O discurso ambrosiano e as relações de gênero na comunidade milanesa do século IV

May 27, 2017 | Autor: Larissa Sathler | Categoria: Gender and Sexuality, Woman Studies, Ambrose of Milan
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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016 O discurso ambrosiano e as relações de gênero na comunidade milanesa do século IV Larissa Rodrigues Sathler Dias1 1. Introdução Nossa finalidade neste trabalho é analisar os tratados ascéticos de Ambrósio,2 o Sobre as Virgens e o Sobre as Viúvas, com intuito de compreender como foram estabelecidas as relações de gênero que permearam a comunidade milanesa do século IV.3 Para alcançarmos nosso objetivo, nos vinculamos à denominada Nova História Cultural, visto que acreditamos que qualquer análise da vida cotidiana dificilmente se desvinculará do mundo da cultura.4 Segundo José D'Assunção Barros (2005, p. 3), assim que passa a existir, e ao comunicar-se, qualquer indivíduo já produz automaticamente a cultura. Logo, comunicar, seja pela fala, pelos gestos ou pelo corpo, é produzir cultura. A História Cultural também nos interessa porque se preocupa com os meios, através dos quais se produz e transmite essa cultura, bem como com os padrões que estão por trás dos objetos culturalmente produzidos, ou seja, as visões de mundo, os sistemas de valores, os sistemas normativos e o modus vivendi relacionados aos vários grupos sociais (BARROS, 2005, p. 6). Em conformidade com esse pensamento, percebemos que os discursos de Ambrósio, nos quais é formulada a representação das virgens e das viúvas, revelam

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Mestranda em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo e membro do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano (LEIR)/Seção - ES. Esse artigo é um fragmento do projeto de dissertação intitulado Disciplinando os corpos das virgens e das viúvas: Ambrósio de Milão e a formação de uma hierarquia feminina na congregação milanesa (séc. IV), orientado pelo Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva. E-mail para contato: [email protected]. 2 Aurelius Ambrosius foi bispo da sé de Milão entre os anos 374 e 397. 3 Todas as datas deste trabalho são d.C., salvo quando expresso em contrário. 4 Campo historiográfico que se tornou mais preciso e evidente na década de 1980. Dentre os objetivos da chamada História Cultural encontramos a preocupação em resgatar de forma mais categórica o papel das classes sociais, da estratificação e do conflito social, além do pluralismo que permite formas alternativas para o processo de investigação histórica (SILVA, 2015, p. 17).

apreensões de mundo próprias do grupo ao qual o bispo pertence. Em outras palavras, estes discursos, que visam a formação dos corpos das ascetas, revelam a forma pela qual a elite episcopal via as mulheres. Como toda representação, esta também exprime as relações de poder de uma época, visto que demonstra o interesse do episcopado na difusão de uma ordem social apoiada no enquadramento cristão da conduta feminina. Para se compreender melhor a relação de poder subjacente à representação de virgens e viúvas, é necessário empregar os conceitos de corpo e de gênero tal como formulados por José Carlos Rodrigues (2006) e Joan Scott (1995) respectivamente. De acordo com Rodrigues (2006, p. 48), o corpo humano é socialmente concebido e, ao ser submetido a uma análise cultural, é capaz de revelar a estrutura de uma sociedade particular. Todas as sociedades, de certo modo, se apropriam do corpo. A despeito de ser um sistema biológico, ele também é afetado pela religião, pelo grupo familiar, pela classe ou qualquer outro fator social e cultural. Assim, mais do que um dado natural, o corpo é uma construção. Sobre ele são postas diferentes marcas em diferentes tempos, espaços, grupos sociais, étnicos e etc. Não obstante ao corpo, o gênero também é uma construção social. Essa compreensão de gênero como uma construção indica a rejeição de explicações a partir do determinismo biológico contido no uso dos termos sexo ou diferença sexual. Assim, a diferença estabelecida entre homens e mulheres na comunidade milanesa do século IV é uma criação inteiramente social, bem como a formulação de papéis adequados atribuídos a ambos os sexos pelo episcopado.

