O Direito Tributário Brasileiro no Contexto de uma Nova Ordem Econômica e Financeira

May 30, 2017 | Autor: Dilson Franca | Categoria: Tax Law, International Tax Law, Taxation, Tax Treaties
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O DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO NO CONTEXTO DE UMA NOVA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA THE BRAZILIAN TAX LAW IN THE CONTEXT OF A NEW ECONOMIC AND FINANCIAL ORDER1 Dilson José da Franca Júnior2 Resumo: Recentes escândalos fiscais demonstraram a impotência dos sistemas tributários nacionais frente à sonegação fiscal e às mais diversas e criativas possibilidades em termos de planejamento tributário. Isso cria distorções no capitalismo de mercado, eis que o desejável seria que todos atuassem sob as mesmas condições concorrenciais e contribuíssem na medida de suas riquezas para o financiamento das atividades estatais. Diante disso, os Estados aparentam ter concluído que a solução do problema passa mais pela interação dos sistemas tributários do que por adequações isoladas na legislação interna. O presente artigo debaterá a atuação do Direito Tributário brasileiro nesse novo contexto do capitalismo. Palavras-chave: Direito Tributário; Tratados Internacionais; Modificações no Direito Interno. Abstract: Recent scandals have brought to surface the fact domestic tax systems’ lack of power on dealing with tax evasion as well as the abundant and creative solutions developed by taxpayers towards illegal tax planning. This scenario creates distortions to the free-market, once it is desired that every party should be in compliance with the same competition rules and contribute to finance the State’s mechanism in accordance to ones’ wealth. Based on that, States have concluded that the apparent solution to this problem should relates more to the interaction of international tax systems than the sole adjustment of any domestic legislation. This article proposes a debate on the position by the Brazilian Tax Laws over this new context of the capitalism regime. Keywords: Tax law; International Tax Treaties; Modifications on Domestic Law. Sumário: 1. Introdução; 2. Um breve esclarecimento sobre o contexto que antecede a interação dos sistemas tributários nacionais: escândalos fiscais e o poder da comunicação de massa; 3. Os tratados e convenções internacionais no âmbito legislativo brasileiro; 4. Breve síntese sobre os tratados e convenções internacionais em matéria tributária recentemente assinados pelo Brasil; 5. Repercussão dos tratados no direito interno brasileiro; 5.1. Relativização do sigilo bancário; 5.2. Criação de instrumentos para a troca de informações; 5.3. O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária; 5.4. Alterações no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas; 6. Considerações finais; 7. Referências bibliográficas. 1. Introdução O Direito Econômico, Financeiro e Tributário nunca esteve tão em voga. Muito em decorrência da crise econômica que assola boa parte do mundo, cujos efeitos mais contundentes são sentidos nos países em letárgico estágio de desenvolvimento, discute-se 1 Artigo originalmente publicado em “Revista Tributária e de Finanças Públicas. Vol. 130. Ano 24. p. 149-175. São Paulo: Ed. RT, set-out. 2016”. 2 Pós-graduado em direito tributário pelo Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER. Formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem experiência em direito público, com ênfase em direito tributário. Advogado. Email: [email protected].

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rotineiramente na imprensa falada e escrita sobre os problemas do déficit público, da escalada da dívida pública frente ao produto interno bruto, da alta taxa de juros e, também, da queda das receitas tributárias. Esses problemas invariavelmente prejudicam a atuação estatal naquilo que lhe é mais caro ou, ao menos, naquilo que lhe foi determinado em sua lei fundamental. A parte os problemas econômicos que podem ser caracterizados por sua natureza conjuntural, ou analisados sob o prisma dos ciclos sistêmicos de acumulação 3, parcela relevante daquilo que poderia representar receita para os Estados é severamente afetada por outras adversidades que também possuem amplitude global: a evasão e a elisão fiscal, aqui compreendidos no âmbito da sonegação fiscal e dos planejamentos tributários considerados abusivos, isto é, aqueles realizados sem substrato econômico ou negocial algum.4 No caso da sonegação, capitais deixam de ser declarados pelos contribuintes em seus respectivos domicílios fiscais e passam a integrar um patrimônio oculto, por vezes guarnecido por complexas estruturas societárias mantidas em “paraísos fiscais” 5, mormente viabilizado por offshores, impedindo, via de consequência, a tributação no país de origem. Mas não só. As receitas dos Estados também podem ser comprometidas por procedimentos que não necessariamente caracterizam alguma ilicitude. Trata-se dos “planejamentos tributários”, disponíveis a uma diminuta gama de contribuintes. Muitas vezes sustenta-se que, desde que as movimentações sejam declaradas às autoridades fiscais, inserindo-se, pois, no âmbito da elisão fiscal, e não da mera sonegação ou evasão fiscal, não haveria “nada de ilegal” na conduta de tentar recolher menos tributos e, com isso, aumentar o capital disponível para distribuição aos sócios ou até mesmo reinvestimentos da própria companhia. E, de fato, a caracterização da ilicitude nem sempre é tarefa das mais simples. De todo modo, quer-se esclarecer, desde já, que o presente artigo não visa debater a eventual licitude ou moralidade dos tais procedimentos. O que se deseja demonstrar é a fraqueza dos sistemas tributários nacionais frente às mencionadas condutas. 3 ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo; tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin. - Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996. 408 p. 4 A celeuma, entretanto, vale comentar, não se restringe à seara fiscal, invadindo, também, a livre concorrência, já que os contribuintes que se utilizam daqueles estratagemas têm maior margem para novos investimentos ou distribuição de dividendos. 5 No critério adotado pela legislação brasileira, são “paraísos fiscais” os países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam em alíquota inferior a 20% ou, ainda, cuja legislação não permita acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade. A lista contendo tais países é encontrada atualmente na Instrução Normativa RFB nº 1.037, de 4 de junho de 2.010.

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Pode-se afirmar, nesse contexto, que os sistemas tributários nacionais se encontram em crise, pois há uma margem relevante de contribuintes que se aproveita da complexidade ou das lacunas da norma tributária para ampliar seus ganhos (ou diminuir perdas). São os artistas na arte de criar irrealidade.6 Ou ainda pior: há uma margem também considerável de contribuintes que se quer se apega à zona cinzenta relativa à legalidade ou ilegalidade do procedimento, optam simplesmente por sonegar capitais e patrimônio.7 Para ambos os grupos, sonegadores contumazes e aqueles que se aproveitam das lacunas legislativas para recolher menos tributos, as políticas tributárias tendentes a alavancar a arrecadação fiscal são inócuas e aqui fazemos referência tanto às políticas de melhoria da fiscalização quanto às medidas legislativas que visam aumentar a carga tributária. Isto é, quem arca com as consequências imediatas dos programas de austeridade concebidos pela economia ortodoxa é, via de regra, a camada da sociedade que não sonega tributos ou que não se aproveita das lacunas legislativas. Os recentes escândalos financeiros – dos quais o Luxembourg Leaks, Swiss Leaks e o Panama Papers são bons exemplos – evidenciam a impotência dos sistemas tributários nacionais frente aos atos de evasão fiscal e das mais diversas e criativas possibilidades de planejamento tributário.8 Isso causa grave distorção no capitalismo de mercado, haja vista que o ideal consiste em uma concorrência com paridade de armas e tributação predefinida na medida das riquezas conquistadas. Em termos claros, a erosão das bases tributáveis representa agressão ao alicerce do sistema e, por esse motivo, deve ser combatida. Não combater esses arranjos que, como dito, privilegiam casta muito específica da sociedade, capaz de contratar a assessoria de consultarias tributárias de renome no mundo e, com isso, acessar os mais complexos planejamentos tributários, significaria dar vazão e 6 Palavras do Senador norte-americano Carl Levin, retratada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos em: https://www.icij.org/project/luxembourg-leaks/big-4-audit-firms-play-big-role-offshore-murk. Acesso em 15-05-2016. 7 Em recente estudo divulgado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, concluiu-se que, considerando os dados do exercício do ano de 2.014, a arrecadação tributária brasileira poderia ser 23,6% superior à constatada caso fosse possível eliminar a evasão tributária. Disponível em: http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos/sonegacao-no-brasil%E2%80%93uma-estimativa-do-desvio-daarrecadacao-do-exercicio-de-2014. Acesso em 15-05-2016. 8 Como forma de se demonstrar que o problema tem amplitude global, recomenda-se o rico documentário “ We are not broke” que, em interessante trabalho de pesquisa, vislumbra um traço em comum nos planejamentos tributários das grandes corporações: assumir seus respectivos lucros em países com tributação favorecida.

