição de
regra, esse material discute a função do
pesquisa empírica sobre decisões judi-
juiz em abstrato, a partir de um modelo do
ciais no País e as pesquisas que existem
que seria um juiz ideal, ou seja, aquele que
dialogam pouco com as diversas teorias
julga de acordo com um padrão de racio-
da racionalidade jurisdicional. Este qua-
nalidade considerado como o “correto” (o
dro se repete fora do Brasil: poucas pes-
“direito como integridade” de Ronald
quisas sobre decisões judiciais se preocu-
Dworkin, o “senso de adequação” de Klaus
pam com a construção da argumentação
Günther, a “ponderação de princípios” de
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Robert Alexy etc.). Além disso, esses tra-
muitas pesquisas isoladas em trabalhos
balhos costumam elencar, sem muita dis-
de iniciação científica, mestrado, douto-
cussão, os diversos métodos de interpreta-
rado e em relatórios de pesquisa, espe-
ção (gramático, sistemático, histórico etc.)
cialmente aqueles oriundos do projeto
e as principais escolas filosóficas que dis-
“Pensando o Direito” da Secretaria de As-
cutiram a racionalidade judicial ao longo
suntos Legislativos do Ministério da Jus-
da história (“escola do direito livre”, “ju-
tiça. Por esta razão, ao invés de tentar
risprudência dos conceitos” etc.).
esgotar o campo recolhendo pesquisas
O que todos estes escritos têm em comum, boa parte das vezes, é o objetivo de traçar um perfil ideal de juiz sem referência à empiria. Eles pretendem explicar ao
isoladas, vamos preferir nos fixar em algumas pesquisas, finalizadas ou em curso, sem ter a pretensão de exaurir os trabalhos realizados sob esta perspectiva.
leitor como um bom juiz deve se comportar, como um bom juiz deve pensar e proferir suas decisões. Tais construções conceituais, normalmente, ficam afastadas da pesquisa empírica, não se preocupam em discutir como pensam os juízes reais em um determinado contexto. Falam em nome de uma ideia de juiz desencarnada, muito longe das práticas sociais reais.
14.2. Filosofia do direito e sociologia jurídica Mas, antes de prosseguir, é importante refletir sobre um ponto importante para nosso argumento. Em função do que foi dito até aqui, pode-se pensar que a Filosofia do Direito e a Teoria do Direito estariam simplesmente erradas ao pretender
Este texto irá comentar algumas pes-
fazer o que fazem. Afinal, parece mais im-
quisas que procuram inverter essa lógica ao
portante nos preocuparmos com a realida-
relacionar conceitos e realidade empírica;
de efetiva do Direito, sem ficarmos presos
pesquisas que investigam as razões para
a modelos ideais, cujo objetivo é ditar à so-
decidir presentes na fundamentação das
ciedade como deve ser um bom juiz. Pare-
sentenças e procuram compreender a fun-
ce ser mais útil ao conhecimento investi-
ção jurisdicional a partir deste material.
gar o mundo como ele é, e não entregar-se
É importante dizer, no entanto, que
à elaboração de ideais de direito e de juiz
este é um campo de investigação ainda
meramente normativos. O pensamento con-
incipiente no Brasil. É difícil traçar um
ceitual não seria uma tarefa digna de um
panorama dos trabalhos que o compõem,
pesquisador em Sociologia Jurídica.
pois há poucos grupos de pesquisa orga-
Não é bem assim. Em uma democra-
nizados para enfrentar esta temática. Há
cia, é preciso pesquisar empiricamente as
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Como Decidem os Juízes?
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decisões judiciais e descobrir como os juí-
acertado. Afinal, é difícil aceitar uma deci-
zes efetivamente pensam, ou seja, quais
são que soa irracional, meramente subjeti-
modelos de raciocínio utilizam, quais ma-
va, totalmente idiossincrática, incoerente
teriais jurídicos e não jurídicos citam e
e, portanto, autoritária.
como organizam seu pensamento. No Bra-
O problema que nos preocupa aqui, é
sil de hoje, em pleno processo de consolida-
importante dizer, só faz sentido em um
ção de seu Estado de Direito, é importante
contexto democrático. Pois, é perfeita-
investigar extensivamente as decisões ju-
mente possível pensar em uma ordem jurí-
diciais para que possamos avaliar qualita-
dica em que a justificação das decisões
tivamente a maneira pela qual o Judiciário
judiciais seja desimportante ou supérflua;
exerce seu poder. A função da pesquisa
ou uma ordem em que o juiz possa decidir
empírica, como nos explica Franz Neu-
o que quiser, sem o controle de modelos de
mann (2012) é vigiar o poder dos juízes
raciocínio que sirvam de padrão para or-
para denunciar eventuais decisões arbi-
ganizar suas decisões. Em uma realidade
trárias, ou seja, decisões que não sejam
como esta, pouco importa o que ou como o
justificadas adequadamente de acordo
juiz decide, ou seja, pouco importa o teor
com os padrões considerados adequados
efetivo de sua decisão. Basta que ela tenha
por determinada sociedade (RODRIGUEZ,
sido proferida por ele, o juiz, a autoridade
2012).
competente para tanto, dotada de poderes
Por isso mesmo, além de descrever o
quase mágicos para dizer o que é justo no
que efetivamente ocorre em nosso direito,
caso concreto. Nesta ordem de razões,
é preciso refletir também sobre a qualida-
uma decisão é boa pelo simples fato de ter
de da fundamentação das sentenças. Fun-
sido tomada por uma autoridade compe-
damentações deficientes, centradas em
tente, independentemente de sua funda-
argumentos de autoridade, marcadas por
mentação.
uma argumentação incoerente, mesmo
Da mesma maneira, para uma socie-
que construída a partir do material jurídi-
dade que avalie as decisões judiciais ape-
co (leis, princípios, costumes, jurispru-
nas em função de seu resultado, de seus
dência), podem contribuir para enfraque-
efeitos sobre a sociedade, o problema a que
cer o Estado de Direito no momento em
estamos nos referindo perde completa-
que a sociedade passe a prestar mais aten-
mente sua relevância. Nesse caso, a deci-
ção nelas e deixe de ver os juízes como
são será boa ou ruim porque favoreceu
uma espécie de “semideuses” dotados de
este e não aquele valor, porque atendeu a
um saber técnico sempre preciso e sempre
este a não àquele interesse, porque permi-
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tiu ou não o desenvolvimento, a consolida-
Aqui, reside a importância da refle-
ção de determinada atividade social. Não
xão filosófica combinada com a pesquisa
importa a sua racionalidade interna, o en-
empírica, o aporte específico da Sociologia
cadeamento de seus argumentos, a manei-
Jurídica. A mera descrição da realidade
ra pela qual o juiz organiza seu raciocínio
empírica, por si mesma, não é capaz de dar
e se utiliza do material jurídico. Esta é a
respostas a perguntas bastante triviais
posição, por exemplo, da maioria dos adep-
que presidem a relação mais cotidiana en-
tos das teorias que relacionam direito e
tre os cidadãos e o Poder Judiciário.1 Tais
economia, chamadas de Law & Econo-
inquietações definem as expectativas dos
mics. Esta também é a maneira pela qual
cidadãos em relação ao direito e ao Judiciá-
os economistas costumam olhar o Direito
rio e, portanto, contribuem ou para sua
(ARIDA, 2005).
legitimidade, ou para seu descrédito. Por
As pesquisas que iremos comentar aqui estão preocupadas, justamente, com o padrão da argumentação utilizada pelos juízes, com a maneira pela qual eles justificam as suas decisões no contexto do processo judicial. Todas elas, portanto, partem do pressuposto de que a justificação é uma dimensão relevante do processo decisório e, portanto, merece ser acessada e descrita para que possamos compreender e refletir sobre a atuação dos juízes e para que possamos avaliar a
exemplo, é difícil para qualquer pessoa imaginar que um mesmo problema jurídico possa ser objeto de decisões diferentes, a depender do juiz que irá julgá-lo. É razoável supor que a sociedade como um todo e as partes do processo gostariam de saber qual é a resposta correta para seus problemas, ou seja, de quem é, afinal, o direito naquele caso concreto. Cada cabeça, uma sentença; cada juiz, uma decisão diferente? Para responder a estas inquietações, não há como escapar da filosofia.
qualidade da jurisdição. Não há espaço
Quais elementos o juiz deve levar
aqui para desenvolver este tema, mas a
em conta em sua decisão? Quais são os
importância da fundamentação está liga-
tipos de argumento que ele pode e deve
da à segurança jurídica, à previsibilidade
utilizar e quais ele não pode? Que mate-
das decisões judiciais e, de outro lado, ao
riais ele pode citar em sua fundamenta-
combate ao arbítrio dos juízes – o comba-
ção e qual sua relevância para o resultado
te ao personalismo daqueles que se sen-
final? Em suma, qual é a melhor maneira
tem à vontade para decidir sem justificar adequadamente suas decisões, com base em sua pura autoridade.
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1.
Este raciocínio inspira-se no texto de Max Horkheimer, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (HORKHEIMER, 1983), publicado originalmente em 1936.
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Como Decidem os Juízes?
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de proferir a decisão em um caso concre-
sociedade que não existe ou que existe
to? Sem um padrão normativo como este,
apenas na cabeça dos filósofos.
é difícil avaliar a atuação do Poder Judi-
Antes de prosseguir, uma última ob-
ciário do ponto de vista de sua racionali-
servação: as pesquisas que nos preocupam
dade interna, é difícil distinguir um bom juiz de um mau juiz, é difícil dizer se nosso estado de direito está melhorando ou piorando a cada sentença proferida. Sem ele, não somos capazes de distinguir uma boa decisão de uma má decisão, o que torna impossível ensinar um aluno em sala de aula sobre a melhor forma de pensar juridicamente.
aqui têm como foco as razões explicitadas pelo juiz no contexto do processo judicial, ou seja, as razões reduzidas a escrito ou submetidas a alguma forma de registro formal. Um juiz pode dar entrevistas e informar os motivos subjetivos que o levaram a tomar esta ou aquela decisão. Ele também pode ter suas razões íntimas, secretas, privadas, que o movem nesta direção, e não
Qual função deve caber, afinal, ao
em outra. No entanto, para as pesquisas
Poder Judiciário? E como ele se distingue
que nos interessam, importam, principal-
dos demais poderes e do mero jogo de inte-
mente, as razões que foram explicitadas na
resses políticos?
decisão judicial, as quais podem ser consul-
Se a pesquisa empírica é capaz de
tadas em bancos de dados variados ou nas
mostrar como os juízes decidem seus ca-
varas e tribunais. Podem ser lidas, discuti-
sos, se ela é capaz de mostrar a riqueza da
das, questionadas e avaliadas criticamente.
argumentação jurisdicional e os diversos perfis de juiz em atuação em um mesmo ordenamento jurídico, ela é incapaz de fornecer elementos para avaliar tal atuação e indicar caminhos para seu aperfeiçoamen-
14.3. Pesquisas empíricas sobre fundamentação das decisões judiciais
to. Por sua vez, é claro, a filosofia que não
Todas as decisões judiciais e acór-
dialoga com a realidade empírica, que se
dãos proferidos pelo Poder Judiciário, por
resguarda da empiria discutindo apenas
respeito ao princípio da publicidade dos
conceitos abstratos e teorias deste ou da-
atos processuais, são publicados no Diá-
quele pensador, arrisca-se a se tornar uma
rio Oficial, ferramenta central utilizada
conversa de surdos destinada a elaborar
por advogados para localizar publicações
projetos normativos sem qualquer viabili-
nas ações em que atuam. Essas decisões,
dade empírica, pensados sem qualquer re-
na maioria dos casos, são também digitali-
ferência ao mundo real, voltados para uma
zadas e publicadas nos sites dos respecti-
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vos Tribunais, bem como, via de regra, lo-
tema único de indexação dos julgados.
calizáveis a partir do número do processo
Isso quer dizer que determinados sistemas
ou nome dos advogados ou das partes.
de busca podem realizar varreduras no le-
Além desta ferramenta, praticamente todos os Tribunais brasileiros, de segunda instância e superiores, estaduais ou fede-
vantamento de acórdãos a partir de buscas pela ementa, e outros pelo inteiro teor da decisão.
rais, comuns ou especiais (em âmbito mili-
As pesquisas que serão apresentadas
tar, eleitoral ou trabalhista) têm bancos de
a seguir constituem, em sua maioria, estu-
jurisprudência para pesquisa on-line das
dos empíricos realizados a partir dos ban-
decisões proferidas pelo próprio órgão.
cos de jurisprudência dos tribunais. Todos
O estudo quantitativo e qualitativo de decisões judiciais, na maior parte das vezes, é realizado a partir de buscas por palavras-chave nestes bancos. Contudo, inúmeros fatores constituem dificuldades para a realização de pesquisas empíricas com jurisprudência no País, especialmente no que diz respeito aos critérios de seleção e publicação destes documentos.
os trabalhos ressaltam as dificuldades em desenhar uma trajetória de pesquisa e a representatividade dos dados quantitativos construídos, justamente em razão da falta de confiabilidade do conteúdo disponível. Nesse sentido, a construção de dados sobre a fundamentação e outros elementos das decisões judiciais de forma fidedigna demanda a explicitação dos critérios adotados para a constituição dos
A maioria dos bancos de decisões
bancos de dados sobre jurisprudência, as-
restringe-se à publicação dos acórdãos jul-
sim como dos mecanismos de busca para
gados em segunda instância. Praticamen-
acesso às decisões. Sem tais requisitos,
te não existem dados sobre decisões de
pesquisas empíricas com este material es-
juízes de primeiro grau ou de juizados es-
tarão limitadas para desenvolver generali-
peciais estaduais ou federais.
zações quantitativas sobre a aplicação de
Poucos são os tribunais que indicam,
determinada norma pelo judiciário, uma
de forma explícita, o número total de jul-
vez que não é possível determinar a repre-
gados que compõem os bancos, o período
sentatividade de tais decisões em relação
abrangido dos julgados, critérios de sele-
ao total de julgados de cada tribunal.
ção e periodicidade de atualização. Além disso, os bancos de jurispru-
14.3.1. Algumas pesquisas empíricas
dência de cada tribunal têm diferentes sis-
O projeto “Pensando o Direito”, da
temas de busca e não dispõem de um sis-
Secretaria de Assuntos Legislativos do Mi-
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Como Decidem os Juízes?
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nistério da Justiça, incentivou, nos últimos
Nos 108 acórdãos sobre práticas tra-
anos, a elaboração de pesquisas empíricas
balhistas discriminatórias encontrados, fo-
nas temáticas de atuação da Secretaria.
ram identificadas sete demandas princi-
Algumas destas pesquisas desenvolveram
pais, a saber, exigência de revista íntima,
estudos qualitativos com o intuito de com-
ampliação ou redução do período para re-
preender a motivação das decisões judi-
feição e repouso durante a jornada, descan-
ciais sobre temas como a quantificação do
so de 15 minutos em caso de prorrogação
dano moral pelos tribunais, pena mínima,
do horário de trabalho, licença-maternidade
controle repressivo de constitucionalida-
destinada à mãe adotante, estabilidade
de, discriminação feminina nas relações
provisória da gestante ou condutas discri-
de trabalho e aplicação do instituto da re-
minatórias contra ela, assédio sexual e
percussão geral.
auxílio-creche.
Para tanto, estes estudos foram reali-
A sistematização destas decisões en-
zados por meio da análise de argumentos
volveu a identificação dos temas aborda-
em decisões judiciais ou de entrevistas com os juízes sobre determinado tema. As pesquisas desenvolvidas pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), pela Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) e pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
dos nos acórdãos, além do mapeamento de citações de obras doutrinárias, julgados, legislação, argumentos externos ao direito (econômicos, políticos, culturais etc.) e o uso destes elementos como argumentos de autoridade nos votos.
(Direito GV) se valem destes instrumen-
No que diz respeito à fundamentação
tos para realizar estudos empíricos que,
das decisões, a pesquisa constatou a ausên-
embora sobre temas diversos, têm como
cia de um uso sistemático de jurisprudên-
objetivo principal a compreensão da moti-
cia. Ao menos nos acórdãos analisados, não
vação de decisões judiciais.
existem referências a casos paradigmáti-
Duas pesquisas empíricas desenvolvidas pelo CEBRAP buscam identificar elementos argumentativos em decisões ju-
cos, “e parecem citá-los apenas para corroborar a posição adotada na decisão” (RODRIGUEZ e NOBRE, 2009, p. 52).
diciais. O estudo “Mulheres e políticas de
A fundamentação desenvolvida a par-
reconhecimento no Brasil” de 2008/2009
tir de dispositivos legais foi a mais fre-
se dedicou, entre outros objetivos, ao estu-
quente e, por também ser marcada pela
do de decisões proferidas pelos Tribunais
argumentação por autoridade, com a mera
do Trabalho sobre relações trabalhistas
citação do texto legal, sem justificação,
discriminatórias contra funcionárias.
sem uma exegese detalhada, foi possível
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mapear diferentes posicionamentos sobre
zados em cada instância e identificar, quan-
a aplicação da mesma norma. Destacam-se
do possível, a existência ou não de um
as referências ao texto constitucional, que
padrão argumentativo.
apareceu “como argumento crucial nas po-
Para atender a este objetivo, foram
sições jurisprudenciais predominantes e
desenvolvidos critérios de investigação dos
mesmo nas posições vencidas” (RODRI-
argumentos presentes nos pareceres das
GUEZ e NOBRE, 2009, p. 52); o mesmo
CCJC, nas justificativas aos vetos da Presi-
texto foi citado em sentidos opostos, sem
dência da República e nas decisões do STF
que haja um voto vencedor que exponha a
em matérias em que estas três instâncias
posição vencedora naquele tribunal.
se manifestaram.
Já a pesquisa “Processo legislativo e
No que se refere ao controle repres-
controle de constitucionalidade: as fron-
sivo de constitucionalidade e análise das
teiras entre direito e política” de 2010/2011,
decisões judiciais, buscou-se mapear dis-
também desenvolvida pelo CEBRAP, bus-
positivos legais, princípios, autores de dou-
cou comparar a atuação das instâncias
trinas jurídicas, argumentos externos ao
responsáveis pelo controle preventivo e re-
direito e julgados no conteúdo de cada
pressivo de constitucionalidade de nor-
voto. Para cada um destes critérios, ques-
mas. No âmbito do Poder Legislativo, o
tiona-se se a citação foi ou não usada como
controle preventivo é realizado pelas Co-
argumento de autoridade.
missões de Constituição e Justiça da Câmara e do Senado Federal (CCJC). No Poder Executivo federal, esta é uma atribuição privativa da Presidência da República, por meio do instrumento do veto (que pode ser parcial ou total a um dispositivo ou
Da análise das 38 decisões proferidas pelo STF, pode-se perceber que os ministros utilizam uma gama de elementos para fundamentar seus votos. Uma das principais conclusões deste estudo foi de que, no universo de decisões analisadas, não existe
uma lei). O controle repressivo de normas,
um padrão decisório entre os votos ou entre
no âmbito federal, é de competência do
os acórdãos. Isto porque um ou mais tipos
Supremo Tribunal Federal (STF).
de argumentos podem ser utilizados num
Os dois principais objetivos da pes-
mesmo voto, sejam aqueles que recorrem a
quisa são: (i) identificar o que cada ins-
uma interpretação sistematizada da lei e
tância entende, de fato, por controle de
dos princípios de direito ou os que citam
constitucionalidade, para além (ou aquém)
trechos de doutrina, jurisprudência ou da
do texto normativo que define sua compe-
opinião de especialistas de áreas não jurídi-
tência; e (ii) mapear os argumentos utili-
cas; sejam aqueles que citam o texto legal.
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Como Decidem os Juízes?
263
Em geral, percebeu-se que um mesmo
agrega votos longos e com inúmeras cita-
acórdão pode conter uma grande variedade
ções de obras doutrinárias, precedentes e
de argumentos apresentados sobre o mes-
outros argumentos, sem hierarquização e
mo problema, sem qualquer hierarquiza-
sem coerência entre si. Nos casos fáceis, o
ção, sem que se possa saber quais são os
STF profere decisões compostas de votos
argumentos decisivos, os mais importantes
concisos em que o ministro acompanha o
para a decisão final. Vistos em conjunto,
voto do ministro relator sem desenvolver
acórdãos sobre um mesmo assunto podem
uma fundamentação própria. Também o
conter os argumentos mais diversificados,
voto do relator costuma ser muito conciso,
sem que haja necessariamente algum tipo
sem explicitar longamente as razões da
de comunicação entre eles, sem que um
decisão.
juiz debata em seu voto a posição do outro e mostre por que tem razão.
A pesquisa “A complexidade do problema e a simplicidade da solução: a ques-
Esta conclusão pode indicar que
tão das penas mínimas” de 2009, desenvol-
cada ministro utiliza os argumentos mais
vida pela Direito GV, adotou a metodologia
propícios para fundamentar seu voto, utili-
de entrevistas semidiretivas com juízes,
zando um padrão pessoal de fundamenta-
promotores, advogados e professores para
ção. Como em nossos tribunais a decisão é
compreender a fundamentação de suas
tomada por maioria de votos e não há a re-
decisões no tocante à pena mínima.
dação de um voto da corte, de um voto
Um dos objetivos das entrevistas é
vencedor único, a tendência é que este
identificar e testar argumentos jurídicos e
quadro se repita em todos os tribunais, es-
políticos a favor e contra a prática da pena
pecialmente nos casos controversos, em
mínima. A escolha por este instrumento
que os juízes divergem. Nos outros casos,
de coleta de dados ocorreu após a consta-
todos os votos costumam ser telegráficos e
tação de que nem a doutrina jurídica, nem
no mesmo sentido. Todos os juízes votam
a jurisprudência, nem a sociologia do di-
com o relator e, via de regra, não funda-
reito parecem discutir em profundidade a
mentam sua decisão com argumentos,
pertinência ou os fundamentos das penas
manifestam-se de forma telegráfica.
mínimas. Assim, optou-se por realizar
Em suma, a pesquisa mostrou que as
entrevistas para “estimular uma reflexão
decisões do STF são uma somatória de vo-
coletiva e conjunta sobre esse tema”
tos com padrões argumentativos variáveis
(MACHADO, 2009, p. 186).
de juiz para juiz. Nos casos difíceis, con-
Para a realização das entrevistas se-
troversos, cada decisão desse Tribunal
midiretivas, foi elaborado um roteiro, di-
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Manual de Sociologia Jurídica
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vidido em duas partes. Na primeira, bus-
ção judicial, a existência da pena mínima
ca-se identificar os principais argumentos
prevista pelo legislador pode significar
a favor das penas mínimas, que podem
uma comodidade em sua atividade decisó-
ser aceitos ou não pelo entrevistado. Na
ria justamente porque, em relação à deter-
segunda, argumentos contra as penas mí-
minação da pena, é possível transferir a
nimas são apresentados, com o intuito de
responsabilidade por sua definição ao le-
avaliar a eventual pertinência de cada
gislador” (MACHADO, 2009, p. 62).
um deles.
Outra pesquisa desenvolvida pela Di-
Embora a pesquisa sobre penas míni-
reito GV, “A quantificação do dano moral
mas não esteja voltada para a manifesta-
no Brasil: justiça, segurança e eficiência”,
ção formal e expressa do juiz ao decidir o
de 2010, investigou a seguinte questão:
caso concreto, as entrevistas constituíram
“haveria uma discricionaridade excessiva
uma fonte relevante para se compreender
do Poder Judiciário no estabelecimento
quais operações lógico -argumentativas es-
dos valores de danos morais, capaz de
tão presentes no momento da aplicação da
comprometer a previsibilidade das deci-
pena pelo juiz, cujos fundamentos são
sões e o tratamento igual de casos iguais?”
pouco problematizados.
(PÜSCHEL, 2010, p. 11).
Uma das conclusões da pesquisa é a
O levantamento de decisões judiciais
de que algumas estruturas normativas,
tem como objetivo central fornecer dados
posições jurisprudenciais e doutrinárias
concretos sobre a real dimensão da insegu-
ainda partilham de uma concepção de di-
rança jurídica decorrente do sistema atual,
visão de tarefas entre o legislador e o juiz.
além de um panorama dos critérios de cál-
Tal concepção é favorável ao fato de o le-
culo desenvolvidos pela jurisprudência na
gislador decidir, pelo juiz, a pena a ser
ausência de regulação expressa.
aplicada a determinado réu. A pena míni-
Para tanto, foi realizado um levanta-
ma de prisão é uma pena escolhida pelo
mento de decisões em quinze tribunais de
legislador, exclusivamente em função do
diferentes regiões do País, das Justiças Es-
crime, e aplicada pelo juiz em detrimento
tadual, Federal e do Trabalho, do ano de
das circunstâncias e particularidades do
2008. A seleção dos tribunais buscou aten-
infrator e do caso concreto (MACHADO,
der aos critérios de representatividade de
2009, p. 67).
cada região geopolítica do Brasil, com a ne-
As entrevistas revelaram também
cessidade de coincidência do território de
uma forma de justificar a existência das
competência entre os tribunais das diferen-
penas mínimas. “Do ponto de vista da atua-
tes Justiças. O grande número de decisões
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Como Decidem os Juízes?
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implicou na seleção de amostras, uma para
terminar por diminuir a segurança em vez
cada Justiça, composta com acórdãos dos
de aumentá-la” (PUSCHEL, 2010, p. 54).
cinco tribunais selecionados para a respectiva Justiça. O recorte temporal se justifica por haver a certeza de que todos os acórdãos do período estariam disponíveis nas bases de dados eletrônicas.
Por fim, a pesquisa desenvolvida pela Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), “Repercussão Geral e o Sistema Brasileiro de Precedentes”, de 2011, investigou a implementação da repercussão ge-
A análise de 1.044 acórdãos revelou
ral, nova exigência para que os recursos
que não existem indícios de que a ausência
extraordinários sejam apreciados pelo
de critérios legislativos de cálculo de dano
STF, instituída pela Emenda Constitucio-
moral tenha levado a uma situação de des-
nal n. 45/2004.
respeito ao princípio da igualdade. Pelo contrário, a análise de casos frequentes revelou uma razoável consistência das decisões com relação a valores. O levantamento também revelou que os valores concedidos a título de reparação por danos morais tendem a ser baixos, sendo excepcionais os casos que ultrapassaram a barreira dos R$ 100.000,00. Nesse sentido, uma das principais conclusões da pesquisa é a de que “a temida indústria de reparações milionárias não é uma realida-
O estudo realizado contempla a identificação de dificuldades e êxitos na implementação deste requisito de admissibilidade de 2004 até o final de 2010. Para além deste diagnóstico, a pesquisa objetivou propor alternativas para o enfrentamento às dificuldades mapeadas e avaliar o papel que tem sido desempenhado pelo instituto da repercussão geral na eventual criação de um sistema brasileiro de precedentes em matéria constitucional.
de no Brasil, mesmo diante da situação
A pesquisa partiu de um duplo enfo-
atual de ausência de critérios legais para o
que: identificar como tem sido a imple-
cálculo do valor da reparação por danos
mentação do instituto da repercussão ge-
morais” (PÜSCHEL, 2010, p. 54).
ral tanto no STF como nos tribunais de
A presente constatação reduz a necessidade de uma intervenção legislativa no tema para limitação ou padronização
origem. As duas frentes atentaram-se às dificuldades e boas práticas de implementação do instituto.
de valores, “especialmente diante do fato
Em relação à metodologia empregada
de que tal intervenção, mesmo que usando
para a análise de decisões do STF, proce-
técnicas casuísticas, pode aumentar a
deu-se ao exame de 284 julgados em intei-
complexidade do sistema jurídico, deses-
ro teor, disponíveis na internet, proferidos
tabilizar interpretações já estabelecidas e
em sede de recursos extraordinários ou
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agravos de instrumento em recursos ex-
Também se constatou a pouca troca de ar-
traordinários. Dentre os critérios investi-
gumentos em plenário virtual. Em geral, o
gados, buscou-se atentar para a forma pela
reconhecimento da repercussão geral é
qual o STF “tem identificado as questões
manifestado expressamente por mais da
constitucionais discutidas em cada recur-
metade dos ministros, com maior frequên-
so, os argumentos invocados para a decla-
cia em matérias sobre direito penal, pro-
ração da existência de repercussão geral, a
cessual penal e tributário.
atuação dos ministros em plenário virtual e a participação de amici curiae nos recursos extraordinários” (SUNDFELD e SOUZA, 2010, p. 14).
Além disso, foram encontradas diversas decisões, de caráter geral, sobre aspectos procedimentais do regime da repercussão geral, revelando que o instituto
Em relação aos tribunais de origem, o
permanece em construção. Daí a relevân-
principal objetivo era o exame de aspectos
cia, tal como apontado pela pesquisa, de
procedimentais de implementação do instituto da repercussão geral, fixados por decisões do próprio STF. Nesta frente, foram selecionados e examinados 224 acórdãos, proferidos no julgamento de recursos extraordinários, agravos de instrumento, reclamações e ações cautelares.
que haja maior publicidade e divulgação das decisões do STF que definem aspectos procedimentais relativos à repercussão geral para que os tribunais de origem possam operacionalizar o instituto de forma mais eficiente. No mesmo sentido, faltam registros adequados e organização de in-
A análise das decisões do STF e dos
formações relativas à implementação do
tribunais de origem foi complementada
instituto da repercussão geral, em bancos
pela identificação e análise da percepção
de dados, pelos tribunais de origem, e a
de magistrados e de seus assessores sobre a
publicidade de informações relativas à im-
experiência de implementação do instituto, captada por meio do envio de questionários escritos e da compilação das respostas. As principais conclusões alcançadas pela pesquisa referem-se à falta de unifor-
plementação do instituto da repercussão geral pelos tribunais de origem.
Considerações finais
midade nas decisões do STF no modo de
O presente artigo apresentou, de for-
expressão de questões discutidas nos re-
ma resumida, algumas pesquisas empíri-
cursos extraordinários; isto porque se en-
cas que tinham por objetivo o estudo da
contraram casos em que a questão consti-
fundamentação das decisões judiciais.
tucional não foi expressa de forma clara.
Seja por meio de entrevistas, seja pela aná-
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Como Decidem os Juízes?
267
lise do conteúdo das decisões, estes traba-
alguma medida, a variedade de perspecti-
lhos têm em comum a preocupação em
vas na construção do direito pelo tribunal
verificar a existência de um padrão de ar-
e sua possível relação com demandas ad-
gumentação dentro do processo judicial.
vindas do processo político, do debate na
A Constituição Federal atribui ao Po-
esfera pública.
der Judiciário uma instância decisória re-
Os trabalhos citados aqui precisam
levante, uma vez que inúmeros temas polí-
dialogar com novas pesquisas que indi-
ticos, sociais e econômicos previstos no
quem as limitações ou a eventual possibi-
texto constitucional são passíveis de apre-
lidade de generalizar as conclusões a que
ciação judicial.
chegaram. Como estamos diante de tra-
Ressalte-se ainda o papel relevante
balhos pioneiros, acreditamos que os mo-
na análise do controle difuso de constitu-
delos conceituais construídos para suas
cionalidade de normas (realizado por to-
análises possam ser replicados e aperfei-
dos os juízes no caso concreto) e no con-
çoados em futuras pesquisas, para criar
trole concentrado, o qual é desempenhado
uma rede de experiências e estudos sobre
pelo STF e adquire importância crescente
fundamentação de decisões judiciais ca-
na dinâmica jurídica e política do País.
paz de avaliar com mais precisão a quali-
A consolidação de uma pauta de pesquisas empíricas sobre decisões judiciais é fundamental para a compreensão do papel do juiz na distribuição de poderes dentro do Estado. A atuação judicial não se restringe à
dade de nossa jurisdição (e os métodos e teorias sobre a jurisdição) e discutir, por exemplo, o tema do ativismo judicial de forma mais fina e criteriosa, com uma base empírica mais ampla do que a que temos atualmente.
aplicação mecânica da lei ao caso concreto. A aplicação da lei é um processo de dispu-
Bibliografia
ta interpretativa sobre os sentidos possí-
ARIDA, Pérsio. A pesquisa em direito e em economia: em torno da historicidade da norma. Revista Direito GV 1, v. 1, n. 1, 2005.
veis de uma norma. Abre espaço, portanto, para visões diferentes sobre o mesmo problema jurídico, presentes nos votos dos juízes que podem e devem ser debatidos pela esfera pública, em especial pelas faculdades de Direito. Não tratamos deste ponto aqui, mas as pesquisas apresentadas ilustraram, em
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HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. XLVIII (Coleção Os Pensadores). MACHADO, Maíra Rocha; PIRES, Alvaro; FERREIRA, Carolina Cutrupi; SCHAFFA, Pedro Mesquita. A complexidade do problema e a simplicidade da solução: a questão das penas mínimas. Ministério da Justiça: Série Pensando o Direito, 17/2009.
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NEUMANN, Franz. O império do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2012.
reito e política. Ministério da Justiça: Série Pensando o Direito, 31/2010.
PÜSCHEL, Flavia Portella (Coord.). A quantificação do dano moral no Brasil: justiça, segurança e eficiência. Ministério da Justiça: Série Pensando o Direito, 37/2010.
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SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de et al. Repercussão geral e o sistema brasileiro de precedentes. Ministério da Justiça: Série Pensando o Direito, 40/2010. TAMANAHA, Brian Z. Beyond the formalist-realist divide: The role of politics in judging. New Jersey: Princeton University Press, 2009.
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15 Desempenho Judicial, o quanto a Sociedade Confia e Como avalia o Poder Judiciário Brasileiro A importância das medidas de confiança nas instituições
Luciana Gross Cunha Fabiana Luci de Oliveira
Introdução O objetivo deste artigo é discutir a avaliação pública do desempenho do Poder Judiciário brasileiro, considerando as motivações que levam as pessoas a utilizarem (ou não) e a confiarem (ou não) no sistema judicial do País, a partir da apresentação da
jetivo, apresentaremos as discussões sobre as formas de avaliar o desempenho das instituições do sistema de justiça e, mais especificamente, do Judiciário, e a importância dessa avaliação. A confiança nas instituições, como uma linha de análise dentro das ciências sociais permeia este trabalho.
pesquisa Índice de Confiança na Justiça
O Judiciário é uma instituição de im-
brasileira (ICJBrasil)1. Para atingir esse ob-
portância central na construção de sociedades democráticas. Na maioria dos países
1.
O ICJBrasil (Índice de Confiança na Justiça Brasileira) é um levantamento estatístico, realizado em sete Estados brasileiros, com base em amostra representativa da população em termos de sexo, idade, escolaridade e condição de ocupação (população economicamente ativa ou não). O levantamento é conduzido desde abril de 2009 pela Faculdade de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, entrevistando trimestralmente 1.550 pessoas, em sete Estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Distrito Federal. O objetivo central
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latino-americanos que transitaram de regido ICJBrasil é avaliar a percepção e a experiência dos brasileiros com relação ao Judiciário, acompanhando de forma sistemática o sentimento da população em relação a essa instituição. Os dados são divulgados trimestralmente em relatórios que podem ser acessados no endereço: . Acesso em: 20 ago. 2012.
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mes militares e autoritários para a democra-
variáveis: independência, eficiência, aces-
cia, ao longo das décadas de 1980 e 1990, o
so, eficácia e accountability.
Judiciário atuou como ator vital na garantia
A variável independência judicial se
e na consolidação desses novos regimes, na
refere tanto à independência do sistema
medida em que assegurou a eficácia do Es-
judicial de influência política externa in-
tado de Direito e se impôs como locus privi-
devida quanto à capacidade dos juízes in-
legiado de resolução de conflitos que surgis-
dividuais tomarem decisões independen-
sem no âmbito da sociedade, da economia,
tes em casos particulares. Por eficiência,
da política e no mundo dos negócios.
os autores consideram a capacidade do
Obviamente que, para a aplicação
sistema judicial em processar casos sem
justa e imparcial da lei (princípio funda-
morosidade; morosidade entendida como
mental do Estado de Direito), é necessária
atrasos excessivos, passíveis de serem eli-
a existência de um sistema judicial legíti-
minados, compreendendo que a dinâmica
mo, que goze de independência, seja efi-
do processo judicial comporta, algumas
ciente e eficaz; isso é, um sistema que te-
vezes, andamentos menos céleres. A variá-
nha um desempenho coerente com as suas
vel acesso trata da disponibilidade equita-
justificativas normativas, cumprindo as
tiva de atendimento para todos os cidadãos
exigências e expectativas em relação ao
independentemente de condição socioe-
seu papel. Ser capaz de avaliar o desempe-
conômica, raça ou localização geográfica
nho do sistema judicial de um país é, por-
(STAATS, BOWLER e HISKEY, 2005, p.
tanto, tarefa essencial para avaliar a quali-
79). Já eficácia é a capacidade de fazer va-
dade de sua democracia.
ler e respeitar suas decisões, ou, nas pala-
E como se mensura o desempenho do sistema judicial? De acordo com Staats, Bowler e Hiskey2, sendo desempenho judicial um conceito multidimensional, pode-se mensurá-lo de diferentes maneiras. Ao tratar da literatura que aborda o tema, os au-
vras dos autores, a disponibilidade de mecanismos viáveis de fiscalização e sanções. E, por fim, accountability é a sujeição do Poder Judiciário “à regra da lei”, no sentido de transparência, da sua obrigação de prestar contas de seus atos.
tores destacam que uma medida de quali-
Para traduzir essas variáveis em da-
dade da avaliação do sistema judicial deve
dos tangíveis, organismos internacionais,
considerar um conjunto mínimo de cinco
como o CEJA3, elencam informações como
2.