2. O poder e atuação dos bispos no século IV

A situação que envolve as virgens e as viúvas nos tratados de Ambrósio é típica de uma fase em que a Igreja está preocupada em fixar sua doutrina e estabelecer os papéis dos fiéis na comunidade cristã. O cuidado em demarcar de forma precisa o que era ou não ser cristão proveio do embate contra os variados movimentos dentro do cristianismo, as chamadas heresias. Conforme argumenta Silvia Siqueira (2010, p. 151), desde o século I a ressurreição de Jesus recebeu inúmeras interpretações que variaram de acordo com a

bagagem cultural das diversas comunidades espalhadas sob o domínio romano. Cada qual com sua perspectiva acreditava ser o detentor do verdadeiro ensino apostólico. É nesse quadro de conflito entre os próprios cristãos, que no século III surgiram as primeiras reuniões conciliares no Oriente com o propósito de avaliar as questões que envolviam, dentre outras, a Trindade, a imortalidade da alma e a obediência (SIQUEIRA, 2010, p. 154). A partir daí, vários encontros foram organizados com o intuito de definir e oficializar uma única posição a ser seguida pelas congregações. De acordo com Helena Amália Papa (2009), no século IV, essas contendas religiosas podem ser percebidas, por exemplo, no entrelaçamento entre o poder imperial e o poder episcopal, visto que ambas as autoridades pretendiam estabelecer uma unidade Imperial romana não apenas nos termos da fé como também nos termos territoriais, já que determinada postura doutrinária estaria mais bem estabelecida em um território uno do que em um território fragmentado. Assim, tornou-se crescente a intervenção dos imperadores nas questões religiosas, através dos sínodos e concílios, como também os eclesiásticos passaram a interferir cada vez mais na vida política e social dos habitantes de suas cidades. Prova disso é, em 325, Constantino realizou o primeiro Concílio ecumênico na cidade de Nicéia, convocando os bispos de todas as províncias do Império para arbitrarem acerca das inúmeras comunidades que não seguiam as orientações da Igreja Universal.5 Posteriormente, sob o governo de Teodósio, há um empenho indiscutível em se defender a religião cristã contra qualquer risco e concorrência, combatendo-se o paganismo e qualquer tipo de heresia. Por meio do Edito de Tessalônica (380), o imperador não apenas reafirmou as decisões tomadas no Concílio de Niceia como também impôs a todos os povos sob seu domínio a ortodoxia ocidental, o que foi empregado meticulosamente pelos bispos ocidentais (ZARDINI, 2008, p. 42-6).

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Segundo Siqueira (2010, p. 152), o vocábulo universal indicava aqueles indivíduos que reconheciam a autoridade no bispo de Roma e que estavam ligados à doutrina e aos ritos usados por aquela comunidade, diferentemente das demais comunidades também cristãs. A partir daqui, foi construída uma identidade coletiva específica da Igreja Universal: "Essa identificação sedimentou-se na definição da hierarquia da organização religiosa, na teologia, nos credos apostólicos, na definição da pessoa e na obra de Cristo – a encarnação, a trindade e a revelação profética".

Nesse contexto, percebe-se que, enquanto há uma tentativa de supressão das chamadas heresias e de seus líderes, alguns personagens cristãos passaram a deter uma relação de exclusividade com o divino. Como eleitos de Deus, monges, bispos, santos e mártires ocupam agora uma posição importante, não apenas na estrutura social do Império, mas principalmente nas comunidades cristãs do Ocidente e do Oriente. De acordo com Brown (1990, p. 260), por serem “desligados do mundo”, os bispos cristãos e demais membros do clero tornaram-se uma elite igual em prestígio às elites tradicionais. Não apenas por meio de suas vestes suntuosas, o bispo exprimia seu crescente prestígio na sociedade.

No seio da comunidade cristã, onde prevalecia um sistema público de

penitência, cabia aos bispos julgar, podendo excluir da eucaristia aqueles cuja transgressão afrontasse as diretrizes ortodoxas.6 Dentre os instrumentos empregados pelo episcopado para doutrinar e disciplinar os fiéis, verificamos que as homilias consistiram em um recurso pedagógico de extrema importância na Antiguidade Tardia.