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efetividade a uma verdadeira plutocracia, algo que reputamos não ser inerente, tampouco sadio, à manutenção do capitalismo de mercado. Em meio a isso, aparenta ser senso comum que a solução para esses entraves passa muito mais pela interação internacional dos sistemas tributários, tendo como efeito imediato a relativização do sigilo bancário, do que pela adoção de posturas isoladas e internas. O Direito é, então, chamado a atuar nessa mise-en-scène, o quer faz, em um primeiro plano, por intermédio de tratados e convenções internacionais. 2. Um breve esclarecimento sobre o contexto que antecede a interação dos sistemas tributários nacionais: escândalos fiscais e o poder da comunicação de massa Uma das consequências da crise financeira de 2.008 – responsável por uma recessão que talvez tenha precedentes apenas na Grande Depressão de 1.929 – foi o consenso no sentido de que os Estados deveriam propiciar medidas que tivessem por finalidade a transparência tributária em nível internacional. Desde então assiste-se a uma tendência de relativizar os sigilos fiscais e bancários, algo que, aliás, foi muito bem sintetizado no Global Plan for Recovery and Reform, advindo da Cúpula de Londres do G-20: 15. To this end we are implementing the Action Plan agreed at our last meeting, as set out in the attached progress report. We have today also issued a Declaration, Strengthening the Financial System. In particular we agree: [...] to take action against non-cooperative jurisdictions, including tax havens. We stand ready to deploy sanctions to protect our public finances and financial systems. The era of banking secrecy is over. We note that the OECD has today published a list of countries assessed by the Global Forum against the international standard for exchange of tax information; [...]

Passados alguns anos, em novembro do ano de 2.014 o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) fez eclodir o escândalo financeiro que ficou conhecido como “Luxemburgo Leaks”.9 Basicamente, sem adentrar-nos aos eventuais vícios de legalidade no procedimento, o grupo de jornalistas revelou detalhes de planejamentos tributários de mais de trezentas corporações, demonstrando como essas companhias – com o auxílio de renomadas consultorias tributárias, mundialmente reconhecidas – diminuíam sensivelmente suas respectivas bases tributáveis em seus países de origem.

9 Reportagens e artigos disponíveis em: https://www.icij.org/project/luxembourg-leaks. Acesso em: 15-05-2016.

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O procedimento realizado pode ser sintetizado do seguinte modo: as corporações instalavam subsidiárias em Luxemburgo, que, em decorrência de seu sistema tributário, consente que “contribuições não mensuráveis” (hidden contribuitions) sejam deduzidas do lucro lá apurado. Essa dedução é refletida no lucro declarado nos respectivos Estados de origem das corporações, resultando em menor recolhimento dos tributos que incidem sobre essa base. O levantamento realizado pelo ICIJ revelou que, apenas no Brasil, duas instituições financeiras teriam deixado de recolher, com esse procedimento, aproximadamente duzentos milhões de reais à Receita Federal, considerando apenas os anos de 2.008 e 2.009.10 Em fevereiro de 2.015, o mesmo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos revelou que, entre os meses de novembro de 2.006 e março de 2.007, aproximadamente cem bilhões de dólares norte-americanos teriam sido movimentados em contas bancárias mantidas por determinada instituição financeira em Genebra, Suíça. Mais de cem mil clientes, pessoas físicas, estariam envolvidos. O número de empresas, offshores, detentoras das tais contas bancárias giraria em torno de vinte mil. A suspeita é de que a instituição financeira tenha acobertado, ou facilitado, movimentações advindas de sonegações fiscais. O escândalo financeiro ficou conhecido como “Swiss Leaks”.11 Com relação ao Brasil, os documentos revelados pelo ICIJ revelam que mais de oito mil clientes daquela instituição financeira detinham aproximadamente seis mil contas bancárias na Suíça, tendo movimentado, no período analisado, cerca de sete bilhões de dólares norte-americanos.12 De todo o modo, evidente que, desde que a origem dos recursos seja lícita e esteja o numerário devidamente declarado à Receita Federal, o mero fato de possuir uma conta bancária em país estrangeiro não significa, por si só, o cometimento de alguma conduta ilícita, seja sob o aspecto penal, seja sob o aspecto tributário. Mais recentemente, em abril de 2.016, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos fez despontar o escândalo conhecido como Panama Papers. O grupo de jornalistas obteve acesso a milhares de registros de uma firma de advocacia local, a qual possui representações espalhadas pelo mundo. Esses registros revelaram a utilização de offshores por organizações suspeitas de possuírem vínculos com o terrorismo e tráfico 10

Relato disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/11/1543572-itau-e-bradescoeconomizam-r-200-mi-em-impostos-com-operacoes-em-luxemburgo.shtml. Acesso em: 21-05-2016. 11 Reportagens e artigos disponíveis em: https://www.icij.org/project/swiss-leaks. Acesso em: 15-05-2016. 12 Relato disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/swissleaks-brasil-o-4-pais-em-numero-de-clientesenvolvidos-em-operacoes-do-hsbc-15285616. Acesso em: 21-05-2016.

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internacional de drogas. Revelaram, também, a suspeita de as offshores acobertarem capitais oriundos de corrupção, pois inúmeros envolvidos são políticos ou chefes de Estado.13 Tal qual nos outros escândalos mencionados – Luxemburgo Leaks e Swiss Leaks – o Panama Papers também repercutiu no cenário político e econômico brasileiro. Os documentos atestam que a firma de advocacia em referência abriu cento e sete offshores para cinquenta e sete pessoas citadas na “Operação Lava a Jato”. 14 Periódicos locais repercutiram, ainda, o envolvimento do principal grupo de comunicação do Brasil com as offshores abertas pela já citada firma de advocacia. A operações envolveriam, segundo as reportagens, negociações relativas aos direitos de transmissão de competições esportivas.15 Todos os recentes escândalos aqui mencionados tiveram grande repercussão em todo o mundo. Essa repercussão está atrelada, sem dúvida alguma, ao advento e concretização de uma sociedade de comunicação de massa, cada vez mais identificada com a rápida e irrestrita disseminação da informação, propiciada por meio da expansão da Internet. Hoje a informação alcança, em segundos, um sem número de receptores, bastando a inserção em um blog ou até mesmo um tweet limitado a cento e vinte e três caracteres. As redes sociais potencializam esse fenômeno, pois depois de já estar disponível a um sem número de leitores, a informação pode, ainda, ser repercutida entre os círculos de amizade. Muito em decorrência dessa conjuntura, que alia crise econômica, aumento de tributos, escândalos financeiros e amplo acesso à informação, despertou-se nas populações natural sentimento de reprovação, já que, sabidamente, os programas de ajuste fiscais idealizados pela economia ortodoxa só são suportados pelas camadas sociais que não têm acesso às complexas estruturas que, quiçá legalmente, lhes permitiriam pagar menos tributos. Como forma de responder aos anseios, os governos locais passaram a se movimentar no sentido de coibir e estabelecer sanções mais severas aos atos de sonegação fiscal e planejamento tributário abusivo.16 O professor Heleno TORRES retratou esse momento: 13 Reportagens e artigos disponíveis em: https://panamapapers.icij.org/. Acesso em: 21-05-2016. 14 Relato disponível, em inglês, em: http://www.reuters.com/article/us-panama-tax-brazil-idUSKCN0X11C1. Acesso em: 21-05-2016. 15 Relato disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/direto-de-sao-paulo/as-relacoes-entre-a-lavajato-a-globo-e-a-mossack-fonseca. Acesso em: 21-05-2016. 16 Um exemplo disso verificado no Brasil foi a tentativa, pelo Governo Federal, de incluir na Medida Provisória nº 627/13 instrumento que obrigaria a pessoa física, com domicílio fiscal no Brasil, a reconhecer os lucros decorrentes de participações em sociedades controladas domiciliadas no exterior na data do balanço no qual tivessem sido apurados. A referida medida provisória foi convertida na Lei nº 12.973/14. O dispositivo em questão, no entanto, foi suprimido do texto definitivo.