STAATS, Joseph L.; BOWLER, Shaun; HISKEY, Jonathan T. Measuring judicial performance. Latin America. Latin American Politics & Society, v. 47, n. 4, p. 77-106, Winter 2005.
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3.
“O Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA) é uma agência do Sistema Interamericano, criada em 1999, com sede em Santiago, Chile. Os membros do CEJA são os
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Desempenho Judicial
271
o número de processos iniciados, resolvidos
putas e garantindo o respeito aos direitos
e pendentes por ano, a média de duração
individuais e também no seu papel de po-
dos casos e o número de juízes por habitan-
der do Estado, decidindo se políticas e
tes, entre outras4.
ações do governo são compatíveis com o
Apesar de essenciais, nenhuma des-
disposto na Constituição. É construído pa-
sas informações é apropriada para forne-
ra ser um retrato de como a sociedade ava-
cer dados objetivos sobre a avaliação do
lia: (i) as diversas dimensões do Judiciário
Judiciário em termos de independência, acesso e eficácia; nem é capaz de indicar as motivações do cidadão na utilização do Judiciário como canal de resolução de conflitos. Partindo da premissa de que as dimensões de independência, eficiência, aces-
como um prestador de serviço público (subíndice de percepção); e (ii) as atitudes da população sobre o papel do Judiciário na resolução de conflitos, considerando a predisposição dos indivíduos em acionar as cortes em busca da solução de problemas (subíndice de atitude).
so, eficácia e accountability, em conjunto com as motivações para o uso da justiça, representam uma das formas de avaliar o nível de legitimidade do sistema judicial, e
15.1. Os problemas do Poder Judiciário brasileiro e seu diagnóstico
de que essa última afeta de forma definiti-
Ao tratar da importância do sistema
va o desenvolvimento econômico, político
de justiça nas ciências sociais no Brasil,
e social de um país, justifica-se a concep-
Maria Tereza Sadek5 chama atenção para o
ção do Índice de Confiança na Justiça bra-
fato de que o Judiciário só passou a inte-
sileira (ICJBrasil) como uma medida do
grar com força a agenda de pesquisa aca-
desempenho do judiciário brasileiro aos
dêmica no Brasil a partir da década de
olhos da população. O índice resume a
1990, quando os efeitos da Constituição de
percepção da sociedade sobre quão eficaz
1988 começaram a ficar mais visíveis. A
tem sido o Poder Judiciário em efetivar a
Carta de 1988 promoveu a constitucionali-
distribuição de “justiça”, adjudicando dis-
zação de uma gama significativa de direitos civis, políticos e sociais, o que gerou,
4.
Estados-membros ativos da Organização dos Estados Americanos (OEA)”. Informações em: . Ver CEJA, Reporte sobre la Justicia en las Américas, 20062007 e CUNHA, Luciana. Indicadores de desempenho do Judiciário: como são produzidos e qual a sua finalidade. Cadernos FGV Projetos, Rio de Janeiro: FGV, ano 5, n. 12, p. 41-45, 2010.
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por sua vez, um movimento de intensificação de busca pelo Poder Judiciário, fazen5.
SADEK, Maria Tereza. Estudos sobre o sistema de justiça. In: MICELI, Sérgio. O que ler na ciência social brasileira? São Paulo: Sumaré, 2002. v. IV.
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do com que os estudos sobre instituições
dial e as Nações Unidas, classificaram o
passassem a ver, no Judiciário, uma pro-
Judiciário brasileiro como um dos mais
missora área de pesquisa. Importante sa-
ineficientes, iníquos e corruptos do mun-
lientar que, em termos de produção de
do. No relatório da Organização das Na-
infor mações estatísticas sobre sistema ju-
ções Unidas de 2005, é possível ler acerca
dicial, em 1989 foi criado o Banco Nacio-
dos “sérios problemas no sistema judicial
nal de Dados do Poder Judiciário, que “reú-
do Brasil”, afirmando que os processos po-
ne trimestralmente informações sobre a
dem levar anos até serem julgados, afetan-
quantidade de cargos de juiz – existentes e
do o direito aos serviços judiciais ou os
providos –, concursos realizados e em an-
tornando ineficazes, levando muitas vezes
damento, número de processos entrados e
à impunidade. O relatório ressalta ainda
julgados, natureza das causas, número de
que uma grande proporção da população
comarcas, varas e juizados existentes, en-
brasileira, seja por razões de natureza eco-
tre outras”6.
nômica, social ou cultural, encontra-se ex-
Nesse mesmo período, também ga-
cluída do acesso aos serviços judiciais8.
nhou força o diagnóstico de crise do Poder
Apesar de todos os problemas de
Judiciário, especialmente com base na aná-
acesso diagnosticados (Banco Mundial,
lise da movimentação processual e na opi-
Nações Unidas etc.), há uma alta taxa de
nião e avaliação de experts que passaram
litígio nos tribunais brasileiros, sendo que
a apontar a necessidade de reforma desse
a passagem da década de 1990 para os
poder, em vista de torná-lo mais rápido,
anos 2000 trouxe um crescimento expo-
acessível e responsivo às demandas da
nencial de demandas levadas à esfera da
sociedade7.
justiça. Considerando a taxa de litigiosida-
Nos anos 2000, estudos de organis-
de no País para a justiça comum (contabi-
mos internacionais, como o Banco Mun-
lizando casos da primeira e da segunda instância e juizados especiais), verifica-
6.
7.
STF, Informativo, n. 1, agosto de 1995, apud SADEK, Maria Tereza; OLIVEIRA, Fabiana Luci. Estudos, pesquisas e dados em justiça. In: OLIVEIRA, Fabiana Luci (Org.). Justiça em foco: estudos empíricos. Rio de Janeiro: FGV, 2012. Vide, por exemplo: SADEK, Maria Tereza; ARANTES, Rogério. A crise do Judiciário e a visão dos juízes. Revista USP, Dossiê Judiciário, n. 21, 1994. LOPES, José Reinaldo Lima. Justiça e Poder Judiciário ou a virtude confronta a instituição. Revista USP, Dossiê Judiciário, n. 21, 1994; SADEK, Maria Tereza (Org.). O Judiciário em debate. São Paulo: IDESP/Sumaré, 1995; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, 1996.
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mos um salto de 3,6 milhões de casos em 1990 para 9,4 milhões em 2000, chegando em 2009 a 17,7 milhões de casos9. A taxa de congestionamento também aumentou, 8.
9.
UNITED NATIONS. Civil and political rights. New York: United Nations, 2005, p. 2. Dados extraídos dos relatórios Justiça em Números, disponíveis no site do Conselho Nacional de Justiça (www.cnj. jus.br).
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Desempenho Judicial
273
e com isso o Judiciário passou a ser cada
“convivência contraditória”13 entre a des-
vez mais questionado em seu desempenho
confiança no Poder Judiciário, decorrente
e sua capacidade de responder às deman-
da desaprovação de seu desempenho pelos
das levadas a ele10.
cidadãos que não acreditam que esse poder
Parte dos questionamentos quanto à eficiência foi respondida pela Reforma do Judiciário, aprovada em dezembro de 2004, que, entre outras medidas, instituiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por controlar as atividades do Judiciário. O CNJ tem instituído anualmente metas a serem alcançadas pelos tribunais em relação à velocidade das decisões e taxas de congestionamento. Mas, ainda assim, os problemas persistem11.
funciona de acordo com sua missão, e a elevada procura pelo Judiciário quando se trata da solução de litígios? Em primeiro lugar, precisamos atentar ao que afirma Sadek14: esse volume de ações não implica necessariamente ampliação do acesso da população à justiça, uma vez que parte significativa destas demandas são provenientes do próprio governo ou de setores privilegiados da sociedade15. Mas, ainda assim, o volume de acesso da população ao Judiciário é considerável – dados da PNAD 2009
Ao mesmo tempo em que se observa
revelam que a maioria das pessoas que vi-
esse aumento vertiginoso na taxa de litigio-
venciaram situação de conflito (12,6 mi-
sidade, pesquisas de opinião fazem coro aos
lhões) nos últimos cinco anos anteriores à
estudos acadêmicos que apontam a preca-
data de realização da pesquisa recorreu à
riedade da justiça. Historicamente, em pes-
ação judicial formal (57,8%) e aos juizados
quisas de opinião, o Judiciário sempre apre-
especiais (12,4%) como forma de resolução
senta níveis baixos de confiança (tanto no
do problema vivido16.
Brasil quanto em outros países latino -americanos), ficando com cerca de 25 a 35% da confiança da população . Como explicar a 12
13. 10.
11.
12.
De acordo com definição do CNJ, a taxa de congestionamento “mede a efetividade do tribunal em um período, levando -se em conta o total de casos novos que ingressaram, os casos baixados e o estoque pendente ao final do período” (www.cnj.jus.br). Note -se que em 2010 a taxa de congestionamento na justiça estadual ficou em 72%, o que implica dizer que a cada 100 casos em tramitação na justiça estadual nesse ano, 72 permaneceram sem solução. Para mais informações, consultar os relatórios do CNJ Justiça em Números. Dados da série de 1996 -2003 do Latinobarômetro, apud POWER, Timothy J.; JAMISON, Giselle D. Desconfiança
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14.
15.
16.
política na América Latina. Opinião Pública, Campinas, v. XI, n. 1, p. 64 -93, mar. 2005. Para acesso à série histórica do Latinobarômetro, consultar: . Conceito emprestado de MOISÉS, José Álvaro. A desconfiança nas instituições democráticas. Opinião Pública, Campinas, v. XI, n. 1, p. 33 -63, mar. 2005. SADEK, Maria Tereza. Acesso à justiça: visão da sociedade. Justitia, v. 1, p. 273, 2008. Outra evidência a dar suporte ao argumento de Sadek é o relatório “Os 100 maiores litigantes”, publicado em 2011 pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2012. IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2009 – Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2012. As nove perguntas para o subíndice de percepção são as seguintes: (i) De forma geral, o(a) Sr(a). diria que o Judiciário brasileiro é uma instituição muito confiável, confiável, pouco confiável ou nada confiável? (ii) Na sua opinião, o Judiciário brasileiro resolve os casos muito rapidamente, rapidamente, no tempo certo, lentamente ou muito lentamente?
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18.
(iii) Em termos de competência para solucionar os casos, o(a) Sr(a). diria que o Judiciário brasileiro é muito competente, competente, pouco competente ou nada competente? (iv) Em termos de custos para entrar com uma causa na justiça, para o(a) Sr(a). o Judiciário brasileiro é muito barato, barato, um pouco caro ou muito caro? (v) E em termos de facilidade de uso, para o(a) Sr(a). utilizar o Judiciário brasileiro é muito fácil, um pouco fácil, um pouco difícil ou muito difícil? (vi) Quanto à honestidade, para o(a) Sr(a). o Judiciário brasileiro é muito honesto, honesto, pouco honesto ou nada honesto? (vii) E quanto à independência da justiça, para o(a) Sr(a). o quão independente é o Judiciário brasileiro, muito independente, independente, pouco independente, ou nada independente? (viii) Para o(a) Sr(a). o Judiciário brasileiro nos últimos 5 anos melhorou muito, melhorou um pouco, ficou na mesma situação, piorou um pouco ou piorou muito? (ix) Pensando nos próximos 5 anos, para o(a) Sr(a). o Judiciário brasileiro tende a melhorar muito, melhorar um pouco, ficar na mesma situação, piorar um pouco ou piorar muito? O custo de acessar o Judiciário não se refere apenas às custas processuais e aos honorários dos advogados. Mesmo a justiça gratuita, com o apoio da defensoria pública, implica um custo para a sua utilização: transporte, produção de documentos e, para muitos, a perda de um dia de serviço remunerado, quando parte dos brasileiros das classes econômicas mais baixas trabalham sem carteira assinada, no mercado informal.
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Desempenho Judicial
275
Gráfico 15.1. Série histórica – avaliação das dimensões que compõem o subíndice de percepção da Justiça brasileira 100% 90% 80% 70% 60% 50%
Eficiência 90% 89%
91% 89%
Acesso (uso)
75% 70% 65% 64% 55% 51%
40% 30% 20%
70% 69%
Accountability
62% 61%
Independência
50% 46% 42%
Eficácia
33%
2º tri. 2010
Acesso (custo)
3º tri. 2010
4º tri. 2010
1º tri. 2011
2º tri. 2011
3º tri. 2011
4º tri. 2011
Melhoria com relação aos últimos 5 anos Melhoria com relação aos próximos 5 anos Confiança
1º tri. 2012
Base: 1.550 entrevistas por trimestre. Fonte: ICJBrasil, 2010–2012.
Em termos da facilidade de uso, entre 70 e 75% avaliam que é difícil utilizar
o crescimento repentino desse índice no segundo e no terceiro trimestres de 2011.
o Judiciário, seja por desconhecerem a di-
Essa alteração deveu-se a uma mu-
nâmica do seu funcionamento, seja por
dança na ordem das questões. Até o segun-
sentirem-se alheios à linguagem do Direi-
do trimestre de 2011, sempre começamos
to e dos rituais judiciários. Entre 60 e
as entrevistas a partir da declaração es-
70%, avaliam que o Judiciário é pouco ou
pontânea do nível de confiança no Judiciá-
nada honesto e, consequentemente, pou-
rio. E, posteriormente, perguntávamos so-
co accountable e transparente. Para cer-
bre as demais dimensões do subíndice de
ca de 60 a 65% da população, o Judiciário
percepção e atitude. Mas, no segundo e no
é, também, pouco independente.
terceiro trimestres de 2011, fizemos uma
Quando se trata da manifestação es-
importante modificação na ordem das en-
pontânea do nível de confiança na institui-
trevistas: começamos a partir da avaliação
ção, o Judiciário tem mantido seu índice
estimulada de cada uma das dimensões de
histórico: entre 30 e 40% dos brasileiros
percepção do Judiciário; na sequência,
declaram confiar ou confiar muito no Judi-
perguntamos sobre a predisposição para o
ciário. E aqui cabe uma nota para explicar
uso das cortes em cada uma das situações
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276
Manual de Sociologia Jurídica
hipotéticas do subíndice de atitude; e, so-
mo da dinâmica das entrevistas, pois os as-
mente depois, abordávamos a confiança
pectos cognitivos dos respondentes não de-
espontânea, contextualizando o Judiciário
vem ser ignorados. Os estudos acerca da
entre outras instituições (ou seja, pergun-
psicologia do respondente de survey há
tamos sobre a confiança nos partidos polí-
tempos confirmam a tese de que as pessoas
ticos, no governo, na polícia e no Judiciário,
procuram se manter coerentes em suas opi-
entre outras instituições). Essa alteração
niões; assim, a ordem das perguntas exerce
na ordem das perguntas levou a uma mu-
importante impacto na coleta de dados19.
dança considerável: a confiança no Judiciá-
Nesse caso específico, essa variação
rio aumentou para quase 50%. Para ter
fornece ainda um importante indício da
certeza se essa alteração se deveu a um
validade da tese eastoniana na interpreta-
efeito de ordem, nos trimestres seguintes
ção da confiança no Judiciário brasileiro.
voltamos à ordem anterior, perguntando
Easton entende que a confiança em uma
sobre a confiança no Judiciário logo de iní-
instituição se desdobra entre: apoio espe-
cio. O nível de confiança caiu, ficando pró-
cífico, que se refere à avaliação do desem-
ximo dos patamares anteriores, mas ainda
penho dos atores que compõem estas ins-
assim permaneceu um pouco acima do que
tituições em situações específicas; e apoio
costumava ser até o início de 2011. Agora, a
difuso, referente ao conjunto de atitudes
confiança no Judiciário está em torno de
com relação às instituições e aos valores
40%, o que pode implicar que alguma coisa
institucionais, baseado na percepção do
mudou para melhorar a percepção pública
cumprimento de exigências e expectati-
do Judiciário – monitoramos o impacto da
vas com relação ao seu papel, independen-
conjuntura a partir de questões sobre
temente do desempenho de seus mem-
acompanhamento de notícias acerca do
bros. Assim, de acordo com Easton, a
mundo da justiça, para, com isso, acompa-
confiança em uma determinada institui-
nhar a formação de tendências e controlar
ção é uma medida da internalização de
o efeito de eventos pontuais – por exemplo,
valores normativos (expectativas com re-
nos meses de junho a agosto de 2012 em
lação à função dessa instituição, ao seu
que a discussão sobre o julgamento do
significado ideal) e das experiências dos
mensalão bombardeava os brasileiros nos
indivíduos com essa instituição (desempe-
meios de comunicação de massa.
nho dos membros da instituição em situa-
Essa variação no patamar de confiança
ções específicas, e avaliação do desempe-
declarada reforça a importância de conhecer e entender a exata forma de mensuração das dimensões que compõem um índice, e mes-
Manual de Sociologia Juridica_p_001_a_376.indd 276
19.
Ver TOURANGEAU, R.; RIPS, L. J.; RASINSKI, K. The psychology of survey response. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
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Desempenho Judicial
277
nho da instituição dentro de um contexto,
cia pessoal com a instituição e expectativa
frente à sua função esperada)20.
de que essa instituição tome decisões de
É nesse sentido que acompanhar o sentimento da população em relação a uma instituição específica ou a um regime político, como um todo, ressurge nas ciências sociais, a partir da década de 1980. Como uma linha de análise que tem como objeto de estudo preferencial a confiança nas instituições democráticas representativas, o estudo sobre confiança faz parte do conjunto de trabalhos na área da cultura política. Isso não quer dizer, no entanto, que os autores que têm se debruçado sobre as expectativas e sentimentos da população em relação às instituições políticas sejam exclusivamente culturalistas. No caso dos estudos sobre confiança política, partindo-se do pressuposto de que instituições são importantes, porém não existem apartadas de valores e regras sociais e culturais construídas em um determinado momento, por uma determinada população, em um determinado contexto histórico e cultural, os estudos sobre confiança são partilhados por diversos autores, desde os próprios culturalistas até aqueles que estudam capital social e desenvolvimento21. E se, como dito acima, confiança política tem a ver com experiên-
acordo com um conjunto de regras conhecidas previamente, confiança política está relacionada à legitimidade. Em uma democracia, a medida de confiança no Judiciário, que, por sua vez, carece de legitimidade representativa, é uma variável essencial na verificação da sua legitimidade. Em três dimensões, o Judiciário tem um desempenho um pouco mais positivo aos olhos da população. No que se refere à eficiência, entre 45 e 50% acreditam na sua competência para solucionar os casos (50 a 55% avaliam como pouco ou nada eficiente). O mesmo percentual avalia que o Judiciário hoje está melhor do que no passado. E quando se trata da expectativa para o futuro, a maioria acredita que o desempenho da instituição tende a melhorar. Essas últimas três dimensões ajudam a explicar o porquê da grande predisposição declarada da população em buscar o Judiciário frente a uma situação potencial de conflito, documentada no Gráfico 15.2, referente ao subíndice de atitude. O subíndice de atitude baseia-se em seis diferentes situações de conflito hipotéticas, a partir das quais pedimos à população para se posicionar sobre a probabilidade de utilizar o Judiciário para resolver tais conflitos ou problemas, caso os viven-
20.
21.
Ver EASTON, David. A re -assessment of the concept of political support. British Journal of Political Science, v. 5, n. 4; p. 435 -457, 1975; MOISÉS, José Álvaro (Org.). Democracia e confiança : por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas? São Paulo: Edusp, 2010. Nesse sentido, ver MOISÉS, op. cit. p. 46 -48.
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ciassem. As respostas possíveis para essas perguntas são: (1) definitivamente não; (2) provavelmente não; (3) provavelmente sim; (4) definitivamente sim.
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Manual de Sociologia Jurídica
278
Gráfico 15.2. Série histórica – predisposição para acessar à justiça, de acordo com as dimensões que compõem o subíndice de atitude com relação à Justiça brasileira 100% 95%
Família
90% 85% 83%
82%
80%
82% 80%
81% 80%
75% 74%
75%
70% 70%
70%
68%
68%
65%
Relações com o Poder Público Questão trabalhista Vizinhança
60% 55% 50%
Direito do consumidor
Erro médico 2º tri. 2010
3º tri. 2010
4º tri. 2010
1º.tri. 2011
2º tri. 2011
3º tri. 2011
4º tri. 2011
1º tri. 2012
Base: 1.550 entrevistas por trimestre. Fonte: ICJBrasil, 2010–2012.
Desenvolvemos estas situações via entrevistas cognitivas, com o intuito de analisar uma série de conflitos nos quais a população dos centros urbanos, muitas vezes, vê-se envolvida e em que tem uma escolha sobre levar os casos a um tribunal, excluindo questões em que as pessoas envolvidas não têm a liberdade para decidir se devem ou não procurar uma solução judicial (casos criminais, por exemplo). Os casos hipotéticos apresentados dizem respeito a questões de consumo, família, vizinhança, trabalho e direito público22.
22.
As seis perguntas para o subíndice de atitude são as seguintes: (i) O seu(sua) esposo(a) abandonou o lar e levou consigo os seus filhos. O(a) Sr(a). já tentou conversar com o seu(sua) esposo(a), mas não obteve sucesso (nota ao
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entrevistador: “não obteve sucesso” quer dizer que não encontrou o esposo(a) e/ou mesmo encontrando não conseguiu conversar ou ter os filhos de volta). A partir dessa situação, o(a) Sr(a). irá ou não procurar a Justiça? (ii) O(a) Sr(a). foi submetido(a) a uma cirurgia e, em decorrência de erro médico, a recuperação foi mais longa que o esperado, o que provocou o seu afastamento do trabalho por mais tempo que o usual. A partir dessa situação, o(a) Sr(a). irá ou não procurar a Justiça? (iii) O(a) Sr(a). comprou um carro de uma agência ou concessionária de veículos, mas ele é entregue com um defeito, que compromete o seu funcionamento perfeito. O(a) Sr(a). já levou o carro na oficina da própria concessionária, mas não conseguiram consertar o defeito. A partir dessa situação, o(a) Sr(a). irá ou não procurar a Justiça? (iv) O seu vizinho faz uma reforma que gera rachaduras nas paredes de sua casa. Tentativas de solução do caso com o vizinho e/ou com o síndico ou a administradora do condomínio não obtiveram sucesso (nota ao entrevistador: com “não obtiveram sucesso” queremos dizer que o síndico e/ou a administradora do condomínio disseram que não poderiam fazer nada em relação ao acontecido. O vizinho disse que não era problema dele). A partir dessa situação, pergunta-se: o(a) Sr(a). irá ou não procurar a Justiça? (v) O(a) Sr(a). é despedido e recebe uma indeni-
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Desempenho Judicial
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Os brasileiros se mostram mais pre-
tradição se reforça ainda mais quando
dispostos a recorrer ao Judiciário em si-
observamos um outro indicador, o da acei-
tuações ligadas ao direito de família e do
tabilidade de meios alternativos de resolu-
consumidor, com cerca de 80% declaran-
ção de disputas. Perguntamos aos entre-
do que definitivamente iriam a justiça em
vistados se, na hipótese de vivenciarem
busca de solução. O Judiciário também
algum dos conflitos abordados nas ques-
aparece como o canal mais apropriado
tões atitudinais ou qualquer outro conflito
para cobrar o Estado por danos ao patri-
passível de resolução judicial, qual seria a
mônio (a tendência segue também em
probabilidade de aceitarem resolver o pro-
80%). As questões trabalhistas vêm na se-
blema pela via consensual, em vez de espe-
quência, com 72 a 75% dos brasileiros de-
rarem um julgamento23. A tendência tem
clarando que definitivamente acionariam
sido de rejeição aos meios alternativos ou
o Judiciário em busca de solução caso vi-
consensuais: em torno de 60 a 65% decla-
venciassem esse tipo de conflito.
ram a preferência do recurso aos tribunais
As situações em que os brasileiros estariam menos propensos a litigar são aque-
(entre 35 e 40% declararam que certamente aceitariam a via consensual).
las relacionadas a conflitos de vizinhança
Esse aparente paradoxo levanta a
e erro médico. Ainda assim, de maneira
questão de por que quando se trata de re-
geral, a predisposição para o litígio é alta.
solver os seus problemas as pessoas dese-
Os resultados na dimensão atitudinal indi-
jam tanto a instituição que avaliam de for-
cam que o Judiciário ainda é visto como o
ma tão precária? Além da tese eastoniana
lócus mais apropriado para buscar a reali-
do apoio difuso e específico apresentada
zação ou a proteção de um direito que foi
acima, três outras hipóteses parecem ser
negado ou violado.
adequadas para ajudar a explicar este pa-
Como explicar essa predisposição quando se tem uma avaliação do desempenho da instituição tão ruim? E essa conzação menor do que aquela a que tem direito. A partir dessa situação, pergunta-se: o(a) Sr(a). irá ou não procurar a Justiça? (vi) O poder público realizou obras na sua rua (nota ao entrevistador: “obras na rua” quer dizer: instalação de luz, esgoto, água, asfaltamento etc.), danificando severamente sua residência (nota ao entrevistador: “residência” envolve também condomínio ou casa). O funcionário da Prefeitura, responsável pela obra, afirmou -lhe que não pode fazer nada com relação aos seus prejuízos. Diante dessa situação, o(a) Sr(a). irá ou não procurar a Justiça?
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radoxo. A primeira seria a ausência ou ignorância de outros mecanismos eficazes de resolução de conflitos, ou do pouco conhecimento sobre o alcance e funcionamento dos mecanismos disponíveis. Na segunda, a predisposição em recorrer ao 23.
Se o(a) Sr(a). passasse por alguma dessas situações ou se precisasse resolver algum problema na Justiça, o(a) Sr(a). aceitaria ou não tentar um acordo reconhecido pelo Judiciário, mas decidido por uma outra pessoa que não um juiz? O(a) Sr(a). diria que com certeza aceitaria, possivelmente aceitaria, dificilmente aceitaria ou certamente não aceitaria?
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Manual de Sociologia Jurídica
280
Gráfico 15.3. Série histórica – subíndices de percepção e atitude e índice de confiança na justiça 10,0 9,0 8,0
8,0
7,8
8,1
7,8
5,6
5,8
5,9
8,5
8,4
8,4
5,5
5,4
5,5
4,1
4,2
8,6
8,6
8,7
5,5
5,6
5,6
5,3
4,3
4,3
4,3
3,8
8,5
8,6
7,0 6,0
6,5
5,0
5,0
4,7
4,7
4,0
4,9
4,2
3,0
5,2 3,8
2,0 1,0 0,0
2º tri. 2009
3º tri. 2009
4º tri. 2009
1º tri. 2010
Atitude
2º tri. 2010
3º tri. 2010
4º tri. 2010
1º tri. 2011
2º tri. 2011
3º tri. 2011
4º tri. 2011
1º tri. 2012
Percepção
ICJBrasil
Base: 1.550 entrevistas por trimestre. Fonte: ICJBrasil, 2009–2012.
Judiciário pode ser reflexo da percepção
modelo institucional garante ao Judiciário
de melhoria da instituição, em compara-
um lugar privilegiado, e por vezes exclusi-
ção com os últimos 5 anos, e a expectativa
vo, de solução dos conflitos.
de melhoria do Judiciário no futuro. As-
A partir da normalização das ques-
sim, uma vez que a população espera um
tões que compõem cada um dos subíndices
Judiciário mais responsivo e funcional no
– de percepção e de atitude – e de sua com-
futuro, ao cogitar a possibilidade de en-
binação ponderada, chegamos ao índice de
frentar conflitos vindouros, o Judiciário se
confiança na justiça. A ponderação se dá a
apresenta como a instituição mais adequa-
partir da atribuição de um peso maior
da para a busca de soluções. A terceira hi-
(70%) às questões de percepção, que têm a
pótese diz respeito ao centralismo jurídico
ver com valores, sendo mais estáveis, e um
e à ideia de que somente o Judiciário, ape-
peso menor (30%) às questões de atitude,
sar de todos os seus problemas, é a insti-
que tendem a ter maior oscilação24.
tuição do Estado capacitada a solucionar os conflitos. Assim, a possibilidade de ter o Estado, por meio do Judiciário, resolvendo o seu conflito, é uma forma de se reconhecer como cidadão em um Estado cujo
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24.
Para detalhes acerca do cálculo do índice, assim como da amostra, consultar CUNHA, Luciana Gross; BUENO, Rodrigo de Losso da Silveira; OLIVEIRA, Fabiana Luci; SAMPAIO, J. O; RAMOS, L. O.; KLINK, Y. C. Índice de confiança na justiça. Relatório ICJBrasil, 4º trim./2011, 4ª Onda, ano 3, 2011.
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Desempenho Judicial
281
O Índice de Confiança na Justiça bra-
No que diz respeito às outras dimen-
sileira (ICJBrasil) varia de 0 a 10, com 0
sões importantes, como independência,
significando ausência de confiança no Ju-
transparência e honestidade, o Judiciário
diciário, e 10, confiança plena no Judiciá-
não apresenta um bom desempenho. Os
rio. Os resultados gerais ao longo do tempo
legisladores e administradores da justiça
apontam para uma tendência de má ava-
precisam prestar mais atenção ao que os
liação do Judiciário como prestador de
dados vêm indicando nos últimos três
serviço público.
anos. É possível delinear algumas tendên-
Considerando o desempenho da ins-
cias que podem ser usadas para melhor
tituição à luz das questões de percepção,
informar as políticas públicas que estão
identificamos em quais dimensões os es-
sendo pensadas por legisladores e pelo
forços e recursos deveriam ser alocados de
CNJ na construção de um sistema de justi-
forma a melhorar a percepção do sistema:
ça mais responsivo e legítimo.
rapidez, acesso e accountability. Os da-
É importante ressaltar que a confian-
dos também indicam que, na percepção
ça espontânea no Judiciário é significati-
pública, já se nota o efeito de medidas que
vamente25 maior entre a população de mais
vêm sendo tomadas a fim de tornar o Judi-
alta renda e os de maior escolaridade, sen-
ciário mais eficiente (percepção de passa-
do que, quanto maior a renda e a escolari-
do e expectativa para o futuro) – o que
dade de uma pessoa, maior a confiança
significa que a comunicação dessas mu-
média declarada.
danças tem sido bem-sucedida.
No que se refere às dimensões de per-
Nesse sentido, desde 2009, a cada
cepção, vemos que, das variáveis socioeco-
ano o Conselho Nacional de Justiça deter-
nômicas e demográficas, apenas idade está
mina as metas que o Judiciário deve cum-
correlacionada significativamente, ainda
prir – a maioria delas destinadas a com-
que de forma fraca, à avaliação do Judiciá-
bater a morosidade, imprimindo maior
rio, sendo que o aumento da idade leva à
celeridade à resolução dos casos. Uma das
diminuição do índice de percepção26.
metas mais conhecidas é a meta 2, que determina que todos os tribunais devem identificar e julgar processos distribuídos aos juízes antes de 2006. A maioria das metas são desenhadas para lidar com dois dos aspectos apontados como mais críticos pela população: lentidão e acesso (custo e facilidade).
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A experiência prévia com o Judiciário também afeta negativamente a percepção das dimensões da justiça, sendo 25.
26.
A significância foi verificada a partir do teste estatístico qui-quadrado, sendo que o nível de confiança obtido para escolaridade foi de 0,00, e para renda de 0,03. Coeficiente de correlação de Pearson de –0,06, com nível de significância de 0,00.
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Manual de Sociologia Jurídica
282
que o valor médio do indicador para os
de a experiência prévia afetar negativa-
que já utilizaram o judiciário é de 6,0 e,
mente a percepção, ela afeta positivamen-
para os que não utilizaram, 6,2 – apesar
te a atitude, estimulando a predisposição à
de pequena, essa diferença é estatistica-
litigância.
mente significativa. A pouca variação na avaliação das características do Judiciário indicam que
15.3. Quem vai ao Judiciário no Brasil?
a visão negativa da instituição perpassa praticamente todos os perfis sociais, consistindo de certa forma em uma representação já enraizada no imaginário do brasilei ro, embora haja abertura para transformação dessa visão, uma vez que as variáveis de avaliação do presente frente ao passado e da expectativa para o futuro tiveram desempenho positivo ao longo do tempo. Já no que se refere à atitude, renda e escolaridade explicam de forma moderada a variação na avaliação, sendo que,
Como vimos, a experiência prévia com a justiça, apesar de reforçar valores negativos, como a percepção de morosidade, afeta positivamente a tendência em utilizar o Judiciário em caso de conflito futuro. Na série histórica do ICJBrasil, mapeamos, desde o segundo trimestre de 2010, o percentual de domicílios brasileiros com algum morador que já ajuizou uma ação no Judiciário. Em média, em torno da metade dos entrevistados declarou que alguém no domicílio já foi ou é parte ativa
quanto maior a renda e a escolaridade,
em um processo na justiça. A última Pes-
maior a propensão declarada de utiliza-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios
ção do Judiciário, o que indica que as bar-
(PNAD), realizada pelo IBGE em 2009,
reiras socioeconômicas ainda se impõem
também levantou dados sobre a utilização
no acesso e distribuição de justiça no
do Judiciário, chegando a resultados um
País, o que discutiremos com mais deta-
tanto diversos27. Nesse sentido, é essencial
lhes no item seguinte.
ressaltar que há uma diferença metodoló-
Fato importante é que a experiência
gica significativa na abordagem do ICJ-
prévia com a justiça tende a estimular a
Brasil em comparação à PNAD (IBGE) na
tendência futura em buscar o Judiciário em caso de conflito – a média do indicador de atitude entre os que não utilizaram o judiciário é de 8,8 e, entre os que utilizaram o judiciário, é de 9,1. Ou seja, apesar
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27.
De acordo com a PNAD 2009, 12,6 milhões de pessoas com 18 anos de idade ou mais (9% dos brasileiros desta faixa etária) vivenciaram situações de conflito nos cinco anos prévios a setembro de 2009. Dessas, 92,7% (11,7 milhões) buscaram solução, sendo que 57,8% recorreram principalmente à justiça, e 12,4%, ao juizado especial.
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Desempenho Judicial
283
forma de identificação da utilização do Ju-
trou com algum processo ou ação na Justi-
diciário. A PNAD pergunta sobre vivência
ça alguma vez na vida.
de conflito grave nos últimos cinco anos
Embora haja tal diferença, as duas
(anteriores à data de realização da entre-
pesquisas demonstram a mesma tendên-
vista), e o ICJBrasil pergunta se o entre-
cia, ao identificar que, entre os grupos de
vistado ou alguém residente no domicílio
renda e escolaridade mais altos, é maior a
da entrevista já utilizou o Judiciário ou en-
demanda pelos serviços do Judiciário.
Gráfico 15.4. Perfil dos entrevistados que declaram já ter entrado com alguma ação na Justiça (pessoalmente ou alguém residente em seu domicílio)
74% 49% 51% 51% 49%
43%
52% 51% 54%
46%
39%
48%
55%
62%
64% 44%
52%
49%
55%
Cor ou raça
Sexo
Renda
Idade
Escolaridade
Capital
Interior
Alta
Média
Baixa
Sem escolaridade formal
mais de 16SM
mais de 8SM-16SM
mais de 4SM-8SM
mais de 1SM-4SM
Até 1SM
60 ou +
45-59
35-44
25-34
18-24
Fem.
Masc.
Branco ou amarelo
27%
Não branco
100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%
Moradia
Base: 3.125 entrevistados que declararam ter utilizado o Judiciário. Fonte: ICJBrasil, 2º trimestre de 2011–1º trimestre de 2012.
Além de renda e escolaridade, notamos
Estados analisados na pesquisa do ICJBra-
uma diferença significativa no uso de acordo
sil. Nas categorias desenvolvidas por Mauro
com o local de moradia, sendo que os mora-
Cappelletti, o local de moradia constitui um
dores dos grandes centros urbanos tendem a
obstáculo geográfico ao acesso à justiça, na
utilizar mais o Judiciário. Esse dado pode
medida em que impacta diretamente no cus-
ser explicado pelo fato de que existe mais
to do acesso à justiça28.
proximidade e disponibilidade dos cartórios judiciais nos grandes centros urbanos, em comparação com as cidades do interior dos
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28.
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.
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284
Manual de Sociologia Jurídica
Gráfico 15.5. Motivos para ter utilizado o Poder Judiciário
Criminal 4%
Outros 11%
Consumidor 34%
Família 18%
Trabalho 33% Base: 3.125 entrevistados que declararam ter utilizado o Judiciário. Fonte: ICJBrasil, 2º trimestre de 2011–1º trimestre de 2012.