Por meio delas, o clero proferia lições de

comportamento, definindo o que os fiéis deveriam ou não fazer, os lugares que deveriam frequentar e, até mesmo, os assuntos que deveriam receber comentários (SILVA, 2014, p. 56). Com relação à congregação milanesa, percebemos que as homilias que visavam a disciplinar o corpo feminino se multiplicaram sob o episcopado de Ambrósio. Os próprios tratados que compõem nosso corpus documental estão inseridos nesse contexto. Ambos têm como foco a disciplinarização dos corpos das devotas, ao mesmo tempo em que indicam o lugar por eles ocupado no interior da congregação.7 Além disso, por meio do discurso ambrosiano podemos investigar as formas de organização dessas comunidades, principalmente no que tange às relações de gênero. No entanto, antes de adentrarmos em

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Cercado de uma série de símbolos que realçam seu poder e prestígio, o bispo da época teodosiana domina e promove a justiça divina com segurança nas comunidades cristãs, pois “o bispo, [...] segundo o ponto de vista do observador, pode aparecer como um sacerdote, um político, um rétor, um jurista, um juiz, porém o resultado final é uma junção de todas estas figuras” (TEJA, 1999, p. 75). 7 De acordo com Silva (2014, p. 1-5), as homilias formam um gênero literário híbrido, empregado como um importante instrumento pelos eclesiásticos para a conversão da população entre os séculos IV e V. Embora até a época tardia do Império elas não ocupassem uma posição de destaque no conjunto da literatura cristã, no século IV elas atraíram a atenção, de modo surpreendente, dos Padres da Igreja, como Ambrósio, e também das populações urbanas e rurais.

nossa problemática, vejamos como o corpo feminino era percebido na antiga religião romana.8

3. A mulher no discurso religioso pagão

Desde o período republicano, as mulheres romanas foram excluídas da carreira política e nem tão pouco poderiam ocupar os altos cargos religiosos, visto que estes se encontravam na mão de um número muito importante e bem hierarquizado de sacerdotes (POCIÑA, 2014, p. 6-7). Todavia, embora o dever da vida religiosa e social na comunidade cívica ou no ambiente doméstico coubesse aos homens, a exclusão feminina não pode ser encarada de forma absoluta. Como nos aponta Santiago Montero (1998), a mulher romana, durante o Império, esteve ligada a todos os tipos possíveis de adivinhação, seja através das profecias, das consultas aruspicinas, da magia adivinhatória, da feitiçaria e das consultas astrológicas. Essa participação feminina nos cultos de magia pode ser entendida em um contexto em que Roma perde os limites de suas fronteiras territoriais e religiosas, aderindo, paulatinamente, às diversas formas de rituais estrangeiros. Mas retemo-nos por ora à participação feminina nos cultos oficiais do mos maiorum. Segundo John Scheid (1990, p. 467), o poder público religioso pertencia quase que inteiramente aos homens, porém, aqui também, encontramos um certo número de papéis sacerdotais que estava nas mãos de mulheres. Esse era o caso das virgens vestais, da flamínica e da esposa do rei dos ritos sagrados, a regina sacrorum. Na função de sacerdotisas públicas, as vestais deveriam manter e vigiar o fogo da lareira que se encontrava no santuário de Vesta, localizado no fórum romano. Além disso, também poderiam executar, por meio de palavras ou gestos, ritos sacrificiais comuns. Diferentemente das matronas romanas, essas sacerdotisas não estavam excluídas, por exemplo, do preparo da farinha mola salsa, que antecedia os sacrifícios públicos,9 nem da 8

Por questões técnicas optamos pelo uso do termo religião romana no singular, contudo, ressaltamos que o termo não é o mais apropriado visto que se trata de um fenômeno plural e múltiplo. 9 A chamada mola salsa era uma espécie de farinha ritual que era espalhada por cima de todos os animais conduzidos ao sacrifício público. Por meio do preparo desta farinha, as vestais se faziam presentes em todos os grandes sacrifícios públicos.