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O episódio “Panamá Papers” evidenciou muito bem o quadro de rejeição social às velhas práticas que marcaram a era dos “paraísos fiscais”, para manter disponibilidades e titularidade de ativos, recursos ou bens situados no exterior. Especialmente no quadro de crise econômica internacional, um novo padrão de moralidade eleva-se e considera inconcebível que justamente os mais ricos prefiram ocultar-se em estruturas de “offshores” para atingir o êxito de evitar a tributação. Daí serem todos confundidos, como se estivessem em situações idênticas, tanto aqueles que detém recursos de origem lícita e estão declarados no País de residência ou de nacionalidade, o que é permitido, quanto os que não estão declarados, apesar de ter origem lícita, e aqueles que possuem origem ilícita e não são declarados. Não basta que o titular seja uma pessoa proba e honesta ou que os recursos sejam frutos do trabalho ou do emprego legítimo do capital e da renda. Onde quer que estes se encontrem, dentro ou fora do País, o dinheiro e os ativos devem estar declarados às autoridades competentes e os impostos devidos, pagos periodicamente.17

Ainda no contexto de respostas ao problema global da sonegação e evasão, dez dias depois da eclosão do Panama Papers, a Rede Internacional de Colaboração e Informação sobre Refúgios Fiscais, ligada à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), convocou reunião extraordinária visando debater o tema. Ao que parece, os representantes governamentais estão convencidos de que a solução para o entrave não está apenas na adequação das legislações internas, tampouco na cominação de penalidades mais severas. A solução parece estar na interação dos sistemas tributários nacionais, exteriorizados juridicamente na forma de tratados internacionais. Ou seja, se mesmo antes da eclosão dos recentes escândalos fiscais já havia – ao menos no âmbito do G-20, do qual o Brasil faz parte – consenso no sentido de que os Estados deveriam atuar no sentido de buscar a transparência fiscal em nível internacional, inclusive chegando a afirmar que a era do sigilo bancário havia se encerrado, esse movimento tornou-se muito mais forte nos dias de hoje. Assiste-se a uma proliferação dos tratados que propiciam a troca de informações fiscais (Tax Information Exchange Agreement - TIEA).18

17 TORRES, Heleno Taveira. Integridade tributária e a regularização de ativos lícitos no exterior. Disponível em: http://jota.uol.com.br/coluna-da-sao-francisco-integridade-tributaria-e-regularizacao-de-ativos-licitos-noexterior. Acesso em: 21-05-2016. 18 A lista completa dos tratados de troca de informações está disponível em: http://www.oecd.org/tax/transparency/taxinformationexchangeagreementstieas.htm. Acesso em: 21-05-2016. Atualmente não existem tratados exclusivamente de troca de informações fiscais em vigor no Brasil. O Congresso Nacional analisa tratados desse tipo firmados perante Uruguai, Jersey, Guernsey e Ilhas Cayman.

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Isso não significa, contudo, que os Estados passarão a punir automaticamente os atos dos sonegadores contumazes ou, ainda, que inviabilizarão abruptamente a utilização das complexas estruturas societárias, geralmente alicerçadas ao abrigo da legislação de paraísos fiscais. Houve, em nosso sentir, um acordo tácito com o grande capital, ao menos o de origem lícita – não atrelado a praticas terroristas, tráfico de drogas ou corrupção estatal – a fim de que seus titulares regularizem suas respectivas situações com as autoridades fiscais. Antes daquilo que, para esses grupos, representaria a tempestade, inclusive com eventuais repercussões na seara penal, haverá, como será demonstrado, a possibilidade de aquisição da bonança, posta, inclusive, em liquidação pelos Estados. Antes disso, porém, convém perquirir sobre como e quando os tratados internacionais em matéria tributária passam a vincular Administração Pública e contribuintes no Brasil. Convém perquirir, também, se tais tratados possuem o condão de revogar ou ao menos afastar a eficácia da legislação brasileiras que com eles colidem. 3. Os tratados e convenções internacionais no âmbito legislativo brasileiro De acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados e a Convenção sobre o Direito dos Tratados entre os Estados e Organizações Internacionais, tratado é um termo genérico que pode ser empregado juntamente com convenção, protocolo, convênio, declaração, dentre outros. Nesse sentido, os tratados correspondem a ato jurídico que objetiva formalizar e exteriorizar determinado acordo de vontades entre dois ou mais atores de direito internacional (ACCIOLY e SILVA, 2002).19 Na didática lição de MORAES: As palavras tratado e convenção são sinônimas. Ambas representam acordo bilateral ou multilateral de vontades para produzir um efeito jurídico. Criam direitos e obrigações. Tratado (ou convenção) internacional vem a ser o ato jurídico firmado entre dois ou mais Estados, mediante seus respectivos órgãos competentes, com o objetivo de estabelecer normas comuns de direito internacional.20

Considerando apenas os tratados firmados entre os Estados, é certo que a expressão de consentimento normalmente é executada por um agente competente (chefe de Estado ou ministro de relações exteriores, por exemplo) e é materializada em um ato de governo. Os pressupostos para tanto são encontrados nas regras de direito interno, cujas 19 ACCIOLY, Hildebrando e NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do. Manual de direito internacional público. 15. ed. rev. e atual. por Paulo Borba Casella - São Paulo: Saraiva, 2002. p. 28. 20 RIBEIRO DE MORAES, Bernardo. Compêndio de direito tributário. Vol. II. 3. ed. - São Paulo: Forense, 1995. p. 26.

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especificidades variam, logicamente, de Estado para Estado. Os Estados Democráticos, porém, aparentam trazer um ponto de convergência, qual seja: a partilha do treaty-making power entre os Poderes Executivo e Legislativo (REZEK, 2007).21 Já tratando do sistema brasileiro de adoção e execução de tratados internacionais, a Constituição Federal vigente – que de tão modificada remete ao Paradoxo de Teseu 22 – afirma, em seu art. 21, I, que compete à União manter relações com Estados estrangeiros, do que se conclui que Estados-membros e Municípios não são reconhecidos como atores legítimos para figurar no polo de tratados e convenções internacionais. A rigor, aliás, não será a União quem figurará em tais atos, mas sim a República Federativa do Brasil: Se é competência da União, haveria que se definir a qual de seus Poderes cabe essa tarefa, porque são órgãos da União que representam o Estado Federal nos atos internacionais; não é a União que aparece nesses atos, mas a República Federativa do Brasil, porque é esta que tem personalidade internacional, não a União, que é entidade constitucional e pessoa jurídica de Direito Interno.23

Em meio a isso, o art. 84, VII e VIII da Constituição Federal esclarece ser competência privativa do Presidente da República manter relação com Estados estrangeiros, celebrar tratados, convenções e atos internacionais, todos sujeitos a referendo do Congresso Nacional, cabendo a este último resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (CF, art. 49, I). Trata-se, como já comentado, da partilha do treaty-making power. Percebe-se, assim, que a ordem jurídica brasileira prestigia a atuação do Poder Executivo e do Poder Legislativo no que tange aos tratados e convenções internacionais. Ao Presidente da República cabe a celebração de tais atos, enquanto que ao Congresso Nacional cabe o referendo. É de se dizer, portanto, que ao contrair determinada obrigação na seara internacional, o Presidente da República Federativa do Brasil deve, necessariamente, encaminhar o ato à apreciação do Congrego Nacional, que poderá ratificá-lo ou não. É nesse sentido, aliás, que a Professora Flávia PIOVESAN leciona: 21 REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 10. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2005. p. 58. 22 CHISHOLM, Roderick M. Person and object: a metaphysical study. Illinois: Open Court Publishing Company La Salle, 1979. p. 89 - 113. 23 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2. ed. - São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 402.