Perguntamos também aos entrevistados qual a esfera do Judiciário na qual eles ingressaram com a ação; em torno de 52% responderam que ingressaram com ação na Justiça Comum (Estadual ou Federal), 32% afirmaram que foram à Justiça do Trabalho, enquanto 12% propuseram ação judicial nos Juizados Especiais, cerca de 0,2% citou a Justiça Eleitoral e os demais (3,8%) não souberam identificar a esfera da justiça na qual ingressaram com a ação. No que se refere ao motivo da utilização da justiça, em primeiro lugar, empatados, estão temas ligados ao direito do consumidor (cobrança indevida, cartão de crédito, produtos com defeito etc.) e ao direito do trabalho (demissão, indenização, pagamento de horas extras etc.). Temas ligados à família (como pensão, divórcio, guarda de filhos, inventário etc.) aparecem em terceiro lugar, com 18% dos casos; o di-
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reito criminal corresponde a 4% dos casos; e, somando 11%, temos outras menções29. A utilização do Judiciário é bastante recente, com a maioria das ações judiciais mencionadas pelos entrevistados (58%) correspondendo ao período de 2008 -2012. Cerca de 30% foram propostas entre os anos de 2001 e 2007, e 12% foram ajuizadas de 2000 para trás. Em termos da resolução do problema, temos que 58% dos litigantes já tiveram uma decisão, sendo que 49% ganharam a ação e 9% perderam. É preocupante o fato de que 26% dos entrevistados que ingressaram com uma ação até o ano de 2000, em uma década, ainda não obtiveram o resultado da ação. 29.
Na pesquisa da PNAD (2009) as principais circunstâncias e fatos graves que determinaram a judicialização dos conflitos nos últimos cinco anos foram, em primeiro lugar, casos de direito do trabalho (23,3%), seguido de família (22,0%), criminalidade (12,6%), serviços essenciais como água, telefone e luz (9,7%), segurança social (8,6%), banco ou questões financeiras (7,4%) e outros, tais como habitação, impostos etc. (16,4%).
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Desempenho Judicial
285
Gráfico 15.6. Situação do processo de acordo com o período de ajuizamento 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%
26% 11%
63%
34%
50%
10% 57%
Ainda não foi julgada 7%
Perdeu Ganhou
43%
Até 2000
2001–2007
2008–2012
Base: 3.125 entrevistados que declararam ter utilizado o Judiciário. Fonte: ICJBrasil, 2º trimestre de 2011–1º trimestre de 2012.
E, por fim, solicitamos aos entrevis-
entre os que perderam, a situação se in-
tados para analisarem o seu grau de sa-
verte, sendo que a maioria dos entrevista-
tisfação com o Judiciário, avaliando a ex-
dos se declarou insatisfeita. Os que ainda
periência que tiveram. A maioria dos que
aguardam também tendem a se declarar
ganharam a ação se declarou satisfeita;
mais insatisfeitos.
Gráfico 15.7. Avaliação da experiência de acordo com resultado obtido até o momento 100%
1%
90% 80%
37%
70%
1% 2% 12% 20%
60%
4% 5% 19%
26%
50% 40%
38%
30% 20% 10% 0%
Muito satisfeito Um pouco satisfeito
65% 46%
11%
Indiferente
Um pouco insatisfeito Muito insatisfeito
13% Ganhou
Perdeu
Ainda não teve decisão
Base: 3.125 entrevistados que declararam ter utilizado o Judiciário. Fonte: ICJBrasil, 2º trimestre de 2011–1º trimestre de 2012.
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Manual de Sociologia Jurídica
Considerações finais O ICJBrasil é o primeiro esforço na área das pesquisas de opinião em acompanhar de forma sistemática o comportamento e o sentimento da população em relação ao Poder Judiciário. Como toda a pesquisa de opinião, ela é uma forma de medir a percepção dos entrevistados e produzir informações a partir dessa sensação em relação a um fato ou instituição específica. Partindo-se do pressuposto de que o comportamento e o sentimento da população compõem o grau de confiança em uma instituição e de que confiança tem a ver com legitimidade institucional e, portanto, garantia do seu funcionamento, o ICJBrasil foi desenvolvido como uma forma de medir a legitimidade do
O debate sobre a necessidade de melhorar o desempenho institucional do poder judiciário, enquanto prestador de serviço público, data do início da década de 1990 e, de certa forma, orientou a elaboração e a aprovação da Emenda Constitucional n. 45, aprovada em 2004, depois de doze anos em tramitação no Congresso Nacional. Apesar disso, pouco ou nada se sabia sobre o perfil do usuário da justiça e o seu sentimento, assim como o sentimento da população de forma geral, sobre o funcionamento do Judiciário. É exatamente nesse ponto que o ICJBrasil surgiu como pesquisa de opinião, no sentido de orientar a elaboração de políticas públicas nessa área, sob o ponto de vista do cidadão.
Judiciário no Brasil. Nesse sentido, os dados
Como todo índice, o ICJBrasil e os seus
apresentados neste capítulo seguem os estu-
resultados, publicados trimestralmente, são
dos desenvolvidos na área de cultura política
uma simplificação da realidade e do comple-
que veem a importância da confiança polí-
xo sistema de solução de conflito. Nesse sen-
tica como instrumento de consolidação e
tido, é importante ressaltar que esse é mais
avanço dos regimes democráticos. Dito de
um instrumento, e não o único, de avaliação
outra maneira, assumimos como parâmetro
do desempenho do Judiciário, como presta-
teórico a premissa de que as instituições im-
dor de serviço público. Orientado por pa-
portam para a existência e o aprofundamen-
drões científicos e acadêmicos, o ICJBrasil,
to do estado democrático de Direito, mas
no entanto, tem sido capaz de mostrar que o
que somente é possível entender o funciona-
Judiciário é mal avaliado como prestador de
mento desse regime de governo se levarmos
serviço público, mas que ainda é percebido
em conta as expectativas da população e o
como uma instância legítima de solução de
seu comportamento em relação às institui-
conflito. A partir desse diagnóstico, deve-
ções do Estado. Dessa forma, o objetivo do
mos estar atentos para o fato de que, movi-
ICJBrasil é contribuir para a construção de
do pelo grau de legitimidade que o Judiciá-
políticas públicas na área do sistema de jus-
rio apresenta como locus privilegiado de
tiça – mais especificamente no Judiciário –
solução de conflito, toda e qualquer forma
que melhorem o seu desempenho.
alternativa depende do reconhecimento
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Desempenho Judicial
do próprio Judiciário e, em última instância, do Estado, seja no que diz respeito à técnica aplicada na resolução dos conflitos, seja no que se refere a seu local ou aos agentes envolvidos. Outro dado importante que o ICJBrasil mostra é que ainda estamos longe de ter um acesso à justiça equitativo na nossa sociedade, em que a concentração de renda e os níveis desiguais de escolaridade são variáveis que interferem definitivamente no acesso ao Judiciário para a solução dos conflitos. Por fim, é importante ressaltar que, apesar dessas diferenças no que diz respeito ao acesso à justiça, os dados produzidos a partir do ICJBrasil mostram que o Judiciário cada vez mais faz parte do cotidiano da população e que esta, por influência ou não dos meios de comunicação, vem aprimorando a sua avaliação em relação ao
287
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16 Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil1 Maria da Gloria Bonelli
Introdução Várias são as evidências do processo de internacionalização da advocacia, ampliando as características comuns à organização da profissão nos países do norte e
nacionalização dá visibilidade às formas híbridas como o local e o global se articulam nessa carreira. Tal hibridismo será focalizado na multiplicação dos cursos de direito, na estratificação da profissão e em
do sul. Destacaremos neste capítulo três
sua feminização. Metodologicamente, o
aspectos nos quais se observa alguma pa-
trabalho se baseia em fontes primárias,
dronização: o aumento do número de ad-
com a coleta de dados sobre as sociedades
vogados no mundo, a proliferação das so-
de advogados, junto ao site do CESA (Cen-
ciedades de advogados acompanhada da
tro de Estudos das Sociedades de Advoga-
expansão do direito empresarial e a femi-
dos), e em observação de eventos dessas
nização da prática jurídica.
sociedades e de escritórios. As fontes se-
Nosso objetivo é mostrar que o Brasil
cundárias forneceram informações quan-
ocupa posição de destaque na advocacia
titativas sobre a advocacia no Brasil para
mundializada, mas seu processo de inter-
compará-la com outros países. O boom dos cursos privados de direi-
1.
A pesquisa realizada contou com o apoio do CNPq.
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to no País foi o fator impulsionador do au-
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290
Manual de Sociologia Jurídica
mento no número de advogados. A lógica
Esse fenômeno teve impacto sobre a
empresarial predominou nesse processo
densidade de advogados, acelerando a fe-
sobre a lógica profissional, resultando num
minização e a estratificação da carreira,
modelo híbrido e oscilante de ensino supe-
facilitadas pelas mudanças na organização
rior. A forma de organização do trabalho
da atividade. O recenseamento realizado
profissional articula a obtenção de uma
pela OAB em outubro de 2003 encontrou
formação universitária – para o domínio
421.899 advogados, sendo 178.767 mulhe-
de uma área do saber por meio do conheci-
res (42,3%) (Valor Econômico, 2004). Em
mento especializado – com o controle de
2006, o Conselho Federal divulgou que ha-
mercado pelos pares. Essa lógica é susten-
via 560.819 inscritos na OAB, com 312.734
tada no ideário da prestação de serviços
homens e 248.085 mulheres (44,2%) (BAR-
especializados com qualidade, além de au-
BALHO, 2008). Em homenagem ao Dia In-
tonomia da expertise em relação aos inte-
ternacional da Mulher, em 8 de março de
resses do Estado, do mercado e do cliente.
2012, a OAB revelou que elas já eram maio-
A lógica que dá embasamento ao ensino superior privado se nutre do discurso da livre-concorrência, mas com apoio financeiro do Estado. Este, por sua vez, opera em torno da lógica burocrática, que dá mais valor à eficiência e às relações verticalizadas de comando e execução, do que às relações horizontais mais características dos pares profissionais2.
ria entre os advogados em atividade no Brasil: dos 696.864 ativos, 384.152 eram mulheres (55%) e 312.712 homens (Conselho Federal da OAB). Isso sugere que há mais advogados inscritos não atuantes do que advogadas. Em São Paulo, em 12 de junho de 2012, a seccional da OAB informou existirem 248.712 inscritos ativos em seus quadros, sendo 134.852 homens e 113.860
O negócio da educação jurídica tri-
mulheres (45,8%). Apesar da discrepância
plicou em uma década, apesar das resis-
entre os percentuais nacionais e os de São
tências da OAB a tal proliferação. Em
Paulo, ambos apontam para a forte presen-
2001, o Brasil tinha 380 cursos de direito e, em 2011, esse número havia saltado para 1.210. No mesmo ano, os Estados Unidos possuíam 201 cursos e a China 987, atendendo uma população 7 vezes maior que a brasileira (MELO FILHO, 2011).
ça feminina na advocacia. Tal expansão favoreceu um processo que encontrou resistência entre os advogados brasileiros até os anos 1990, que era o da estratificação da advocacia. Como decorrência, estabelece -se uma
2.
Sobre essas três lógicas de organização do trabalho, ver Freidson (2001).
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hierarquia do que vale mais e menos na profissão, tanto em relação ao tamanho
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
291
do escritório e à posição que o advogado e
O final do século XX no Brasil foi
a advogada ocupavam nele quanto ao tipo
marcado pela efervescência das privatiza-
de clientela, à especialização e à interna-
ções de grandes empresas públicas que
cionalização.
ampliaram muito a necessidade desse co-
As sociedades de advogados formali-
nhecimento jurídico, em particular no di-
zaram a estratificação por meio da criação
reito empresarial, com os advogados en-
da divisão entre sócios com participação
contrando novas atividades nas áreas de
nos lucros e associados com remuneração,
negócios. Escritórios pequenos consegui-
introduzindo depois outra subdivisão en-
ram progredir no cenário da globalização
tre os sócios com participação e voto e
econômica, precisando contratar mais ad-
aqueles sem esse ganho e poder. Embora a
vogados e advogadas para cuidar dos inte-
grande maioria dessas sociedades exista
resses jurídicos da clientela corporativa
nos Estados Unidos, a internacionalização
que se expandia, trazendo demandas es-
dessa forma de organização da atividade é
pecializadas, mas também muitas outras
registrada em muitos países, com menor
de caráter rotineiro e repetitivo.
incidência na África. O diretório jurídico internacional Martindale-Hubbell reuniu, em julho de 2012, 34.385 sociedades de advogados no mundo, que atuavam na área do direito empresarial (business law). Só
Houve, assim, um grande crescimento na área do direito empresarial e com ela, a formação jurídica nessa especialização na graduação e na pós-graduação. Os proces-
os Estados Unidos registraram 32.441 des-
sos de privatizações e de terceirizações re-
sas firmas, o que indica que o diretório co-
sultaram no fechamento de departamentos
bre melhor esse país. Em segundo lugar,
jurídicos das empresas, que passaram a
estava o Canadá, com 292 sociedades, se-
contratar escritórios de advocacia para tra-
guido do México (131), Brasil (100), Itália
tar de negócios4. O contexto internacional
(77), China (70), Alemanha (65) e Fran-
também influenciou diretamente o cenário
ça (64). O total de advogados registrados
brasileiro. Nessas privatizações, por exem-
na base Martindale era de 1.430.000, in-
plo, os Estados Unidos atuaram para inten-
dependentemente da área ou do tipo de
sificar as transferências de modelos de ins-
atuação . 3
3.
Os resultados dessa base são menores do que os encontrados nas entidades profissionais dos advogados, sendo mais representativos daquelas sociedades inseridas nas redes internacionalizadas da advocacia. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2012.
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4.
Atualmente, os departamentos jurídicos voltaram a ser abertos nas corporações norte -americanas, que avaliam ser mais econômico do que contratar os serviços das sociedades de advogados com o aumento dos custos e das horas cobradas pelos sócios especialistas.
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Manual de Sociologia Jurídica
tituições e a adaptação de cultura jurídica5.
principalmente o atendimento de clientes
Com isso, houve um impacto nas empresas
individuais, e as médias e grandes socie-
e nos escritórios de advocacia no Brasil.
dades de advogados concentram os clien-
A prática jurídica foi perdendo as ca-
tes empresariais e as corporações.
racterísticas homogêneas como profissão
A difusão das sociedades de advoga-
exercida em escritórios individuais ou es-
dos globalmente é resultado da internacio-
critórios partilhados por colegas. A resis-
nalização dos mercados e da profissão,
tência à passagem desse modelo para o
cada vez mais inserida nas relações de im-
das sociedades de advogados estratifica-
portação e exportação do conhecimento
das internamente foi observada em vários
especializado entre países do norte e do
paí ses. Boigeol (2003) descreve processo semelhante na França, acompanhado de resistências da Ordem dos Advogados de Paris, tal como observado na atuação da OAB, nas últimas décadas do século XX.
sul, com a padronização transnacional de serviços jurídicos7. Nesses grandes escritórios, o profissional domina línguas estrangeiras, em especial o inglês; tem experiência de curso ou estágio no exterior,
No Brasil, a introdução dessa nova
que é enfatizado em seu currículo divul-
estrutura centrada na divisão social do
gado na página da firma na internet; re-
trabalho, separando os conteúdos tradicio-
presenta grandes empresas ou escritórios
nais das novas especializações, e o traba-
estrangeiros, chegando algumas dessas
lho rotineiro daquele que demanda maior expertise, foi facilitada pelo ingresso feminino na advocacia. A resistência à estratificação profissional foi menor porque, com a entrada massiva das mulheres na prática jurídica, elas passaram a assumir as posições menos prestigiadas6, impulsionando os homens para as funções de mais valor, o que diminuiu a contestação
sociedades de advogados a ter filiais fora do Brasil. O tipo de prestação jurisdicional também muda, enfatizando-se o atendimento das necessidades em torno dos negócios dos clientes corporativos, o que com frequência dispensa a ida para litigar no Fórum, como costumava ser a prática característica da profissão. Segundo Engelmann (2011, p. 32),
ao modelo norte-americano das firmas de advocacia. Nessa nova hierarquia, os es-
das práticas do direito empresarial “temo espaço um grande peso nas sociedades de advo-
critórios solo e de pequeno porte fazem
gados que, por suas dimensões, sua inserção 5. 6.
Ver Nelken e Feest (2001). Nos próximos itens, veremos como a feminização da advocacia é marcada pelas relações de subordinação de gênero vigentes na sociedade.
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7.
Sobre essa internacionalização na América Latina, ver Dezalay e Garth (2002).
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil no mundo dos negócios e suas modalidades de atuação, se distanciam dos escritórios de advocacia tradicionais e se aproximam, em sua estrutura de funcionamento, às grandes corporações. Estas sociedades se destacam, em primeiro lugar, por representar os interesses de corporações estrangeiras no âmbito nacional. Isto envolve, além da posse de um capital de relações sociais e de um capital internacional de contatos com agentes do mercado financeiro-corporativo, a gestão e o incremento de um capital jurídico através da aquisição de saberes especializados vinculados à técnica das operações financeiras e aos negócios internacionais”8.
293
as sociedades entre 11 e 100 advogados aglutinavam 16%, e as grandes firmas (acima de 100 advogados) detinham 14,3% (CARSON, 2004). Segundo Flood (2007, p. 926), foram as megafirmas, que reuniam milhares de advogados e possuíam escritórios em vários países, que marcaram o final do século XX. “Embora o número de sociedades de advogados tenha aumentado – em 1980 eram 38.500, em 1991 elas eram 42.500 – o crescimento se deu à custa das pequenas firmas, que em 1981 alcançavam 81% do total”.
16.1. As sociedades de advogados nos Estados Unidos
As megassociedades de advogados ampliaram expressivamente seus lucros no
Embora já existissem no século XIX,
início do século XXI, mas, a partir de 2008,
as sociedades de advogados expandiram-
a crise econômica que atingiu os Estados
-se nos Estados Unidos e na Inglaterra a
Unidos afetou em sequência as grandes
partir do final da Segunda Guerra Mun-
corporações, as sociedades de advogados e
dial, impulsionadas pelas corporações e
o número de candidatos nos exames para
negociações internacionais. A segunda
ingresso no curso de direito. Observou-se a
metade do século XX é marcada pelo au-
dispensa de advogados associados nas
mento no número de advogados e pelo
grandes sociedades de advogados, o que
crescimento das grandes sociedades de
tem atingido mais as mulheres. Tal fato
advogados. Nos Estados Unidos, as estatís-
costuma ser atribuído à maior dificuldade
ticas da American Bar Association conta-
das mulheres trabalharem as longas jorna-
bilizaram, em 2000, 909.021 advogados,
das praticadas nesses escritórios, por cau-
sendo 672.902 (74%) na prática privada.
sa dos cuidados com a família, além de elas
As sociedades de advogados totalizavam
terem menos contatos sociais capazes de
47.563 firmas de diversos tamanhos. Na
trazer novos clientes e dinheiro para as fir-
prática solo, havia 48,3%, as pequenas so-
mas. Isso tornaria o trabalho feminino
ciedades (2-10 advogados) reuniam 21,5%,
mais vulnerável. Os diagnósticos sobre o futuro das
8.
Tradução livre da autora.
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grandes sociedades nos Estados Unidos
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294
Manual de Sociologia Jurídica
são diversos. Alguns apontam para o fim
drástica competição entre as sociedades
dessas firmas (RIBSTEIN, 2010), enten-
de advogados das corporações, pela dispu-
dendo que o downsizing pelo qual elas
ta desse mercado e dos especialistas capa-
passam reflete um modelo precário de
zes de multiplicar os ingressos das gran-
sustentação do negócio em vez de ser só
des firmas. A guerra de salários tornou-as
consequência da crise econômica. O au-
mais frágeis, em especial as pequenas e
mento da competição internacionalizada
médias sociedades, gerando duas camadas
e o reaquecimento dos departamentos ju-
de sociedades de advogados: uma de se-
rídicos de empresas revelaram essas limi-
mielite; e outra de elite. Essas mudanças
tações, indicando a necessidade de mu-
são decorrência de fatores estruturais no
dança do modelo das sociedades e de sua
mercado, “como a globalização dos clien-
reestruturação.
tes corporativos, a burocratização dos de-
Outro diagnóstico aponta para as so-
partamentos jurídicos das corporações, os
ciedades continuarem crescendo, visando
custos mais baixos e a maior disponibili-
sua globalização (GALANTER e HEN-
dade de informações, a erosão da coesão
DERSON, 2008). Esses autores identifica-
da cultura da firma devido ao enorme ta-
ram uma segunda transformação proces-
manho e à dispersão geográfica” (GALAN-
sada nas grandes sociedades de advogados,
TER e HENDERSON, 2008, p. 1.906).
com a introdução de maior elasticidade no
Wald (2012) interroga sobre o futuro
torneio que os advogados enfrentam pela
das sociedades de advogados, divergindo
progressão nas firmas. Se na primeira ver-
tanto do diagnóstico sobre a morte das
ticalização da prática jurídica o torneio foi
grandes firmas quanto da análise que vê
para ascender de associado a sócio, com a
essas elites formando uma camada que
saída das sociedades de advogados daque-
prossegue no caminho do crescimento e
les profissionais que não passassem pelo
da globalização, e outra camada com difi-
funil, agora esse torneio tem duas filas: a
culdades de concorrer formando uma se-
dos sócios com equidade, que podem ser
mielite. O autor fundamentou seu argu-
promovidos lateralmente na concorrência
mento estudando sociedades de advogados
entre as firmas; e a dos sócios sem equida-
que foram bem-sucedidas tomando outro
de na participação nos lucros. O torneio
rumo: aquele que implementa estratégias
elástico poderá durar toda a vida profissio-
inteligentes e diversificadas para atender
nal desse advogado(a) que vai começar e
às necessidades de clientes, transforman-
terminar sua carreira como empregado(a)
do a firma em um ator regional importante
da firma, mesmo sendo chamado de
que oferece serviços especializados dentro
sócio(a). Outra mudança observada foi a
e fora do país.
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
16.2. As sociedades de advogados no Brasil As primeiras sociedades de advogados tiveram existência legal no Brasil na década de 1960, quando se adequaram à regulamentação que estabeleceu o regis-
295
5 sócios10. Desse total, 6.680 (63%) encontravam-se na capital. Havia 311 sociedades na modalidade cotas de serviços, na qual não há participação em capital social, mas no serviço prestado por cada sócio. Havia também 2.014 contratos de
tro com contrato social na OAB. O novo
associação ativos (a sociedade contrata
Estatuto da Advocacia, de 1994, discipli-
os serviços de um advogado); 43 associa-
nou essas sociedades. A seccional da OAB
ções entre sociedades de advogados (o
de São Paulo criou a Comissão das Socie-
mesmo funcionamento anterior, mas en-
dades de Advogados, em 1992. O Centro de
tre sociedades); 22 sociedades de consul-
Estudos das Sociedades de Advogados
tores em direito estrangeiro.
(CESA) congrega várias dessas bancas de
O CESA, no início de 2011, contava
advocacia. Ele foi organizado em 1983, reu-
com cerca de 900 sociedades de advogados
nindo 37 sociedades (GIÁCOMO, 2002).
filiadas, sendo 385 em São Paulo e 511 no
“
As principais finalidades do CESA são: a) promover estudos e manifestar-se sobre questões jurídicas e assuntos relativos à administração da Justiça e ao exercício da profissão de advogado; b) promover o estudo e a defesa de questões de interesse das Associadas; c) oferecer às Associadas estudos e serviços que facilitem o exercício da profissão de advogado; d) representar os interesses das Associadas e das Sociedades de Advogados em face dos órgãos de classe e de outras entidades profissionais de advogados; e) representar os interesses das Associadas em juízo” .
restante do País. A partir dos sites dos escritórios ligados ao CESA, fizemos um levantamento do perfil das sociedades de advogados. Os dados estavam disponíveis para 198 delas no Estado de São Paulo e 261 nas demais regiões, que foram divididas em três categorias: pequenas (1 a 9 advogados); médias (10 a 49 advogados); e grandes (50 advogados ou mais). As 198 sociedades de advogados paulistas dividiam-se em 61 pequenas, 116 médias e 21 grandes. Para os outros Estados, a distribuição en-
A Comissão das Sociedades de Ad-
contrada foi: 127 pequenas, 118 médias e 16
vogados da OAB -SP tinha registrado, em
grandes11. Portanto, a presença de socieda-
maio de 2008, 8.418 sociedades atuantes9.
des pequenas é maior no restante do País.
Em maio de 2012, as sociedades ativas eram 10.566, sendo 95% compostas de até
10.
11. 9.
Jornal do Advogado, ano XXXIV, n. 330, jul. 2008.
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Dados fornecidos pelo Departamento das Sociedades de Advogados da OAB/SP. Participaram desse trabalho de campo Carolina Barbisan e Dafne Araújo, com bolsa de Iniciação Científica do CNPq.
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296
Manual de Sociologia Jurídica
Classificamos os advogados e as advo-
dos quais 1.846 mulheres (43%). O Estado
gadas atuantes nessas sociedades segundo
de São Paulo incorporou mais a participa-
a posição ocupada. Vários dos sites hierar-
ção feminina na advocacia. Quanto ao ta-
quizavam seus profissionais, dividindo-os
manho da sociedade, em São Paulo havia
em sócios e associados, mas outros escritó-
1.311 profissionais nas grandes (31%),
rios não apresentavam essa estrutura, re-
2.544 nas médias (59%) e 424 nas peque-
ferindo-se ao grupo como “a equipe” ou “os
nas (10%). No restante do País, havia 1.406
advogados” da sociedade. As informações
profissionais nas grandes sociedades (33%),
nesses sites não permitiam identificar os
2.186 nas médias (51%) e 696 nas peque-
“sócios de capital” dos “sócios de renda”,
nas (16%). As grandes sociedades em São
como alguns escritórios diferiam aqueles
Paulo apresentaram uma média de 62 ad-
profissionais com e sem poder de decisão e
vogados enquanto no restante do Brasil
de participação nos lucros.
esse valor foi maior (88 advogados).
Nos resultados que analisaremos a
Como já havíamos observado ante-
seguir, reproduzimos a classificação só-
riormente (BONELLI et al., 2008), na con-
cios–associados–equipes, preservando a
dição de sócias, as advogadas são sub-
diferença de nomenclatura. A estratifica-
-representadas em todos tamanhos de
ção dos escritórios e de seus profissionais
escritórios (Tabelas 16.1 a 16.3). Compa-
configura-se no padrão de organização da
rando São Paulo com o restante do Brasil,
carreira hoje, em especial nas sociedades
observamos nesse Estado que os escritó-
de advogados filiadas ao CESA. Elas con-
rios menores, organizados na forma tradi-
centram a elite da profissão, mas também
cional, apresentam uma assimetria maior
aqueles que ambicionam estar nessa nata,
entre os sócios e as sócias. Poucas mulhe-
tornar-se semielite. Assim, é uma amostra
res estão à frente dessa prática jurídica
de escritórios cuja autoimagem associa-se
(17%) nos escritórios paulistas filiados ao
ao direito empresarial, mesmo que isso se
CESA. Nas outras regiões, a menor repre-
realize na prática de maneiras distintas. A
sentação feminina ocorre na posição de
distribuição encontrada reflete essa reali-
sócias nas sociedades médias (26%), já
dade específica que contrasta com a do
que nas pequenas elas chegam a 31%.
conjunto da profissão.
Em sentido inverso, as advogadas são
Os dados obtidos para São Paulo
maioria entre os associados, com 55% do
referem-se a 4.279 advogados, sendo 2.032
total, mas São Paulo e os demais Estados
mulheres (47,4%). Para os demais Estados
do Brasil apresentam uma diferença nas
do Brasil, o total foi de 4.288 advogados,
sociedades pequenas. Mesmo entre os as-
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
297
sociados, os homens são maioria fora de
solo de advogadas. Algumas delas mani-
São Paulo, confirmando a menor presença
festaram a intenção de se associar a outros
feminina fora do Estado paulista. Os dados
escritórios, mas encontravam dificuldades
para as sociedades de advogados classifica-
para isso, já que a “carteira de clientes” e
das como “equipe” revelam uma presença
as redes que dispunham não ajudavam
feminina menor que a masculina, o que se
nesse ingresso. Nessas localidades, elas ob-
acentua nos demais Estados do Brasil. É
tinham clientela principalmente por meio
nesse grupo, portanto, que há mais con-
do convênio da OAB-SP com o governo es-
traste entre São Paulo e o restante do País.
tadual para assistência judiciária a pes-
Observamos, no trabalho de campo
soas de baixa renda. No caso, a prática solo
realizado em duas cidades do interior pau-
mostra-se mais vulnerável do que a inser-
lista, a significativa presença da atuação
ção em escritório de outro advogado.
Tabela 16.1. Distribuição dos sócios das sociedades de advogados do Estado de São Paulo e dos demais Estados do Brasil, filiadas ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório Sócios – São Paulo
Sócios – Brasil
Sociedades
Homens
Mulheres
Total
Homens
Mulheres
Total
1a9
73 (83%)
15 (17%)
88
168 (69%)
77 (31%)
245
10 a 49
389 (71%)
162 (29%)
551
372 (74%)
134 (26%)
506
50 ou mais
163 (72%)
62 (28%)
225
160 (73%)
58 (27%)
218
TOTAL
625 (72%)
239 (28%)
864
700 (72%)
269 (28%)
969
Fonte: Site do CESA, 2011.
Tabela 16.2. Distribuição dos associados das sociedades de advogados do Estado de São Paulo e dos demais Estados do Brasil, filiadas ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório Associados – São Paulo
Associados – Brasil
Sociedades
Homens
Mulheres
Total
Homens
Mulheres
Total
1a9
84 (48%)
91 (52%)
175
112 (52%)
102 (48%)
214
10 a 49
675 (46%)
798 (54%)
1.473
499 (47%)
561 (53%)
1.060
50 ou mais
354 (44%)
455 (56%)
809
441 (49%)
466 (51%)
907
TOTAL
1.113 (45%)
1.344 (55%)
1.052 (48%)
1.129 (52%)
2.181
2.457
Fonte: Site do CESA, 2011.
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Manual de Sociologia Jurídica
298
Tabela 16.3. Distribuição das equipes das sociedades de advogados do Estado de São Paulo e dos demais Estados do Brasil, filiadas ao CESA, segundo o gênero e o tamanho do escritório Equipe – São Paulo
Equipe – Brasil
Sociedades
Homens
Mulheres
Total
Homens
Mulheres
Total
1a9
92 (57%)
69 (43%)
161
139 (59%)
98 (41%)
237
10 a 49
280 (54%)
240 (46%)
520
387 (62%)
233 (38%)
620
50 ou mais
137 (49%)
140 (51%)
277
164 (58%)
117 (42%)
281
TOTAL
509 (53%)
449 (47%)
958
690 (61%)
448 (39%)
1.138
Fonte: Site do CESA, 2011.
Estudos comparados sobre a distri-
de homens naquelas áreas de maior ex-
buição das mulheres por tamanho de es-
pertise, ficando as mulheres confinadas à
critório apresentam resultados diferentes.
“clínica geral” e às atividades mais roti-
Schultz (2003) aponta a tendência das
neiras, formando enclaves femininos na
mulheres na Alemanha trabalharem na
profissão. Em pesquisa realizada em 2008,
prática solo da advocacia, no Japão con-
observamos esse padrão, mas, nas infor-
centrarem-se nos pequenos escritórios, e
mações recolhidas nos sites das socieda-
no Canadá estarem tanto na prática solo
des de advogados paulistas, isso não se
quanto nas grandes sociedades de advoga-
confirmou, demonstrando a distinção des-
dos. Para os Estados Unidos, o Relatório
sa elite profissional. Entre os sócios, ho-
Estatístico dos Advogados, da American
mens e mulheres apresentaram a mesma
Bar Foundation (CARSON, 2004), encon-
proporção de estudos acima do terceiro
trou que as mulheres estavam mais repre-
grau (61%), sendo que eles tinham mais
sentadas na prática solo e menos represen-
formação de mestrado e doutorado stric-
tadas que os homens nas sociedades de 2 a
to sensu, e elas, mais pós-graduação lato
50 advogados; tinham a mesma participa-
sensu e MBA, entre outros. Para o res-
ção que eles nas sociedades com 51 a 100
tante do Brasil, registramos uma porcen-
advogados e detinham mais empregos nas
tagem maior de sócios e sócias com algum
grandes sociedades norte-americanas que
tipo de investimento na formação depois
os homens.
da graduação: 76% para as mulheres e
Quanto à especialização, a literatura
74% para os homens, sendo que estes ti-
específica tem mostrado um predomínio
nham mais pós-graduação stricto sensu,
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
299
e elas, lato sensu, revelando comporta-
as advogadas combinarem vida profissio-
mento semelhante aos dados para São
nal e familiar não responderam por dife-
Paulo. Entre os associados e as equipes
renças significativas na realização dos
paulistas, há uma redução na proporção
cursos.
de profissionais com formação posterior
A composição de gênero das socieda-
ao bacharelado, mas a maioria apresenta
des de advogados do CESA contrasta com
investimento em estudos de pós-gradua-
os dados obtidos para os grandes escritó-
ção, sendo semelhante para homens (52%)
rios argentinos, que têm uma proximidade
e mulheres (51%). No restante do País,
regional e uma proporção semelhante de
essa redução é mais relevante, com o cur-
mulheres na advocacia. Bergoglio (2007)
so após a graduação caindo entre associa-
registrou uma menor presença feminina
dos, associadas e equipes para valores em
nas sociedades de advogados argentinas
torno de 45%. O investimento em educa-
do que nas brasileiras, uma participação
ção depois de concluído o bacharelado é
ainda menor como sócias dos grandes es-
um diferencial para ser sócio, sendo tam-
critórios e como portadoras de cursos de
bém relevante para compor os quadros
pós-graduação. As desigualdades entre ho-
profissionais das sociedades de advoga-
mens e mulheres no caso argentino reve-
dos. Nessa amostra, as dificuldades para
laram-se mais acentuadas.
Tabela 16.4. Distribuição dos sócios das sociedades de advogados do Estado de São Paulo e dos demais Estados do Brasil, filiadas ao CESA, segundo formação acadêmica e posição ocupada Sócios – São Paulo
Sócios – Brasil
Homens
Mulheres
Total
Homens
Mulheres
Total
Bacharel
27%
22%
219
20%
15%
183
Mestre
17%
13%
138
23%
18%
209
Doutor
10%
3%
70
6%
4%
52
Pós-graduado
34%
45%
319
45%
54%
458
Sem informação
12%
17%
118
6%
9%
67
Total
625
239
864
713
256
969
Escolaridade
Fonte: Site do CESA, 2011.
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Manual de Sociologia Jurídica
300
Tabela 16.5. Distribuição dos associados das sociedades de advogados do Estado de São Paulo e dos demais Estados do Brasil, filiadas ao CESA, segundo formação acadêmica e posição ocupada Associados – São Paulo Escolaridade
Homens
Mulheres
Bacharel
32%
31%
Mestre
10%
Doutor
Associados – Brasil
Total
Homens
Mulheres
781
26%
20%
497
6%
191
8%
8%
174
1%
0%
19
1%
0%
11
Pós-graduado
41%
46%
1.073
35%
39%
807
Sem informação
15%
17%
393
30%
33%
692
Total
1.113
1.344
1.027
1.104
2.181
2.457
Total
Fonte: Site do CESA, 2011.
Tabela 16.6. Distribuição das equipes das sociedades de advogados do Estado de São Paulo e dos demais Estados do Brasil, filiadas ao CESA, segundo formação acadêmica e posição ocupada Equipe – São Paulo Escolaridade
Homens
Mulheres
Bacharel
25%
27%
Mestre
13%
Doutor
Equipe – Brasil Total
Homens
Mulheres
Total
247
25%
22%
271
9%
108
11%
5%
95
5%
2%
35
1%
1%
12
Pós-graduado
35%
37%
344
35%
36%
403
Sem informação
22%
24%
224
28%
36%
357
Total
509
449
958
637
501
1.138
Fonte: Site do CESA, 2011.
Observa-se nessas sociedades de advogados o enobrecimento acadêmico, em-
CESA, não podendo ser generalizado para o conjunto da profissão.
bora a longa formação do doutorado se re-
Apesar de as sociedades de advoga-
vele um título escasso e mais masculino.
dos terem sentido o impacto do fim dos
Entendemos que tal perfil de escolaridade
processos de privatização no Brasil, au-
é encontrado nos escritórios vinculados ao
mentando a concorrência entre elas, essas
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
301
grandes firmas continuam crescendo em
número, como Japão, China e Índia. Para a
São Paulo. Em 2010, foram abertas uma mé-
densidade, o autor estabeleceu o corte em
dia mensal de 67 sociedades pela OAB -SP
2.000 habitantes por profissional, por ser
e, em 2011, essa média foi de 62 por mês .
um divisor significativo na amostra que
As formas tradicionais de organização da
analisou. Segundo ele, quase todos os paí-
advocacia, que são a atuação solo e em pe-
ses com 30% ou mais de participação femi-
quenos escritórios mostraram-se também
nina na advocacia têm densidades menores
as mais desfavoráveis às advogadas em
do que 2.000 habitantes por advogado, em-
São Paulo, revelando o hibridismo entre o
bora existam exceções. Já aqueles com fe-
tradicional e moderno, o local e o global na
minização mais baixa possuem densida-
prática privada.
des populacionais por advogado maiores
12
do que 2.000 habitantes.