matança ritual, prevista na festa em que se sacrificava à Telo (Terra) ou ao deus Conso (SCHEID, 1990, p. 470-2). Embora, em um primeiro momento, sejamos levados a acreditar que as vestais superavam a condição subalterna das demais romanas, é preciso recordar que, supostamente, seu poder resultava do fato de não possuírem um status sexual definido. Segundo Mary Beard (1980), há duas hipóteses que circundam a origem desse sacerdócio. A primeira seria de que as vestais representavam as esposas dos primeiros reis romanos e, por isso, suas tarefas estavam estritamente relacionadas às das matronas. A segunda, por sua vez, diz que essas mulheres descendiam não das esposas, mas sim das filhas dos primeiros reis, o que explica mais facilmente o estado virginal.10 Todavia, para a autora, é mais provável que as vestais fossem associadas à figura masculina, pois possuíam privilégios outorgados apenas aos homens, como, por exemplo, o direito de depor em uma audiência pública (BEARD, 1980, p. 17). Logo, pode-se concluir que a identidade sexual que repousa sobre as sacerdotisas de Vesta é crucial para a compreensão do poder que detinham. No que diz respeito à flamínica (flaminica Dialis), sua função estava mais relacionada ao esposo, o flâmine de Júpiter, do que à si mesma (PARRA, 2007, p. 4). Como esposa de sacerdote romano, ela poderia realizar sacrifícios na medida em que ofertava um carneiro a Júpiter todos os dias de mercado. Do mesmo modo, a esposa do rei dos ritos sagrados, a regina sacrorum, detinha o direito de oferecer a Juno uma ovelha todo o primeiro dia do mês. Em ambos os casos, o que prevalece é a ideia de unidade do casal, sem a qual não seria possível que as mulheres envolvidas exercessem poder algum, e, como casal, é preciso ressaltar que o marido podia investir na esposa os seus poderes (SCHEID, 1990, p. 474-5). De qualquer modo, nos três casos apontados acima, como se pode averiguar e como bem retrata Sarolta Takács (2008), as ações das mulheres na antiga religião nunca ocorreram isoladamente. Cada ritual importante, realizado por elas, foi seguido por um homem. Scheid (1990, p. 488-93) conclui o seguinte a respeito dessa moderada participação religiosa 10

Para melhor compreender o status sexual das sacerdotisas vestais: BEARD, M. The Sexual Status of Vestal Virgins. Cambridge: The Journal of Roman Studies, V. 70, p. 12-27, 1980.

feminina: "esta marginalização religiosa era justificada pela opinião pública de que a mulher era incapaz de uma prática racional e razoável da religião, de qualquer religião". Acreditamos que esta "irracionalidade da mulher" estava vinculada à forma pela qual o corpo feminino era percebido nos discursos da época. De acordo com Peter Brown (1990, p. 19), estas polaridades que prevaleciam entre homens e mulheres na época clássica eram justificadas por uma hierarquia baseada na própria natureza. Por meio de discursos médicos, como o de Galeno, supunha-se que o corpo masculino fosse biologicamente perfeito. Possuidor de um excedente de calor e consequente espírito vital, ele se diferenciava do corpo feminino, cujo calor vital faltava e, por isso, era considerado um corpo masculino imperfeito. Efetivamente este discurso, que vinha sendo pregado desde Aristóteles, relegou as mulheres a um lugar inferior na escala social romana. Com a ascensão do cristianismo no Império Romano, uma nova forma de ver o corpo foi estabelecida. Todavia, a mulher continuou sendo vista sob a perspectiva de uma natureza inferior se comparada ao homem como se verá mais adiante.

