O discurso da interdição em Crônica da casa assassinada

May 23, 2017 | Autor: Ernani Terra | Categoria: Literatura brasileira, Semiótica Discursiva, Discurso da interdição
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

O discurso da interdição em Crônica da casa assassinada RELATÓRIO DE PESQUISA DE PÓS-DOUTORADO Programa de Pós-Graduação em Letras - UPM Supervisão: Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros

ERNANI TERRA

São Paulo 2016

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SUMÁRIO

Apresentação

3

Capítulo 1

7

Capítulo 2

50

Considerações finais

76

Bibliografia

78

3

Apresentação

Neste relatório, expomos resultados de pesquisa sobre o tema O discurso da interdição em Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. A pesquisa foi realizada no período de agosto de 2014 a abril 2016, sob a supervisão da Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros e cumpre o requisito de trabalho final de pesquisa em nível de pós-doutorado, realizada junto ao Programa de Pós-graduação em Letras, do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. O relatório está estruturado em dois capítulos, precedidos da indicação das atividades realizadas pelo pós-doutorando no período do pós-doutoramento. Apresenta ainda as Considerações finais e a Bibliografia. Os capítulos estão divididos em seções. O primeiro centra-se no tema da pesquisa, na análise da interdição do incesto e na espacialização. O segundo está centrado na análise de percursos narrativos de alguns atores do romance. A pesquisa desenvolveu-se em duas vertentes principais: pesquisa bibliográfica, por meio de revisão da literatura, cujas referências bibliográficas estão arroladas in fine e participação do autor em cursos, palestras e seminários, com apresentação de trabalhos, publicados como capítulos de livros. Valemo-nos de três edições da Crônica da casa assassinada, todas arroladas na bibliografia, a publicada pela Editora Nova Fronteira (1979), a edição crítica coordenada por Mario Carelli (1997), publicada pela ALLCA XX e Scipione Cultural, e a da Editora Civilização Brasileira (2013). A indicação do número da página nas citações foi feita com base na edição da Editora Civilização Brasileira (2013), que, embora esgotada, é a mais fácil de ser encontrada. Nas dúvidas para a fixação do texto, valemo-nos da edição crítica, coordenada por Mario Carelli.

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Crônica da casa assassinada apresenta uma profusão de temas e de atores. Como nossa pesquisa recaiu sobre o discurso da interdição, centramo-nos particularmente nos atores cujos percursos temáticos e figurativos manifestam os valores da interdição. Na obra, a descontinuidade espacial cria espaços de interdição. Grosso modo, poderíamos dividir o espaço em espaço das relações prescritas e espaço das relações interditas. Como um se define por oposição ao outro, obrigamo-nos a comentar os dois, mostrando que essa disjunção espacial se articula no eixo da verticalidade, em que a interdição está relacionada ao /baixo/. Para tornar a leitura deste relatório acessível também àqueles que, porventura, não tenham lido a obra, apresentamos um resumo da diegese, não só recuperando o narrado, mas também fazendo observações e citações textuais com o intuito de reforçar a legibilidade do relatório. Sentimo-nos também obrigados a trazer para este texto algumas informações que possibilitam a contextualização do romance. Lembramos que se trata de uma obra extensa (536 páginas, na edição da Civilização Brasileira), com uma gama variada de atores e anacronias, o que implica que determinados esquemas narrativos sequer foram recuperados neste relatório, sobretudo aqueles que não têm ligação direta com o tema da pesquisa. O discurso da interdição no romance de Lúcio Cardoso se manifesta principalmente no tema do incesto (subsidiariamente, no tema da homossexualidade). Para entender o caráter interdito do incesto, recorremos a estudos antropológicos que tratam o tema. A obra de LéviStrauss, As estruturas elementares do parentesco, nos deu o suporte teórico necessário para entender a mais universal das interdições, o incesto. Dada a complexidade do tema, aportamonos também em estudos que investigam o incesto do ponto de vista psicanalítico, particularmente Totem e tabu, de Freud, e filosófico, e aí a contribuição de Georges Bataille com as obras O erotismo e A literatura e o mal foi decisiva. Essa bibliografia, no entanto, tem valor apenas subsidiário, uma vez que, para análise imanente do texto, toda nossa pesquisa

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teve por aporte teórico-metodológico a semiótica discursiva (ou de linha francesa), que nos possibilitou verificar como a oposição semântica /prescrição vs. interdição/ se articula no nível fundamental, como é assumida por sujeitos no nível narrativo e, finalmente, como se manifesta sintática e semanticamente no nível discursivo. A gratidão é o maior dos deveres, por isso termino deixando expresso meus agradecimentos Ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie por ter dado todo o suporte para a realização da pesquisa; à Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros, sempre presente com seu apoio e generosidade intelectual. à Jessyca Pacheco pela ajuda na obtenção de muitas obras que tive de ler para a pesquisa e que, ao final, me trouxe observações sempre iluminadoras. O Bataille, devo a ela.