16.3. Feminização da advocacia Michelson (2012), analisando a oferta de advogados em 78 países e a feminização da atividade, encontrou uma relação entre a densidade de população por advogado e o crescimento do número de advogadas. O autor tomou como referência a proporção de 30% de mulheres na carreira, valor que aglutinava parte expressiva dos países em estudo. Nessa amostra, poucos países atingiram tal patamar nos anos 1980, como é o caso da Venezuela, da Argentina e da Grécia. Nos anos 1990, essa participação foi alcançada por onze paí-
Michelson também estimou o número de advogados por país para o ano de 2010. Os países que tinham mais profissionais da advocacia eram Estados Unidos, Índia, Brasil, México, China, Reino Unido, Espanha e Alemanha. Mas essa distribuição mudava quando se analisavam apenas as advogadas, apontando a diferença na feminização. México e Brasil vinham na frente com mais de 50% de mulheres advogadas, segundo os dados que ele coletou. Reino Unido e Espanha tinham passado dos 45%; Alemanha e Estados Unidos estavam entre 31 e 35%; China, com 21%;
ses, entre eles Brasil, Romênia e Malásia.
e Índia, com 5%. Numa lista de 210 países,
Entretanto, a maioria cruzou a marca dos
ele encontrou 160 deles com mais de 30%
30% a partir do ano 2000, como é o caso
de advogadas. Para o autor, a maior parti-
dos Estados Unidos, da Alemanha e do
cipação delas na profissão significa mais
Vietnã. Alguns países não atingiram esse
acesso das mulheres à justiça, já que estudos anteriores revelam que as mulheres
12.
Dados extraídos do site da Comissão das Sociedades de Advogados, OAB -SP. Acesso em: 17 jul. 2012.
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procuram mais as advogadas para resolver seus problemas, como o divórcio.
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Manual de Sociologia Jurídica
302
Tabela 16.7. Países com mais advogados, segundo o tamanho da população e a densidade de habitantes por advogado – 2010 País
Advogados
População
Densidade
Estados Unidos
1.102.106
308.758.000
280
Índia
436.813
1.210.000.000
2.769
Brasil
354.761
190.755.000
538
México
186.336
112.500.000
604
China
185.513
1.340.000.000
7.204
Reino Unido
163.361
62.040.000
380
Espanha
161.988
47.190.000
291
Alemanha
153.251
81.760.000
533
Fonte: Estimativa de advogados e advogadas, Michelson (2012); população, consulta à internet em 7-7-2012; densidade, cálculo da autora.
Em análise sobre a feminização da prática jurídica, Schultz (2003) observou que as advogadas funcionam como um exército de reserva da profissão em vários países:
“
Em tempos de escassez de advogados, as chances das mulheres aumentam – como foi o caso da Inglaterra no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, e é atualmente verdadeiro para a Alemanha no contexto das grandes sociedades de advogados internacionais. Geralmente, as mulheres representam o exército de reserva do mercado de trabalho: elas trabalham de forma insegura e frequentemente em contratos temporários, em condições de trabalho menos favoráveis, com sobrequalificação para o trabalho que fazem de fato, e são as primeiras a serem dispensadas”13.
ocorreu no momento de expansão das sociedades de advogados facilitando o processo de estratificação da carreira. A feminização veio ao encontro dessas transformações, reduzindo as resistências às mudanças na forma tradicional de se exercer a advocacia. A produção de diferenças na profissionalização segundo o gênero se realiza, na maioria dos casos, com as mulheres concentrando-se nas áreas tradicionais e nas atividades mais rotineiras e os homens naquelas mais especializadas e inovadoras. Por outro lado, passada a febre das privatizações e da difusão do modelo estratificado, as mulheres seguem atuantes na
No caso brasileiro, a incorporação
advocacia, não havendo evidências de que
das mulheres no mercado da advocacia
foram dispensadas das sociedades de advogados com a quebra da resistência mas-
13.
Tradução livre da autora.
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culina à hierarquização.
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
303
Já nos Estados Unidos as advogadas
e HAGAN, 1995; THORTON, 1996; JUN-
estão perdendo posições no mercado. A
QUEIRA, 1999); as estratégias de fecha-
pesquisa nacional realizada em 2011, so-
mento generificado (DAVIES, 1996; BOL-
bre a retenção e a promoção de mulheres
TON e MUZIO, 2007); o gap entre os
nas 200 maiores firmas de advocacia, pro-
ganhos de homens e mulheres (MENKEL-
movida pela Associação Nacional de Mu-
MEADOW, 1989; EPSTEIN et al., 1995).
lheres Advogadas, constatou que:
Essas perspectivas contestam o entendimento que naturaliza tais desigualdades
“
O sexto ano da pesquisa apresenta um quadro preocupante nas perspectivas das mulheres nas grandes firmas. Não só as mulheres apresentam um decréscimo na porcentagem de advogados nas grandes sociedades, elas têm uma chance bem maior de ocupar posições – como advogada-funcionária, consultora, e sócia com participação fixa – com menores oportunidades de progredir ou participar da liderança da sociedade. Nós reconhecemos que a economia atual tem levado a desafios contínuos para as grandes firmas. No entanto, esses desafios não explicam o progresso desigual feito pelas mulheres advogadas comparado aos dos colegas homens nem a desvantagem de gênero entre os sócios com equidade nas sociedades de advogados” (FLOM e SCHARF, 2011).
como se estas fossem ser superadas com o tempo e com a progressão profissional feminina. Os dados recentes sobre as advogadas norte-americanas indicam que o tempo não supera tudo. A análise sobre o fechamento e a estratificação desenvolvida por Davies (1996) mostrou como esse processo é generificado, com as profissões professando a masculinidade e a feminilidade, produzindo o binarismo por meio do trabalho rotineiro e burocrático relacionado à mulher, e o profissional e especializado relacionado ao homem. Seguindo nessa direção, Bolton e
Estratégias de fechamento são iden-
Muzio (2007) sugerem que há um meca-
tificadas nas profissões jurídicas ao longo
nismo de fechamento generificado interno
do tempo (ABEL, 1989; HEINZ e LAU-
às profissões jurídicas, com três padrões
MANN, 1982). Elas são usadas para evitar
distintos de carreira: a estratificação, a
o ingresso dos não credenciados, mas tam-
segmentação e a sedimentação. A estrati-
bém dos não desejados. Diferentes formas
ficação ocorre na linha vertical, negando-
de fechamento vêm sendo usadas em rela-
-se às mulheres acesso ao topo da ocupa-
ção à participação feminina na advocacia,
ção. A segmentação processa-se na linha
entre elas as desigualdades decorrentes
horizontal, formando guetos, com as mu-
desse ingresso, como o teto de vidro14 (KAY
lheres sendo confinadas a áreas menos
É chamada de teto de vidro a barreira invisível que limita a progressão feminina ao topo profissional. Por não ser claramente percebida, reforça a crença de que, com o passar
do tempo, as posições elevadas ocupadas pelas mulheres se igualarão às dos homens.
14.
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304
Manual de Sociologia Jurídica
valorizadas (direito de família x direito
advogados da cidade de Nova York, vieram
empresarial). A sedimentação dá-se com
debater os resultados do relatório, sobre as
as profissionais recorrendo ao essencialis-
dificuldades das advogadas chegarem ao
mo como forma de organizar a identidade
topo da profissão, visto que entram na car-
de gênero em enclaves, tentando se empo-
reira em proporção semelhante à dos ho-
derar. O problema disso é que, quando se
mens. O conteúdo do relatório fazia uma
enfatizam a essência masculina e a femini-
análise das razões dessa falta de ascensão e
na para explicar diferentes qualidades
o que poderia ser feito para avançarem até
profissionais, reproduzem-se os estereóti-
as posições superiores. As palestras e os
pos que se quer modificar.
debates no plenário focaram a forma como
Recentemente, começou-se a obser-
o gênero é estigmatizado na prática profis-
var como a internacionalização das socie-
sional, principalmente pelo estereótipo de
dades de advogados vem repercutindo
que as mulheres são menos comprometidas
também na importação e na exportação
com o trabalho, priorizando família e filhos.
do padrão de enfrentamento das barreiras
Em contraste com esse pressuposto, as pa-
à progressão das mulheres na carreira.
lestrantes apontaram a insatisfação das ad-
Em 2009, um grupo de sócias de grandes escritórios vinculados ao CESA organizou um evento liderado pelo Committe on Women in the Profession (Comitê da Mulher Advogada), da New York City Bar Association (Ordem dos Advogados de Nova York), para discutir sobre o relatório “Best practices for the hiring, training, retention and advancement of women attorneys”
vogadas norte-americanas com a profissão como motivo da saída da firma, representando uma perda dessa competência para os escritórios. As barreiras para chegar a sócia seriam as dificuldades em articular redes, mentoras, representação, participação em comitês profissionais, navegação social (frequentar happy hours, jantares), além dos constrangimentos em falar sobre
(“Boas práticas para a contratação, treina-
dinheiro, cobrar os clientes, fazer autopro-
mento, retenção e progressão das mulheres
moção e marketing pessoal.
advogadas”), divulgado em 2006. O evento
A discussão girou em torno do enfre-
reuniu cerca de 120 mulheres desses escri-
tamento dos estereótipos negativos do es-
tórios e de advogadas de grandes corpora-
sencialismo de gênero, recorrendo ao lado
ções, constituindo um público de cor bran-
positivo dessa mesma moeda: como as mu-
ca e majoritariamente jovem. Carrie Cohen,
lheres acrescentam rentabilidade às fir-
a presidente desse comitê, e Marissa Wesely,
mas, transformando a “fraqueza” desorga-
sócia de uma das 10 maiores sociedades de
nizada em “força” articulada das advogadas.
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Internacionalização da Advocacia e o Perfil da Profissão no Brasil
O evento foi organizado em São Paulo por uma sociedade de advogados de longa tradição (Pinheiro Neto, 78 sócios e 220 associados, em janeiro de 2012). A iniciativa favorece a circulação internacional desse escritório na rede das grandes firmas norte-americanas de advocacia. Para as mulheres presentes, o evento representou mais inclusão do que exposição estigmatizada pelos pares e possibilitou compartilhar referências com outras advogadas, ampliando as suas redes, a navegação social e a valorização das habilidades profissionais femininas. Isso, entretanto, não nos permite afirmar que a segmentação generificada observada na advocacia brasileira caminha para a sedimentação, recorrendo ao essencialismo da identidade de gênero para empoderar enclaves femininos, como na análise de Bolton e Muzio (2007). Várias manifestações na reunião abordaram a distância entre as propostas do relatório apresentado e o cotidiano das advogadas nos escritórios paulistas. A significativa presença feminina em um evento com as marcas do gênero que muitas profissionais buscam apagar revela a forma híbrida como elas atribuíram um novo significado ao encontro. Para além de enfrentarem as
305
Considerações finais Este estudo partiu de evidências da padronização da prática jurídica privada e de sua internacionalização, com as sociedades de advogados globalizadas, para identificar aspectos partilhados pela advocacia no Brasil. Em uma perspectiva comparada, procurou destacar características específicas ao caso brasileiro, dando visibilidade às formas híbridas entre o local e o global, focalizando a proliferação dos cursos de direito, a feminização da prática jurídica e o crescimento das sociedades de advogados em conjunto com a especialização em direito empresarial. Quanto ao boom do ensino jurídico, argumentamos que ele resultou da hegemonia da lógica empresarial sobre a lógica profissional, criando um modelo híbrido no qual a livre -concorrência no mercado da educação jurídica depende de algum tipo de apoio financeiro do Estado e de sua lógica burocrática. O fechamento do mercado, em vez de ser controlado pela exigência de uma formação universitária, passou a ser feito pela OAB, por meio do exame que fornece a credencial para a prática da advocacia.
barreiras à progressão nas sociedades de
O direito empresarial foi impulsiona-
advogados brasileiras, as profissionais
do pelas necessidades das corporações e
participantes viram uma oportunidade de
das sociedades de advogados que atendem
ampliar sua circulação nas redes globais,
a esses clientes, bem como pela internacio-
dando maior distinção ao seu capital de
nalização dessa expertise. Apesar da ex-
relações sociais.
portação e da importação dos modelos
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Manual de Sociologia Jurídica
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anglo-americanos das sociedades de advogados, já diversificados nos países de origem, aqui eles se adaptaram à cultura jurídica local. Um exemplo do hibridismo entre os modelos globais e locais dessas organizações é que, recentemente, a OAB-SP, preocupada com a preservação do mercado de trabalho da advocacia, estabeleceu o impedimento da associação entre advogado estrangeiro e advogado brasileiro, fechando brechas na legislação na qual estrangeiros atuavam como sócios de sociedades de advogados de forma travestida. Os consultores podem registrar Sociedades de Consultores em Direito Estrangeiro, junto à OAB, que fiscaliza a prática. Eles devem ser inscritos na OAB, ter sede no Brasil, seguir a legislação brasileira, o Estatuto e regimentos da Ordem, bem como fornecer consultoria apenas sobre direito estrangeiro. Quanto à feminização da advocacia, as maiores sociedades de advogados mostraram-se mais receptivas à participação e progressão das advogadas do que aquelas menores, especialmente em São Paulo, dificuldade que também vale para a atuação solo precária. Novamente, vemos o hibridismo entre o moderno e o tradicional, entre o global e o local na prática privada.
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17 Violência, Estado e Sociologia no Brasil Renato Sérgio de Lima Liana de Paula
A violência é um problema social que
flete os altos patamares atingidos por
tem preocupado a sociedade brasileira. Di-
alguns dos indicadores de violência, princi-
ferentes pesquisas de opinião têm indicado
palmente os que se referem a homicídios. A
que, com o declínio das taxas de desempre-
partir da década de 1980 até meados dos
go nos anos 2000, a violência (associada aos
anos 2000, houve um acentuado crescimen-
temas da criminalidade e da segurança pú-
to das taxas de homicídios no País, passan-
blica) passou a ocupar um lugar de destaque
do de 11,7 homicídios por 100 mil habitan-
entre os principais problemas apontados pe-
tes em 1980, para 28,9 por 100 mil em 2003
los brasileiros, ficando atrás apenas da saú-
(WAISELFISZ, 2012). A tendência de cres-
de . Em certo sentido, essa preocupação re-
cimento arrefeceu apenas após 2004,
1
alternando-se períodos de redução e cres1.
Ver La seguridad ciudadana, el problema principal de América Latina, levantamento realizado pela Corporación Latinobarómetro e publicado em maio de 2012. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2012. Ver também pesquisa de avaliação do governo Dilma, realizada pelo IBOPE em dezembro de 2011 (Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2012), e de avaliação do governo Lula, realizada pelo Datafolha em janeiro de 2010 (Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2012).
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homicídios por 100 mil habitantes. Assim,
lência e do Estado enquanto objetos de es-
embora se possa dizer que tenha havido
tudo sociológico, procurando estabelecer a
uma redução em 2010, comparativamente
divisão entre o saber científico e outras
ao pico atingido em 2003, as taxas de homi-
formas de saber. O segundo foca a apro-
cídios registradas no final dos anos 2000
priação do conceito de violência pelo Esta-
permaneceram muito altas, principalmente
do brasileiro, principalmente com a rede-
se comparadas ao início da década de 1980.
mocratização a partir da década de 1980.
De igual modo, dados disponíveis nos
Enfim, o terceiro momento estabelece a
Anuários do Fórum Brasileiro de Seguran-
relação entre esse contexto de apropria-
ça Pública, indicam que, em paralelo à ma-
ção do conceito de violência pelo Estado e
nutenção de patamares elevados de homi-
a emergência do campo de estudos socio-
cídios, o Brasil gasta cerca de 1,4% do seu
lógicos sobre violência no Brasil.
PIB com segurança pública e ainda assim paga mal aos seus policiais, mantêm estruturas duplicadas, convive com padrões operacionais permissivos com incidência
17.1. Violência e Estado enquanto objetos de estudo sociológico
de altas taxas de letalidade da ação poli-
O primeiro desafio que se coloca à re-
cial, entre outros exemplos da falência do
flexão sociológica sobre a violência refere-
modelo de organização do Estado para fa-
-se à sua construção enquanto objeto de
zer frente à violência e prover serviços e
estudo, o que implica sua conceituação teó-
direitos. Até por essa realidade, a preocu-
rica. Diferentemente de outros conceitos
pação com a violência também reflete a
teóricos – tais como individualização, so-
existência de um imaginário sobre a vio-
cialização e identidade –, que são catego-
lência, alimentado pelas sensações de
rias analíticas criadas pela teoria socioló-
medo e insegurança experimentadas pela
gica para descrever e explicar fenômenos
população.
da vida social, o conceito de violência não
Diante de tal contexto, este capítulo propõe apresentar um olhar sociológico sobre as formas como a violência vem sendo apropriada enquanto problema social pelo Estado e enquanto fenômeno pelas
é originado no campo teórico. Nesse sentido, como salienta Maria Stella Grossi Porto, a violência é “um fenômeno empírico antes do que um conceito teórico” (PORTO, 2010, p. 17).
ciências sociais no Brasil. Para tanto, a
Como indica Porto (2010), o ponto de
discussão está dividida em três momentos.
partida para a construção da violência en-
O primeiro dedica-se à construção da vio-
quanto conceito teórico é a divisão do fe-
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nômeno em diferentes tipos, a saber, a vio-
a qual pressupõe a existência de um siste-
lência física e a violência simbólica. Essa
ma de atores cujas relações sociais são
tipologia considera que a violência não se
conflitivas (WIEVIORKA, 1997; MICHAUD,
refere apenas a danos físicos causados a
1989). A violência se inscreve nessas rela-
alguém, mas também se manifesta na di-
ções de forma instrumental, podendo “ser
mensão simbólica, por meio de constran-
utilizada por um ator para tentar pene-
gimentos e danos morais (PORTO, 2010 e
trar o interior de um sistema de relações
CARDOSO DE OLIVEIRA, 2008). Ade-
institucionalizadas” (WIEVIORKA, 1997,
mais, embora a violência física seja comu-
p. 12).
mente acompanhada de violência simbóli-
Pensar a instrumentalidade da vio-
ca, é possível a ocorrência dessa última
lência implica considerá-la parte inte-
sem que haja danos físicos.
grante dos cálculos e estratégias dos ato-
Além da subdivisão do fenômeno em
res em conflito, isto é, pressupõe uma
violência física e simbólica, deve -se con-
racionalidade instrumental na qual a vio-
siderar também “as formas ou os sentidos
lência seria um meio para atingir deter-
que a violência assume em seu processo
minado fim. Nesse sentido, Max Weber
de concretização” (PORTO, 2010, p. 21).
(1999) chama a atenção para a apropria-
São diversas as formas assumidas pela
ção da violência como instrumento espe-
violência, podendo ser mencionadas, den-
cífico do Estado, passando este a estabe-
tre outras, a violência como forma de do-
lecer as situações nas quais o recurso à
minação, de sobrevivência, de afirmação
violência pode ser reconhecido como tole-
da ordem institucional-legal, de contesta-
rável. Segundo Weber, embora diversos
ção dessa ordem, de manifestação da não
agrupamentos políticos que antecederam
cidadania, de violência criminal e de ma-
o Estado moderno tenham recorrido à
nifestação da insegurança e do medo
violência física como instrumento normal
(PORTO, 2010).
de poder, ele é definido, especificamente,
As formas e os sentidos que a violên-
como “uma comunidade humana que,
cia assume na realidade empírica indicam
dentro dos limites de determinado terri-
seu caráter instrumental, podendo ser so-
tório – [...] – reivindica o monopólio do
ciologicamente entendida como um ins-
uso legítimo da violência física” (WE-
trumento pelo qual se manifestam dife-
BER, 1999, p. 56, grifo original).
rentes conflitos da vida social. Nesse
Dito de outro modo, o Estado consis-
sentido, uma das abordagens clássicas da
te, para o autor, em uma relação de domi-
violência aproxima-a da noção de conflito,
nação baseada no “instrumento da violên-
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cia legítima” (WEBER, 1999, p. 57), o que
quais ela serve de instrumento. Isso por-
coloca a questão dos fundamentos sobre
que o equilíbrio entre violência e domina-
os quais a legitimidade dessa dominação
ção legítima é tênue. Enquanto a domina-
estaria assentada. Entendendo a domina-
ção pressupõe a existência de relações
ção como a probabilidade de encontrar obe-
sociais que a legitimem – e que podem ser
diência a uma determinada ordem, Weber
institucionalizadas, como é o caso do Es-
(1995) aponta como três as bases de sua le-
tado moderno –, a violência enquanto ins-
gitimidade. A primeira delas é a crença na
trumento não depende de relações sociais,
santidade dos costumes, validados por sua
mas de implementos, ferramentas, artefa-
existência imemorial e pelo hábito, tratan-
tos humanos.
do-se, nesse caso, da dominação de tipo
Ao tratar da relação entre violência
tradicional. O segundo tipo é a dominação
e poder, Hannah Arendt (1994) salienta
carismática, cuja legitimidade está funda-
que o poder corresponde à habilidade hu-
da na devoção e na confiança depositadas
mana para agir em concerto e, por isso,
em um indivíduo pelos seus dons pessoais e
“nunca é propriedade de um indivíduo;
extraordinários, seu heroísmo ou por ou-
pertence a um grupo e permanece em
tras qualidades sobrenaturais atribuídas a ele – em uma palavra, seu carisma. Enfim, a dominação legal está baseada na crença na validade de um estatuto legal, ou seja, sua legitimidade é conferida pelo estabelecimento de normas formalmente abstratas. Essa última é a dominação que corresponde à estrutura moderna do Estado2 e, por conseguinte, a violência enquanto instrumento do Estado é legítima na medida em que as normas abstratas que a regulamentam são reconhecidas como válidas. O estabelecimento dessas normas não elimina, contudo, o risco de que a violência venha a suplantar os fins para os
existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido” (ARENDT, 1994, p. 36). O poder, definido dessa forma, pressupõe a existência de uma comunidade política, a qual lhe confere legitimidade. Já a violência é um instrumento e, como tal, depende de orientação e justificação para o fim que almeja. Para Arendt (1994), a violência pode ser justificável, mas não legítima. Embora os fenômenos da violência e do poder apareçam usualmente juntos, a diminuição do poder faz com que ele deixe de escorar ou restringir a violência, acarretando o risco da inversão do cálculo entre meio e fim (ARENDT, 1994). A violên-
2.
Deve -se ressaltar que a dominação legal não é exclusiva no Estado moderno, podendo haver também a ocorrência dos outros tipos de dominação. Ver Weber, 1995.
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cia, quando não restringida pelo poder, pode destruí-lo, pois
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
“
A própria substância da ação violenta é regida pela categoria meio-fim, cuja principal característica, quando aplicada aos negócios humanos, foi sempre a de que o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são necessários para alcançá-lo” (ARENDT, 1994, p. 14).
313
ção de suas formas e sentidos a partir de sua instrumentalidade ou expressividade não parecem ser suficientes para explicar a violência contemporânea. Isso porque, como salienta Michel Wieviorka (1997), as noções de conflito e de crise perderam sua força explicativa face às novas formas as-
Segundo Arendt (1994), devido a seu
sumidas pelo fenômeno da violência em
caráter instrumental, a violência tem um
suas manifestações contemporâneas3. Há,
potencial desagregador, de destruição do
por exemplo, manifestações da violência
poder. Se, por um lado, não é possível pen-
como um fim em si mesmo, uma violência
sar em poder sem violência, uma vez que o
lúdica, ou como pura afirmação do sujei-
poder coloca o problema da dominação;
to. Há também, para alguns estudiosos, a
por outro, a violência é justificável até cer-
emergência de uma cultura da violência,
to limite, a partir do qual ela ameaça rom-
na qual os atos violentos seriam valoriza-
per a legitimidade do poder.
dos por alguns grupos sociais e conferi-
Além disso, mesmo considerada como um meio que integra uma racionalidade
riam prestígio aos membros do grupo que os pratiquem (SPAGNOL, 2005).
instrumental, a violência tem uma dimen-
Para refletir sobre as condições ge-
são irracional ou expressiva que escapa a
rais que produzem uma mudança de para-
essa racionalidade. Dessa forma, outra
digma da violência, Wieviorka (1997) pro-
abordagem sociológica possível da violência
põe a análise em quatro níveis: do sistema
a define por sua expressividade, isto é,
internacional, dos Estados-nação, das so-
entende-a como expressão de crise nas re-
ciedades e dos indivíduos.
lações sociais. Incorporada à noção de crise, a violência é interpretada como um manifesto
patológico
do
sistema
social,
traduzindo um déficit na integração dos atores ao sistema ou nas relações entre eles. A violência funcionaria, assim, de maneira expressiva e manifestaria uma disfunção da vida social (WIEVIORKA, 1997). Se a tipificação da violência como física e simbólica permanece atual, a defini-
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No nível do sistema internacional, as duas principais mudanças ocorridas, a partir dos anos 1980, foram o fim da Guerra Fria e a acentuação do processo de mundialização da economia. O fim da Guerra Fria produziu efeitos consideráveis 3.
Vale considerar, portanto, que novas manifestações de violência também colocam em xeque o modelo penal como forma privilegiada de administração de conflitos nas sociedades ocidentais.
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à expressividade da violência, uma vez que
zação desse uso com a expansão do mer-
marcou o término da ordem nuclear e o
cado de segurança privada, seja pelo uso
surgimento de uma nova era das armas
ilegítimo pelo próprio Estado, exemplifica-
nucleares, tornando-as símbolo de crise,
do pela tortura e pela violência policial e
desestabilização e terrorismo. Já a acentua-
militar.
ção do processo de mundialização da economia, que envolve o crescimento da interdependência das economias nacionais, produz como efeito o aumento da desigualdade e da exclusão, além de alimentar a fragmentação social e cultural, o que estimula processos reativos de retraimento identitário e, com isso, as violências racistas ou xenofóbicas. No nível dos Estados-nação, ainda de acordo com Wieviorka (1997), a principal mudança a ser ressaltada é o enfraquecimento do Estado, em decorrência, ao menos em parte, do processo de mundialização. Com esse processo, os Estados veem reduzida sua capacidade de controlar a economia, uma vez que os fluxos, as decisões e a circulação de pessoas, capital e informação se dão em escala mundial, extrapolando os limites de seu território4. Além disso, há a perda do monopólio do uso legítimo da violência, seja pela privati-
4.
Maior exemplo desse quadro, a crise mundial de 2008 e seus reflexos atuais, na Europa (Grécia, Espanha, Itália, Portugal, entre outros), nos EUA e até mesmo na China e no Brasil, mostram o quão complexa é a regulação de mercados num cenário de alta volatilidade de capitais e tênues fronteiras territoriais. Os confrontos entre movimentos do tipo “Occupy Wall Street ” e programas de redução drástica de déficits públicos, muitos dos quais com interveniência de forças policiais, antagonizam duas formas de se pensar o Estado contemporâneo.
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No nível das sociedades, há um esgotamento das relações sociais próprias da indústria clássica e, com isso, o conflito entre capital e trabalho perde sua centralidade. Contudo, para Wieviorka (1997), não há uma relação direta entre as mudanças sociais decorrentes desse esgotamento – notadamente o desemprego e a pobreza – e a violência, sendo esta ocasionada por outros fatores. E, enfim, no nível individual, Wieviorka (1997) destaca o aprofundamento do individualismo na contemporaneidade, que se manifesta tanto pelo anseio do indivíduo em participar da modernidade e do que ela oferece, especialmente em relação ao consumo de massa quanto pela expectativa de ser reconhecido como sujeito, podendo efetuar escolhas e produzir sua identidade. Ambas as faces do individualismo mantêm uma forte relação com a violência. Por um lado, o indivíduo pode tornar-se ator de violências instrumentais que visam, justamente, assegurar os ganhos econômicos que o mantêm ou o tornam um consumidor. Por outro, o não reconhecimento ou a interdição do indivíduo em se tornar sujeito podem levar a manifestações explosivas ou lúdicas da violência, sendo que ela
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
315
pode ser entendida tanto como a busca de
tes que criam o espaço da violência. E esse
sentido, um “esforço para produzir por
vazio se faz sentir, sobretudo, na política.
meios próprios aquilo que antes lhe era
Com isso, a violência passa a buscar outras
dado pela cultura ou pelas instituições”
formas que se manifestam e se definem
(WIEVIORKA, 1997, p. 23), quanto como
fora da política e se inscrevem nas sociabi-
um apelo à subjetividade impossível.
lidades contemporâneas.
As análises acima apontam, em seus
Antoine Garapon (1999), por sua vez,
diferentes níveis, que o desregulamento
defende que ainda é possível pensar a
das relações sociais não se faz acompa-
apropriação da violência pela política ao
nhar de um novo regulamento, mas indi-
se considerar, como característica das de-
ca a mutação e possível superação de ato-
mocracias contemporâneas, a centralidade
res e sistemas sociais modernos. Assim, o
assumida pela justiça enquanto fonte sim-
fenômeno da violência se atualiza, na in-
bólica da política. Nesse sentido, o autor
terpretação contemporânea, pelas ex-
destaca que o “espaço simbólico da demo-
pressões de caos, fragmentação e decom-
cracia emigra silenciosamente do Estado
posição e se aproxima, portanto, da noção de anomia. Originalmente definida por Émile Durkheim (1996) como um estado momentâneo de desregramento, no qual as regras tradicionais perdem sua autoridade, não podendo mais refrear desejos e expectativas individuais, essa noção se redefine na contemporaneidade pela possibilidade de sua permanência, isto é, pela tensão constante entre regulamentações sociais enfraquecidas e desejos e expectativas individuais5. Para Wieviorka, “[...] a violência vem preencher o vazio deixado por atores e relações sociais e políticas enfraquecidas” (WIEVIORKA, 1997, p. 25), sendo tarefa da sociologia mostrar as mediações ausen5.
A permanência do estado de anomia era admitida por Durkheim (1996) na economia.
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para a justiça” (GARAPON, 1999, p. 47). O enfraquecimento do Estado não significa necessariamente um vazio de mediações, tornando-se a justiça o espaço no qual a violência passa a ser mediada e simbolizada. Ao mostrar tanto o espetáculo da violência quanto o de sua reabsorção e conferir, assim, sentido à violência, combinando sua irracionalidade a uma elaboração racional, o ritual judiciário opera a simbolização da violência, convertendo-a em representações que lhe conferem significados socialmente compartilhados. Há um pacto sobre tais representações e papéis; sobre como o Estado deve lidar com a violência. A questão que se coloca é, por conseguinte, como e em que medida as instituições democráticas – especialmente o Estado e o seu sistema de
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justiça criminal – podem se apropriar da
Segundo estudo realizado pelo Fó-
violência, traçando a linha divisória entre
rum Brasileiro de Segurança Pública e
violência justificável e violência não justi-
pelo Escritório Rubens Naves, Santos Jr. e
ficável; estabelecendo-se a conversão da
Hesket, em 2011, identifica-se que, na le-
violência em seu estado bruto para a sua
gislação e na jurisprudência brasileiras, os
forma falada e significada.
conceitos de segurança e ordem públi-
Essa questão é tanto mais específica
cas são circulares e pouco claros, cabendo
quando se analisa o caso brasileiro, pois
à doutrina jurídica orientar as decisões
nele temos a tensão gerada pelo enfraque-
dos operadores do sistema de justiça cri-
cimento do Estado moderno e, simultaneamente, a tensão entre o declínio do Estado autoritário e a redemocratização da vida social.
17.2. A apropriação do conceito de violência pelo Estado brasileiro
minal. Não obstante esse fenômeno, a pesquisa também verificou que, na construção do significado de ordem pública, essa mesma doutrina não está, por sua vez, informada pelos princípios da Constituição de 1988 e baseia-se, muito, em pressupostos da ideologia da segurança nacional formulada durante o regime autoritário
Ao pensar sobre as formas como o
(FBSP, 2011). Com isso, abre-se a possibi-
conceito de violência é apropriado pelo Es-
lidade para diferentes usos do sistema de
tado brasileiro, constata-se a evolução do
justiça criminal brasileiro.
modo como o Estado foi absorvendo as de-
Diante de tais resultados, no plano
mandas por ordem e de que modo elas vão
da produção acadêmica da sociologia,
se configurando e/ou moldando aos mode-
corroboram-se linhas de pesquisas que in-
los de desenvolvimento do País. Da públi-
vestigam como é construída, de um lado, a
ca tranquilidade, tal como era chamada
sujeição criminal a partir de determinadas
pelo Código Criminal, de 1830, à ordem
características biográficas e sociais de
pública presente na Constituição de 1988,
parcela da população (MISSE, 2011); e, de
nota-se a enorme dificuldade em se definir
outro lado, a submissão dos interesses da
conceitualmente o que pode ser considera-
sociedade aos interesses do Estado, que,
do o substrato pelo qual as instituições do
por sua vez, são influenciados por uma
Estado brasileiro vão organizar suas es-
parcela da elite que consegue mobilizar e
truturas e basear seu funcionamento, so-
pautar as agendas públicas de acordo com
bretudo as polícias e o sistema de justiça
seus interesses privados. No limite, o mo-
criminal.
delo de tratamento penal dos conflitos so-
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
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ciais é priorizado, mas diferentes concep-
Em suas análises da formação da
ções de ordem estariam em disputa pelo
ideologia desenvolvimentista, que busca-
sentido do uso legítimo da violência (SI-
va aprimorar a subordinação da sociedade
NHORETTO, 2010).
ao Estado, Otávio Ianni (2004) destaca a
Em termos históricos, foi no final dos
ocorrência, entre 1949 e 1964, do amadu-
anos 40 do século XX, que a organização
recimento de uma metamorfose na ideolo-
das polícias e do sistema de justiça crimi-
gia militar. Para ele, nesse período a dou-
nal ganhou os contornos moldados na Es-
trina da Defesa Nacional, propugnada
cola Superior de Guerra (ESG), cuja peça
com força pela ESG, foi absorvida, pós-
fundamental se estruturava a partir da co-
-1968, pela doutrina da segurança nacio-
nexão entre o binômio segurança nacional
nal. O principal viés doutrinário dessa
e desenvolvimento econômico. Esse binô-
ideologia é fazer crer que em torno do de-
mio respaldava-se em concepções de Esta-
senvolvimento econômico circulam con-
do oriundas da Guerra Fria e que ainda
flitos e disputas pela hegemonia política
conformam boa parte do cenário geopolíti-
da nação tanto por concorrentes externos
co mundial contemporâneo, mesmo que
como por interesses de opositores inter-
em fase de transmutação, como menciona-
nos, exigindo a subordinação e o controle
do anteriormente.
absoluto da sociedade. Por essa razão, a
Em outras palavras, o que se destaca aqui é que essas concepções, forjadas na ESG a partir de sua criação em 1949, ao associarem segurança e desenvolvimento, produziram um modelo para o desenvolvimento político e econômico do Brasil muito robusto e que até hoje nos impõe consideráveis constrangimentos burocráticos e estruturais. O modelo segurança e desenvolvimento não nasceu pronto, foi fruto de desdobramentos institucionais e de articulações entre militares e civis; de razões
segurança não é um fim em si, mas articula-se e depende da economia e da capacidade de intervenção do Estado. A partir de então, segurança e desenvolvimento passam a ter um caráter de mútua causalidade (LIMA e BRITO, 2011). Ou seja, o que poderíamos chamar de modelo da ESG é visto pela literatura como uma estratégia de desenvolvimento que instituiu um poderoso mecanismo de reprodução de uma lógica de desenvolvimento econômico baseado numa profunda subordina-
econômicas e razões políticas; e da combi-
ção e enfraquecimento da sociedade em
nação de razões políticas e de cultura jurí-
relação ao Estado.
dica que atribuem papel ambíguo às instituições policiais e judiciais.
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Nesse processo, as instituições encarregadas de manter a ordem pública, em
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especial as polícias e o Judiciário, são sub-
pacidade de indução e coordenação do
sumidas por tal ideologia e mobilizadas na
Governo Federal estão em muito relacio-
defesa do Estado (LIMA e BRITO, 2011).
nadas a esse vácuo constitucional.