4. A mulher no discurso cristão

Em seu estudo sobre Maria Madalena e as Mulheres no Cristianismo, Francisca Rosa da Silva (2008) afirma que, nos primórdios do movimento missionário cristão, as mulheres conquistaram certa autonomia religiosa. Suas casas tornaram-se igrejas domésticas e ali atuavam como líderes.11 Assim teriam surgido as primeiras comunidades cristãs. Contudo, na medida em que o cristianismo foi se estruturando, os conflitos de liderança emergiram e as mulheres aos poucos perderam seu espaço e importância. Devido a isso, a partir do século II, os bispos passaram a reivindicar os seus lugares na sucessão apostólica, e caso alguma comunidade mantivesse as mulheres em cargos de liderança, eram consideradas

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A participação feminina, nas comunidades cristãs do período paleocristão, tem sido objeto de diversos estudos teológicos e históricos, alguns deles apontam que, até fins do século II, a ação das mulheres tenderam para uma aproximação maior com o ideal de igualdade em relação aos homens. Sobre isto, ver MARTINEZ, N. S. La educación de las mujeres durante los primeiros siglos Del cristianismo: carta de san Jerónimo; HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Mujeres, carisma y castidad em el cristianismo primitivo; FIORENZA, E. S. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica.

heréticas (SILVA, 2008, p. 87-8).12 Nesse sentido Gilvan Ventura da Silva (2006, p. 309-10) afirmará que, em fins do século II, "o ofício feminino nas comunidades cristãs era explicitamente condenado", e mediante a isso, os sacerdotes cristãos tenderam a formular dois tipos de discursos: um contra a atuação das mulheres nas cerimônias litúrgicas e o outro que visava lhes "imputar a prática da devoção por intermédio de atividades bem menos espetaculares e mais discretas", o que redefiniu o lugar que ocupavam na assembleia. É nesse momento que surgiram diversos tratados com o objetivo de promover um padrão comportamental que tinha no ascetismo a sua plenitude. Neles, as virgens cristãs passaram a representar um componente fundamental do corpo místico da Igreja, ainda que seu prestígio não oferecesse nenhum perigo aos círculos episcopais. Devido à integridade de seu estado, as virgens alcançaram o cume mais alto da virtude cristã (BROWN, 1990, p. 298). Seus hábitos configuravam princípios normativos que definiam o ideal religioso a ser seguido por toda a congregação. Ocupando um status superior se comparado às outras fiéis, sua função estava diretamente ligada à santificação da cidade, o que permitiu que seu propósito de vida se manifestasse publicamente. Quanto às viúvas, após a morte do esposo, alcançavam certa independência econômica e, na condição de administradoras de si mesmas e dos seus próprios bens, uma ampla liberdade de movimentos e um papel de primeira ordem no exercício da caridade. Ao seguirem os preceitos da hospitalidade e da humildade, as viúvas manteriam um compromisso religioso que as colocava no segundo patamar da hierarquia feminina, logo após as virgens. À disposição da Igreja, mas impedidas de assumir cargos episcopais, virgens e viúvas cristãs converteram-se em personagens de caráter público, graças ao ascetismo e ao exercício da caridade que praticavam, alcançando uma liberdade pessoal que as pagãs contemporâneas não tiveram acesso (TEJA, 1999, p. 230).

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Este seria o caso das comunidades gnósticas. Segundo Brown (1990, p. 103), "os círculos gnósticos valorizaram imensamente os incidentes dos Evangelhos que descreviam as relações intimas de Cristo com as mulheres de seu círculo, em particular com Maria Madalena". Para Silva (2006, p. 308), embora o gnosticismo reconhecesse o dom da profecia nas mulheres, teologicamente, o mesmo não pode ser interpretado a priori como uma corrente anti-patriarcal, pois em diversos sistemas gnósticos o princípio feminino representava o que é vil e mundano, ao passo que o princípio masculino é associado à vida eterna e ao Espírito Santo.

5. A representação das ascetas no discurso ambrosiano

Ao analisar os tratados ascéticos de Ambrósio, percebemos que os mesmos foram marcados por um paradoxo quanto à representatividade feminina. Por um lado, seu discurso atende uma ordem proveniente da dominação masculina, sendo a mulher relatada como portadora de uma natureza débil: [...] a que não se jogou para trás pela debilidade do sexo [Débora], assumiu os compromissos que deveriam assumir os homens, uma vez assumido os cumpriu perfeitamente. [...] E por esta razão, penso que se há elegido seu juízo, considero que sua façanha tenha sido narrada para que as mulheres não sejam apartadas de seu dever de virtude pela debilidade do sexo feminino (De uiduis, 44).