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A assinatura do tratado, por si só, traduz o aceite precário e provisório, não irradiando efeitos jurídicos vinculantes. Trata-se de mera aquiescência do Estado com relação à forma e ao conteúdo final do tratado. A assinatura do tratado, via de regra, indica tão-somente que o tratado é autêntico e definitivo. Após a assinatura do tratado pelo Poder Executivo, o segundo passo é a sua apreciação e aprovação pelo Poder Legislativo. 24

Em termos de processo legislativo, o texto a que o Presidente da República tenha se vinculado tramitará, inicialmente, na Câmara dos Deputados, qual terá o condão de arquivá-lo ou aprová-lo, ainda que com restrições, remetendo-o à apreciação do Senado. Na hipótese de aprovação por ambas as casas legislativas, promulga-se um decreto legislativo referendando o tratado assinado pelo Chefe do Poder Executivo (CF, art. 59, VI). Realizados esses trâmites, o Presidente da República poderá, enfim, ratificar o texto. Todo o trâmite legislativo acima sumarizado não é suficiente, porém, para que o tratado se incorpore definitivamente no arcabouço legislativo brasileiro. Para tanto, haverá a necessidade de o Presidente da República editar e publicar decreto promulgando o texto do tratado, o qual – para todos efeitos – terá força de lei. Somente a partir desse momento é que a República Federativa do Brasil estará obrigada, em termos normativos, a cumprir o quanto definido em tratado ou convenção internacional. A Excelsa Corte já decidiu nesse sentido: [...] É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe enquanto Chefe de Estado que é - da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais - superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado - conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno [...] 25 24 PIOVESAN, Flávia Cristina. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 77. 25 ADI 1480 MC, Relator: Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997, publicado no Diário da Justiça em 18 de maio de 2001.

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Uma vez esclarecido o trâmite legislativo determinado pela Constituição Federal acerca da aprovação e vigência dos tratados e convenções internacionais, convém abordar, especificamente, aqueles atos que têm por objeto as relações jurídico-tributárias. Nesse contexto, próprio o Código Tributário Nacional elucida, em seu art. 96, que a “expressão ‘legislação tributária’ compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. Sendo os tratados e convenções internacionais fontes inegáveis do Direito Tributário, é lícito afirmar que esses atos limitam o campo de atuação legislativa do Estado. Quer-se com isso afirmar que a legislação tributária interna, na concepção acima mencionada – a qual abrange tanto as leis em sentido estrito quanto os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas, as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa e as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas – não poderá ir de encontro ao conteúdo dos citados tratados e convenções internacionais. É nesse contexto que ganha importância a indagação relativa à possibilidade de os tratados e convenções internacionais revogarem a legislação interna. A resposta a isso aparentemente é encontrada no Código Tributário Nacional, no qual há a assertiva no sentido de que tais atos revogam ou modificam a legislação tributária interna.26 Porém, na visão de Luís Eduardo SCHOUERI, os tratados e convenções internacionais não revogariam a legislação interna, mas sim estabeleceriam novo padrão de observância. A discussão, em seu sentir, não seria de uma relação hierárquica, mas sim de competência. Em seu entendimento, fosse admitido o poder de revogação dos tratados e convenções internacionais e houvesse, porventura, a denúncia desses, a legislação interna não poderia voltar a ser aplicada: Incorre em má técnica o dispositivo, quando prevê a revogação da legislação tributária interna pelo tratado. O problema não é obviamente de revogação, mas de observância. Se fosse verdadeiro que um tratado revoga a lei interna, então que dizer da hipótese em que o tratado é denunciado? Acaso não se aplicará a lei interna? Tivesse ela sido revogada, então a resposta seria pela negativa, já que não há que se falar em repristinação no ordenamento brasileiro. Mais correto é ver que a denúncia do tratado apenas retira a barreira que limitava a aplicação da lei interna. 27 26 Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha. 27 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 2. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 204/205.

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Alberto XAVIER também aponta a impropriedade da redação do art. 98 do Código Tributário Nacional, o qual, em infelicidade técnica, aparenta consentir a possibilidade de a legislação interna ser revogada a partir de tratados ou convenções internacionais. Com o didatismo que lhe é peculiar, indica que a lei interna preexistente ao tratado ou convenção internacional torna-se relativamente inaplicável. Para XAVIER, portanto, a questão está inserida no plano da eficácia das normas internas frente aos tratados e convenções internacionais internalizados na legislação. É pertinente citá-lo: [...] é incorreta a redação deste preceito, quando se refere à “revogação” da lei interna pelos tratados. Com efeito, não se está aqui perante um fenômeno ab-rogativo, já que a lei interna mantém a sua eficácia plena fora dos casos subtraídos à sua aplicação pelo tratado. Trata-se, isso, sim, de limitação da eficácia da lei que se torna relativamente inaplicável a certo círculo de pessoas e situações, limitação esta que caracteriza precisamente o instituto da derrogação e decorre da relação de especialidade entre tratados e leis. 28

Posicionamento semelhante é o de Regina Helena COSTA. Para ela, também existe impropriedade técnica na dicção do art. 98 do Código Tributário Nacional, dado que tratados e convenções internacionais não revogam automaticamente a legislação interna. O que existe, a seu ver, é a distinção a partir do critério da especialidade. Como os tratados e convenções internacionais, depois de realizados os trâmites legislativos descritos, são recepcionados pela legislação interna, eventual incongruência com a legislação interna seria resolvida por aquele critério. A questão estaria, portanto, no plano da eficácia das normas: A dicção da norma em análise não é das mais técnicas, pois os tratados e convenções internacionais não “revogam” a legislação interna. A nosso ver, o que de fato ocorre é que as normas contidas em tais atos, por serem especiais, prevalecem sobre a legislação interna, afastando sua eficácia no que com esta forem conflitantes (critério da especialidade para a solução de conflitos normativos). Tal eficácia, portanto, resta preservada, para todas as demais situações não contempladas nos atos internacionais. 29

Paulo de Barros CARVALHO, por sua vez, entende que a internalização do conteúdo firmado no tratado ou convenção internacional ocorre no momento da aprovação do decreto legislativo. Em seu entendimento, portanto, realmente não seriam os tratados e convenções internacionais, por si só, responsáveis por revogar a legislação interna que 28 XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 6. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 119. 29 COSTA. Regina Helena. Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. 4. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: Saraiva, 2014. p. 284.

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disciplinasse o conteúdo em sentido contrário. No entanto, CARVALHO sustenta que os decretos legislativos, oriundos do Congresso Nacional, teriam esse condão: Há equívoco incontornável na dicção do art. 98, porquanto não são os tratados e as convenções internacionais que têm idoneidade jurídica para revogar ou modificar a legislação interna, e sim os decretos legislativos que os ratificam, incorporando-os à ordem jurídica brasileira. 30

A questão é complexa e certamente não será solucionada nestas breves linhas. De todo o modo, parece-nos evidente a impropriedade técnica do art. 98 do Código Tributário Nacional. Sustentar que tratados e convenções internacionais teriam, por si só, o condão de revogar a legislação interna implica desprestígio ao princípio da separação entre os poderes, resguardado pelo art. 2º da Constituição Federal. Ademais, implica também desrespeito ao processo legislativo para internalização dos tratados ou convenções, na medida em que estes devem, como visto, passar pelo crivo do Congresso Nacional. Isso não significa dizer, todavia, que há inconstitucionalidade insanável no art. 98 do Código Tributário Nacional. Significa, sim, que cabe ao intérprete extrair do dispositivo um comando que esteja em consonância com o texto constitucional. Em nosso sentir, é perfeitamente possível compreender que os “tratados e as convenções” internacionais mencionados no art. 98 do Código Tributário Nacional são aqueles já debatidos e avalizados pelo Congresso Nacional, ou seja, correspondem àqueles já veiculados no ordenamento jurídico interno sob a forma de decreto legislativo. Não nos parece, porém, que o decreto legislativo tenha força para revogar a legislação interna. Filiamo-nos à corrente doutrinária que enxerga no decreto legislativo um instrumento inserido no campo da eficácia das normas e não da hierarquia dessas. Com isso queremos afirmar que, caso haja comando interno que divirja do quanto estabelecido em decreto legislativo, não significará que tal comando esteja automaticamente revogado. Significará, é bem verdade, que sua eficácia momentânea estará comprometida em razão da existência do citado decreto legislativo. Deixando este último de existir em função de uma denúncia, a eficácia daquele comando interno estará restaurada. Adicionalmente, entendemos que o art. 98 do Código Tributário Nacional deve ser analisado também em âmbito prospectivo, em conjunto com as disposições constitucionais 30 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012. p. 170.