Dito de outro modo, na medida em
De acordo com esse estudo, a ausên-
que, nesse processo, vislumbra-se a insti-
cia de regras que regulamentem as fun-
tucionalidade da ordem e o Estado apare-
ções e o relacionamento das polícias fede-
ce como força, materializado pela insti-
rais e/ou estaduais produzem no Brasil
tuição policial e pelo sistema de justiça
um quadro de diversos ordenamentos
criminal, percebe-se que o projeto de de-
para a solução de problemas similares de
senvolvimento brasileiro circunscreveu-se
segurança e violência sem, contudo, lo-
apenas na sua dimensão econômica. O de-
grarem êxito. Outro fator relevante é que,
senvolvimento social, reforçado pela Cons-
no plano legal e normativo, a existência
tituição de 1988, é lembrado apenas como
de uma zona de sombra muito intensa em
distribuição de renda, sem inclusão dos
relação à definição conceitual sobre o sig-
demais direitos de cidadania.
nificado de segurança e ordem abre mar-
Ademais, a Constituição de 1988 tão
gem para que as instituições indicadas no
somente deslocou, em seu art. 144, o con-
art. 144 da CF e as demais que integram o
ceito de segurança nacional e o substituiu
Sistema de Justiça brasileiro operem com
pelo de segurança pública, sem, no entan-
alto grau de autonomia e discricionarie-
to, avançar na regulamentação ou remode-
dade (FBSP, 2012).
lagem do sistema de justiça criminal e do
Paradoxalmente, não obstante esse
aparato institucional encarregado de ga-
cenário de crise aguda, a situação históri-
rantir lei e ordem no País. Segurança Pú-
ca da segurança pública inaugura uma im-
blica é, por sinal, uma das áreas mais afe-
portante inflexão a partir de 1995, quando
tadas pela não regulamentação do art. 23
alguns poucos governos estaduais passam
da Constituição, que trata das atribuições
a defender que a atuação das polícias de-
concorrentes entre os entes da federação.
veria ser voltada para a defesa da cidada-
Sobre essa realidade, outro estudo do
nia, e não mais do Estado. Para tanto, tais
Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
governos buscaram integrar as suas polí-
sobre mecanismos de financiamento da
cias e priorizaram ganhos incrementais de
segurança pública no Brasil (2012), indica
eficiência a partir da ideia de se investir
que a proeminência dos Estados na elabo-
pesadamente em gestão e tecnologia.
ração, ou melhor, na implementação de po-
Várias são as ações mobilizadas, com
líticas de segurança pública e a baixa ca-
destaque para a integração de áreas de ju-
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
319
risdição operacional das duas polícias esta-
caráter mais ou menos perene das trans-
duais, a adoção de ferramentas de análise
formações em curso.
criminal e georreferenciamento, a incorpo-
Seja como for, como efeito dessa nova
ração de mecanismos de accountability
postura em relação à segurança pública, há
(como a obrigatoriedade de publicação re-
um importante deslocamento discursivo, e a
gular de estatísticas sobre crimes e mortes
democracia, apesar de todas as resistências
envolvendo a polícia), a informatização da
postas, consegue pautar debates acerca da
Justiça, entre outras.
necessidade de um modelo de ordem pública
E será a partir delas que, após o fi-
baseada na cidadania, garantia de direitos e
nal dos anos 1990 e com a criação da Se-
acesso à justiça. Há uma mudança de reper-
cretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), no âmbito do Ministério da Justiça, as políticas de segurança pública no Brasil parecem ter dado uma guinada modernizante e se ampliaram. Entre as características desta guinada, notam-se: a entrada em cena e o fortalecimento dos municípios como atores relevantes na segurança pública; o financiamento de pesquisas aplicadas e a aproximação entre as instituições encarregadas de prover segurança pública e as universidades e centros de pesquisa; bem como a introdução de novos conteúdos nos currículos dos cursos de formação policial e de guardas.
tório, que introduz a questão dos direitos humanos como central na esfera política. Por certo, a transformação do discurso em práticas de governo ainda enfrenta resistências consideráveis e, por vezes, até mesmo retrocessos, mas é inegável a conquista de posições políticas e institucionais. Nesse processo, para Renato Sérgio de Lima e Jacqueline Sinhoretto (2011), essa postura estaria por valorizar os direitos civis como componente fundamental das políticas de segurança, numa inflexão no processo de construção em longa duração da cidadania no Brasil. O problema é que há, por certo, uma ruptura com o modelo vigente, mas ela não
No campo do Judiciário, será em
provocou grandes transformações socioju-
2004, com a criação do Conselho Nacional
rídicas e ainda sofre resistências e influên-
de Justiça, que o movimento de pressão
cias de outros processos sociais mais am-
democrática iniciado pelas instituições de
plos. Entre eles, chama atenção o aumento
segurança pública começará a ganhar for-
da violência urbana, principalmente quan-
ça e a pautar mudanças na lógica de fun-
do considerados o crescimento dos indica-
cionamento do sistema de justiça como um
dores de crimes contra a vida exatamente
todo. Porém, as evidências empíricas ain-
no momento de redemocratização do País,
da são poucas e recentes para se afirmar o
a partir da década de 1980.
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Segundo Angelina Peralva (2000), a redemocratização foi acompanhada da passagem da violência urbana relacionada
nismos de regulação característicos do período autoritário, a democracia terminou abrindo amplas possibilidades para que a violência se desenvolvesse” (PERALVA, 2000, p. 20).
aos crimes contra o patrimônio, cujas ocorrências haviam crescido na década de
Se, por um lado, as instituições autori-
1970, para a violência manifestada nos cri-
tárias responsáveis pela segurança pública
mes contra a vida, sobretudo os homicí-
já não mais respondiam ao fenômeno da vio-
dios, cujas taxas cresceram acentuada-
lência urbana, não houve, por outro, respos-
mente a partir dos anos 1980.
ta das instituições democráticas. Ainda con-
No processo de transição para a democracia, a Assembleia Constituinte foi um “espaço de condensação de demandas díspares de grupos de pressão” (PERALVA, 2000, p. 20), no qual os movimentos sociais foram bem-sucedidos ao incluírem direitos sociais e culturais das minorias no texto constitucional. Essa inclusão, para
forme Peralva, a sociedade brasileira, por sua vez, “manifestou alto grau de tolerância e, em resposta à violência, produziu estratégias de adaptação” (PERALVA, 2000, p. 21). Essas estratégias podem ser observadas pela circulação de armas de fogo no País e também pelas adaptações no meio urbano, com a construção de espaços protegidos.
Peralva (2000), transformou as bases das
A fortificação das cidades como estra-
relações sociais e o lugar de cada indiví-
tégia social frente ao aumento dos crimes
duo na coletividade nacional, gerando descompassos entre a maneira hierarquizada como os brasileiros se viam e se definiam e o novo olhar da igualdade democrática. Novos conflitos sociais surgiram desses descompassos, desafiando as instituições democráticas que se firmavam. Segundo Peralva (2000),
“
[...] à medida que a transição democrática ocorreu sob a forma de uma ruptura progressiva com a experiência autoritária, importantes demandas relativas à reconstrução das instituições responsáveis pela ordem pública foram deixadas de lado. Sem realmente poder contar com instituições novas em terreno sensível, e já não mais dispondo dos meca-
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violentos e do medo também é apontada por Teresa Caldeira (2000). No entanto, para essa autora, a expansão dos condomínios fechados, verdadeiros “enclaves fortificados” que modificam a paisagem urbana, vai além da proteção contra os riscos da violência. Essa expansão resulta também da recente experiência de igualdade democrática, cristalizando a segregação social e reorganizando hierarquias que pareciam ameaçadas ou perdidas com a democratização. Trata-se, assim, de um movimento de retraimento, no qual as elites desocupam o espaço público das ruas e se recolhem a espaços privados em que podem acionar mecanismos de estigmatização, controle e
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
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exclusão, justificando-os pelo medo da
mitem uma observação de natureza meto-
violência.
dológica e que percebe o acúmulo de
Nesse cenário, seria o sistema de se-
reflexões acerca de como a violência foi
gurança pública e justiça criminal uma
apropriada pelo Estado brasileiro e de que
das saídas democráticas possíveis para se
modo esse movimento tem impactos na
responder à violência urbana no Brasil?
conformação de um campo de estudos so-
Os estudos disponíveis indicam que esse
ciológicos sobre violência no Brasil, que é,
sistema tem operado menos como possibilidade de constituição da sociedade democrática e mais como mecanismo de recolocação da ordem autoritária. Até porque, mesmo com novos discursos e práticas incrementais de gestão, passados 25 anos da Constituição de 1988, as instituições policiais e de justiça criminal não experimentaram reformas significativas nas suas estruturas organizacionais e normativas. Avanços eventuais no aparato policial, conquista de maior transparência
por exemplo, autônomo em relação aos estudos criminológicos. Com pesquisas pioneiras que remontam ao início dos anos 1970, os alicerces desse campo epistêmico ganharam solidez no final dos anos 2000, com a institucionalização de linhas de pesquisa, o lançamento de editais temáticos nas agências oficiais de fomento e o crescimento de grupos de pesquisas nas universidades brasileiras dedicados, em maior ou menor grau, à investigação das questões associadas à violência.
sobre o funcionamento das instituições da
Não obstante esse fato, as feições que
área e reformas na legislação penal têm se
esse campo foi assumindo são tributárias
revelado insuficientes para reduzir a inci-
de algumas fronteiras bem delimitadas,
dência da violência urbana, numa forte evi-
como aquelas dedicadas pioneiramente ao
dência da falta de coordenação e controle.
estudo das prisões e de outras, ainda em formação e em meio a disputas, como no
17.3. A emergência de um campo de estudos sociológicos sobre violência no Brasil6
caso dos estudos sobre segurança pública. No meio do caminho, temas centrais das ciências sociais contemporâneas, como violência contra mulheres, direitos huma-
Num deslocamento de olhar, as ques-
nos, discriminação racial, fluxos da justiça
tões destacadas nos itens anteriores per-
e conflitos sociais ajudaram a guiar as pesquisas e os debates intelectuais da área.
6.
Este item baseia-se, fortemente, em texto intitulado “A influência da trajetória intelectual de Sérgio Adorno nos estudos sobre violência no Brasil”, submetido para publicação em 2012.
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Em termos quantitativos, nesses últimos 10 anos, o campo deixa de ser perifé-
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Manual de Sociologia Jurídica
rico na produção da pós-graduação brasi-
limitar as fronteiras e divisas do conheci-
leira para se tornar prioridade em estudos
mento científico e os seus esforços buscam
de várias disciplinas e áreas. Segundo le-
identificar e mapear a produção existente,
vantamento no banco de teses e disserta-
que já acumula um elevado número de
ções da Capes, havia em 2006 mais de 8
obras (ADORNO, 1993; KANT DE LIMA,
mil trabalhos ligados à área, sendo que as
MISSE e MIRANDA, 2000; ZALUAR, 1999;
ciências sociais contribuíam, junto ao di-
BARREIRA e ADORNO, 2010)7.
reito, com as maiores parcelas de textos
Mais recentemente, alguns autores,
desse acervo (LIMA, 2011). E essa produ-
como Francisco Vasconcelos (2009; 2011),
ção não se resume apenas à produção de
têm iniciado reflexões sobre as origens de
teses e dissertações: ainda segundo o le-
uma das vertentes desse campo – a socio-
vantamento citado, existiam, em 2006,
logia da violência – no Brasil e o seu im-
255 Grupos de Pesquisas registrados no
pacto na universidade e nas políticas pú-
CNPq ligados à área, número quase sete
blicas. Esse autor (2011) vai demonstrar
vezes superior ao existente em 2000, que
como as produções carioca, mineira e pau-
somava 41 grupos, segundo Roberto Kant
lista sobre violência vão se “especializar”
de Lima, Michel Misse e Ana Paula Mendes
em torno de uma “tríade” de objetos: pri-
Miranda (2000).
são e justiça criminal; polícia e sua relação
No que diz respeito especificamente às ciências sociais, contudo, se é possível pensar em um campo já em estágio avançado de formação, também é necessário pensar que algumas de suas marcas seriam a forte disputa de posições, o dinamismo dela derivado e a pluralidade de abordagens, tradições teóricas e perspectivas metodológicas adotadas. Evidência de tais fatos, não à toa, a própria nomeação do campo é con-
com a percepção do aumento da criminalidade urbana; movimento da criminalidade e espaços urbanos. Para Vasconcelos, mesmo com ênfases diferentes, as várias perspectivas regionais acabam por recolocar uma questão que, a nosso ver, vai marcar o campo; qual seja, a que vai refletir sobre “os desafios trazidos pela violência do Estado e da sociedade para os contornos da democracia brasileira” (2011).
troversa e variável, reconhecendo-se a
Nesse processo, é significativo perce-
existência de uma grande zona de incerte-
ber que as pesquisas reconhecidas pelo
zas na definição dos seus principais territórios explicativos. As revisões da literatura disponível não se preocupam especificamente em de-
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7.
O texto de Adorno (1993) localiza 264 referências que cobrem o período de 1972 a 1993. Kant de Lima, Misse e Miranda (2000) indicam 1.040 obras. O texto de Zaluar (1999) relaciona 224 obras e, por fim, o de Barreira e Adorno (2010) identifica 1.374 e relaciona 345 referências bibliográficas.
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
323
campo como pioneiras têm num grupo re-
absorvidos na arena pública nos últimos
duzido de pesquisadores o seu núcleo irra-
10, 15 anos, mas foi por meio da questão do
diador e que, portanto, idiossincrasias e
crescimento da violência urbana nos anos
perfis individuais de atuação têm, tanto
1990 e das políticas de segurança pública
quanto as questões políticas e institucio-
dele derivadas que se viabilizou a aliança
nais, forte impacto nos processos de deli-
de interesses sociais e corporativos que
mitação de fronteiras e territórios explica-
culminaram com a atual configuração do
tivos que giram em torno da temática da
campo de estudos sobre segurança públi-
segurança pública (LIMA e RATTON, 2011).
ca. As pesquisas sobre violência urbana e
Temática que, no Brasil, ganhou força nas
democracia passaram, pouco a pouco, a re-
ciências sociais e matizou a recepção das
fletir sobre como essa violência podia ser
matrizes e influências internacionais as-
associada à forma de organização e às res-
sociadas aos estudos criminológicos e/ou
postas do Estado brasileiro a um fenôme-
sobre justiça criminal, tradicionalmente
no social complexo e multifacetado.
mais acionadas pelo direito penal. Assim,
Aceita essa tese, a questão que surge
a conformação desse novo campo de estu-
é sobre como podemos compreender tais
dos está sujeita a uma miríade de caracte-
movimentos. Em termos institucionais, é
rísticas pessoais e de fatores políticos e
possível associar esse cenário ao efeito
institucionais que, no limite, estabelecem
combinado de políticas de indução demo-
uma forte correlação entre programas aca-
crática levadas a cabo pela Fundação
dêmicos e políticas públicas.
Ford, de um lado, e pela Secretaria Nacio-
As pesquisas oriundas das ciências sociais estariam conformando o que José
nal de Segurança Pública – Senasp, por outro8.
Vicente Tavares dos Santos intitula como
No caso da Fundação Ford, que com-
um campo de estudos sobre “segurança
pletou 50 anos no Brasil em 2012, muito se
pública e sociedade”, muito em função da
pode discutir sobre o papel que ela exer-
capacidade desses últimos serem assumi-
ceu para o processo de retomada da demo-
dos como insumos ao planejamento de
cracia brasileira e/ou sobre as influências
ações governamentais.
que exerce ao padrão de desenvolvimento
Em termos de conteúdo, como já pudemos observar nos itens anteriores, a
do País. Contudo, no caso da segurança pública, Lima (s/data) defende a ideia de
preocupação com direitos humanos e democracia deu o tom de como os temas associados foram sendo institucionalmente
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8.
É verdade que também não podemos desconsiderar a contribuição da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH).
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Manual de Sociologia Jurídica
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que foi por meio dos apoios da Fundação
cursos que foram sendo criados nos últi-
que conseguimos alcançar um conjunto
mos anos.
significativo de stakeholders mobilizado
Como destacado anteriormente, após
para o tema da segurança pública e direi-
o ano 2000, a criação da Secretaria Nacio-
tos humanos.
nal de Segurança Pública (Senasp) é um
A Fundação Ford foi a responsável
momento-chave. Foi por meio desta secre-
pelos apoios estruturantes e iniciais de
taria que as propostas formuladas no am-
praticamente todos os centros de pesquisa
biente acadêmico das ciências sociais fo-
especializada, sejam eles acadêmicos ou
ram sendo assumidas e ressignificadas
não, incluindo o aporte inicial que deu ori-
pelo Estado. A Senasp foi, direta ou indire-
gem ao Núcleo de Estudos da Violência da
tamente, a responsável pela entrada em
Universidade de São Paulo (NEV/USP) e/ou
cena e pelo fortalecimento dos municípios
aos primeiros cursos universitários dedi-
como atores relevantes na segurança pú-
cados a policiais ministrados pelo Núcleo
blica, ao incluí-los como passíveis de se-
Fluminense de Estudos e Pesquisa da Uni-
rem beneficiados com recursos do Fundo
versidade Federal Fluminense (NUFEP/
Nacional de Segurança Pública. Da mesma
UFF). Mais recentemente, a Fundação
forma, foi pioneira, ao firmar, em 2004,
Ford contribui para o fortalecimento do
parceria com a ANPOCS para financiar
CESEC/UCAM e/ou do Fórum Brasileiro
amplo edital de pesquisas aplicadas e
de Segurança Pública. Foi graças a esses
aproximar organicamente o universo das
apoios que pesquisas puderam e podem
instituições encarregadas de prover segu-
ser produzidas, intercâmbios estabeleci-
rança pública das universidades e centros
dos e pesquisadores puderam se dedicar
de pesquisa. Foi também por meio da se-
ao tema.
cretaria que os conteúdos dos currículos
Por fim, uma lembrança fundamental
dos cursos de formação policial e de guar-
é o apoio da Fundação Ford para a tradu-
das foram discutidos e a universidade cha-
ção e publicação, pelo NEV/USP e pela
mada a oferecer cursos regulares na área.
Edusp, da coleção “Polícia e Sociedade”,
Diante desse cenário, o fortalecimen-
com vários livros clássicos sobre polícia e
to de agências e associações de coordena-
policiamento no eixo Europa–América do
ção, pesquisa e avaliação, como Capes,
Norte. Essa coleção supriu uma carência
CNPq, FAPESP, ANPOCS, SBS, entre ou-
de bibliografia disponível em língua portu-
tras deixa de ser uma mera formalidade
guesa e pode ser vista como um divisor de
burocrática. Tal movimento reduz o espa-
águas e como subsídio básico dos vários
ço de projetos individuais e, não sem ten-
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Violência, Estado e Sociologia no Brasil
325
sões, estabelece um padrão de trabalho
ideias que circulam e dão sentido às princi-
em rede que ainda não foi completamente
pais pautas da agenda contemporânea.
absorvido pela universidade brasileira, em
Feita esta trajetória, um ponto surge
especial pelas ciências humanas e pelo di-
com força: há, no Brasil, um forte hiato en-
reito. O exemplo mais atual desse movi-
tre a produção sociológica sobre “violência”
mento é o programa dos Institutos Nacio-
gerada em torno do campo de estudos so-
nais de Ciência e Tecnologia (INCT), do
bre “segurança pública e sociedade” e a
CNPq e com parcerias de diversas outras
produção do que se tradicionalmente consi-
agências de fomento nacionais e estaduais.
dera como “sociologia jurídica”, em muito
Os INCTs buscam reunir grupos de pes-
pautada pelos aspectos filosóficos e norma-
quisa consolidados em torno de um gran-
tivos do sistema de justiça criminal. São
de e comum programa de trabalho e são
dois mundos apartados e que, no limite,
uma aposta integradora de esforços, mas
prejudicam a compreensão, por ambas as
ainda esbarram em não poucas limitações
tradições, dos fenômenos sociais, políticos,
burocráticas e financeiras para a persecu-
institucionais e culturais associados ao
ção de seus objetivos .
funcionamento das instituições de Estado
9
Em conclusão, os estudos sobre violência no Brasil configuram um robusto programa de pesquisas, que pode ser assumido como um rico microcosmo da produção acadêmica nas ciências sociais no Brasil. Por certo, vários nomes contribuem
encarregadas de mediar e fazer frente à violência no País. Faz-se, portanto, mais do que necessário um programa acadêmico e intelectual que marque divisas, mas (re)estabeleça pontes entre esses dois universos; entre as ciências sociais e o direito.
para as atuais configurações do campo de estudos sobre segurança pública e socieda-
Bibliografia
de, mas, ao redigir este texto, frisamos nos-
ADORNO, S. A criminalidade urbana violenta no Brasil: um recorte temático. Boletim Bibliográfico e Informativo em Ciências Sociais, São Paulo, v. 35, p. 3-24, 1993.
sa intenção de destacar características e, com isso, contribuir para uma história das
9.
Há dois INCTs diretamente vinculados ao campo de estudos sobre “segurança pública e sociedade”, sendo um deles liderado por Sérgio Adorno (USP) e o outro por Roberto Kant de Lima (UFF). Há ainda dois outros INCTs que possuem, em seus programas, projetos que os vinculam à temática, mas que não são diretamente dedicados a estudos que poderiam inseri-los entre os do campo mencionado (CEM/CEBRAP e OM/UFRJ).
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Manual de Sociologia Jurídica
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18 O Direito Penal é Capaz de Conter a Violência? Marta Rodriguez de Assis Machado Maira Rocha Machado
A pergunta proposta pelos organiza-
menos assumir como ponto de partida o
dores deste manual, título deste capítulo,
fato de que a humanidade, nos mais diver-
poderia nos remeter a discussões longas e
sos períodos e das mais diversas formas,
talvez intermináveis que percorrem mui-
vem desenvolvendo mecanismos com es-
tos campos do conhecimento. Dependen-
ses fins e que esse é um dos fundamentos
do do caminho que seguirmos e da ideia
que legitima o direito moderno. Mais espe-
de violência com a qual trabalhemos, po-
cificamente, pode-se dizer que o monopó-
demos ser levados a questionar a possibili-
lio da violência pelo Estado – que a exerce
dade mesma de se exercer qualquer tipo
por meio ora da guerra, ora da pena – está
de controle sobre ela . Mas podemos ao
nas origens do direito penal moderno e
1
isso pode ajudar a compreender por que 1.
Pensamos aqui numa concepção de violência que se opõe à razão, que está, por exemplo, na base dos estudos de George Bataille sobre o erotismo. Aqui, qualquer tipo de proibição ou tabu é o que estimula o desejo de violência: “[…] tabus fundados no medo não existem apenas para serem obedecidos. Há sempre o outro lado da questão. Sempre há a tentação de quebrar uma barreira; a ação proibida assume um significado que não tinha antes de o medo construir uma distância entre ela e nós e investir nela uma aura de
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excitação. ‘Não há nada’, escreve Sade, ‘que pode colocar limites à licenciosidade… A melhor maneira de ampliar e multiplicar o desejo é tentar limitá-lo’. Nada pode conter a licenciosidade… ou melhor, falando de modo geral, não há nada que possa conter a violência” (tradução livre das autoras). BATAILLE, G. Eroticism. London: Penguin, 2012, p. 48 (originalmente publicado em francês em 1957).
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invariavelmente essa questão é levantada
comportamentos indesejados ou conter a
quando se discute o papel do direito penal
violência seriam os mais adequados?
na sociedade.
Este movimento amplia e modifica
Para levar adiante uma reflexão so-
substancialmente o conjunto de problemas
bre o direito penal, entendemos ser preci-
ao qual a pergunta-título deste capítulo nos
so nos reportar a pelo menos dois tipos de
remete. Colocar a questão nesses outros
problemas e, portanto, de possíveis res-
termos significa considerar as consequên-
postas à pergunta-título deste capítulo.
cias que a centralidade do direito penal e da
O primeiro deles diz respeito aos ob-
pena têm produzido na construção de polí-
jetivos que o próprio direito penal enuncia
ticas públicas, bem como as implicações e
e atribui a si por meio das teorias da pena
custos sociais do próprio funcionamento do
(retribuição, dissuasão, reabilitação e pre-
sistema de justiça. É o que buscaremos
venção geral positiva). Essa perspectiva
apresentar em seguida respondendo à per-
tem ocupado enorme espaço no debate
gunta “o direito penal é capaz de conter sua
acadêmico, tanto no campo teórico-
própria violência?” (item 18.3). Antes de
-dogmático quanto no empírico. A esta
iniciarmos esse percurso, explicitaremos os
questão dedicaremos o item 18.2 deste
principais conceitos que organizam e nor-
texto, organizado em função da pergunta
teiam a reflexão proposta aqui (item 18.1).
“a pena é capaz de conter a violência?”. Como veremos, tanto a produção de teor normativo que elabora sobre as funções do direito penal quanto os estudos que bus-
18.1. A construção da categoria crime (ou o direito penal em ação)
cam testar a eficácia desse sistema dificil-
O direito penal regula condutas por
mente abrem espaço para o questionamen-
meio da categoria crime. É por meio da
to sobre a própria centralidade do direito
definição de determinado fato como crime
– e mais especificamente do direito penal
que os instrumentos que estão à disposi-
e da pena – como mecanismo de conten-
ção dos atores do sistema de justiça po-
ção de condutas violentas e/ou indeseja-
dem ser acionados. O funcionamento do
das. Em outras palavras, ao limitarmos o
direito penal envolve, portanto, de um
debate aos objetivos declarados e à possi-
lado, a construção da própria categoria
bilidade de alcançá-los, podemos perder
crime – e, por consequência, de “autor de
de vista a questão que hoje nos parece fun-
crime”, entre várias outras –; e, de outro, a
damental: os instrumentos que vêm sendo
escolha de consequências jurídicas para
utilizados pelo direito penal para evitar
essa definição.
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Ao pensarmos os conceitos jurídicos
Por isso, para pensar a noção de cri-
como resultado de um longo processo de-
me sociologicamente é preciso assumir
cisório que envolve vários atores sociais,
que nem todo crime é violento e que nem
ampliamos nossa capacidade de observa-
toda violência será considerada crime.
ção e análise dos fenômenos jurídicos.
Para compreender como essa relação se
Nessa perspectiva, a definição de crime é
estabelece, é preciso atentar para o pro-
percebida como resultado de um processo
cesso de definição dessa categoria e com-
de atribuição e construção de sentido que
preender sua dinâmica, seus elementos,
pode variar – e de fato varia – ao longo do
bem como as instituições e os atores que
tempo, em diferentes sociedades, contex-
participam de sua construção.
tos etc. Ao nos posicionarmos dessa forma perante o crime, buscamos evitar todo tipo de cristalização dessa categoria, isto é, de atribuição de características, formas e conteúdos fixos, permanentes ou “essenciais”. Por exemplo, é muito forte no senso comum a associação entre crime e violência. No entanto, quando olhamos para os comportamentos problemáticos selecionados pelo legislador, muitos deles não descrevem situações que envolvem uma ação humana capaz de causar a outra pessoa uma lesão física, psíquica, emocional ou moral, como imediatamente vem à cabeça quando falamos de crime2.
2.
Aliás, o direito penal – muitas vezes e cada vez mais – descreve condutas que não são propriamente ações, que não são necessariamente intencionais, que não envolvem vítimas concretas, que não são lesivas e que muitas vezes sequer são perigosas. Isso acontece notadamente em áreas que tradicionalmente não eram foco de atuação do direito penal, mas que vêm sendo cada vez mais intensamente reguladas por ele. São exemplos disso os crimes ambientais, os crimes financeiros e econômicos, os crimes contra a saúde pública, contra as relações de consumo etc. Nesses campos, na maior parte das vezes, está-se diante de proibições que não têm o escopo direto de conter condutas lesivas a vítimas concretas, mas visam gerir um standard segu-
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ro de proteção a “bens jurídicos” coletivos ou difusos. Para tanto, boa parte dos tipos penais contidos nessas novas legislações diferem da estrutura tradicional de crime, isto é, não descrevem uma ação de um indivíduo que causa uma lesão a algum bem ou valor de um outro indivíduo. Nessas novas incriminações, há cada vez mais delitos omissivos (ou seja, o direito penal pune aquele que não age para proteger a esfera de valor/bens de outra pessoa ou da coletividade); há também uma intensa associação desses crimes à modalidade negligente – então, o que se pune aqui não é a conduta daquele que pratica uma “violência” em face de outra pessoa, mas daquele que não foi diligente o suficiente para agir a tempo de evitar que uma lesão ou um perigo se concretizasse. Klaus Günther identifica na proliferação dos crimes omissivos negligentes uma verdadeira mudança paradigmática do direito penal liberal. Ver GÜNTHER, Klaus. De la vulneración de un derecho a la infracción de un deber. ¿Un ‘cambio de paradigma’ en el derecho penal? In: INSTITUTO DE CIENCIAS CRIMINALES DE FRANKFURT (Ed.). La insostenible situación del derecho penal. Granada: Editorial Comares, 2000, p. 503. Além disso, o direito penal antecipa sua intervenção para criminalizar condutas que antes eram consideradas apenas preparatórias para uma conduta propriamente “criminosa”; ou condutas que antecedem a eventual progressão que levaria a uma lesão; ou simplesmente condutas que são individualmente inofensivas, mas que, se praticadas por um grande número de pessoas, aí sim poderiam gerar efeitos lesivos ou perigosos. Na dogmática do direito penal, chamamos isso de crimes de mera conduta, isto é, crimes que demandam, para se consumarem, a simples execução de uma ação que é pensada pelo legislador, por diferentes razões, como indesejada ou em tese perigosa, e que para caracterizarem o crime não precisam ter resultado concretamente em lesão ou perigo. Para uma análise mais aprofundada dessas tendências, ver: MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma avaliação de novas tendências político -criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005.
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É comum pensarmos que definir algo
que poderão ser submetidos ao processo
como crime é discutir uma lei que crimina-
penal, também integram a disputa pela
lize ou descriminalize uma determinada
atribuição de sentido. Pensemos, por exem-
conduta. De fato, essa disputa fica mais vi-
plo, sobre o debate em torno do foro espe-
sível no âmbito do poder legislativo. É pos-
cial (competência para julgar crimes co-
sível identificar movimentos na esfera pú-
metidos por funcionários públicos), da
blica que discutem a possibilidade de deixar
idade mínima para a imputabilidade pe-
de tratar determinadas questões com a ca-
nal, entre vários outros.
tegoria crime e com o aparato conceitual e institucional do direito criminal – por exemplo, as discussões em torno do aborto e do uso de entorpecentes. Contudo, há demandas exatamente no sentido contrário – no sentido da criminalização, como ocorre no caso da homofobia3.
Ao observarmos as disputas que ocorrem na esfera pública ao redor de todos esses temas, percebemos que o processo legislativo constitui uma etapa de formalização – fundamental no Estado de Direito –, mas que não esgota, e sequer resume este processo de atribuição de senti-
No entanto, a criminalização ou não
do. Ademais, mesmo após a conclusão do
de uma determinada conduta constitui tão
processo legislativo, com a entrada em vi-
somente um dos componentes da engre-
gor de uma determinada norma, é possível
nagem de categorias jurídicas que parti-
dizer que as disputas pela atribuição de
cipam do que Álvaro Pires denominou
sentido permanecem durante a atuação do
processo de transformação de um fato
sistema de justiça – ou de “aplicação” da
qualquer em crime4. Além das normas de
lei penal.
comportamento (que criminalizam ou não condutas), as normas de sanção e de processo, bem como uma série de outras normas que dizem respeito à seleção dos casos 3.
4.
Referimo -nos ao Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 122, de 2006, que criminaliza a homofobia. Foi proposto e aprovado pela Câmara em 2006 e ainda aguarda votação no Senado. Sobre a utilização do direito penal na luta por reconhecimento, cite -se um texto de intervenção na esfera pública, ainda atual: MACHADO, Marta; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Qual a língua da liberdade? Folha de S.Paulo, Tendências e Debates, 25 de agosto de 2007. Para uma descrição do processo de mise en forme penal, ver PIRES, Álvaro P. Consideraciones preliminares para una teoría del crimen como objeto paradojal. Revista Ultima Ratio, ano 1, n. 0, p. 213 -255, 2006.
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Assim, a definição de crime é disputada também ao longo do processo penal, um procedimento regulado em lei que se inicia assim que a notícia de ocorrência de um fato – que a princípio pode se encaixar em um tipo penal – é recebida por um dos atores do sistema de justiça criminal. Da lavratura de um boletim de ocorrência até a sentença condenatória irrecorrível5, uma série 5.
É importante registrar que nem todos os casos que percorrem o sistema de justiça criminal têm início com a atuação da autoridade policial. Especialmente nos setores em que
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de instituições e atores são postos em mo-
sitos para que uma determinada conduta
vimento e desenvolvem estratégias de atua-
seja considerada crime. Isso envolve re-
ção sob as regras do processo penal. É no
construir esses critérios, que estão espa-
âmbito desse debate regulamentado que
lhados pelo sistema de justiça – além do
são discutidas e concretizadas as regras de
que está descrito na lei, há também a ela-
definição de determinado fato como crime,
boração jurisprudencial e doutrinária (teo-
bem como as regras de imputação de res-
ria do delito8) –, bem como articular tudo
ponsabilidade a uma pessoa . E, por fim,
isso aos elementos do caso concreto.
6
dá-se a determinação das consequências jurídicas que podem se seguir a esta operação de atribuição de responsabilidade, que denominamos imputação7. O juiz – sempre ouvindo as partes e os experts, bem como considerando as provas – deverá interpretar a lei e os requi-
Todos os casos envolvem um espaço para interpretação e para argumentação em muitos sentidos: se o fato ocorreu ou não; se o fato tem todos os elementos e pode se encaixar na descrição do tipo penal; se o eventual resultado lesivo decorreu da conduta ou se relaciona causalmente com outro evento; quem agiu e em que
6.
7.
há duplicidade de regulamentação jurídica (penal e administrativa), a primeira fase de coletas de dados e informações referentes à violação da norma (penal, inclusive) pode ocorrer em outros órgãos governamentais e ser encaminhada diretamente ao Ministério Público. É necessário registrar também que nem toda sentença penal condenatória transitada em julgado é definitiva, pois o Código de Processo Penal prevê a possibilidade de revisão dessas decisões em casos muito específicos (arts. 621 a 631). No direito penal brasileiro, trata-se, na maior parte dos casos, de uma pessoa física. As exceções ficam por conta da responsabilização penal da pessoa jurídica prevista para os crimes ambientais. Esta questão foi analisada em profundidade por uma das autoras deste texto: MACHADO, Marta (Coord.). Responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça do Brasil, 2009. v. 18. Na realidade, o processo de definição e atribuição das consequências jurídicas da imputação de responsabilidade alcança uma decisão na sentença. É possível dizer que a sentença condenatória constitui uma decisão inicial sobre a sanção. Inicial, porque nosso sistema, norteado pela “progressão de regime”, exige sucessivas revisões da decisão sobre a sanção fixada na sentença condenatória. Sobre este processo de gestão da sanção no sistema de justiça, ver: FERREIRA, Carolina; MACHADO, Maira. Exclusão social como prestação do sistema de justiça: um retrato da produção legislativa atenta ao problema carcerário no Brasil. In: RODRIGUEZ, J. R. (Org.). Pensar o Brasil: problemas nacionais à luz do direito. São Paulo: Saraiva, 2012.
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medida; se os pretensos autores eram capazes segundo o direito; se agiram ou não em situação permitida pelo direito (por exemplo, em legítima defesa ou estado de necessidade); se nas condições em que agiram poderiam ter feito diferente; e assim por diante. A discussão de todas essas questões está condicionada ao que se conseguiu provar validamente durante o processo, ou seja, a um patamar razoável de certeza de acordo com as normas proces-
8.
No campo da teoria penal, a noção de crime é dada pelo que se costumou chamar de teoria do delito. A dogmática do campo penal se constitui nos países de tradição romano-germânica (e especialmente por influência da teoria alemã) sob a forma de um conjunto de conceitos que, articulados, permitem que se descrevam as características da “conduta criminosa”. Diversos autores e escolas se sucederam na definição das categorias do crime, e esse é, como dissemos, um debate em aberto, sujeito a redefinições pela teoria e pelos próprios atores do sistema.