Por outro, eles comprovam a superioridade da virgem através de sua comparação com os anjos: “[...] a castidade há feito também anjos. Aquele que a guardou é um anjo e aquele que a perdeu é um diabo” (De uirginibus, I, 52); ou pela ideia de que se tratavam de esposas de Cristo: “Considero também outro mérito da virgindade: Cristo é o esposo de uma virgem” (De uirginibus, I, 22); bem como a procedência de uma origem divina: “justamente buscou no céu seu modo de viver, o [modo] que teria seu esposo no céu” (De uirginibus, I, 11); Quanto às viúvas, percebemos sua superioridade quando diz que elas devem ser honradas pelos bispos: "[...] assim [apóstolo Paulo] também lhes atribui um grande elogio, de tal maneira que sejam honradas também pelos bispos" (De uiduis, 8); ou quando afirma que elas se aproximam dos mártires pelo vínculo da devoção e da misericórdia (De uiduis, 54); Esse pensamento ambíguo a respeito do feminino está intrinsecamente ligado ao conceito de corpo previsto pelo cristianismo. De acordo com Hidalgo de La Vega (1993, p. 229-30), a ideia que o cristianismo concebeu de corpo afetou homens e mulheres de maneira desigual. Isto ocorreu porque, no pensamento antigo, incluindo o cristianismo, a desigualdade entre os sexos era o elemento de partida para a elaboração de uma gama de teorias sobre as funções que as mulheres deveriam desempenhar na família e na sociedade. Nesse sentido, a sexualidade feminina era associada à passividade, enquanto a sexualidade masculina estava vinculada ao poder. Logo, a suposta natureza sexual feminina fazia da

mulher um ser inferior, débil e imperfeito, e conciliar isso com o ascetismo tornava-se um obstáculo intransponível, já que a relação de poder entre homens e mulheres tinha uma importância fundamental para a ordenação do mundo antigo (SALISBURY, 1995, p. 17). Sendo assim, foi necessário que se fizesse presente um posicionamento teórico que conciliasse as visões de sexualidade e poder com a nova realidade de castidade e poder, ou seja, um discurso que permitisse manter o ideal de virgindade, sem que as ascetas fugissem do controle episcopal. Como afirmamos acima, a ascensão do cristianismo no mundo romano proporcionou uma nova forma de ver o corpo. A despeito de ter sido mantida a ideia dualística clássica de perfeição ou imperfeição, o corpo passou a ser classificado segundo as fronteiras do que era carnal (sexual) e do que era espiritual.13 Essa nova caracterização do corpo previa que ascetas de ambos os sexos deveriam lutar contra a carne, contudo, a recomendação de uma vida ascética nos moldes episcopais não era a mesma para homens e mulheres. A explicação para isso é que o homem representava a parte espiritual desse mundo, enquanto a mulher, descendente de Eva, representava a carnal. Assim, da mesma forma em que se esperava que o espírito dominasse a carne, o homem deveria governar a mulher (SALISBURY, 1995, p. 401). Essa representação do gênero feminino, construída pelo primeiros padres da Igreja, inclui-se aqui Ambrósio, não apenas impôs às mulheres imagens paradoxais, como a de Eva pecadora e a de Virgem Maria - assexuada, mas também um conjunto de normas comportamentais rígidas que presumia a disciplina e transformação de um corpo irracional e carnal por natureza. Talvez aqui esteja a maior mudança prevista pelo cristianismo no que tange à percepção do corpo, ou seja, a possibilidade de transformação da sua matéria por meio das práticas ascéticas. Se pensarmos em que sentido essa mudança em relação ao corpo atingiu a mulher cristã, perceberemos que pelo menos uma parcela, mesmo que restrita, alcançou um prestígio social até então nunca visto na sociedade antiga. Em linhas gerais, percebemos que 13