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que tratam da recepção dos tratados e convenções internacionais, em especial com o art. 5º, § 2º, segundo o qual os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil figure como parte. É de se dizer, nessa conjuntura, que os direitos dos contribuintes firmados em tratados e convenções internacionais possuem eficácia ab-rogativa de legislação posterior em sentido contrário. Realizado esse apanhado sobre a recepção, no ordenamento jurídico brasileiro, dos tratados e convenções internacionais que versam sobre Direito Tributário, convém perquirir acerca do conteúdo de tais atos. Conforme já delineado, os tratados e convenções internacionais delimitam o âmbito de jurisdição dos contraentes. Mas o delimitam em relação a quê? Normalmente os tratados internacionais em matéria tributária ou firmam procedimentos tendentes a evitar a dupla tributação, estabelecendo, portanto, direitos aos contribuintes, ou dizem respeito a diretrizes fiscalizatórias que, normalmente, redundam em troca de informações econômico-financeiras dos contribuintes. Abordaremos estes últimos. 4. Breve síntese sobre os tratados e convenções internacionais em matéria tributária recentemente assinados pelo Brasil Normalmente as medidas de trocas de informações fiscais firmadas entre os Estados se baseiam em um padrão adotado pela OCDE. Esse padrão estabelece que as informações trocadas pelas jurisdições são consideradas secretas e só poderão ser utilizadas pelas autoridades responsáveis pela coleta de tributos. Há previsão, inclusive, para a utilização das informações em embates entre contribuintes e repartições tributárias quanto à exigibilidade de tributos. Talvez ainda mais relevante, existe previsão dando conta de que o Estado contratante não pode se recusar a prestar informações apenas porque estas são detidas por instituição bancária ou porque tais informações são conexas aos direitos de propriedade. Seguindo a tendência mundial acima comentada, bem como tendo em vista o fato de que a economia contemporânea é caracterizada pela livre circulação de capitais, o Brasil também vem adotando medidas tendentes senão a eliminar, ao menos a atenuar substancialmente a evasão fiscal.31 Atualmente o Brasil possui trinta e três tratados 31 A propósito, o art. 199, parágrafo único, do Código Tributário Nacional somente permite à União permutar informações com outros Estados caso haja tratado internacional que confira suporte legal ao procedimento. Tratados aqui entendidos, logicamente, como as disposições já incorporadas na legislação brasileira, tal como analisado anteriormente.

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internacionais firmados com o fito de se evitar a dupla tributação. 32 Em boa parte, esses tratados destinam-se, também, a prevenir a evasão fiscal em relação ao imposto sobre a renda. Os tratados mais recentes, inclusive, seguem o padrão adotado pela OCDE, antes comentado. Os tratados bilaterais de troca de informações não são os únicos instrumentos utilizados com o fito de prevenir a evasão fiscal. Hoje assiste-se, também, à proliferação dos acordos multilaterais. Sobre isso, em 2.011 o Brasil assinou, perante o Fórum Global para Transparência e Troca de Informações Tributárias, a Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal33, a qual prevê troca automática e simultânea de informações fiscais e financeiras dentre os aderentes.34 O texto foi recentemente aprovado no Congresso Nacional, resultando na publicação do Decreto Legislativo nº 105, de 14 de janeiro de 2.016. Pode-se dizer que a adesão do Brasil à Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal possibilitará irrestrito controle, pela Receita Federal, dos rendimentos auferidos por brasileiros em outras jurisdições, aqui incluídos lucros operacionais, dividendos, royalties, ganhos de capital, doações, dentre outros. A primeira troca de informações envolvendo o Brasil terá por base dados relativos aos anos de 2.016 e 2.017. Daí se afirmar que, ao menos entre as jurisdições aderentes à mencionada convenção, será improvável que um contribuinte consiga ocultar patrimônio da autoridade fiscal que detém a prerrogativa de tributá-lo. Ainda no âmbito dos acordos multilaterais, talvez o que mais tenha chamado a atenção da imprensa especializada seja o Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), concebido pelos Estados Unidos da América. Por intermédio do FATCA, as instituições bancárias e financeiras em geral ficam obrigadas a fornecer informações relativas aos contribuintes dos países signatários (contas correntes e situações patrimoniais). A partir de tais informações as autoridades fiscais poderão aferir se o patrimônio mantido por determinada pessoa no exterior encontra-se declarado e se foi objeto de tributação.

32

A lista completa dos tratados firmados pelo Brasil está disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/acesso-rapido/legislacao/acordos-internacionais/acordos-para-evitar-a-duplatributacao/acordos-para-evitar-a-dupla-tributacao. Acesso em: 21-05-2016. 33 Mais conhecida por: Automatic Exchange of Information (AEOI). 34 Atualmente há cento e uma adesões. A lista completa pode ser consultada em: https://www.oecd.org/tax/transparency/AEOI-commitments.pdf. Acesso em: 22-05-2016.

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Trata-se, como dito, de um acordo de cooperação intergovernamental concebido pelos Estados Unidos. Concebido, aliás, em decorrência da constatação de que o Internal Revenue Service (equivalente à Receita Federal no Brasil) deixava de arrecadar vultosas quantias em razão da sonegação fiscal e do planejamento tributário tido por abusivo. Para se exemplificar,

em

2.009

uma

reconhecida

instituição

financeira

suíça

forneceu

aproximadamente quatro mil e quinhentos nomes de norte-americanos suspeitos de fraudar a legislação tributária norte-americana. A questão que se pode colocar a partir das intenções inseridas no FATCA é por qual razão as instituições financeiras, que sequer são parte no acordo, forneceriam as informações relativas a contas bancárias e/ou outros patrimônios detidos por norte-americanos fora dos Estados Unidos. A resposta está no próprio acordo. Nele há a previsão de que, caso a instituição financeira não coopere, sofrerá retenção em fonte de 30% em relação aos rendimentos oriundos de transações realizadas nos Estados Unidos.35 O Brasil aderiu ao FATCA no ano de 2.014. Transcorrido o trâmite legislativo que culminou com a aprovação do texto pelo Congresso Nacional, foi publicado no Diário Oficial o Decreto Legislativo 146, de 26 de junho de 2.015. Posteriormente, encerrando o iter procedimental, o Poder Executivo promulgou o conteúdo do acordo por meio do Decreto nº 8.506, de 24 de agosto de 2.015. Nele se constata, além de outras disposições, as informações que serão recebidas pela Receita Federal do Brasil acerca dos brasileiros que detêm contas bancárias nos Estados Unidos. Mais especificamente: (1) nome, endereço e CPF/CNPJ brasileiro de toda pessoa que seja residente no Brasil e titular da conta; (2) o número da conta (ou informação funcional equivalente, na ausência de número de conta); (3) o nome e o número de identificação da Instituição Financeira Informante dos EUA; (4) o valor bruto de juros pago na Conta de Depósito; (5) o valor bruto de dividendos de fonte dos EUA pagos ou creditados na conta; e

35 Tendo em vista o tamanho e a importância da economia norte-americana, é bem possível que a instituição financeira detenha investimentos naquele país e não deseje ter 30% de seus rendimentos retidos (o que inclusive pode inviabilizar o próprio investimento, a depender de seu custo).

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(6) o valor bruto de outras fontes de renda dos EUA pagas ou creditadas na conta, desde que sujeito à obrigação de prestação de informações nos termos da legislação norte-americana.