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suais estabelecidas – e, é claro, até os pa-
puta no decorrer do processo. Nesse caso,
râmetros de razoabilidade podem ser obje-
teria praticado um ato típico, antijurídico,
to de discussão9.
porém não seria possível afirmar sua cul-
Para que fique mais concreta a com-
pabilidade. Enfim, há uma série de ques-
plexidade do processo de construção do
tões a serem levantadas e cada uma dessas
crime, pensemos na seguinte situação: é
circunstâncias está sujeita a várias inter-
possível afirmar, no dia seguinte ao fato,
pretações, patamares probatórios e for-
diante da primeira manchete de jornal,
mas de articulação no âmbito da argumen-
que o sujeito que acertou um tiro na cabe-
tação jurídica. Por exemplo, há diferentes
ça de outro cometeu o crime de homicídio?
formas de se definir e de se provar uma
Não! Esse fato pode, com certeza, vir a ser
situação de legítima defesa. Há diferentes
declarado crime quando se obtiver uma
formas de se definir e de se provar o que é
sentença penal condenatória transitada
capacidade jurídica; nesse ponto, o pro-
em julgado, isto é, em relação à qual não
cesso penal traz para dentro do debate ju-
caiba mais recurso10. Antes disso, não se
rídico também o saber médico, o que am-
pode falar nem em crime, nem em autor de
plia exponencialmente o conjunto de
crime. Se o autor do disparo for menor de
soluções possíveis. O que queremos refor-
18 anos, por exemplo, não terá cometido
çar aqui é a gama de questões que estão
um crime, mas um ato infracional, sujeito
em jogo quando observamos o processo
a um programa normativo distinto do Có-
em que se decide se um crime aconteceu
digo Penal (o Estatuto da Criança e do
ou não. Há um espaço considerável de dis-
Adolescente). Se o sujeito tiver apenas rea-
puta e de possibilidades de se alcançar so-
gido a uma agressão prévia e não tinha ou-
luções distintas em um exemplo que, a
tro jeito de se defender naquele momento,
princípio, poderíamos chamar de “fácil”.
terá agido em legítima defesa, uma conduta
A discussão fica ainda mais interes-
lícita, aceita pelo direto, que não chegará a
sante quando nos aproximamos de casos
ser declarada crime. O autor do disparo
nos quais o rendimento das definições e a
pode, ainda, ser reconhecido como inim-
relativa segurança que elas proporcionam
putável em função de motivos e diagnósti-
tornam-se muito baixos. Por exemplo, o lu-
cos que também podem ser objeto de dis-
tador de MMA (Mixed Marcial Arts) que golpeia seu adversário poderia ser acusado
9.
10.
Inclusive, como vimos, as próprias normas de processo têm certa mobilidade e são elas próprias passíveis de serem reinterpretadas, por exemplo, quando o Tribunal decide redefinir os critérios de aceitação de uma prova. Decisão que tampouco é definitiva em função da possibilidade de revisão criminal, como explicamos anteriormente.
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de lesão corporal? E o médico que corta a barriga de sua paciente para executar uma cirurgia? Argumentações jurídicas que considerassem essas condutas como passí-
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veis de serem consideradas lesões corpo-
Ou seja, embora esse processo seja
rais poderiam ser percebidas como em total
formalizado, ele não cristaliza, a princípio,
desconexão com as práticas sociais e cultu-
a resposta12. A possibilidade de reinterpre-
rais de uma determinada sociedade. E, em
tar as normas aplicáveis e mudar a solução
função disso, poderíamos dizer que tanto o
está sempre presente13. É por isso que
lutador de MMA como o médico podem
apontar um fato como crime ou alguém
exercer suas profissões com alguma segu-
como criminoso antes mesmo que este
rança de que não serão acusados de violar
processo esteja terminado é um equívoco
uma norma penal.
do ponto de vista do sistema jurídico. Além
O que fica claro nesses casos é que os limites dos conceitos jurídicos não são objetivos. Não são certos, são disputáveis, ainda que dentro de certos limites. A rede de conceitos dogmáticos funciona muito mais como o juiz que fixa as regras do jogo (argumentativo) do que como o oráculo que nos dá respostas (ainda que em alguns casos se queira fazê-la parecer com o
disso, mesmo diante desse fato (jurídico) que faz nascer a declaração (jurídica) de que um crime aconteceu, não levar em consideração a complexidade e a contingência dessa declaração seria um sinal de inocência ou de má-fé. Neste ponto, é preciso ficar atento a posições que naturalizam a categoria crime e criminoso, levando em conta o processo de definição – por
oráculo). Exemplos limítrofes como esses apenas tornam mais visível o fato de que a classificação do problema em termos de teoria do delito envolve uma disputa que se refere a um determinado acordo social que foi (provisoriamente) alcançado sobre o que é lícito ou ilícito e sobre o que é crime ou não. O que estamos aqui ressaltando é que essa disputa está presente não só no momento em que se discute no âmbito do processo legislativo criminalizar ou não criminalizar uma conduta, mas também no curso do processo penal11. 11.
Essa discussão aparece no campo da teoria do direito penal por intermédio de Claus Roxin, que defende a necessidade de abrir o sistema da teoria do delito à política criminal e
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12.
13.
integrá-la ao processo jurisdicional. Seu texto inaugural e de ruptura dentro do campo da dogmática penal alemã é de 1970 e foi traduzido para o português: ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pelo menos a princípio, pois é evidente que determinado sistema pode chegar a ser mais estático, mas isso é apenas uma de suas condições contingentes. Exemplo disso é a recente e controvertida decisão do Tribunal de Colônia, Alemanha, que ao julgar um processo contra um médico muçulmano entendeu que a circuncisão de menores por razões religiosas – prática tradicional tanto entre muçulmanos como entre judeus – deve ser considerada crime de lesão corporal, ainda que praticada propriamente por médico e com o consentimento dos pais. Cf. Beschneidung von Jungen aus religiösen Gründen ist strafbar, publicado no Süddeutsche Zeitung, disponível em: < http://www.sueddeutsche.de /panorama /urteil -deslandgerichts -koeln -beschneidung -von -jungen -ausreligioesen-gruenden-ist-strafbar-1.1393536>. Acesso em: 19 ago. 2012; e Circumcision ruling condemned by Germany’s Muslim and Jewish leaders, no The Guardian, disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2012.
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exemplo, discursos que se referem a “per-
mente denominada produção da “verdade”
sonalidades criminosas” e estudos que
(processual) –, que o processo penal ten-
buscam as raízes do crime no DNA.
de a alcançar uma definição sobre a ocor-
Em suma, a exposição realizada até
rência de um crime e sobre seu autor.
agora buscou demonstrar que o crime não
A construção da categoria crime
é um fato da natureza, sobre o qual recai a
constitui, portanto, o próprio mecanismo
norma penal que estava ali à espreita ape-
do direito penal em ação. Quando esse
nas esperando que o fato acontecesse. É
processo não é tematizado, ou seja, quan-
claro que a ocorrência do fato é o que dá
do esse processo de definição não é obser-
início a toda essa engrenagem, mas, quan-
vado como um processo que envolve dispu-
do falamos em crime, tratamos de uma ca-
tas, atores e instituições que se articulam
tegoria construída por meio de um proces-
de uma determinada forma e estão inscri-
so regulado no âmbito de uma série de
tas em circunstâncias bastante concretas,
instituições, em que atores predefinidos
então tendemos a achar que crime é um
manejam um conjunto de normas, princí-
fato do mundo, que existe por si só na na-
pios, categorias teóricas, doutrina e, por
tureza, como se fosse autoevidente e não
meio de raciocínios que seguem uma de-
sujeito a disputas. Concebê-lo dessa forma
terminada lógica – que é a lógica da argu-
é, de nosso ponto de vista, impor um obs-
mentação jurídica –, articulam tudo isso
táculo à visualização – e, consequente-
com a discussão do caso e das suas cir-
mente, à problematização – de todas as
cunstâncias concretas. Estas, por sua vez,
questões que buscamos sistematizar no
entraram no processo por meio de um sis-
decorrer deste item.
tema específico de produção de provas14. É,
Mas há mecanismos para evitar as
enfim, por meio dessa dinâmica – comu-
implicações epistemológicas, políticas e sociais da permanência de categorias na-
14.
Em A verdade e as formas jurídicas, Foucault descreve algumas formas de descoberta judiciária da “verdade” que se desenvolveram historicamente até que se consolidasse o modelo do inquérito, paradigma que permanece até hoje. Este texto nos chama atenção para o fato de que nosso conhecimento (judiciário) sobre os fatos dependerão sempre do tipo de sistema de produção do conhecimento (judiciário) que se adote. Dessa forma, qualquer abordagem que naturalize o conhecimento produzido negligenciará aspectos sempre contingentes da produção do conhecimento (e evidentemente também do conhecimento judiciário sobre um fato) e suas relações com o poder. Ver: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 53 -67.
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turalizadas na esfera pública, no debate acadêmico, bem como nos processos de produção legislativa, imputação de responsabilidade e sanção. Um deles, que escolhemos explicitar aqui, consiste em demonstrar que o termo “crime” descreve muito mal as situações fáticas em relação às quais podem (ou não) ser acionadas as normas e instituições que compõem o sis-
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tema de justiça criminal. Este problema
cutidos anteriormente. É interessante no-
foi percebido no início dos anos 1970 pelas
tar que as duas primeiras dizem respeito
ciências sociais, que propuseram novas
ao processo de definição de crime e de
expressões para designar nosso “ponto de
imputação de responsabilidade. Já a ter-
partida”. Um dos objetivos centrais dos au-
ceira questão remete -nos às possíveis
tores que integraram esse debate era evi-
consequências jurídicas que essa declara-
tar “a redução de relações sociais comple-
ção de responsabilidade acarreta. Nesta
xas à sua possível designação jurídica” . É
etapa, abre -se um outro campo para dis-
no âmbito dos debates entre sociólogos,
putas – teóricas e práticas, na esfera pú-
psicólogos, criminólogos e juristas que a
blica, no legislativo e no judiciário. Trata-
expressão “situação-problema” passou a
-se do debate sobre a pena.
15
ser frequentemente utilizada para indicar um conjunto específico e relações percebidas como problemáticas ou indesejáveis por alguém. Como nos sugere Hulsman, o uso dessa expressão é uma estratégia para impor três questões ao debate: Quem considera essa situação problemática? O que aconteceu? O que os envolvidos querem fazer em face disso?16.
A pena aflitiva – e, mais comumente, a prisão – é a forma como a maior parte dos sistemas penais ocidentais definiram como seria a consequência jurídica da declaração de que um crime aconteceu e determinada pessoa foi seu autor. Há todo um campo de conhecimento que se dedica a justificar (e defender) essa escolha: as teorias da pena. Os dois próximos itens serão dedicados a
Essas três questões acessam de ma-
elas. Nosso fio condutor, como indicado na
neira muito diferente as situações fáticas
introdução, é a pergunta-título deste texto.
– pensemos novamente nos exemplos dis-
Iniciamos com a exposição sobre o significado e as implicações de atribuirmos à pe-
15.
16.
ROBERT, Philippe et al. Organiser un dialogue autour de et avec Lode Van Outrive. In: CARTUYVELS, Y.; DIGNEFFE, F.; PIRES, A.; ROBERT, P. (Org.). Politique, police et justice au bord du futur. Paris: L’Harmattan, 1998, p. 15. HULSMAN, Louk. Struggles about terminology: “problematic-situation” vs “crime”. In: CARTUYVELS, Y.; DIGNEFFE, F.; PIRES, A.; ROBERT, P. (Org.). Politique, police et justice au bord du futur. Paris: L’Harmattan, 1998, p. 54-55. Sobre os benefícios da utilização dessa expressão, Claude Faugeron chama atenção para o fato de que esta “noção nos reenvia em primeiro lugar à vítima” – ou aos laços sociais concretos – “e não a um conceito abstrato de sociedade” (FAUGERON, Claude. Les situations-problèmes: théorie sociologique ou pratique criminologique? In: CARTUYVELS, Y.; DIGNEFFE, F.; PIRES, A.; ROBERT, P. (Org.). Politique, police et justice au bord du futur. Paris: L’Harmattan, 1998, p. 84-85).
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na a função de conter a violência nas sociedades contemporâneas (item 18.2). Este percurso nos permitirá afirmar que a imposição de uma pena é somente um dos resultados possíveis da operação do direito penal, e que essa pena pode ser o encarceramento do indivíduo declarado autor, mas não necessariamente. Embora a operação do sistema de justiça criminal esteja atualmente tão apegada à noção de pri-
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são, ela não é a única forma de regular – e
muitos elementos, o que torna o processo
tampouco a melhor – as situações conside-
decisório bastante complexo.
radas problemáticas em uma determinada
Internamente, o direito penal cir-
sociedade. E, para concluir este texto, tra-
cunscreveu e organizou esse debate no
taremos dos efeitos contraproducentes –
que chamamos de teoria do delito. Aqui,
para dizer assim eufemisticamente – da
são dados os elementos e as definições do
centralidade da pena de prisão na atualidade (item 18.3).
que seja crime, o que simultaneamente subsidia e justifica o processo de imputação. A ideia de uma dogmática penal cir-
18.2. A pena previne a violência? Desde sua formação no final do século XVIII, o direito criminal construiu uma forma estável e monótona de responder a problemas sociais, por meio da imposição de penas aflitivas (que causam sofrimento). Isso pode ser considerado hoje uma
cunscrita a um sistema em que se articulam os elementos de definição do delito surgiu com Liszt no final do século XVIII e permanece até hoje na maior parte dos países de tradição romano-germânica como o princípio que organiza o debate teórico no campo da dogmática penal17.
dessas ideias que se sedimentaram de tal
É claro que, a partir desse momento,
maneira ao longo dos séculos até produzir
este campo foi movido por um intenso de-
um efeito de naturalização: se chegarmos
bate em que distintas teorias e escolas de
à conclusão de que um crime aconteceu,
pensamento se sucederam ao longo dos
segue-se naturalmente daí que uma pena
séculos. É interessante notar que, por
que consiste em inflição de sofrimento
mais acirrado que tenha sido esse debate
será aplicada ao autor dessa conduta.
– que envolveu intensos confrontos sobre
Falamos até agora do processo de definição de uma conduta como crime. Isso se dá, como vimos, pela ação de muitas e sucessivas instituições e pela interação de diversos atores do sistema políti-
os pressupostos filosóficos adotados para construir o sistema de categorias –, duas características permaneceram estáveis. Primeiro, a sua organização na forma de um sistema de categorias fixas que com-
co, do sistema de justiça, eventualmente do sistema médico, dos cidadãos etc. Vimos também que o debate sobre a ocorrência ou não de um crime (e sobre sua autoria) sempre exige a articulação entre
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17.
A reconstrução do campo teórico da teoria do delito nesses termos foi objeto da tese de doutorado MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em julho de 2007.
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põem a chamada teoria do delito18, como
feitas todas as ressalvas que acabamos de
mencionamos acima. E, em segundo lugar,
expor sobre a noção de crime, teremos que
a residual tematização da pena aflitiva.
olhar para o que dizem as teorias da pena.
Notamos que as diferentes teorias e esco-
Em outras palavras, dado que estamos tra-
las têm em comum o fato de aceitarem
tando de um universo limitado de fatos
que, uma vez chegada à conclusão de que
sociais – isto é, aqueles cuja definição legal
um dado comportamento apresenta todas
envolve algum tipo de lesão a uma vítima,
as características – de acordo com as cate-
que foram selecionados pelas instituições
gorias da teoria adotada – do que se pode
penais e que no curso do processo de defi-
chamar de crime, seguir-se-á naturalmen-
nição alcançaram o estágio final que seria
te uma pena no sentido da inflição de um
a sentença penal condenatória transitada
sofrimento. Na realidade, a pena será te-
em julgado. Para esses casos, o que dizem
matizada por outro campo dos estudos sobre o sistema penal: as teorias da pena19. Então, se quisermos responder à pergunta que está no título deste capítulo a partir do campo das “ciências penais” 20,
as justificativas da pena sobre a sua capacidade de contenção da violência? Essa pergunta nos remete ao conjunto de argumentos que nos últimos dois séculos foram oferecidos pelas teorias (modernas) da pena – retribuição, dissuasão,
18.
19.
20.
Os elementos que compõem a definição de crime, seguindo o sistema da teoria do delito, são os seguintes: ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Vemos que dogmática penal (ou as teorias do delito) e teorias da pena tiveram por muito tempo desenvolvimentos que podemos chamar de relativamente independentes. Discutir a função da pena não esteve entre as preocupações centrais dos autores que escreveram sobre teorias dogmáticas do delito. Pode-se dizer que esse padrão foi quebrado apenas recentemente por Roxin (em 1970) e por autores chamados de funcionalistas, como Günther Jakobs, que introduzem a pena no sistema de categorias, para guiar sua interpretação. As consequências dessa separação e os limites da discussão nos termos dos funcionalistas foi desenvolvida em MACHADO, Marta. Punishment, Guilt and Communication: the possibility of overcoming the idea of infliction of suffering in the theoretical debate. In: DUBÉ, R.; GARCIA, Margarida; MACHADO, Maira. La rationalité pénale moderne: réflexions conceptuelles et explorations empiriques. Ottawa: Les Presses de l’Université d’Ottawa, 2012. Referimo -nos aqui à expressão de Liszt. Em 1882, este autor propôs uma organização do campo teórico da produção do conhecimento sobre direito penal e alocou as dimensões política e empírica do sistema penal no que chamou de “ciência global do direito penal” (gesamte Strafrechtswis-
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reabilitação e prevenção geral positiva (ou denunciação). Essas quatro teorias, com algumas variações internas, contribuíram e ainda contribuem para justificar a atuação do direito penal como mecanismo precípuo de controle e contenção da violência
senschaft), composta por três eixos: (i) as ciências dedicadas ao estudo causal-empírico do delito e da pena (criminologia e penologia); (ii) a política criminal no exercício da tarefa política que se concretiza nas propostas de revisão e reforma da legislação penal; (iii) a dogmática como “ciência sistemática” e “ciência prática”. É interessante notar como a organização do campo é ainda hoje persistente. Ver LISZT, F. von. Der Zweckgedanke im Strafrecht. In: Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge. Utilizaremos a tradução para o espanhol de Carlos Pérez del Valle: LISZT, Franz von. La idea del fin en el derecho penal. Programa de la Universidad de Marburgo, 1882. Granada: Editorial Comares, 1995.
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nas sociedades contemporâneas21. Para os
do que a parcela dos problemas violentos.
propósitos deste texto, a teoria da retri-
Ao lado desse primeiro movimento de es-
buição não nos interessa diretamente,
garçamento da “ideia de violência” para
uma vez que ela não coloca o problema da
abarcar “todos os crimes”, a grande difusão
obtenção de efeitos futuros (como conter a
do termo “prevenção” provocou uma segun-
violência e prevenir comportamentos). A
da ampliação no rol de finalidades atri-
teoria da retribuição se satisfaz, por assim
buídas à imposição de pena. Não se trata
dizer, “em pagar o mal com o mal”, isto é,
apenas de conter ou evitar determinadas
em causar sofrimento ao indivíduo que
condutas, mas, como nos mostra Tonry, a
violou a lei penal.
noção de prevenção “facilmente engloba fi-
É a partir de Beccaria que se inicia
nalidades tradicionais como a dissuasão, a
um longo debate sobre os efeitos futuros
incapacitação e a reabilitação”22. O termo
– para o condenado e a sociedade como
“prevenção” é também utilizado na expres-
um todo – atribuídos à imposição da pena.
são “prevenção geral positiva” que, diferen-
É interessante notar que, no âmbito das
temente das anteriores, atribui à pena o pa-
teorias da pena, a ideia de “contenção da
pel de reforçar as normas jurídicas (ou,
violência” foi substancialmente ampliada
conforme a formulação, os valores protegi-
de modo a alcançar a expectativa de não
dos pelas normas, as instituições do Estado
ocorrência de todos os problemas previs-
de Direito, a confiança na justiça etc.). Des-
tos na legislação penal – isto é, prevenir ou
sa forma, é muito comum que a noção de
conter inclusive aqueles que não envolvem
prevenção seja utilizada para veicular di-
a violência física ou psíquica entre indiví-
ferentes teorias – e, portanto, finalidades
duos. Cabe ressaltar que, no direito brasilei-
atribuídas à pena: dissuadir a sociedade
ro (e em vários outros sistemas jurídicos), o
(prevenção geral negativa), incapacitar o ci-
número dos problemas que não envolvem
dadão apenado mantendo-o na instituição
violência física ou psíquica é muito maior
prisional ou reabilitá-lo no interior da instituição (prevenção especial negativa) ou
21.
Para uma análise crítica das teorias da pena, vistas como discursos racionais de sua justificação, ver GÜNTHER, Klaus. Kritik der Strafe I. WestEnd (2004). p. 117-131 [Tradução para o português: GÜNTHER, Klaus. Crítica da pena I. In: PÜSCHEL, Flavia; MACHADO, Marta R. A. Teoria da responsabilidade no estado democrático de direito. Textos de Klaus Günther. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 53-75. O mais completo estudo sobre as teorias da pena encontra-se em: PIRES, Álvaro et al. Histoire des savoirs sur le crime et la peine. Bruxelles: Larcier, 2008. v. I, II e III. O volume II, dedicado à racionalidade penal moderna, apresenta a contribuição do pensamento kantiano para a atualização e a compatibilização da teoria da retribuição ao pensamento do século XVIII.
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ainda punir um cidadão determinado para comunicar à sociedade que valores, instituições e normas continuam válidos (prevenção geral positiva)23.
22.
23.
TONRY, Michael. Has the prison a future? In: TONRY, Michael (Ed.). The future of imprisonment. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 10. Há diferentes vertentes dessa formulação que vê a pena como a oportunidade de produzir uma comunicação positi-
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Ainda que tais teorias da pena pare-
E “reabilitação não prisional” para aque-
çam se diferenciar bastante entre si – es-
las que, reconhecendo os custos e os efei-
pecialmente quanto aos objetivos que se
tos contraproducentes que a exclusão do
colocam –, todas elas compartilham uma
cidadão do convívio social impõem ao seu
única definição de punição: a pena deve-
retorno, ampliaram substancialmente o
rá sempre significar um mal para o impu-
rol de sanções disponíveis no direito pe-
tado. A imposição de sofrimento por in-
nal para incluir formas de suspensão con-
termédio de uma privação do patrimônio
dicional do processo e da pena, prestação
(pena de multa), da liberdade (pena de
de serviços à comunidade, advertências,
prisão) ou da vida (pena de morte) cons-
mecanismos de mediação, entre outros24.
titui, assim, o elemento central do concei-
Mas é interessante observar que a diver-
to de punição. Até mesmo no âmbito das
sificação de penas não elimina necessa-
teorias da reabilitação essa concepção de
riamente o forte apego à ideia de pena
pena como um mal pode ser encontrada.
como um mal. Não é incomum encontrar-
Utilizamos o plural para fazer referência à
mos no debate público brasileiro propos-
teoria da reabilitação porque não é possí-
tas voltadas a desenhar penas alternati-
vel identificar uma única matriz teórica
vas à prisão que maximizem o sofrimento
relevante a este conjunto de ideias. Entre
do cidadão que receberá a pena 25.
as várias organizações possíveis, parece-nos mais interessante distingui-las em função do papel que atribuem à instituição prisional para a ressocialização do indivíduo. Dessa forma, falamos em “reabili-
Ainda que formem o núcleo duro de um modo muito difundido de pensar a punição em todo o ocidente, essas teorias vêm sofrendo uma série de críticas por autores
tação prisional” para descrever as teorias que apostaram nos programas e tratamen-
24.
tos no interior das instituições prisionais. va na coletividade. Para citar dois autores importantes nesse debate, ver: HASSEMER, Winfried. Einführung in die Grundlagen des Strafrechts. 2. ed. Munique: C.H. Beck, 1990 (Tradução para o português: HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005); e JAKOBS, Günther. Strafrecht, Allgemeiner Teil: die Grundlagen und die Zurechnungslehre. 2. ed. Berlin: de Gruyter, 1991 (Tradução para o espanhol: JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general: fundamentos y teoría de la imputación. Tradução de Joaquin C. Contreras; Jose Luis S. G. De Murillo. 2. ed. cor. Madrid: Marcial Pons, 1997).
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25.
Para um panorama sobre as teorias da reabilitação, especialmente no que diz respeito às diferenças no tocante à determinação da pena, ver: MACHADO, Maira; PIRES, Álvaro; FERREIRA, Carolina; SCHAFFA, Pedro. A complexidade do problema e a simplicidade da solução : a questão das penas mínimas. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça do Brasil, 2009. v. 17. Um dos exemplos discutidos no Congresso Nacional de Alternativas Penais (CONEPA), realizado em Campo Grande em 2011, foi a especificação do tipo de serviço à comunidade que deveria ser imposto a determinados tipos de infração. Para crimes decorrentes de condução perigosa ou sob efeito de álcool, a prestação de serviço à comunidade deveria ser realizada nas ambulâncias que socorrem vítimas de acidente de trânsito, por exemplo. O fundamento desse tipo de proposta é tornar a experiência da sanção a mais negativa possível.
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de diferentes países e tradições jurídicas.
Assim, como vemos, se permanecer-
Algumas delas tocam diretamente nossa
mos no campo das teorias (modernas) da
questão-título, pois colocam em evidência
pena, teremos não só poucas ideias para
(i) que algumas teorias estão formuladas
lidar com a prevenção de comportamentos
de uma dada maneira que escapam a qual-
indesejados, como também ideias incapa-
quer teste empírico (podemos dizer isso da
zes de demonstrar que alcançam os objeti-
retribuição e da prevenção geral positiva),
vos a que se propõem. E isso porque o de-
(ii) enquanto outras, como a dissuasão,
bate sobre as consequências jurídicas da
que, sim, permitiriam algum tipo de verifi-
definição de um crime está, há séculos,
cação empírica, vêm sendo sistematica-
enclausurado no debate sobre as possíveis
mente descreditadas por pesquisas desen-
dinâmicas de prevenção – i.e., dissuasão,
volvidas no campo das ciências sociais.
reabilitação ou afirmação de valores ou
Autores que se dedicaram a organi-
normas – que podem ser extraídas ou es-
zar e rever sistematicamente os estudos
peradas da segregação de um indivíduo e
produzidos sobre a teoria da dissuasão
de sua manutenção fora do convívio social.
apontam para a inexistência de relação en-
No entanto, a exclusão social do cida-
tre a intensidade da punição e as taxas de
dão que violou a lei penal é apenas uma
crimes. No início da década de 1990, Brai-
entre várias formas de regular determina-
thwaite, por exemplo, chamou atenção
do conflito e atribuir consequências a ele.
para o fato de que “a literatura produzida
Ao colocarmos em questão a centralidade
sobre a dissuasão fracassou em produzir
da sanção prisional no sistema de justiça
as tão esperadas evidências de que mais
criminal, surge um novo espaço para deci-
polícia, mais prisões e mais punições cer-
dir as possíveis respostas estatais e, con-
tas e severas fazem uma diferença signifi-
sequentemente, um novo campo de dispu-
cativa nas taxas de crime” 26. Vários anos
ta para os atores que participam do sistema
depois, Doob e Webster produzem uma
de justiça criminal.
ampla revisão da literatura sobre o tema e concluem, de modo semelhante, que variações na severidade das sanções não guardam relação com os níveis de crime27.
26.
27.
BRAITHWAITE, John; PETIT, Philip. Not just deserts: a republican theory of criminal justice. Oxford: Oxford University Press, 1990. p. 3. Esses autores enfatizam também que a ausência de correlação entre severidade da punição e taxas de crimes não su-
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Para explorar esse campo de possibilidades, parece-nos necessário tratar separadamente a decisão sobre a imputação (condenação ou absolvição de uma
gere que “o sistema jurídico como um todo tenha um efeito dissuasório”. DOOB, Anthony; WEBSTER, Cheryl. Sentence severity and crime: accepting the null hypothesis. Crime and Justice 30: 143 -95, 2003, p. 143.
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determinada pessoa pela violação de uma
Klaus Günther aponta isso justamen-
certa norma penal) da decisão sobre a
te chamando atenção para a importância
sanção (definição do tipo e da quantidade
sociológica do conceito de responsabilida-
de pena, se for o caso).
de, que acaba passando desapercebido
Para compreender como essa segunda decisão é tomada, temos novamente que observar a existência de diferentes etapas no decorrer de um procedimento do qual participam distintas instituições e atores. Ao discutir a criação de um crime, o legislador define também a qual sanção
nesse arranjo do sistema jurídico. Aquilo que fundamenta a culpabilidade – ou seja, os elementos que permitem dizer que um crime aconteceu e que determinada pessoa é seu autor – justifica a imputação de responsabilidade (penal) que se dá na declaração da sentença condenatória. É essa comunicação da responsabilidade que or-
estará sujeito aquele que for declarado seu
ganiza a teia de elementos e interações so-
autor. No Brasil e em vários outros países,
ciais e lhe dá um sentido29.
acopla-se à descrição da conduta proibida uma pena de prisão – expressa com um mínimo e um máximo de tempo de prisão28. Este esquema sancionatório altamen-
Abre-se a partir daí um novo campo de decisão sobre a resposta estatal que se segue a essa declaração. Não há nada que nos obrigue a ligar essa declaração a uma
te naturalizado impõe ao menos dois obs-
sanção e muito menos a uma pena aflitiva.
táculos a ampliar e sofisticar o campo de
Se isso vem acontecendo há muito tempo,
possibilidades em matéria de penas.
trata-se de uma decisão, que pode ser co-
O primeiro deles diz respeito ao vín-
locada em questão a qualquer momento.
culo entre a decisão de condenação e a im-
Ou seja, é possível discutir e decidir –
posição de uma pena.
dando-se novos fundamentos, que não aqueles que justificaram a responsabiliza-
28.
A exceção mais radical e recente encontra-se na nova lei de drogas, que previu pena de advertência para o usuário de substância entorpecente (art. 28 da Lei n. 11.340/2006). Estamos tão acostumados com o fato de que o legislador define para todo crime uma pena de prisão que a discussão que se seguiu à promulgação dessa lei foi a de que haveria ocorrido a descriminalização do uso de entorpecentes – o que não é correto afirmar, já que essa conduta continua sendo crime, continua sujeita ao processo penal, e o que mudou foi somente a sanção prevista em lei. Ver, nesse sentido, PIRES, Álvaro; CAUCHIE, Jean François. Um caso de inovação “acidental” em matéria de penas: a lei brasileira de drogas. Revista Direito GV 13, v. 7, n. 1, p. 299 -329, jan./jun. 2011.
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ção –, conforme o caso que se tem em mãos, se após a comunicação da imputação haverá mais algum tipo de resposta do
29.
GÜNTHER, Klaus. Responsabilidade na sociedade civil. In: Novos Estudos 63, 2002, p. 105 -118. Originalmente publicado em MÜLLER-DOOHM, Stefan (Org.). Das Interesse der Vernunft, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 465485. Publicado em português também em: PÜSCHEL, Flavia; MACHADO, Marta R. A. Teoria da responsabilidade no Estado Democrático de Direito. Textos de Klaus Günther. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1-26.
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sistema jurídico e qual será ela – indeniza-
nutenção da sanção prisional na esmaga-
ção, advertência, reparação à vítima, acor-
dora maioria dos crimes em vigor na nossa
dos restaurativos, multa, serviço comuni-
legislação reforça a ideia de que somente a
tário, prisão etc. .
pena de prisão é capaz de gerir e prevenir
30
O segundo obstáculo diz respeito à
problemas sociais considerados graves.
utilização quase exclusiva da sanção pri-
Em um cenário como esse, não surpreen-
sional na redação dos tipos penais. O legis-
de que os debates públicos sobre todo tipo
lador poderia indicar, conforme a situação
de problema social acabem sempre em
problemática que procura regular, o con-
propostas de criação de um crime ao qual,
junto de sanções possíveis às quais o infra-
invariavelmente, está acoplada a pena mí-
tor daquela norma poderia estar sujeito. A
nima e máxima de prisão32.
retumbante monotonia na definição das
Uma característica importante do pro-
sanções pelo legislador soa certamente es-
cesso de decisão sobre a sanção é a forma
tranha para qualquer formulador de políti-
como está distribuído entre as instituições
cas públicas: não importa qual o problema
do Estado de Direito. No caso do Brasil, o
que se tenha diante dos olhos – o corte não
legislador estabelece os limites mínimos e
autorizado de uma árvore, a sonegação de impostos, um xingamento racista ou um homicídio cometido com requintes de crueldade –, a resposta estatal definida no tipo penal será sempre a mesma: prisão. Varia apenas a quantidade de tempo mínimo e máximo que se entende necessária para “prevenir” a repetição dessas condutas indesejadas. Por mais que outras normas estabeleçam possibilidades de paralisação do processo, de substituição de uma pena de prisão por uma pena de outro tipo em limitadíssimas circunstâncias31, a ma-
30.
31.
É claro que como e por quem essa decisão seria tomada em um modelo que reconhecesse esse espaço é algo a ser construído e regulado. Entre os institutos “despenalizadores” previstos em nossa legislação, estão: o reconhecimento da composição civil dos danos entre autor e vítima e da transação penal entre
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32.
autor e promotor de justiça como causas de extinção da punibilidade, aplicável a contravenções penais e crimes de menor potencial ofensivo, isto é, aqueles a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos (arts. 72 a 76 da Lei n. 9.099/95); a possibilidade de suspensão condicional do processo, com potencial extinção da ação penal caso haja o cumprimento de determinadas condições, aplicável aos crimes com pena mínima não superior a um ano (art. 89 da Lei n. 9.099/95); a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, aplicável a condenações não superiores a 4 anos, em crime não cometido com violência ou grave ameaça à pessoa e a réu não reincidente em crime doloso (art. 44 do Código Penal); e, por fim, a suspensão condicional da execução da pena privativa de liberdade (sursis), aplicável em casos de condenações não superiores a 2 (dois) anos, desde que o condenado não seja reincidente em crime doloso (art. 77 do Código Penal). Um terceiro obstáculo que não poderá ser discutido neste texto diz respeito às penas mínimas. Estas penas, definidas pelo legislador para um conjunto abstrato e desconhecido de situações, impedem que o juiz, diante do caso concreto, possa decidir a pena mais justa, mais adequada, àquele cidadão. Ver, nesse sentido: MACHADO, Maira; PIRES, Álvaro. Intervenção política na sentença de direito. In: MACHADO, Marta; PÜSCHEL, Flavia (Org.). Responsabilidade e pena no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva, 2013 (no prelo).
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máximos aos quais deve se ater a sentença
vimento de judicialização da gestão da pena
do juiz, os critérios que deve levar em conta
que ocorreu no Brasil, sobretudo a partir da
na definição da sanção e também as circuns-
década de 1980. Da mesma maneira, a redu-
tâncias em que pode determinar que a pena
ção da margem de decisão do juiz em face
de prisão seja substituída por uma pena al-
dos períodos mínimos obrigatórios de per-
ternativa33. Além disso, depois de fixada ini-
manência em regime fechado tem limitado o
cialmente a pena, entra em jogo um outro
espaço do juiz para individualizar a pena36.
juiz que acompanha o caso durante o cum-
Em suma, importa-nos chamar aten-
primento da pena e que também pode tomar
ção aqui para a necessidade de refletirmos
uma série de decisões que envolvem a sua
e problematizarmos sobre a forma como
gestão34 – por exemplo, progressão de regi-
em cada sociedade se decide responder às
me, comutação de tempo de prisão por tra-
situações problemáticas sobre as quais se
balho, indulto, liberdade condicional etc. .
decidiu definir como crime.
35
Esse arranjo constitui uma das possi-
Embora a esmagadora maioria dos
bilidades de construção do processo decisó-
sistemas penais esteja ainda girando em
rio sobre a sanção. Ele nem sempre foi assim
torno da prisão e da inflição de sofrimento
e não necessariamente chegou a sua melhor
– e não vamos por ora nos perguntar por
forma. A divisão de tarefas entre o juiz e o
que –, essa é apenas uma, dentre muitas,
administrador público, por exemplo, vem
das possíveis estratégias de lidar com o
sendo objeto de intenso debate desde o mo-
crime. Essa discussão só vai começar quando assumirmos a contingência dessa
33.
34.
35.
Enquanto os mínimos e máximos estão previstos nos tipos penais, logo abaixo das normas de comportamento, as demais regras estão previstas na parte geral do código penal, respectivamente arts. 59 e 44. A expressão “gestão da sanção” busca captar a participação de diferentes atores (defensores, promotores, diretores de instituições prisionais, grupos técnicos etc.) nas sucessivas etapas do processo decisório que se desenvolve a partir do momento em que uma pena é definida em sentença judicial. Para um panorama sobre a complexidade desse processo decisório a partir das proposições legislativas apresentadas entre 1984 e 2011, ver: FERREIRA, Carolina; MACHADO, Maira. Exclusão social como prestação do sistema de justiça: um retrato da produção legislativa atenta ao problema carcerário no Brasil. In: RODRIGUEZ, J. R. (Org.). Pensar o Brasil: problemas nacionais à luz do direito. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 77-105. É importante lembrar que a menção às figuras do legislador e do juiz acumula os vários atores que participam da dinâmica do processo legislativo e do processo jurisdicional, tal como discutimos no item anterior.
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decisão – isto é, um crime ao qual não está associada uma pena de prisão não constitui uma anomalia, tampouco pode ser entendido como impunidade. A partir daí, abre-se um leque de soluções – que podem ser mais criativas e menos deletérias que a pena de prisão – para se pensar qual a melhor política pública para lidar com determinado problema social. 36.
Sobre estes dois últimos pontos, ver: FERREIRA, Carolina. Legislar sobre a exclusão social: um estudo sobre a atividade legislativa sobre cumprimento da pena privativa de liberdade de 1984 a 2011. Dissertação de mestrado em Direito e Desenvolvimento (Direito GV, 2011).