Segundo Joyce Salisbury (1955, p. 27-8), os quatro primeiros pais da Igreja (Tertuliano, Cipriano, Ambrósio e Jerônimo) definiam espírito e carne como princípios abstratos opostos que poderiam ser observados por meio das expressões corporais. Na verdade, esses conceitos representavam estados potenciais que o corpo poderia assumir. O corpo em si mesmo era neutro e poderia assumir qualquer um dos estados, de acordo com as direções tomadas pelo indivíduo.

o ascetismo permitiu que virgens e viúvas cristãs, se comparadas às fiéis casadas e as contemporâneas pagãs, alcançassem não apenas um modelo de vida ideal em meio a comunidade religiosa, mas uma forma de dispor sobre seu próprio corpo que ia além dos padrões sociais tradicionais.14 Porém, entendemos que ambas as conquistas se deram à custa de um enquadramento que condiciona a moral feminina aos novos padrões que o cristianismo impõe ao corpo, ou seja, por meio da abstinência sexual, da moderação ao comer (De uirginibus, III, 8), do controle do sono (De uirginibus, II, 8), da reclusão (De urginibus, II, 9), do silêncio (De urginibus, III, 11 - 13), da moderação no trabalho (De uirginibus, III, 16), do controle da dança (De uirginibus, III, 25 - 31), do dever da piedade (De uiduis, 11) e também da economia com adornos em prol da esmola (De uiduis, 28). Ou seja, através do controle de tudo que pudesse remontar (na visão cristã) a uma imagem de impureza, de uma mulher próxima à representação de Eva.15

6. Conclusão

Desde a Antiguidade, os discursos religiosos vêm contribuindo para a construção de um pensamento responsável por naturalizar as desigualdades de gênero, ao mesmo em que legitima as diferenças entre os homens e as mulheres. Essa colocação certifica-nos da ideia de que a definição dos papéis sexuais é um problema menos biológico e mais social e, por isso, concordamos que não se pode compreender o corpo humano apenas em termos da sua natureza, pois na mesma matéria coexistem um corpo biológico e um corpo social. Diante disso, percebemos que à forma pela qual o feminino se figurou dentro das religiões romanas, fossem elas pagãs ou cristãs, estava inerentemente ligado ao modo como aquela

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É através das regras impostas ao corpo que a mulher devota conseguiu sair dos valores culturais e sociais que faziam dela “vaso reprodutor”, submetida ao poder e desejos do marido e do pai (HIDALGO DE LA VEGA, 1993). 15 Não nos esquecendo que o cristianismo tem essencialmente dois paradigmas que representam todo o universo feminino. Tais paradigmas seriam encarnados na figura de Eva e Maria, sendo a primeira redimida pela presença da segunda. Todavia, a religião cristã assume “Eva como aquilo que a Igreja define o que a mulher é, e Maria como um modelo daquilo que a mulher deveria ser” (TEDESCHI, 2008, p.67-68).

sociedade concebia a ideia de corpo. Visto como portadora de um corpo imperfeito na tradição romana, a mulher, mesmo em suas exceções, não ultrapassou as fronteiras da subordinação. Com o advento do cristianismo e toda teoria sobre as práticas ascéticas que sustentava, um pequeno grupo de mulheres devotas não apenas conquistou um posto destacado no imaginário cristão, como também passou a ocupar uma hierarquia feminina que se desenvolveu em meio à comunidade milanesa do século IV. Se comparadas às casadas, as virgens e viúvas consagradas alcançaram uma liberdade da condição prevista pelo casamento e pela procriação, como também conquistaram algum grau de poder sobre seus próprios corpos e, por extensão, sobre suas vidas (SALISBURY, 1995, p. 16). Contudo, esta liberdade não dissolveu o domínio que o episcopado tinha sobre seus corpos e isso nos faz repensar se o cristianismo de fato contribuiu para a emancipação da mulher na sociedade tardo-antiga. Sendo assim, concluímos que, embora alcançassem um patamar superior em meio a sociedade patriarcal, as ascetas sempre estiveram submetidas ao controle masculino, tal como acontecia com suas contemporâneas pagãs.

Referências

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