Além dos acordos sumariamente analisados, o Brasil é cooperante do Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), programa idealizado pela OCDE. A preocupação primeira do BEPS encontra-se na concorrência desleal que, como já afirmado, desvirtua o capitalismo de mercado, pois espera-se que os atores possam competir em pé de igualdade em um mercado verdadeiramente livre. Não é o que ocorre, evidentemente, quando alguns têm a possibilidade de se utilizar de complexas estruturas societárias e escolher a jurisdição que concentrará seus lucros ou parte deles, de modo a pagar menos tributos. Não é o que ocorre quando, deliberadamente, alguns optam por simplesmente sonegar tributos. Diante desse cenário, a OCDE idealizou, por meio BEPS, medidas que, se não eliminam, ao menos atenuam essa grave distorção no capitalismo. É nesse contexto que o BEPS, por exemplo, recomenda a elaboração de normas que obriguem as corporações a informarem às autoridades fiscais os atos e negócios jurídicos realizados sem razões extratributárias relevantes que impliquem supressão, redução ou diferimento de tributo. Tratase, grosso modo, da obrigação de o contribuinte revelar seu planejamento tributário à autoridade fiscal, a fim de que esta possa aferir a legalidade dos procedimentos realizados. Inspirado no comando sugerido pelo BEPS, o Governo brasileiro tentou inserir essa obrigação na Medida Provisória nº 685/15. A exposição de motivos da norma revelava, ainda, que o objetivo seria o de “instruir a administração tributária com informação tempestiva a respeito de planejamento tributário, além de conferir segurança jurídica à empresa que revela a operação, inclusive com cobrança apenas do tributo devido e de juros de mora, caso a operação não seja reconhecida, para fins tributários, pela RFB”. O dispositivo que trazia a obrigação, no entanto, foi eliminado por ocasião da conversão na Lei nº 13.202/15. O assunto certamente voltará à tona. Como se vê, assiste-se a uma nova fase do capitalismo e, por consequência, dos sistemas tributários que, até recentemente, eram circunscritos aos limites territoriais dos Estados. Agora, com a livre circulação de capitais e uma economia cada vez mais interpenetrada, há a necessidade premente de os sistemas tributários nacionais dialogarem entre si, sob pena de permitir-se a perpetuação dos planejamentos tributários considerados

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abusivos, bem como da simples sonegação fiscal. Sem a adoção dessas medidas, a livre concorrência, que é alicerce do capitalismo de mercado, sucumbirá. 5. Repercussão dos tratados no direito interno brasileiro 5.1. Relativização do sigilo bancário No Brasil o sigilo fiscal costumava ser tratado pela doutrina como um verdadeiro direito fundamental (e assim o é), dado que a Constituição Federal, por meio de seu art. 5º, XII apregoa serem invioláveis o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial. A regra era o sigilo absoluto, sendo este quebrado somente em casos muito específicos, atrelados normalmente a investigações criminais, e desde que fundamentado em ordem judicial. A consolidação da alteração desse cenário é recente. Iniciou com o advento da Lei Complementar nº 105/01, qual autoriza a Receita Federal a receber dados bancários dos contribuintes diretamente das instituições financeiras sem que haja qualquer interferência do Poder Judiciário no procedimento. A constitucionalidade do dispositivo foi, evidentemente, questionada e, em fevereiro de 2.016, o Supremo Tribunal Federal sacramentou que o recebimento das informações bancárias pela Receita Federal não implicaria quebra de sigilo, mas sim transferência deste da instituição financeira para a autarquia. Ou seja, mesmo diante dos entraves internos já se percebia, portanto, certa alteração quanto à concepção e alcance do sigilo fiscal no Brasil. A isso soma-se os recentes tratados assinados pelo Brasil em matéria tributária e que possuem por objeto a troca automática e constante de informações bancárias dos contribuintes. Pode-se apontar, portanto, que os referidos tratados contribuíram para alterar de modo significativo a concepção que se tinha acerca do “sigilo fiscal”. Se antes este era tratado sob uma áurea de direito absoluto, hoje não mais. Até porque, a propósito do tema: [...] apesar da relevância ímpar que desempenham nas ordens jurídicas democráticas, os direitos fundamentais não são absolutos. A necessidade de proteção de outros bens jurídicos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, pode justificar restrições aos direitos fundamentais.36 36 SARMENTO, Daniel. GALDINO, Flávio. Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 293.

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É de se dizer, nesse contexto, que a mitigação quanto ao alcance do sigilo fiscal e bancário não se dá à margem da legislação brasileira. Pelo contrário, pois com ela se coaduna. Acerca disso, cabe afirmar que, além de os referidos tratados terem obedecido aos requisitos formais previstos na Constituição Federal, a troca de informações fiscais é expressamente prevista na legislação interna. A própria Constituição Federal, aliás, em seu art. 37, XXII, menciona atuação integrada e compartilhamento de cadastros e informações fiscais entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Não bastasse, a mesma Constituição Federal é expressa ao afirmar, em seu art. 170, IV, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo ser observados diversos princípios, dentre eles o da livre concorrência. Ora, sendo a livre concorrência um dos princípios da ordem econômica brasileira, natural que medidas tendentes a resguardar e efetivar esses princípios encontram-se em consonância com o Texto Maior. Inadmissível nesse sentido seria não coibir atentos que atentam contra a livre concorrência, dos quais a sonegação e o planejamento tributário abusivo são bons exemplos. Não fosse suficiente, o art. 237 da Constituição Federal prescreve que a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, são exercidos pelo Ministério da Fazenda. Em outras palavras, o Ministério da Fazenda deve fiscalizar as transações realizadas com outras jurisdições, pois isso é essencial à defesa dos interesses nacionais. Como se vê, os tratados de troca de informações fiscais não estão à margem da legislação brasileira, mas sim dela decorrem. Logo, a própria Constituição Federal, assim como a concepção de que não existem direitos absolutos, amparam a relativização do sigilo fiscal e bancário. A rigor, as medidas que autorizam a troca constante e automática de informações ficais com outras jurisdições não implica o “fim da era do sigilo fiscal”, como muito se tem dito. Em verdade, o sigilo fiscal e bancário continuará existindo, com a única diferença de que as autoridades fiscais terão amplo acesso às informações. O que não significa dizer que poderão utilizar os dados para fins escusos. Nesse sentido, aliás, dispõe o Código Tributário Nacional: Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou

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financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

O contribuinte que tem seus ativos devidamente declarados – estejam esses ativos nos limites territoriais brasileiros ou não – não sofrerá qualquer impacto advindo dos tratados internacionais de troca de informações fiscais recentemente firmados pelo Brasil. A ele nada influenciará, também, a relativização do conceito “sigilo fiscal”, antes tido como direito quiçá absoluto. Os tratados em voga repercutirão, de fato, sobre duas espécies de contribuintes: aqueles que possuem patrimônio no exterior advindo de fontes lícitas, mas não declarado; e aqueles que possuem patrimônio no exterior advindo de fonte ilícitas. 5.2. Criação de instrumentos para a troca de informações Como já comentado, o Brasil se obrigou, por meio de acordos bilaterais e multilaterais, a fornecer informações bancárias de contribuintes a outras jurisdições. Isso cria a necessidade de estabelecer instrumentos que propiciem a coleta desses dados em um formato padronizado, assim como a transmissão destes às respectivas autoridades fiscais. Por razões lógicas, essas informações são detidas pelas instituições financeiras, sendo natural supor que elas são elemento crucial nesse novo cenário do capitalismo. Diante disso, a Receita Federal criou, por intermédio da Instrução Normativa RFB nº 1.571/15, nova obrigação acessória destinada aos bancos, seguradoras, corretoras de valores, distribuidores de títulos e valores mobiliários, administradores de consórcios e entidades de previdência complementar. A essa obrigação denominou “e-Financeira”. Dentre outras, o sistema trará as seguintes informações acerca dos contribuintes: I - saldo no último dia útil do ano de qualquer conta de depósito, inclusive de poupança, considerando quaisquer movimentações, tais como pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques, emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados ou resgates à vista e a prazo, discriminando o total do rendimento mensal bruto pago ou creditado à conta, acumulados anualmente, mês a mês; II - saldo no último dia útil do ano de cada aplicação financeira, bem como os correspondentes somatórios mensais a crédito e a débito, considerando quaisquer movimentos, tais como os relativos a investimentos, resgates, alienações, cessões ou liquidações das referidas aplicações havidas, mês a mês, no decorrer do ano; III - rendimentos brutos, acumulados anualmente, mês a mês, por aplicações financeiras no decorrer do ano, individualizados por tipo de rendimento,