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Trata-se de refletir a sério sobre quais
referir-se à inércia total do Estado ou ao
sanções estão à disposição para serem apli-
mau funcionamento de suas instituições,
cadas, quais respostas jurídicas são as
mas não é assim que o vemos em ação em
mais adequadas para lidar com o problema
muitos casos. Muito comumente, fala-se
social e como esse processo decisório está
hoje em dia de impunidade na esfera públi-
estruturado. Neste último ponto, referimo-
ca para se referir à ausência da pena de
-nos ao modo como as instituições e atores
prisão ou a punições tidas como brandas
interagem, aos pressupostos aos quais es-
demais, ainda que não necessariamente se
tão vinculados, ao que podem utilizar para
esteja diante de ausência de responsabili-
embasar suas decisões, aos atores que po-
zação ou ausência de resposta estatal. O
dem ser ouvidos e opinar no curso desse
termo “impunidade” é também mobilizado
procedimento, a quais interesses estão em
quando se aplica uma pena alternativa,
causa, entre outros. Enquanto essa decisão
quando o caso se resolve em indenização,
não for objeto de pesquisa e problematiza-
e não em privação de liberdade, ou quando
ção, no campo jurídico e na esfera pública,
o condenado sai da prisão porque faz jus à
não seremos capazes de enfrentar os obs-
liberdade condicional37.
táculos à construção de políticas públicas mais eficientes para tratar dos nossos conflitos sociais.
O uso do termo “impunidade”, nessa linha, é perigoso, porque nos leva a dois tipos de redução: fecha a atuação do siste-
Uma das maiores dificuldades de
ma de justiça na responsabilização indivi-
avançarmos nesse debate hoje em dia é a
dual com atribuição de pena e faz coincidir
força que o discurso da impunidade tem
a ideia de pena com privação de liberdade
na esfera pública. O termo “impunidade”
por longos períodos. Esses diagnósticos
se transformou em um conceito que colap-
partem de uma percepção de que algo está
sa uma série de coisas distintas em uma
faltando para que possamos melhor lidar
única demanda, a de mais prisão. Pode-
com um determinado problema social. E
mos a princípio pensar que falar em impu-
esse algo é sempre a prisão. Ainda que
nidade seria falar da inércia estatal diante
muitas vezes se esteja diante de problemas
de problemas nos quais instituições do Es-
sérios na atuação do sistema de justiça, o
tado deveriam de alguma maneira intervir e não o fazem, deixando assim desprotegida uma série de interesses que, em nosso acordo social, entendemos que deveriam ser tutelados pelo Estado. Mas não. O diagnóstico da impunidade pode, claro,
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37.
Para uma discussão sobre os diferentes usos do termo “impunidade” a partir de material colhido em estudo de caso sobre os processos legislativos da nova lei de drogas e da Lei Maria da Penha, ver: MACHADO, Maira et al. Atividade legislativa e obstáculos à inovação em matéria penal no Brasil. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça do Brasil, 2010. v. 32.
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discurso da impunidade nunca coloca em
Depois de mais dois séculos de repeti-
causa a resposta prisional e fecha o espaço
ção de um modelo determinado de funcio-
para pensarmos sobre a melhor forma de
namento do direito penal moderno, fica di-
resolver o problema.
fícil afirmar qualquer coisa sobre o que
Não é por acaso que a ideia de impu-
aconteceria caso o direito penal deixasse
nidade é sempre retomada quando o que
de funcionar por meio da atribuição de uma
se pretende é transformar as estruturas
pena aflitiva. Porém, podemos afirmar que
internas do direito penal e, com mais ênfase, quando se discute a ampliação e a complexificação das sanções previstas. Tudo
as experiências em que conflitos – inclusive violentos – foram resolvidos sem o direito penal não tiveram esse resultado.
se passa como se a regulação jurídica de
Isso tudo evidencia que a limitação do
situações problemáticas pudesse operar
debate a esses termos – crime e pena afliti-
apenas com as ideias e estruturas concebi-
va, de preferência prisão – exclui de saída
das quando da formação do direito penal
uma série de mecanismos de prevenção po-
moderno no final do século XVIII. Qual-
tencialmente mais interessantes e eficazes
quer coisa que difira disto significa o re-
e impede que avancemos na construção de
torno às formas de regulação de conflitos
políticas públicas. E o que é pior: se avan-
anteriores ao advento do Estado Moderno.
çarmos o nosso olhar sociológico para levar
Este tipo de argumentação associa a resposta do direito penal sempre com a punição como um mal – já que apenas a violência estatal satisfaria os desejos de vingança da vítima e da comunidade. Além
em consideração os efeitos concretos da centralidade da prisão no debate sobre prevenção, veremos que seus resultados são ainda mais catastróficos, especialmente se o que se quer é diminuir a violência.
disso, associa o não estatal com o pré-moderno, isto é, sem o mal praticado pelo Estado, estaria recolocado o risco de anomia – caos, linchamentos, guerra de todos contra todos. Esse argumento é frágil, pois ignora a existência de um amplo repertório de mecanismos e estratégias de resolução de conflitos que se desenvolveram em paralelo ao aparato estatal38.
38.
Referimo -nos aqui às inúmeras experiências de resolução de conflitos que se desenvolvem atualmente e em diferen-
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tes países à margem das estruturas estatais tradicionais do sistema de justiça. Nos esforços de sistematização e reflexão sobre essas experiências, a expressão “justiça restaurativa” vem sendo cada vez mais utilizada, ainda que, em alguns casos, possa se referir a alterações profundas dos mecanismos de resolução de conflitos que ocorrem no interior das estruturas estatais. Tendo em vista ser muito comum que essas experiências sejam associadas a problemas sociais cotidianos e considerados menos graves, é importante ter em mente a ênfase recente em mecanismos voltados a garantir a reparação do dano e a favorecer a reconciliação em casos de sistemáticas violações de direitos humanos. Nesse sentido, JAUDEL, É. Justice sans châtiment. Les commissions Vérité -Réconciliation. Paris: Odile Jacob, 2009; VILMER, J. Réparer l’irréparable. Les réparations aux victimes devant la Cour Pénale Internationale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
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18.3. Para concluir: o direito penal é capaz de conter sua própria violência? Em várias sociedades contemporâneas, inclusive no Brasil, uma das formas de violência mais aguda a ser contida pelo
vilegiado: somos o quarto país que mais encarcera no mundo, perdendo apenas para EUA, China e Rússia. Nossa população carcerária já ultrapassa meio milhão de pessoas, na razão de 270 presos a cada 100 mil habitantes40.
direito é aquela produzida pelo próprio di-
Mas, para discutirmos a fundo a
reito penal. Essa constatação, a nosso ver,
questão carcerária aqui no Brasil, não po-
exige que este texto abarque um conjunto
demos deixar de considerar as condições
de problemas que muitas vezes escapa à
de vida nas instituições prisionais brasilei-
discussão sobre criminalidade e violência.
ras. Isto quer dizer que nossa tarefa envol-
Por violência produzida pelo próprio direi-
ve não somente questionar a limitação da
to penal, referimo-nos às implicações so-
solução prisional em si mesma, isto é, per-
ciais da centralidade da prisão no sistema
guntarmo-nos a respeito dos ganhos so-
de justiça . Esta problemática tem recebi-
ciais em se sequestrar pessoas e excluí-las
do, nas últimas décadas, enorme atenção
do convívio social por longos períodos,
por parte das ciências sociais. Contudo, o
mas também as circunstâncias concretas
conhecimento ali produzido tem sido pouco
das condições de vida nas instituições pri-
ou nada aproveitado para a reflexão sobre
sionais brasileiras. Celas superlotadas, au-
a reforma do sistema de justiça criminal
sência de condições mínimas de higiene,
contemporâneo.
alimentação inadequada e insuficiente, in-
39
Considerar essa questão nos parece
salubridade do ambiente são algumas das
fundamental em um momento em que a
características que aparecem comumente
ênfase a políticas encarceradoras convive
em inspeções e pesquisas voltadas a cole-
com o problema, cada vez mais contun-
tar informações sobre a situação carcerá-
dente, da superpopulação prisional. Esse paradoxo pode ser observado em diversos países, mas no Brasil ocupa um lugar pri-
39.
Neste texto, associamos “violência produzida pelo direito penal” com o problema prisional por considerarmos ser este, de longe, o mais urgente no contexto brasileiro. É claro que o direito penal produz outras formas de violência, como a estigmatização das pessoas submetidas à investigação ou à persecução penal, a abertura à exploração midiática de determinados casos etc.
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40.
As informações sobre a população carcerária no Brasil são compiladas e disponibilizadas pelo Infopen – uma base de dados gerenciada pelo Ministério da Justiça, mas alimentada por cada um dos Estados. O relatório referente a dezembro de 2011 encontra-se disponível em: (Acesso em: 6 ago. 2012). Para informações sobre a população prisional nos demais países, ver: WALMSLEY, R. World prison population list. 8. ed. King’s College London International Centre for Prison Studies, 2009. Disponível em: .
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ria no país41. Essas limitações estruturais
e aos seus aplicadores, que continuam se
somam-se ainda à precariedade dos pro-
utilizando cada vez mais da prisão como so-
gramas de saúde, trabalho e educação no
lução, como se essa questão não existisse
interior das instituições prisionais.
ou não fosse de sua alçada.
Esta forma sistemática de violência
Em poucas palavras, o direito repro-
produzida pelo sistema penal vem sendo in-
duz suas estruturas – várias delas concebi-
tensamente pesquisada e discutida pelas
das para lidar com a conflituosidade social
ciências sociais, mas parece não integrar o
e as instituições jurídicas do século XVIII
quadro de preocupações dos juristas com-
– sem atentar para as descobertas das ciên-
prometidos com a reforma do direito penal.
cias sociais e essas, por sua vez, dificil-
Para utilizar os termos de Margarida Garcia
mente arriscam-se a entender e integrar,
(2011), ciências sociais e direito encontram-
em suas análises, a contribuição do pró-
-se aqui em um “diálogo sem troca”. De um
prio direito para esse estado de coisas. Por
lado, não encontramos com frequência pes-
via de consequência, também não são ca-
quisas desenvolvidas no campo da sociologia do direito que levem em conta as estruturas internas do direito penal – tanto no plano normativo quanto no dogmático – para compreender e explicar o problema
pazes de apontar possíveis intervenções dentro do campo do direito que poderiam impactar neste diagnóstico. Diante desse conjunto de questões –
prisional. De outro lado, no campo jurídico,
que são apenas algumas da gama de outras
é possível dizer que este problema é ampla-
questões que envolvem o funcionamento do
mente ignorado – quando é reconhecido,
sistema penal e que tiveram que ficar fora
costuma ser mais atribuído à política que
deste texto –, é que nos parece importante,
ao próprio direito; e frequentemente ao po-
em um texto escrito para um manual de so-
der executivo, que não resolve o problema
ciologia jurídica, chamar atenção para o
do déficit de vagas nas prisões, e não à lei
fato de não ser possível discutir direito penal e pena hoje em dia sem olhar para as
41.
Sobre as violações de direitos humanos em ambiente prisional, ver Relatório dos Direitos Humanos das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, publicado em dezembro de 2011 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. As decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo nas ações civis públicas versando sobre superpopulação carcerária corroboram este quadro. Resultados parciais de pesquisa neste sentido estão descritos em: MACHADO, Maira. Superpopulação prisional e desenvolvimento sustentável. In: OLIVEIRA, Carina; SAMPAIO, Romulo (Org.). Instrumentos jurídicos para a implementação do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 135 -154.
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implicações concretas do funcionamento do sistema de justiça criminal – quem está preso e sob quais condições – sob pena de aumentar a violência e agudizar processos de exclusão social. E, de outro lado, parece-nos inócuo observar esta realidade sem olhar para a operação do sistema do direito e desvendar seus mecanismos internos,
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buscar os pontos em que reproduz violência e os possíveis espaços para disputar uma
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HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.
Bibliografia
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19 Direito, Diferenças e Desigualdades Gênero, geração, classe e raça
Marcella Beraldo de Oliveira Daniela Feriani
Introdução O acesso à justiça é a base primordial em que se assenta uma sociedade democrática. Estudar o universo legal e judiciário com o objetivo de identificar seus entraves é, certamente, um passo fundamental na construção de uma sociedade mais justa. Nesse sentido, o capítulo aborda o tema da produção de justiça no campo de situações cotidianas permeadas por desigualdades sociais de gênero, geração,
des? De uma forma geral, o interesse é contribuir para a compreensão dos problemas envolvidos na distribuição da justiça e na consolidação dos direitos da cidadania na sociedade brasileira contemporânea, refletindo sobre como as relações permeadas por diversos tipos de diferenças (p. ex.: geração, classe, raça, gênero, sexualidade) são tratadas no campo da produção de justiça e da administração de conflitos no Brasil.
raça, classe, entre outras. Como o Direito
O foco da discussão está centrado no
e, mais especificamente, o sistema de jus-
paradoxo ou na tensão entre o universal e
tiça brasileiro – bem como as alternativas
o local presente nas políticas de identida-
a esse sistema – tratam e percebem as de-
des, ou seja, como a luta pelo reconheci-
sigualdades sociais? O sistema de justiça
mento (HONNETH, 2003) pode tanto
transforma ou reproduz essas desigualda-
avançar na conquista de direitos quanto
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resultar na reificação e reprodução de de-
de crimes: para além disso, advogados,
sigualdades. Apesar de marcadores sociais
promotores e juízes, ao classificarem e
(p. ex.: geração, classe, raça, gênero, sexua-
julgarem os crimes, também classificam,
lidade) assumirem significados diversos
julgam e teorizam sobre uma série de
em diferentes contextos e situações, mui-
questões, tais como o humano, a família,
tas vezes, por meio das políticas identitá-
o corpo, a loucura. Esses são os “efeitos
rias, corre-se o risco de serem congelados
de verdade” de que Foucault nos fala: de-
sob um viés biológico, tornando-se uma
finir o certo e o errado, o justo e o injusto,
armadilha para os próprios grupos que rei-
o normal e o anormal. Para além das leis,
vindicam tais marcas como formas de ob-
há as normas sociais, não escritas, mas
ter a igualdade e a universalidade do Di-
que são levadas em conta no desfecho
reito. O objetivo é analisar como essa
desses crimes. Há um combate em torno
tensão aparece e é negociada no campo da
da verdade, entendendo esta não como a
produção de justiça no Brasil: de um lado,
verdade em si, por ser inalcançável, mas
a tentativa de assegurar os diretos das mi-
do que se diz ser verdade.
norias (grupos discriminados como mu-
O jurídico é, portanto, um campo de
lheres, negros, homossexuais etc.) por
disputas, no qual a luta pela expansão do
meio de ações afirmativas, como institui-
acesso à justiça e pelo reconhecimento de
ções e leis especiais; de outro, a reprodu-
direitos passa por negociações entre ato-
ção de desigualdades e a legitimação de
res sociais que se relacionam de maneira
violências no julgamento de crimes em re-
hierárquica e assimétrica. Importa enten-
lações familiares.
der, portanto, a dinâmica dessas negocia-
Segundo Foucault (1979), o Direito
ções no âmbito do Direito na tentativa de
é um campo de poder e, enquanto tal, não
se apreender os alcances e limites da pro-
apenas reprime, mas, principalmente,
dução da justiça diante da complexidade
produz saber. Nesse sentido, interessa
do fenômeno da violência, a qual é marca-
compreender como o discurso jurídico
da por desigualdades de gênero, geração,
produz “efeitos de verdade”, ou seja, como
idade, raça, sexualidade e classe. Se a de-
as “práticas judiciais [...] definem tipos de
mocracia é pautada pelos ideais de uni-
subjetividade, formas de saber e, em con-
versalidade e igualdade, ela acaba por as-
sequência, relações entre o homem e a
sumir ares autoritários quando não se
verdade” (FOUCAULT, 1978, p. 17). O sis-
levam em conta os direitos das minorias.
tema de justiça não atua simplesmente
Para Debert e Gregori (2008), o não reco-
como uma instância julgadora e punitiva
nhecimento e/ou a ineficiência das insti-
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tuições públicas diante das identidades e
dividual. Cabe ao Estado a promoção de
direitos desses grupos é resultado de uma
direitos fundamentais para a própria
espécie de truncamento do exercício ple-
construção da individualidade. É essa
no da cidadania.
tensão entre particular e universal – ou
O “direito à diferença” exercido de di-
indivíduo e Estado – que vai marcar boa
versas formas, algumas delas abordadas
parte das contradições inerentes à defesa
neste capítulo, pressupõe o entendimento
dos Direitos Humanos, bem como definir,
de que as diferenças são construções sociais
a partir de conjunturas específicas, que
e são significadas e percebidas diferente-
estratégias tendem a ser privilegiadas por
mente em diversos contextos e relações so-
atores sociais na sua movimentação polí-
ciais, deixando de lado, totalmente, qual-
tica em busca por justiça – tanto estatal
quer resquício de determinação biológica
quanto de construção e ampliação de no-
referente à produção dessas diferenças.
vos espaços de administração de conflitos para além do Judiciário. Assim, em
19.1. Direito à diferença e Direitos Humanos Abusos cometidos em nome das diferenças de classe, raça, gênero etc., são vistos como desrespeito aos Direitos Humanos e, assim, o Estado jurídico brasileiro cria legislações e políticas que buscam diminuir essas desigualdades. Vianna e Lacerda (2004) fazem uma conexão entre os chamados direitos sociais e as liberdades individuais à luz dos Direitos Humanos, mostrando que, historicamente, a trajetória desses direitos relaciona-se,
determinados momentos, a defesa de direitos sociais como parte da organização de certas “bandeiras” ou grupos políticos (presente em discussões, por exemplo, sobre direitos reprodutivos, direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros etc.) põe em destaque a liberdade individual. Nesse contexto, a mediação de conflitos, como forma alternativa de justiça, busca dar poder aos indivíduos para que eles tenham a capacidade de resolver sozinhos seus próprios conflitos sem o aparato estatal.
como mostra Norberto Bobbio, ao nasci-
Tratar de Direitos Humanos, no Bra-
mento de uma concepção individualista
sil, tem sido discorrer sobre problemas
de sociedade, marco do que se poderia de-
envolvidos em uma sociedade altamente
finir como a “era moderna”. Nesse sentido,
hierarquizada, em que os pobres, os ne-
sua premissa é a de que cabe aos indiví-
gros, as mulheres e as outras minorias
duos um conjunto de direitos inalienáveis,
discriminadas são vistos como cidadãos
centrados, sobretudo, na sua liberdade in-
de segunda classe. O Estado brasileiro,
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por meio do seu aparato jurídico, ao bus-
racial já foi um dos mais importantes eixos
car formas de diminuição das desigualda-
norteadores dos debates sobre as caracte-
des sociais, imbrica-se em discussões e
rísticas biológicas e socioculturais da es-
reflexões que perpassam, entre outras, a
pécie humana. Criticado, tendeu a ser
luta por políticas de reconhecimento das
abandonado nas ciências biológicas e pas-
minorias e, ao mesmo tempo, de redistri-
sou por revisões significativas nas ciências
buição econômica; da necessidade de se
sociais”. Esse tema do direito e da raça
resguardar as liberdades individuais e, ao
tem sido mais debatido no Brasil nas polí-
mesmo tempo, garantir direitos sociais;
ticas de ações afirmativas, como a política
de se exigir maior participação do Estado
de cotas, do que propriamente no sistema
na diminuição dessas desigualdades, mas
de justiça. Na medida em que ações afir-
ao mesmo tempo construir uma política
mativas de direitos da mulher focaram
de Estado -mínimo e neoliberal que busca
principalmente o Judiciário, como o caso
formas alternativas de produção de justi-
da Lei Maria da Penha e da Delegacia da
ça, desresponsabilizando o Estado; o en-
Mulher buscando a diminuição da violên-
tendimento de que a universalidade de
cia de gênero, os debates sobre desigual-
direitos só será alcançada se as particula-
dades produzidas pelas diferenças raciais
ridades de discriminação forem contem-
estiveram mais centrados, no caso brasi-
pladas; e também nos debates em torno
leiro, no acesso à educação e à saúde.
da criminalização versus a descriminali-
De acordo com Telles dos Santos
zação. Na maioria dos casos concretos, es-
(2012), as ações afirmativas no Brasil,
ses dilemas não aparecem como dicotômi-
como a reserva de vagas para mulheres e
cos e em lados opostos, mas articulados e
portadores de necessidades especiais, por
imbricados.
exemplo, só tiveram o aparato do sistema
Na luta pelo direito à diferença, tanto
jurídico após a implementação do sistema
os marcadores sociais de “gênero” quanto
de cotas para os alunos egressos de esco-
de “raça” são categorias que devem ser en-
las públicas, negros e indígenas nas uni-
tendidas em cada contexto específico, na
versidades públicas estaduais e federais.
forma em que são produzidas e significa-
Para ele, “os profissionais do direito se têm
das, isto é, entender no plano das repre-
deparado cada vez mais com demandas
sentações como essas diferenças têm sido
sociais em que a política universalista é
usadas no sistema de justiça ou no campo
questionada por intermédio do princípio
da produção de justiça. De acordo com
de que os desiguais devem ser tratados de-
Ventura Santos (2012, p. 151), “o aspecto
sigualmente” (p. 217). Segundo Peter Fry
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(2012, p. 230), “diferenças entre grupos e
ciais baseadas em diferenças percebidas
indivíduos construídas socialmente não
entre os sexos e também é um campo pri-
resultam necessariamente em desigualda-
mário no qual ou através do qual o poder é
des, se entendidas as últimas como desní-
articulado” (SCOTT, 1988). Essa categoria
veis de prestígios, poder e riqueza. Na prá-
de análise recorta a sociedade a partir dos
tica, todavia, as diferenças frequentemente
papéis sexuais socialmente definidos e im-
se caracterizam por desigualdades nos
plica, sobretudo, na recusa de qualquer
planos de poder e das representações”. As-
resquício de determinação biológica ou
sim, apesar de no plano legal haver a ten-
natural dessa dominação, reconhecendo a
tativa de eliminar as desigualdades, essas
configuração histórica e cultural, portan-
mudanças legislativas, embora importan-
to política, das relações entre os sexos.
tes, não reduzem de maneira significativa
Esse entendimento torna possível anali-
velhas representações que hierarquizam
sar, por exemplo, a permanência das práti-
gêneros, raças, orientações sexuais, imi-
cas de violência contra a mulher na socie-
grantes e povos indígenas.
dade. Delimitamos três grandes marcos
Neste capítulo, recortamos o tema do
quando falamos em tratamento da violên-
direito à diferença centrando a discussão
cia de gênero no sistema de justiça brasi-
no marcador social de gênero como parâ-
leiro: a Delegacia de Defesa da Mulher, os
metro para entender a maneira com que a
Juizados Especiais Criminais e a Lei Maria
justiça brasileira tem se posicionado fren-
da Penha.
te a questões de desigualdades sociais1.
Na década de 1980, criou-se a Delegacia de Defesa da Mulher, em São Paulo,
19.2. Violência de gênero: alguns marcos legais Ao analisar a articulação entre gênero e justiça, consideramos que “gênero é um elemento constitutivo das relações so-
parte de um movimento de politização da justiça que dá ênfase a uma política identitária que considera que a igualdade de direitos só será alcançada com o tratamento particular das desigualdades sociais. Essa iniciativa teve um caráter criminalizante, no sentido de mostrar que bater em
1.
Além de ser objeto de estudo das autoras deste capítulo, gênero é um tema muito estudado pela Antropologia, de modo geral, e pela Antropologia do Direito, de modo particular, principalmente em pesquisas sobre a produção de desigualdades no sistema de justiça. Além disso, a discussão sobre gênero traz muitas questões que também estão presentes na luta pelo reconhecimento de outras minorias, não só das mulheres.
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mulher é crime e deve ser punido pelo Estado, considerado um problema de toda a sociedade, e não apenas do casal ou de famílias carentes e desajustadas, deixando de ver a família como o “reino da paz e
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harmonia”, mas como um ambiente repleto
ciar o pacto conjugal e criminalizar o par-
de conflitos e violências. As delegacias da
ceiro (SOARES, 1996; BRANDÃO, 1998).
mulher foram uma resposta do Estado aos
Para os agentes da delegacia, isso gera
movimentos feministas e são, até hoje,
desconforto, interpretando como desvir-
apesar das críticas, uma das principais po-
tuamento do papel policial em nome de
líticas públicas de combate à violência
práticas que estariam relacionadas a um
contra a mulher no Brasil. Atualmente, o
trabalho de assistente social ou de psicólo-
Brasil conta com mais de 300 delegacias
gas. As pesquisas2 enfatizam também que
da mulher espalhadas por todos os Esta-
os agentes percebem a ineficácia, no mé-
dos brasileiros, que passaram a receber,
dio e no longo prazo, da conciliação feita
dos distritos policiais comuns, as ocorrên-
na delegacia, estando conscientes do alto
cias relacionadas com crimes entre casais, nos quais a vítima é a mulher. As discussões avançaram em sintonia com o debate internacional, consoli-
grau de recorrência das agressões que levam a uma volta das vítimas à delegacia. Nesses casos, os detetives orientam as mulheres para que voltem à delegacia caso seja necessário, tranquilizando, momenta-
dando a compreensão de que a violência
neamente, a vítima receosa de suspender
contra a mulher é uma violação dos Direi-
o Boletim de Ocorrência (BO). Contudo,
tos Humanos. Apesar de o homicídio ter
paradoxalmente, quando a vítima volta,
sido o crime que impulsionou a criação das
ela acaba sendo repreendida pela suspen-
delegacias da mulher, não é esse crime o
são anterior, “vamos ver se desta vez você
foco delas, que trabalham principalmente
prossegue”, diz uma policial (BRANDÃO,
com a chamada violência “habitual” e coti-
1999). Os agentes da polícia consideram
diana, tipificadas como crimes de “lesões
que essas mulheres estão brincando com o
corporais leves” e de “ameaças”. Segundo
aparato público, são coniventes com os
Brandão (1999, p. 124 -125), o recurso à
agressores e com a situação de violência
polícia seria um meio de promover o rea-
da qual são vítimas. Assim, as mulheres
justamento do parceiro à expectativa so-
que desistem são vistas como uma espécie
cial predominante nas camadas popula-
de cidadãs que não souberam se apoderar
res, de modo que essas mulheres passam a
de seus direitos, seja por uma ignorância
delegar à autoridade policial a tarefa de corrigir os homens acusados de agressão e de inadequação aos papéis conjugais esperados. A expectativa das mulheres seria, assim, usar o poder policial para renego-
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2.
Ver pesquisas sobre as Delegacias de Defesa dos Direitos das Mulheres: Machado, 2003; Rifiotis, 2003; Debert, 2002; Macdowell dos Santos, 1999; Carrara, 2002; Brandão, 1998; Suárez e Bandeira, 1999; Lima, 2007; Blay e Oliveira, 1986; Amaral et al., 2001; Soares, 1996; Debert e Beraldo de Oliveira, 2007.
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intransponível, seja por um déficit moral de caráter. Para Moraes e Sorj (2009), o uso que as mulheres fazem das delegacias especializadas revela o paradoxo da expansão dos Direitos Humanos e das mulheres no Brasil, já que as expectativas das mulheres vítimas de violência se chocam com as do movimento feminista, ou seja, a tentativa de criminalizar esse tipo de violência e de punir os culpados – expectativa essa que levou à criação das Delegacias Especiais da Mulher. Estudos mostram que uma possível reconciliação entre as partes envolvidas acaba por dar fim ao andamento do caso, tanto nas delegacias quanto nos Juizados Especiais Criminais (JECrim) 3.
357
Em análise cuidadosa, na qual avalia o grau de influência do discurso feminista sobre a cultura jurídica das policias, MacDowell Santos (1999) mostra que essa influência – no Estado de São Paulo, pioneiro na criação dessas instituições, com 126 delegacias funcionando na capital e no interior – tem variado de acordo com a conjuntura política. No momento da criação das delegacias, a relação com o movimento era intensa e o discurso feminista era predominante. Em outros momentos, essa relação se desfez, contudo a autora identifica na sua pesquisa uma apropriação, por parte das agentes, de um discurso de gênero, sem evidenciar a aliança com o movimento feminista. Ressaltamos essa apropriação porque ela envolve a percepção da mulher como um sujeito de direitos. A apropriação
Confrontos de expectativas entre fe-
do discurso de gênero é feita de modo es-
ministas, instituições do Estado e mulhe-
pecífico quando combinada com o ethos
res vítimas dificultam a implementação
profissional policial (DEBERT e BERAL-
de políticas voltadas ao combate da vio-
DO DE OLIVEIRA, 2007).
lência contra a mulher, uma vez que os
A instabilidade tensa entre a crimi-
valores e direitos universais defendidos
nalização e a ideia de reduzir a violência a
pela agenda global do feminismo se ten-
uma questão de assistencialismo configu-
sionam com as práticas sociais locais que
ra os principais impasses pelos quais pas-
orientam os atores e as instituições (GRE-
sam, atualmente, as delegacias da mulher.
GORI, 1993; BRANDÃO, 1998; IZUMINO,
Essas análises demonstram que o princí-
2004; MORAES e SORJ, 2009).
pio que rege a criação da delegacia e a constituição da mulher como sujeito de
3.
Feriani (2009) mostra que, até mesmo para crimes de tentativa de homicídio entre cônjuges e entre pais e filhos, a reconciliação entre as partes acaba, na maioria das vezes, por arquivar o processo criminal.
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direitos civis não foi totalmente realizado na prática. Mesmo não sendo totalmente bem-sucedida do ponto de vista de sua efi-
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cácia objetiva, essa política pública teve
na relação conjugal. Em outras palavras, a
um impacto simbólico de grande impor-
violência ocorrida em uma relação conjugal
tância no reconhecimento dos direitos das
é percebida de maneiras opostas nas duas
mulheres.
instituições do sistema de justiça, como
A não continuidade das denúncias
mostramos a seguir.
feitas nas delegacias no fluxo do sistema
O modo como os casos são conduzi-
de justiça perdeu, em parte, o sentido com
dos no Judiciário e na polícia depende, em
a Lei n. 9.099/95, que criou os Juizados Es-
larga medida, da concepção de seus agen-
peciais Criminais. Essa lei simplificou os
tes e de seus preconceitos sobre o papel
procedimentos das delegacias para os cri-
social das vítimas, e também da percepção
mes tipificados como de “menor potencial
sobre o conflito. Apesar de as práticas in-
ofensivo”, como são os casos de “ameaça” e
formais na delegacia da mulher se distan-
“lesão corporal leve” que compreendem a
ciarem do que é considerado trabalho poli-
maioria dos casos registrados na delega-
cial, as agentes dessa instituição percebem
cia. Dispensando o inquérito policial e
a violência de gênero ocorrida em ambien-
simplificando os procedimentos da etapa
te doméstico como um crime e, se a vítima
policial, essas ocorrências registradas nas
não desiste, as policiais encaminham as
Delegacias da Mulher passaram, com a
ocorrências para o Judiciário, fazendo-as
nova lei, a serem enviadas mais rapida-
permanecer no sistema de justiça penal;
mente ao Judiciário.
as vítimas recorrem a uma instituição vol-
O modo como agentes da polícia per-
tada para a defesa dos direitos da mulher.
cebem a violência embutida no contrato
Como pesquisas apontaram, nos JECrims
conjugal e na família oferece um conteúdo
essa violência que foi criminalizada na de-
específico e diferente dos procedimentos
legacia passa a ser reprivatizada no Judiciá-
adotados nos JECrim. Na delegacia, é esse
rio por meio da tentativa de retirada desse
tipo de violência, a conjugal, que deve ser
conflito do sistema de justiça com a indu-
criminalizada. Assim, uma violência contra
ção à não representação da vítima contra
uma prostituta terá mais dificuldade de en-
seu agressor ou pela desconsideração de
trar na classificação criminalizante da de-
casos de reincidência.
legacia. Chegando ao Judiciário, o caso de
Orientados pelo princípio da busca
violência enviado pela delegacia da mulher
de conciliação, os JECrims foram criados
é julgado no JECrim, que faz uma tentativa
com objetivos centrais de ampliar o acesso
de retirada dessa violência do sistema de
da população à justiça, promover o rápido
justiça exatamente pelo fato de ter ocorrido
ressarcimento da vítima e acelerar as deci-
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sões penais, desafogando o Judiciário.
ral dolosa leve” e de “ameaça”. As pesqui-
Tem também um objetivo despenalizador,
sas mostram que, apesar de não ter sido
no sentido de que a lei oferece ao autor do
criado para lidar especificamente com a
delito considerado pequeno a oportunida-
violência de gênero, o JECrim recebia a
de de não ser processado criminalmente
maior parte das ocorrências da Delegacia
(GRINOVER et al., 1997). Na prática, ao fa-
da Mulher (situação antes de 2006, com a
zer a tradução de um fato para um tipo pe-
promulgação da Lei Maria da Penha). Es-
nal, os delegados e demais agentes policiais
ses dados revelaram que os JECrims esta-
optam entre duas esferas distintas de julga-
vam passando por um processo de femini-
mento. Ao tipificar o crime como “lesão cor-
zação (BERALDO DE OLIVEIRA, 2006),
poral dolosa leve”, as ocorrências seguiram
na medida em que essa instituição estava
o modelo conciliatório (Lei n. 9.099/95).
povoada por um tipo específico de crimi-
Contudo, se eles tipificassem como “tenta-
nalidade, a violência de gênero enviada
tiva de homicídio” ou “lesão corporal dolo-
pela delegacia da mulher, ou seja, suas au-
sa grave”, o caso seria encaminhando para
diências tinham como vítimas mulheres
julgamento no Tribunal do Júri ou nas Va-
vitimadas pelo fato de serem mulheres.
ras Criminais Comuns.
Tratar a violência contra a mulher no
Na categoria de “menor potencial
Judiciário na lógica conciliatória traz con-
ofensivo”, estão incluídos, além de vários
sequências singulares. O problema não es-
outros tipos penais, os crimes de “lesão
tava na informalização e desburocratiza-
corporal dolosa leve” (art. 129 do Código
ção da justiça trazidas por essa Lei dos
Penal) e de “ameaça” (art. 147 do Código
Juizados Especiais Criminais, mas, sobre-
Penal), crimes mais frequentes na tipifica-
tudo, em uma informalização que acabou
ção da criminalidade que chegam às Dele-
por enfatizar apenas a celeridade, que se
gacias da Mulher. Pesquisas realizadas nos
traduz na prática da indução pelos agentes
Juizados Especiais Criminais Estaduais no
à não representação (levando ao arquiva-
Rio de Janeiro (KANT DE LIMA, AMORIM
mento), na desconsideração da reincidên-
e BURGOS, 2003), em Porto Alegre (CAM-
cia e na transação penal com a aplicação
POS, 2002; AZEVEDO, 2000), em São Car-
da cesta básica como pena. Assim, no flu-
los (FAISTING, 1999), em São Paulo (IZU-
xo do sistema de justiça opera-se uma mu-
MINO, 2003) e em Campinas (BERALDO
dança de significados políticos do fenôme-
DE OLIVEIRA, 2006) demonstram que a
no da violência de gênero: de crime passa
maioria dos crimes que chegam a esses
a ser um problema familiar que não com-
juizados é justamente os de “lesão corpo-
pete ao Direito Penal.