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incluídos os valores oriundos da venda ou resgate de ativos sob custódia e do resgate de fundos de investimento; IV - saldo, no último dia útil do ano ou no dia de encerramento, de provisões matemáticas de benefícios a conceder referente a cada plano de benefício de previdência complementar ou a cada plano de seguros de pessoas, discriminando, mês a mês, o total das respectivas movimentações, a crédito e a débito, ocorridas no decorrer do ano; V - saldo, no último dia útil do ano ou no dia de encerramento, de cada Fapi, e as correspondentes movimentações, discriminadas mês a mês, a crédito e a débito, ocorridas no decorrer do ano; VI - valores de benefícios ou de capitais segurados, acumulados anualmente, mês a mês, pagos sob a forma de pagamento único, ou sob a forma de renda; VII - lançamentos de transferência entre contas do mesmo titular realizadas entre contas de depósito à vista, ou entre contas de poupança, ou entre contas de depósito à vista e de poupança; VIII - aquisições de moeda estrangeira; IX - conversões de moeda estrangeira em moeda nacional; X - transferências de moeda e de outros valores para o exterior, excluídas determinadas operações; XI - o total dos valores pagos até o último dia do ano, incluindo os valores dos lances que resultaram em contemplação, deduzido dos valores de créditos disponibilizados ao cotista e as correspondentes movimentações, ocorridas no decorrer do ano, discriminadas mês a mês, a crédito e a débito, por cota de consórcio; e XII - valor de créditos disponibilizados ao cotista, acumulados anualmente, mês a mês, por cota de consórcio, no decorrer do ano.

A primeira entrega da “e-Financeira” está prevista para o mês de maio de 2.016 e conterá informações relativas aos fatos ocorridos em dezembro de 2.015. Passado esse primeiro momento de transição, a “e-Financeira” passará a ser entregue até o último dia útil de fevereiro de cada ano, contendo as informações relativas ao segundo semestre do ano anterior; e até o último dia útil do mês de agosto, contendo as informações relativas ao primeiro semestre do ano em curso. A obrigação se insere, como se percebe, no contexto das trocas automáticas e constantes de informações fiscais e bancárias. 5.3. O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária O novo cenário financeiro impingiu ainda outras medidas por parte da legislação brasileira. Possivelmente a mais relevante seja o Regime Especial de Regularização Cambial e

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Tributária (RERCT), veiculado por meio da Lei nº 13.254/16. A intenção do governo brasileiro por meio desse programa de anistia penal com reflexos fiscais é a de ver regularizados os ativos não declarados ou declarados com omissão ou incorreção, remetidos ou mantidos no exterior por residentes ou domiciliados no Brasil. 37 Esses ativos abrangem, inclusive, aqueles que porventura estejam ou estiveram em nome de terceiros interpostos. Para tanto, o contribuinte deve se submeter ao imposto de renda na forma de ganho de capital, na alíquota de 15%. Segundo a legislação, a base de cálculo para a apuração desse tributo deve corresponder ao montante dos ativos objeto de regularização. Além disso, a legislação ainda prevê que sobre o imposto apurado deve incidir multa de 100%, o que redunda, na prática, na aplicação de uma alíquota global de 30%. Em suma: pagando-se 30% do patrimônio omitido ou declarado incorretamente, o governo brasileiro dá-se por satisfeito e considera o capital mantido no exterior até dezembro de 2.014 regularizado. Todavia, se bem analisada a legislação, se concluirá que o RERCT é ainda mais benéfico aos contribuintes. Isso ocorre pelo fato de a legislação afirmar que o patrimônio a ser regularizado deverá ser contabilizado pela cotação do dólar válida em 31 de dezembro de 2.014, ocasião em que a moeda norte-americana foi fechada em exatamente em R$ 2,6562. Evidentemente que, tendo em vista que a cotação do dólar subiu consideravelmente desde então, o impacto financeiro para a regularização é ainda menor do que 30% sobre os ativos. No momento em que é redigito este artigo, o dólar oscila entre R$ 3,50 e R$ 3,60. Considerando situação hipotética em que o contribuinte tenha omitido um milhão de dólares: USD 1.000.000,00 x 3,60 = R$ 3.600.000,00 (valor do patrimônio que seria efetivamente regularizado, pelo câmbio atual); USD 1.000.000,00 x 2,6562 = R$ 2.656.200,00 (valor contabilizado na cotação de 31-12-14, base para a incidência do imposto e da multa); R$ 2.656.200,00 x 30% = R$ 796.860,00 (imposto de renda e multa cobrados como condição para a regularização); R$ 3.600.000,00 - R$ 796.860,00 = R$ 2.803.140,00 (patrimônio regularizado e disponível); Porcentagem efetivamente paga para a regularização do patrimônio: 22,14%.

37 Não poderão se aproveitar das benesses do RERCT as pessoas físicas que forem detentoras de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas. Essa vedação se estende ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção.

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A questão penal também é resolvida no âmbito do RERCT. Isso porque não haveria sentido em ofertar ao contribuinte a possibilidade de regularização de seus ativos sem a anistia das possíveis ilicitudes penais cometidas quando da ocultação dos ativos em país estrangeiro. Dentre os crimes perdoados, cite-se a sonegação, a falsificação de documento público ou particular, a falsidade ideológica e o uso de documento falso, a evasão de divisas e a lavagem de dinheiro. A bem da verdade, portanto, pagando-se 30% dos ativos mantidos no exterior em dezembro de 2.014 (ou menos disso, a depender da cotação do dólar no momento da regularização) o contribuinte adquire uma causa excludente de punibilidade.38 5.4. Alterações no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas Por fim, outro impacto recente e decorrente dos tratados internacionais antes referidos diz respeito à Instrução Normativa RFB nº 1.634/16. Dentre outras disposições, o normativo exige que determinadas pessoas jurídicas, ao registrarem-se no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), identifiquem seus respectivos beneficiários finais. Essa postura passará a ser aplicada em 1º de janeiro de 2.017 para os novos registros. Em relação àquelas pessoas jurídicas inscritas no CNPJ antes dessa data, deverão informar seus beneficiários finais quando procederem alguma alteração cadastral, devendo informá-los até a data limite de 31 de dezembro de 2.018 (sob pena de suspensão do CNPJ). Serão obrigados39: i) clubes e fundos de investimento, constituídos segundo as normas da Comissão de Valores Mobiliários; ii) entidades domiciliadas no exterior que, no Brasil, sejam titulares de direitos sobre imóveis, veículos, embarcações, aeronaves, contas-correntes, aplicações no mercado financeiro ou de capitais ou participações societárias constituídas fora do mercado de capitais; iii) entidades domiciliadas no exterior que, no Brasil, realizem arrendamento mercantil externo, afretamento de embarcações, aluguel de equipamentos e arrendamento simples ou, ainda, importação de bens sem cobertura cambial, destinados à integralização de capital de empresas brasileiras; iv) instituições bancárias do exterior que realizem operações de compra e venda de moeda estrangeira com bancos no Brasil, recebendo e entregando reais em espécie na liquidação de operações cambiais;

38 De acordo com a interpretação conjunta extraída da Lei nº 13.254/16 e da Instrução Normativa RFB nº 1.627/16, o prazo para adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária se encerrará no dia 31 de outubro de 2.016. 39 Existem algumas exceções na Instrução Normativa RFB nº 1.634/16. A principal, a nossa ver, diz respeito ao caso das pessoas jurídicas constituídas sob a forma de companhias abertas no Brasil ou em países que exigem a divulgação pública de todos os acionistas considerados relevantes (desde que não sejam paraísos fiscais).

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v) Sociedades em Conta de Participação (SCP) vinculadas aos sócios ostensivos.