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No período de atuação dos JECrims,
prisão em flagrante para alguns casos; im-
as críticas ao tratamento dado aos casos de
pedimento da aplicação de pena de cesta
violência contra a mulher na justiça leva-
básica; e a exigência novamente – como
ram os movimentos sociais de defesa dos
antes da Lei n. 9.099/95 – da instauração
direitos das mulheres a lutar por um novo
do inquérito policial. Espera-se que essas
tratamento legal e específico. Nesse con-
alterações restituam às delegacias práti-
texto de insatisfação com a banalização do
cas que eram realizadas antes da Lei de
tratamento da violência de gênero na justi-
1995, criando condições para que elas pos-
ça, volta-se, então, a uma politização da
sam ser executadas a contento.
justiça com base em uma política identitá-
Ao analisar o discurso dos operadores
ria, como foi o caso da Delegacia da Mulher.
jurídicos no debate a favor e contra a Lei
Promulga-se, em 2006, a Lei Maria da Pe-
Maria da Penha, Romeiro (2009) mostra
nha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006).
que diferentes visões sobre violência do-
Específica para os crimes contra a mulher
méstica estão em jogo e, consequentemen-
em âmbito doméstico e familiar, essa lei é o
te, discordâncias sobre quem são os “sujei-
retorno de um reforço criminalizante, ins-
tos de direitos” e quem são os “beneficiários”
taurando uma nova instituição Judiciária:
dos Direitos Humanos. Para as feministas,
os “Juizados de Violência Doméstica e Fa-
o debate sobre Direitos Humanos precisa
miliar contra a Mulher”. É importante enfa-
levar em conta o combate e a erradicação
tizar que o movimento feminista vê no
das desigualdades de gênero. Já para os ope-
acesso à justiça o ponto fundamental da
radores jurídicos, as premissas dos Direitos
busca por igualdades de direitos entre ho-
Humanos devem garantir o cumprimento
mens e mulheres. Com a discussão sobre
dos direitos individuais dos cidadãos, como
justiças alternativas, veremos a crítica a
o acesso à justiça e a possibilidade de um
essa centralidade do Direito.
julgamento justo. Se para as feministas os
A Lei Maria da Penha alterou o trata-
Direitos Humanos devem incluir os direitos
mento dos crimes de violência doméstica
das mulheres, a criminalização e a punição
contra a mulher no sistema de justiça. En-
legal do agressor na luta contra a violência
tre as alterações, destacam-se: o aumento
doméstica e familiar, para os operadores ju-
da pena máxima, que passa a ser de três
rídicos as questões importantes são a des-
anos de detenção, o que retira essa violên-
penalização e a ineficiência das prisões co-
cia do rol dos crimes de “menor potencial
mo forma de ressocialização e punição.
ofensivo”, não sendo mais enviada aos Jui-
Se as delegacias e leis especializadas
zados Especiais Criminais; a admissão da
são importantes para dar visibilidade a for-
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mas particulares de violência, contribuin-
ser mulher, nos espaços públicos, nas rela-
do para legitimar os direitos dos grupos
ções de trabalho, entre outras. Sem dúvi-
desfavorecidos (mulheres, idosos, crian-
da, ambas as instituições representam um
ças, homossexuais, negros), elas também
grande avanço na defesa dos direitos das
podem criar espaços de deslegitimização e
mulheres; mas, se refletirmos nessa ques-
invisibilidade para outras formas de vio-
tão incorporando a perspectiva de gênero,
lência – no caso das delegacias da mulher,
é preciso se perguntar em que medida a
a violência contra idosos e contra homens,
categoria “mulher” está operando de uma
por exemplo. Novamente se faz presente o
maneira engendered (TERESA DE LAU-
dilema de como articular o universal e o
RETIS, 1997), isto é, pensar que homens e
particular nas dinâmicas do sistema de
mulheres agem conforme as diferenças de
justiça para preencher as lacunas existen-
gênero estabelecidas culturalmente e por
tes quando se lida com um fenômeno tão
meio de discursos hierarquizantes. São os
complexo e plural como é a tríade entre
sujeitos de direitos, homens e mulheres,
violência, crime e família.
que orientam as decisões dos juízes, ou as
As reformas criminalizantes, tais
suas decisões estão pautadas pelo desem-
como a Delegacia da Mulher ou a Lei Maria
penho dos papéis adequados e esperados
da Penha, focam a categoria mulher e a fa-
nas relações familiares? Qualquer respos-
mília, e não a desigualdade de poder cons-
ta generalizante seria apressada, dados os
truída em torno dessas categorias, o que
diferentes contextos socioculturais e a
impede que as identidades e as relações de
atuação das diferentes esferas do sistema
poder sejam vistas como fluidas, não está-
de justiça.
ticas ou cristalizadas. Há uma dificuldade
As delegacias especiais de polícia
das políticas públicas identitárias de esca-
voltadas para a defesa de minorias são fru-
par dessas categorias, tomando-as como
to de reivindicações de movimentos so-
algo fixo. A Delegacia da Mulher trabalha
ciais e indicam um avanço da agenda igua-
com a categoria “violência contra a mu-
litária, porque expressam uma intervenção
lher” e a Lei Maria da Penha restringe a
da esfera política capaz de traduzir em di-
violência contra a mulher àquela que ocor-
reitos os interesses de grupos sujeitos ao
re no âmbito doméstico e familiar, ao utili-
estatuto da dependência pessoal. Não se
zar a categoria “violência doméstica e fa-
trata de exigir que as instituições judiciá-
miliar contra a mulher”, retirando do
rias partilhem o ideário feminista ou de
âmbito dessas instituições a violência im-
qualquer outro grupo identitário que este-
petrada contra as mulheres, pelo fato de
ja revindicando direitos, tais como negros,
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índios, pobres, homossexuais etc., porém,
cumprimento de seu perfil social é visto
é importante considerar essas particula-
como uma justificativa para a sua senten-
ridades quando se trata de políticas que
ça condenatória. Do mesmo modo, a víti-
visam eliminar abusos e discriminações
ma, ao não se encaixar em seu papel espe-
pautadas em diferenças sociais.
rado, acaba por sofrer um processo de culpabilização, podendo levar a uma ate-
19.3. Gênero e geração no sistema de justiça Os estudos sobre violência doméstica têm mostrado que, ao julgar os crimes cometidos entre familiares, a justiça inter-
nuação da pena do acusado ou até mesmo à absolvição, como se a sua posição negativa ou “desvirtuante” numa escala assimétrica de papéis sociais fosse um motivo para o crime do qual foi vítima. Em seu estudo sobre crimes entre ca-
vém não para julgar o crime em si, mas
sais nas décadas de 1960 e 1970, no Fórum
para avaliar a adequação de vítimas e acu-
de Campinas, Corrêa (1983) mostrou co-
sados aos papéis sociais, reiterando, com
mo os argumentos jurídicos giravam em
isso, assimetrias de gênero e de geração,
torno do conceito de honra – o crime de
bem como a violência associada a elas.
matar a mulher adúltera encontrou inteli-
Nesse sentido, em crimes entre cônjuges, a
gibilidade na justificativa de que o marido
mulher deve ser boa esposa, o que implica
estaria “lavando a sua honra”. Tal argu-
em ser fiel ao marido e atender aos desejos
mento teve implicações importantes: além
sexuais do companheiro; boa mãe, respon-
de absolver o réu pela figura da legítima
sável pelo cuidado e bem-estar dos filhos;
defesa da honra, acionou toda uma série
e boa dona de casa. Já o homem deve ser
de assimetrias de gênero, tomando a víti-
bom marido, o que significa ser fiel; bom
ma não enquanto cidadã portadora de di-
pai, aquele que sustenta os filhos; e, sobre-
reitos, mas envolta em um estereótipo (a
tudo, bom provedor. Em crimes entre pais
esposa, a mãe, a dona de casa).
e filhos, os pais são aqueles que cuidam,
A tese de legítima defesa da honra só
amam e sustentam os filhos; já os filhos
é válida e aceita quando, por um lado, o
devem ser submissos, obedientes, amáveis
homem (réu) cumpre o seu papel e, por
e não se darem ao uso de drogas. Muitas
outro, a mulher (vítima) não se encaixa no
vezes, não atender a esses requisitos faz
perfil esperado de esposa e mãe. O marido
com que o réu, seja homem, mulher, pai,
só pode “lavar a sua honra” se ele for um
mãe, filho ou filha, caminhe mais rapida-
homem honrado, em contraposição a sua
mente a uma condenação, já que o não
esposa, vista como uma ameaça à sua po-
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sição social. Assim, no estudo de Corrêa
vida. Assim, é o crime propriamente dito
(1983), nos crimes de maridos contra es-
que deverá ser julgado.
posas em que a legítima defesa da honra
Em um estudo mais recente sobre
foi aceita, o marido era tido como alguém
crimes de maridos que matam ou tentam
responsável, nada deixando faltar em
matar suas esposas, Pimentel et al. (2004)
casa, além de ser fiel e prezar pelo seu ca-
mostram como a tese de legítima defesa da
samento. Já a esposa foi vista como amo-
honra ainda é acionada e aceita. Investiga-
ral, por ser adúltera, culpada por um mau
ram-se 42 casos em que os advogados dos
andamento do casamento e, de certa for-
réus usaram essa tese nos tribunais, sendo
ma, responsável pelo crime da qual foi víti-
que em 23 deles os acusados foram absol-
ma. Usar trajes decotados, ficar o dia intei-
vidos em primeira instância. Como a maio-
ro fora de casa, negar-se a ter relações
ria dos processos teve recurso, ainda não
sexuais com o marido, pintar-se e se arru-
se sabe se as decisões serão revertidas pe-
mar exageradamente são atitudes que não
las cortes superiores. Mesmo que isso
encontram lugar dentro de um padrão do
ocorra na maioria dos casos, o peso do ar-
que seja esposa e mãe.
gumento em torno do conceito de honra
Apesar de Ardaillon e Debert (1987)
não deixa de ser significativo ainda hoje,
mostrarem os princípios de uma nova lógi-
em crimes ocorridos entre 1999 e 2003.
ca no julgamento de crimes de homicídio e
Segundo as autoras, a superação da tese
tentativa de homicídio de marido contra
de legítima defesa da honra, presente no
esposa na década de 1980, o argumento
imaginário social e nas falas dos atores ju-
jurídico principal, no sentido de mais sig-
diciais, é, na verdade, um mito que, como
nificativo e recorrente, continua a ser
tal, acaba por mascarar a realidade e, no
aquele demonstrado por Corrêa (1983)
caso, alimentar, renovar e difundir pre-
nas décadas de 1950 e 1960, ou seja, o da
conceitos e estereótipos que necessitam
honra. Apenas em processos mais recen-
ser enfrentados criticamente. Enquanto
tes e em número muito pequeno (2 de 12
prática cultural, a legítima defesa da honra
casos), a acusação entra com um novo ar-
estaria inserida em uma lógica conceitual
gumento: não mais o da adequação de víti-
própria, na qual o papel da mulher está
ma e acusado a papéis de marido/pai e es-
atrelado a uma concepção sexualizada,
posa/mãe, mas o da mulher enquanto
como se sua decência e dignidade depen-
cidadã portadora de direitos individuais,
dessem de uma vida sexual regrada e limi-
como o direito de desfazer um contrato de
tada. Agir em “transe de grande ciúme”,
casamento, o direito à independência e à
por amor, por uma “loucura incontrolável”,
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uma violenta emoção ou por ter sido “ofen-
lheres. Ao ver o gênero não como uma re-
dido em sua honra ao ser chamado de chi-
lação entre homem e mulher apenas, mas
frudo” são estratégias discursivas nas
como uma relação mais ampla entre femi-
quais a honra – do homem – continua sen-
nino e masculino, é possível olhar para ou-
do o elemento central que provoca a perda
tras formas de violência. Isso significa que
do controle emocional, justificando, assim,
os homens também podem ser violados,
os crimes, mesmo aqueles ocorridos mais
sendo seus corpos tratados como femini-
recentemente, de 1992 a 2005 (TEIXEIRA
nos. A “criminalização de gênero” não fo-
e RIBEIRO, 2008; FERIANI, 2009).
caria mulheres, homens, lésbicas, gays
Os estudos mostram que, enquanto o
etc., mas sim a busca de uma criminaliza-
marido é absolvido por legítima defesa da
ção dos atos cometidos em nome de um
honra e/ou tem a pena atenuada por moti-
poder maior na relação social com o opera-
vos similares, a esposa é absolvida por le-
dor de gênero que leva a preconceitos, hie-
gítima defesa da vida. Dessa forma, mes-
rarquias e discriminações (violência en-
mo na posição de ré, ou seja, de alguém
gendered); ou melhor, é usar a diferença
que cometeu um crime, a mulher sofre um
de gênero para subjugar uns e outros4.
processo de vitimização – é vítima dos
É possível, portanto, pensar a violên-
maus-tratos e das agressões do marido,
cia de gênero para além da relação entre
agindo, portanto, em defesa própria. Po-
casais. Debert e Oliveira (2009) mostram
rém, ela só se beneficiará de tal argumento
que há uma feminização e uma invisibili-
ao cumprir o seu papel esperado de espo-
dade da violência contra o idoso dentro da
sa, mãe e mulher, em contraposição ao ma-
família. Ao pesquisarem os boletins de
rido que, apesar de vítima, é tido como cul-
ocorrência em delegacias especializadas
pado, por ser violento, infiel, indigno e/ou
(do idoso e da mulher) e em um distrito po-
não arcar com as despesas do lar.
licial comum, no Estado de São Paulo, as
Usar o termo gênero abre uma possi-
autoras mostram que a maioria das ocor-
bilidade de tratar a diversidade das expe-
rências tinha como indiciado algum pa-
riências, podendo articular-se a outras ca-
rente da vítima, principalmente filhos. Os
tegorias não menos importantes, tais como
agentes dessas delegacias, porém, nega-
classe, geração e raça, considerando as re-
vam a existência de casos de maus-tratos e
lações de gênero como dinâmicas e fluidas, operando relações de poder, e não simplesmente o resultado da dominação estática e polarizada de homens sobre mu-
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4.
A bandeira levantada na atração anual da “Parada GLBT” de 2007 foi o movimento pela criminalização da homofobia. As violências homofóbicas também são engendred; têm como operador o marcador de gênero.
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agressões contra idosos e, no distrito poli-
ao réu que, embora tenha cometido um
cial comum, argumentava-se que esse tipo
crime, é tido como doente e não poderá
de violência seria encontrado na delegacia
ser condenado. O imaginário sobre a lou-
da mulher – o que foi negado também por
cura passa a ser um mecanismo eficiente,
esta instituição. Segundo as autoras, du-
já que desloca tais crimes da esfera da ra-
rante o processo de criminalização da vio-
cionalidade, pondo -os no lugar do descon-
lência contra o idoso, esta passa a ser
trole emocional. Enquanto a estratégia da
transformada em violência doméstica; e se,
saúde mental foi mais convincente para
por um lado, há a tendência de feminizar as
crimes de filhos contra pais, a da moral
vítimas, por outro as causas do crime são
familiar foi mais significativa nos crimes
vistas como tendo um caráter moral, “re-
de pais contra filhos, encaixando -os em
sultados da incapacidade dos membros da
outra esfera de inteligibilidade – a da au-
família de assumir os diferentes papéis que
toridade e da hierarquia paternas.
devem ser desempenhados em cada uma
Ao pensar os crimes em família a
das etapas do ciclo da vida familiar” (2009,
partir de campos conceituais, é possível
p. 23). A família, assim, passa a ser respon-
aproximar esposas e filhos, de um lado,
sabilizada tanto pelo cuidado quanto pelo
maridos e pais, de outro. Feriani (2009)
infortúnio de seus membros mais velhos.
argumenta que a defesa da vida pelas mu-
Ao fazer pesquisa sobre crimes de
lheres e a loucura dos filhos pertencem a
homicídio e tentativa de homicídio entre
um mesmo referencial simbólico – vitimi-
pais e filhos, tramitados entre 1992 a
zação, irracionalidade, descontrole emo-
2002, no Fórum de Campinas, Feriani
cional (polo feminino). Por sua vez, a defe-
(2009) identifica e analisa duas estraté-
sa da honra pelos maridos e a autoridade
gias jurídicas principais no julgamento
dos pais trazem como elementos a inten-
dos casos. Na primeira, chamada de “mo-
cionalidade da ação, a racionalidade, o au-
ral familiar”, já mostrada por outros estu-
tocontrole, a pessoa em sua especificidade
dos, há uma tentativa por parte dos atores
hierárquica (polo masculino). Enquanto a
jurídicos de encaixar réu e vítima em pa-
conjugalidade parece ser vista como espa-
péis socialmente esperados de pai, mãe,
ço do perigo em potencial ou de alta peri-
filho, esposa e marido. Já no argumento
culosidade, tendo como principal figura
da “saúde mental”, não se trata de discutir
jurídica a defesa, as relações geracionais,
a adequação às posições socialmente ti-
por sua vez, tendem a anular a potenciali-
das como corretas, mas de intervir no sen-
dade do perigo pela figura jurídica da
tido de possibilitar um tratamento médico
inimputabilidade.
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Os estudos sobre violência doméstica
processos de parricídio tramitados em duas
mostram que o argumento de preservar a
varas do Júri do Fórum de São Paulo, no
família é muito recorrente nas arguições,
período de 1990 a 2002, as pesquisadoras
sobretudo dos advogados, o que leva a tra-
percebem que há um interesse da justiça
tar os crimes que ali ocorrem como inci-
em punir os homicidas quando eles não re-
dentes domésticos e a absolvição como o
cebem apoio de outros familiares. Por sua
resultado mais conveniente. As pesquisas
vez, os atores jurídicos relativizam o grau
confirmam o alto índice de absolvições e
de culpabilidade dos acusados, seja atenuan-
desclassificações de delitos nos crimes em
do a pena ou absolvendo-os, “...ao reconhe-
família, tanto nos crimes que chegam às
cerem, implicitamente, que a família preci-
delegacias especializadas e aos juizados es-
sa ser preservada nos casos em que os
peciais quanto os que chegam ao Tribunal
parentes dos acusados não visam sua puni-
do Júri. Flávia Melo da Cunha (2008) mos-
ção” (p. 206). Concluem, assim, que argu-
tra que, a despeito da gravidade das lesões
mentos como violenta emoção, legítima de-
ser atestada pelos laudos médicos e pelas
fesa da honra, defesa própria, putativa ou
marcas corporais das vítimas – cicatrizes,
de terceiros, inimputabilidade por insani-
perdas de membros, fraturas –, os crimes
dade mental são maneiras de “encobrir o
são classificados como “lesão corporal
caráter violento que a vida familiar pode
leve”, sendo que uma pequena quantidade
assumir” (p. 207).
de ocorrências se transforma em inquéritos
Ao entrevistar advogados e promoto-
policiais. A autora contrapõe, assim, a invi-
res e ouvir conversas informais entre eles,
sibilidade do crime de lesão corporal grave,
na vara do Júri de Campinas, Feriani
nas delegacias, com a visibilidade que ele
(2009) mostra, porém, que não se trata de
ganha nas narrativas e nos corpos de mu-
preservar ou defender, mas de expulsar a
lheres agredidas por seus companheiros.
família do sistema de justiça ao reconhecê-
Para alguns estudos sobre violência
-la como palco de conflitos insolúveis, um
doméstica, a tentativa da justiça é de preser-
caso complicado demais para o Direito Pe-
var a família ou, ao menos, um ideal de famí-
nal lidar. Assim, os crimes entre familiares
lia. Assim, Debert et al. (2008) argumentam
ora são “jogados” para a psiquiatria como
que a absolvição nos casos de violência fami-
crimes horríveis, ora são devolvidos à fa-
liar “é conduzida pela lógica, ainda presente,
mília, com a volta do réu para a casa. Como
da defesa da família e dos julgamentos a par-
já mencionado, no JECrim é exatamente
tir do perfil social considerado adequado de
pelo fato de a agressão ocorrer na relação
vítimas e acusados” (p. 6). Ao analisarem os
conjugal que ela é reprivatizada.
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Sem querer desconsiderar a influên-
-la na medida em que a família passa a ser
cia que atributos como cor da pele e classe
vista como a única instância capaz de
social têm no andamento e desfecho dos
exercer um controle sobre indivíduos, em
casos na justiça, tais atributos parecem
que os deveres da cidadania e os valores
não ser determinantes para a sentença ou
que orientam a construção das diferentes
a dosagem da pena nos crimes em família.
instituições do sistema de justiça não têm
Os dramas familiares, as posições de pais
ressonância. Para Debert (2001), a família
e filhos, maridos e esposas, os comporta-
tende a ser vista como única solução para
mentos que uns devem ter em relação aos
a chamada cidadania malograda, ou seja,
outros são mais importantes do que as ou-
o cidadão pobre e incapaz de exercer os
tras marcas sociais. Os réus condenados
seus direitos.
não o foram por serem pobres ou negros, mas porque não cumpriram uma série de exigências tidas como próprias da vida em família e das obrigações de cada um de
19.4. Justiças do diálogo: gênero, família e população de baixa renda
seus membros.
Tanto as instituições que promovem
As análises críticas da família e os
a “mediação” de conflitos quanto os Juiza-
esforços para mudar o modelo de família
dos Especiais Criminais que implementa-
tradicional têm sido centrais no movimen-
ram pela primeira vez a “conciliação” na
to de mulheres. Trazer a discussão de gê-
justiça penal – cada uma, a seu modo – fa-
nero para o âmbito doméstico indica, de
zem parte do que estamos chamando de
acordo com Debert (2001), uma repriva-
justiças do diálogo, isto é, das “novas jus-
tização de questões políticas, por meio
tiças” ou “justiças alternativas”6. Estas jus-
da qual o papel da família é renovado, pas-
tiças trazem uma dinâmica comunicacio-
sando a ser a família uma aliada funda-
nal, do diálogo, ou da negociação entre as
5
mental das políticas sociais. Ao mesmo tempo em que a judicialização (a entrada do sistema de justiça no mundo privado) torna pública e criminaliza a violência fa-
partes, como formas alternativas de administração de conflitos, pautadas em um estilo não adversarial.
miliar, possibilitando o julgamento e a punição dos culpados, acaba por reprivatizá5.
Ver FONSECA, Cláudia (2003) e PISCITELLI, Adriana. Re-criando a (categoria) mulher. In: ALGRANTI, Leila M. (Org.). Textos Didáticos 48: a prática feminista e o conceito de gênero. Campinas: IFCH -Unicamp, 2002.
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6.
Garapon (1998, p. 230) define: “As novas formas de justiça têm em comum o fato de atribuírem uma grande importância ao contato entre as partes, com o sentimento delas, é claro. O quadro é especial: seguramente ele é mais flexível que o procedimento jurídico, mas não é por isso totalmente informal. Contra a burocracia e as filas, o contato pessoal oferece todas as vantagens. Os protocolos insistem na necessidade de reunir todas as partes envolvidas”.
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As justiças do diálogo surgem como
das de mediação com fins lucrativos que
forma de administrar conflitos no sistema
se voltam, geralmente, para pessoas jurídi-
de justiça no Brasil em um momento tanto
cas do setor econômico e financeiro. Com
de expansão de direito e de judicialização
isso, mostram-se os diferentes usos das
das relações sociais (VIANNA et al., 1999)
justiças do diálogo, em cada contexto em
quanto de retratação, informalização e
que são aplicadas, produzindo práticas e
desjudicialização, visando uma nova rela-
significados distintos.
ção entre o judicial e o não judicial na administração da justiça. Nas discussões sobre as melhores formas de administração e resolução de conflitos sociais, ora enfatizam-se leis de aumento à repressão, com base em modelos que valorizam o conflito das partes em lados opostos, ora adotam-se modelos negociados, de busca do acordo e do Direito Penal mínimo. Essas tendências, apesar de parecerem contraditórias, coexistem no sistema jurídico brasileiro atual. Ao mesmo tempo em que se promulga a Lei dos Crimes Hediondos e se entra na discussão da redução da maioridade penal, têm-se a Lei dos Juizados Especiais
O controle social descentralizado, que cria outros espaços de justiça, é uma inovação, mas não necessariamente menos coercitiva ou reguladora. Como discutem Rose (1998) e Garland (1999), o Estado, no período pós-Estado Providência, nos países que tiveram esse Estado forte durante algum tempo, passa a assumir uma posição de regulador à distância, desresponsabilizando-se de atividades tradicionalmente estatais, tal como a de produção de justiça. De acordo com Garland (1999), há um problema nessa expansão dos meios alternativos ao Judiciário e nes-
Criminais e, também, projetos de Justiça
se novo papel do Estado, principalmente
Restaurativa7 e de mediação. Surgem,
no que diz respeito às políticas criminais.
também, como políticas públicas de justi-
O autor afirma que:
ça alternativa, os centros governamentais e não governamentais de mediação e justiça comunitária, além de empresas priva7.
A justice reparatrice inscreve -se na ruptura com o modelo punitivo. Ela está presente como forma de justiça que se pretende diferente do modelo reabilitativo e do terapêutico. Os promotores da Justiça Restaurativa concebem o crime ou a infração como uma situação portadora de problemas físicos e psicológicos que convém ser reparada. A reparação é realizada por meio da conversa entre as partes envolvidas sobre a infração e suas consequências, buscando medidas de reparação negociadas (ROJAQ, 2004).
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“
Os grupos que mais sofrem com a criminalidade tendem a ser os membros mais pobres e menos poderosos da sociedade, que são desprovidos quer de recursos para comprar segurança, quer de flexibilidade para adaptar suas vidas cotidianas e se organizar de forma eficaz contra o crime. Essa disparidade entre ricos e pobres – que coincide com a divisão entre as classes detentoras da propriedade e os grupos sociais que são considerados como uma ameaça para a propriedade – tende a nos arrastar para uma socieda-
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Direito, Diferenças e Desigualdades de fortificada, caracterizada pela segregação e o abandono de todo ideal cívico” (GARLAND, 1999, p. 76).
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profissionais, não apenas do âmbito jurídico, possam atuar na administração de conflitos a partir de uma lógica do diálogo,
No Brasil, pesquisas8 têm mostrado
visando reestabelecer a comunicação en-
que as justiças do diálogo inserem-se no
tre as partes ou, se possível, um acordo.
tema sobre desigualdades e marcadores
Esse fato desloca a legitimidade de admi-
sociais de classe, raça, gênero, na medida
nistração de conflitos para outros saberes,
em que as instituições que promovem a
tais como a psicologia e a assistência so-
mediação e a conciliação extrajudicialmen-
cial, em um ambiente que antes era reser-
te, ou como foi também o caso do JECrim
vado apenas aos profissionais da área jurí-
antes da Lei Maria da Penha, têm sido usa-
dica. Se isso tem ganhos enormes por um
das principalmente por mulheres que re-
lado, visto que o conflito passa a ser perce-
correm por conflitos familiares. Além dis-
bido em outras dimensões que não somen-
so, estudos como o de Sinhoretto (2006)
te a jurídica, por outro lado corre o risco
têm apontado o surgimento de uma “jus-
de problemas sociais serem transformados
tiça de segunda classe” por meio das justi-
em questões privadas, que são percebidas
ças alternativas, ou seja, não há o processo de criação de alternativas à justiça, mas sim uma justiça mais informal como única opção para as minorias desfavorecidas e sem acesso ao sistema de justiça formal. Assim, não se promove uma ampliação do acesso à justiça, mas cria-se outro ambiente, mais informal e menos regulado pelas regras da lei universal, para a administração de determinados tipos de conflitos, principalmente os que envolvem relações familiares, tendo como usuárias as mulheres na maioria dos casos. A mediação de conflitos, como forma alternativa de justiça, propõe que outros
8.
Beraldo de Oliveira (2010); Sinhoretto (2006); Simião (2009).
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pelos profissionais como dificuldade de comunicação entre as partes em conflito. Essa ressalva é importante porque as políticas que visam efetivar medidas voltadas para a conciliação e a mediação no Judiciário concebem estes procedimentos alternativos como a solução do colapso do sistema, hoje amontoado de processos que clamam pela prestação jurisdicional. E o seu lema é retirar esses problemas do Judiciário, responsabilizando os próprios indivíduos envolvidos. Além do foco na celeridade e desburocratização do sistema, uma crítica comum é a preocupação em relação às discrepâncias de poder entre as partes em conflito quando se usa a mediação ou conciliação (NADER, 1994). Argumenta-se
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que o processo menos formal e regulado da mediação é mais sujeito a preconceitos, permitindo que características socioculturais contribuam na tomada de decisões sem referência a regulamentos legais (ABEL, 1973). Postula-se que a informalidade é desvantajosa para indivíduos menos poderosos, particularmente às mulheres, às minorias e aos pobres (DELGADO et al., 1985). Problemas sociais e de justiça correm o risco de serem vistos como problemas individuais e de tratamento. Por exemplo, em uma pesquisa desenvolvida
forem capazes de desenvolver atitudes adequadas podem facilmente se livrar das práticas discriminatórias, encontrando caminhos capazes de restaurar direitos e práticas libertárias. Desta perspectiva, não podemos cair na armadilha de transformar a violência, o poder e o conflito em problemas de falta de confiança e autoestima dos oprimidos ou, então, de dificuldade de comunicação” (DEBERT; GREGORI, 2008, p. 167).
O que interessa, nesse momento, é destacar que, além de não se colocar o foco em uma categoria específica, como mulheres, idosos, homossexuais, não seria o caso também de colocar o foco nos indi-
por Rachel Field (2005) sobre as práticas
víduos que se comunicam mal (base das
alternativas restaurativas no Judiciário
justiças do diálogo) e, por isso, são inca-
entre vítima-infrator adolescentes, verifi-
pazes de fazer valer seus direitos. Como
ca-se um desequilíbrio de poder para par-
argumenta Butler (2003, p. 35):
ticipantes do sexo feminino. Ela argumenta que as jovens do sexo feminino têm necessidades especiais e problemas oriundos de desequilíbrios adicionais de poder relacionados ao gênero e que tais questões precisam ser enfrentadas. Nesse sentido, Debert e Gregori (2008) argumentam sobre a importância da utilização do termo gênero no estudo do sistema de justiça:
“
Utilizar a categoria violência de gênero, principalmente nos estudos que têm como referência o sistema de justiça, foi incisivo na crítica à vitimização, que compreendia as mulheres como vítimas passivas da dominação. Contudo, o interesse pelas formas alternativas de justiça não pode nos levar ao extremo oposto, pressupondo que as mulheres que
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“
Em primeiro lugar, devemos questionar as relações de poder que condicionam e limitam as possibilidades dialógicas. De outro modo, o modelo dialógico corre o risco de degenerar num liberalismo que pressupõe que os diversos agentes do discurso ocupam posições de poder iguais e falam apoiados nas mesmas pressuposições sobre o que constitui ‘acordo’ e ‘unidade’, que seriam certamente os objetivos a serem perseguidos”.
O que acontece é que conciliar e mediar se transformaram em sinônimos de “desafogar”, em alguns casos, primando a agilidade a todo custo, o que culmina em um processo de falta de garantias de direitos e também reproduz desigualdades de poder, o que é base de muitas críticas sobre as justiças do diálogo.
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371
Outra discussão em torno da media-
menta que, nesse sentido, uma primeira
ção de conflitos recai sobre o fato de que
consequência seria considerar a estratégia
esse método é considerado pelos seus ges-
“judiciarizante” como uma espécie de me-
tores como tendo maior potencial pedagó-
dida de curto prazo em termos de desdo-
gico em relação à justiça formal. Esse ar-
bramentos desejados na modulação das
gumento ajuda a compreender, em parte,
relações de gênero na nossa sociedade. O
porque a maioria dos casos tratados na
autor afirma que “A criminalização da ‘vio-
mediação são casos ligados a problemas
lência de gênero’ como reconhecimento
familiares. A “família” é considerada, pe-
pelo Estado poderia ser considerada uma
los mediadores e pelos idealizadores dos
‘dádiva ambivalente’ [...], pois a criminali-
projetos de mediação de conflito, como
zação exige a aceitação do tratamento pe-
um ambiente propício ao diálogo no intuito
nal dos casos” (RIFIOTIS, 2008, p. 8). A
de responsabilizar seus membros ou de
polarização desse conflito de gênero (víti-
“civilizá-los” (ELIAS, 1994). Contudo, ou-
ma versus agressor) traz alguns proble-
tros problemas, tais como conflitos entre
mas quando se observa o tratamento penal
pessoas que não se conhecem ou concer-
dado aos casos, causando uma tensão en-
nentes à reparação de bens materiais, são
tre o movimento de criminalização da vio-
percebidos pelos agentes jurídicos como
lência de gênero e a busca por alternativas
casos que não precisam de um “controle
não penais para a solução do conflito, ba-
pedagógico”, mas sim de um controle mais
seadas na conciliação e na mediação
normativo e formal, por meio da lei, com
(pressupondo um método que não polari-
garantias de direitos mais sólidas.
za as partes em conflito).
De acordo com Max Weber, a forma
A centralidade que o Direito ocupa
de legitimidade mais importante na socie-
nas políticas de ações afirmativas têm sido
dade moderna é a crença na legalidade.
pouco problematizada, assim como tam-
Em outros termos, a dimensão jurídica é
bém não há problematização das estraté-
sem dúvida fundamental na construção da
gias dos movimentos sociais via sistema de
legitimidade dos direitos. Porém, como
justiça, especialmente na criminalização
afirma o próprio Weber, a ordem da racio-
da violência de gênero. De toda forma, o
nalidade legal é geralmente menos aceita
Judiciário ainda é hoje um importante ele-
do que a ordem moral e do costume, essa
mento simbólico no campo da legitimidade
última se legitima pelo seu caráter rotinei-
acionada como parte estratégica de visibi-
ro e graças a sua exemplaridade. Rifiotis
lização e reconhecimento das lutas no
(2003), ao considerar Max Weber, argu-
campo de gênero.
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Manual de Sociologia Jurídica
Há um acordo quanto à necessidade
O sistema de justiça também não
de se repensar o sistema de justiça penal
pode ignorar esses vários outros, de carne
– sua burocracia, morosidade, reprodução
e osso, que clamam por ações afirmativas
de hierarquias e preconceitos e as cadeias
não como forma de obter privilégios, mas,
como depósitos humanos –, porém, deve-
pelo contrário, para ter acesso aos mesmos
-se também encarar as propostas alterna-
direitos garantidos pelo sistema democrá-
tivas de uma forma mais crítica, específica
tico. Não se pode alcançar o ideal de uni-
e contextualizada, para que elas não aca-
versalidade e igualdade da justiça se os
bem por reproduzir as mesmas desigual-
sujeitos de direito não são nem universais
dades e criar novas.
nem igualitários, mas envoltos em relações assimétricas, hierárquicas, com de-
Considerações finais
sigualdades de poder referentes às posições de gênero, raça, geração, sexualidade,
O antropólogo Clifford Geertz argu-
classe – relações essas que ganham conteú-
menta que o outro – ou seja, o diferente –
dos sociais e culturais diversos. O univer-
não pode mais ser ignorado. Vivemos em
sal, portanto, só faz sentido se o local for
um “mundo colagem” – um mundo globali-
levado em conta, ou seja, se as diferenças
zado, um mosaico de tradições, valores e
entre os sujeitos forem contempladas – e
culturas, em que o outro não está mais iso-
não negadas ou ignoradas. Ações como as
lado em um país longínquo e exótico, mas
delegacias especiais de polícia, leis como a
está do nosso lado, frequentando os mes-
Maria da Penha, a criminalização do racis-
mos lugares e partilhando as mesmas ex-
mo e da homofobia, assim como a política
periências. Para Geertz (1999), há duas
de cotas, são maneiras de preencher lacu-
maneiras tradicionais de se lidar com esse
nas no que diz respeito ao acesso à justiça
outro: o universalismo, ou o relativismo
e ao reconhecimento de direitos e identi-
radical, e o etnocentrismo, ou o olhar dis-
dades de grupos discriminados para o
tanciado. Se o primeiro nos leva a uma in-
exercício de uma cidadania plena.
capacidade de julgamento e ao apagamen-
Em uma sociedade extremamente
to das diferenças, o segundo nos leva a um
hierarquizada como a brasileira, alguns
obscurecimento de nossa posição em rela-
grupos sociais são considerados de segun-
ção ao mundo – e, no limite, a um obscure-
da classe: os pobres, os negros, as mulhe-
cimento de nós próprios, já que, segundo
res e outras minorias. Quando não vistos
o autor, conhecer o outro significa com-
em suas particularidades, tais grupos aca-
preender a nós mesmos.
bam sendo tidos como obstáculos ao fun-
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Direito, Diferenças e Desigualdades
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cionamento do sistema. É importante no-
de vê-los como sujeitos de direitos e cida-
tar que a universalidade de direitos não
dãos capazes de fazer um bom uso do Di-
pode ser atendida se não atentarmos so-
reito. No lugar de se julgar o crime pro-
bre a maneira específica pelas quais as
priamente, julga-se o quanto as partes
diferentes minorias passam por experiên-
envolvidas estão de acordo com esses pa-
cias de discriminação. Perde hoje total-
péis. De uma discussão legal, passa-se a
mente o seu sentido a questão de saber se,
uma discussão moral reificadora de desi-
ao privilegiarmos ações voltadas para as
gualdades. Um ponto importante, quando
minorias, não estaríamos abandonando os
se trata de eliminação da violência de gê-
ideais de igualdade e universalidade pró-
nero, é esboçar outros modos de conceber
prios da democracia.
a “família”. O indivíduo não precisa estar
O paradoxo está no fato de que, ao serem classificados como minorias por meio do reconhecimento de identidades e
atuando em algum tipo de papel familiar para ter direitos; por exemplo, uma prostituta pode sofrer violência de gênero.
direitos, tais grupos acabam por serem
O desafio é como articular o universal
vistos de maneira totalizante e homoge-
e o local, afinal todos somos sujeitos de di-
neizadora, tanto por parte da sociedade,
reitos, mas não somos sujeitos universais e
de maneira geral, quanto por parte do sis-
igualitários. Os Direitos Humanos só pode-
tema jurídico. Neste, a consequência pode
rão receber esse nome se os direitos indivi-
ser o de reificar e justificar violências ba-
duais, particulares, forem contemplados.
seadas nas dicotomias e assimetrias refe-
Caso contrário, o ideal tão almejado da uni-
rentes aos marcadores sociais vivenciados pelos indivíduos, tais como gênero, geração, sexualidade, classe, raça etc. Assim, como vimos, tanto nas delegacias especia-
versalidade e igualdade do Direito, em uma sociedade democrática, continuará sendo uma maneira de encobrir diferenças e reproduzir desigualdades.
lizadas, nos juizados especiais, quanto no Tribunal do Júri, o sistema de justiça aca-
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