Muito poderia, e pode ser discutido quanto à extensão do conceito “beneficiário final”. De acordo com a norma, entretanto, o conceito corresponderia à pessoa natural que, direta ou indiretamente, controla ou detém influência significativa sobre a entidade. Influência significativa, ainda nos termos da norma, refere-se à pessoa natural que possui mais de 25% do capital da entidade, direta ou indiretamente, ou que detém ou exerce preponderância, ainda que indiretamente, nas deliberações sociais, tendo o poder de eleger a maioria dos administradores da entidade, ainda que sem controlá-la. Até o momento, bastava às referidas entidades, e aqui analisamos especificamente as estrangeiras titulares, no Brasil, dos mencionados ativos, indicar à Receita Federal quem seria o seu representante legal, responsável pelos direitos e obrigações assumidos em solo pátrio. Isso era suficiente para que a entidade obtivesse seu CNPJ e pudesse operar normalmente no Brasil. Não havia, em outros termos, a necessidade de se indicar os efetivos beneficiários finais das entidades, cenário este profundamente alterado com o advento da Instrução Normativa RFB nº 1.634/16. Pode-se afirmar, em meio a isso, que a Receita Federal do Brasil passou a exigir que essas entidades estrangeiras apontem, de forma minuciosa, todo o seu elo societário, até que seja identificada a pessoa natural identificada como beneficiária final. Certamente é uma ofensiva às estruturas construídas com o propósito de omitir o real beneficiário das atividades. O tempo dirá o grau de efetividade da medida, mas, em princípio, tem-se que a exigência de identificação do beneficiário final das estruturas combinada com a constante troca de informações fiscais entre jurisdições distintas sacramenta o início de uma nova era. 6. Considerações finais A Constituição Federal do Brasil afirma, de modo expresso, que a ordem econômica, fundada na livre iniciativa, possui por princípio, dentre outros, a livre concorrência. A afirmação do constituinte não foi feita por acaso, já que a livre concorrência é alicerce do capitalismo de mercado, devendo os Estados atuarem para corrigir as distorções nascidas das entranhas do sistema econômico. Sem a livre concorrência, estaremos cada vez mais próximos de uma consolidada plutocracia, conduzida pelas empresas globais.

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Não há livre concorrência quando um seleto grupo tem acesso a subterfúgios para contornar a legislação tributária e, com isso, pagar menos tributos. Também não há livre concorrência quando a sonegação fiscal é consentida tacitamente pelos Estados e instrumentalizada por meio de reconhecidas instituições financeiras. É kafkiano conceber planos de ajustes fiscais calcados no aumento de tributos quando, sabidamente, estes serão suportados em grande parte por aqueles que não têm acesso às complexas estruturas que lhes permitiriam pagar menos tributos ou que optaram por adimplir suas obrigações tributárias. A solução para esse entrave, de fato, está mais na concatenação dos sistemas tributários nacionais do que na adoção de medidas exclusivamente internas. É preciso que os Estados dialoguem entre si, troquem informações e bases de dados constantemente, a fim de verificar se seus nacionais (pessoas jurídicas ou físicas) estão cumprindo com seus respectivos deveres fiscais. Essa troca de informações é recepcionada pelo Direito inicialmente por meio dos tratados e convenções internacionais. No caso do ordenamento jurídico brasileiro, é necessário que esses tratados sejam analisados e ratificados pelo Congresso Nacional. Há, portanto, a partilha do treaty-making power. A crise econômica de 2.008 combinada com os recentes escândalos financeiros (Luxemburgo Leaks, Swiss Leaks e Panama Papers) impulsionaram a edição de acordos bilaterais e multilaterais envolvendo a troca de informações fiscais e bancárias entre jurisdições distintas. Troca esta, vale frisar, automática e constante. O Brasil, inserido nessa economia global, firmou importantes acordos nesse sentido, sendo pertinente citar o Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), firmado perante os Estados Unidos, e o Automatic Exchange of Information (AEOI), firmado no âmbito da OCDE. Ao contrário do que tem sido veiculado em alguns meios especializados, os recentes acordos de troca de informações fiscais firmados pelo Brasil não configuram o fim do sigilo bancário enquanto direito fundamental. Acerca disso, cabe reafirmar que não existem direitos absolutos, não sendo crível sustentar que o sigilo bancário possa acobertar atos de sonegação fiscal ou de planejamentos tributários abusivos. O interesse comum deve prevalecer. Ademais, não vislumbramos que a troca de informações entre administrações possa representar “quebra” de sigilo, haja vista que tais informações só poderão ser utilizadas para fins fiscais, devendo eventual vazamento a terceiros ser punido no rigor da lei.

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Além da relativização do sigilo fiscal, a legislação brasileira tomou providências adicionais para se adequar ao novo contexto do capitalismo. Foi estabelecida a oportunidade àqueles que possuem ativos no exterior não declarados (ou declarados incorretamente) regularizarem suas situações. Poderão ser regularizados os ativos detidos no exterior até o dia 31 de dezembro de 2.014. A regularização e a consequente anistia de uma série de crimes, envolvendo a própria sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro, são condicionadas ao pagamento do imposto de renda (15% sobre o valor dos ativos) e de uma multa (100% sobre o valor do imposto), redundando no recolhimento de 30% sobre o ativo a ser regularizado.40 Por fim, a legislação brasileira estabeleceu, recentemente, que as empresas estrangeiras detentoras de determinados ativos no Brasil devem, ao se inscreverem no CNPJ, revelar o beneficiário final de suas atividades. Isto é, deverá ser demonstrado à Receita Federal todo o elo societário existente até se chegar na pessoa natural que, de modo efetivo, figura como beneficiária das atividades. As pessoas jurídicas que já possuem CNPJ também deverão se adequar aos novos controles. A intenção é clara: transpor a barreira que, até pouco tempo, permitia que contribuintes se ocultassem em complexas estruturas societárias. Entretanto, todo esse contexto moralizador das relações jurídico-tributárias não será aplicado de modo imediato, tampouco olhará para os atos cometidos no passado, se assim desejarem os contribuintes que, tendo patrimônio de origem lícita, regularizarem suas situações perante suas jurisdições fiscais. Houve um grande acordo com o capital: a partir de agora, as fiscalizações serão realizadas de modo conjunto e efetivo, não havendo mais espaço para atos de sonegação fiscal e planejamentos tributários abusivos. Como forma de compatibilizar isso com as condutas passadas, foi concedida a oportunidade de os contribuintes regularizarem seus ativos e exporem seus elos societários. Trata-se do offshore voluntary disclosure. Atos de sonegação fiscal e de planejamentos tributários abusivos foram praticados até o momento, ao abrigo das legislações dos paraísos fiscais, ao abrigo das instituições financeiras e ao abrigo da ineficiência fiscalizatória. Porém, agora, com o advento e concretização da era da informação, os Estados vislumbraram que a segurança do próprio sistema econômico depende de uma postura mais agressiva. Daí a necessidade de combater os atos perniciosos, lesivos ao interesse público. 40 A bem da verdade, a tendência é que esse recolhimento seja ainda menor, dado ao fato de que a legislação determina considerar o valor do fechamento do dólar em 31 de dezembro de 2.014 para a conversão dos ativos em moeda brasileira.

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Mas, como dito, trata-se de um combate realizado de modo parcimonioso, onde todas as oportunidades serão dadas para a regularização dos ativos. 7. Referências bibliográficas ACCIOLY, Hildebrando e NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do. Manual de direito internacional público. 15. ed. rev. e atual. por Paulo Borba Casella - São Paulo: Saraiva, 2002. ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo; tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin. - Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012. CHISHOLM, Roderick M. Person and object: a metaphysical study. Illinois: Open Court Publishing Company La Salle, 1979. COSTA. Regina Helena. Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. 4. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: Saraiva, 2014. PIOVESAN, Flávia Cristina. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 10. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2005. RIBEIRO DE MORAES, Bernardo. Compêndio de direito tributário. Vol. II. 3. ed. - São Paulo: Forense, 1995. SARMENTO, Daniel. GALDINO, Flávio. Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 2. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012.

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SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2. ed. - São Paulo: Malheiros Editores, 2006. TORRES, Heleno Taveira. Integridade tributária e a regularização de ativos lícitos no exterior.

Disponível

em:

. Acesso em: 21-05-2016. _______________________. Brasil inova ao aderir às sofisticadas práticas do sistema do Fisco Global. Disponível em: . Acesso em: 23-05-2016. XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 6. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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