ERNANI TERRA

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Capítulo 1

“Não há interdito que não possa ser transgredido." (Georges Bataille)

I - Da obra tema da pesquisa

A escolha de Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, como corpus para a pesquisa deveu-se ao fato de ser uma das obras mais importantes de nossa literatura, no entanto pouco estudada. Pesquisas que realizamos em exames vestibulares de grandes instituições e em materiais didáticos destinados a estudantes de Ensino Médio constataram que as referências à Crônica1 não existem ou são mínimas. Na academia, esperávamos encontrar um quadro mais animador; nossa expectativa, no entanto, não se concretizou. Levantamento realizado junto a banco de dissertações e teses de renomadas universidades brasileiras nos mostrou que as pesquisas sobre essa obra-prima, no dizer de Alfredo Bosi, são escassas. A Crônica é um romance que se enquadra no que poderia se chamar de narrativa intimista. Tendo estreado na literatura com um romance regionalista (Maleita, 1934), gênero em voga na década de 1930, Lúcio Cardoso logo abandona esse tipo de narrativa e se define pelo romance de sondagem interior. Segundo Alfredo Bosi,

Lúcio Cardoso e Cornélio Pena foram talvez os únicos narradores brasileiros da década de 30 capazes de aproveitar sugestões do surrealismo sem perder de vista a paisagem moral da província que entra como clima em seus romances. (BOSI, 2004, p. 414)

Dentre as várias obras que publicou, há consenso de que a Crônica representa o apogeu de sua produção literária 2. Bosi (2004), referindo a esse romance, assinala que

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Como serão inúmeras as citações da obra Crônica da casa assassinada, optamos por, doravante, indicar apenas o número da página. Todas as citações do romance foram extraídas de CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 13. ed. Rio de Janeiro: 2013. Optamos também por se referir a obra Crônica da casa assassinada, usando apenas a forma Crônica. 2 Quando concluíamos este relatório, recebemos a notícia que Crônica da casa assassinada será publicada em inglês pela Open Letter Books, com prefácio de Benjamin Moser.

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O romancista supera, nessa obra-prima, a indefinição que às vezes debilitava a estrutura das suas primeiras experiências, e lança-se à reconstrução admirável do clima de morbidez que envolve os ambientes (quem esquecerá o fundo esverdinhado da velha chácara onde há mofo e sangue?) e os seres (indelével, a figura de Nina, atraída pela vertigem da dissolução no próprio eros) [...] Lúcio Cardoso se encaminhava, nessa fase madura da sua carreira de artista, para uma forma complexa de romance em que o introspectivo, o atmosférico e o sensorial não mais se justapusessem mas se combinassem no nível de uma escritura cerrada, capaz de converter o descritivo em onírico e adensar o psicológico no existencial [...] (BOSI, 2004, p. 414)

A fim de tornar a leitura deste relatório mais clara àqueles que, possivelmente, não tenham lido a Crônica, faremos algumas breves considerações sobre o livro. Evidentemente, aqueles que já leram a obra estão dispensados da leitura desta seção.

1. Considerações gerais sobre a obra

A Crônica foi publicada pela primeira vez em 1959 e é considerada a obra mais importante de Lúcio Cardoso, que nasceu Curvelo (MG) em 1913, e faleceu no Rio de Janeiro em 1958. A obra é dedicada a Vito Pentagna (1914-1958), poeta e amigo de Lúcio e tem a seguinte epígrafe: "Jesus disse: tirai a pedra: Disse-lhe Marta, irmã do defunto: Senhor, ele já cheira mal, porque está aí há quatro dias. Disse-lhe Jesus: Não te disse eu que, se tu creres, verás a glória de Deus?" (São João, XI, 39, 40). Essa epígrafe faz referência a um dos temas recorrentes na obra, a ressurreição dos mortos. Nas páginas iniciais, há também uma planta da casa, desenhada pelo próprio Lúcio Cardoso (Ilustração 1, p. 11), que permite ao leitor visualizar a disposição dos quartos da Casa, bem como o Pavilhão, "... uma construção de madeira que existia no fundo do jardim..." (p. 113), local onde ocorrem as relações interditas. Como se pode ver, o desenho, além da Casa, mostra as suas cercanias, a antiga fazenda, a Serra do Baú, a Estrada de Vila Velha. Se o leitor, voltar a olhar este desenho depois de ter lido o romance, poderá visualmente constatar a ruína do Meneses, pois do antigo latifúndio sobrou apenas a Casa.

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Ilustração 1: Planta da casa, desenhada por Lúcio Cardoso

Fonte: CARDOSO, 2013, p. 18.

É importante que o leitor atente bem para o desenho feito por Lúcio Cardoso e observe a posição da Casa em relação ao terreno e a posição dos cômodos dentro da Casa. A Casa ocupa, em relação ao terreno, a posição central. Quem a ela chega vê que está cercada e um portão dá acesso à alameda Central, que logo se bifurca. Para chegar à Casa, tem-se de tomar o caminho à esquerda, pelo qual se chega a uma pequena escada que leva à varanda, que se conjuga à sala (a parte social da casa). Caminhando por um corredor central, estão à direita e à esquerda os quartos. O primeiro é o de Demétrio, o patriarca dos Meneses. O último, já no final do corredor, em frente à despensa e próximo à cozinha e ao pátio, é o de Timóteo, o irmão homossexual, considerado louco, que vive trancado em seu quarto. Entre o quarto de Demétrio e o de Timóteo, está o de Valdo, que se casou com Nina. É importante que o leitor observe a posição do quarto de Valdo em relação ao de Timóteo a fim de entender o

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programa narrativo3 do desaparecimento das violetas colocadas na janela do quarto de Valdo e Nina por Alberto, o jardineiro. Os cubículos, que servem de depósito, são utilizados em acontecimentos importantes da narrativa. Num deles, é deixado o corpo de Valdo, ferido após tentativa de suicídio; o outro é utilizado por Nina para escrever uma carta sem que saibam que ela realiza esse ato. Nesse caso, o cubículo funciona como esconderijo. A inclusão dessa planta logo nas primeiras páginas do livro exerce um papel fundamental de ancoragem, conferindo à narrativa efeitos de sentido de realidade. A ancoragem é um recurso semântico em que pessoas, lugares e épocas se prendem ao discurso de modo a criarem a ilusão de realidade. Ressaltamos que a iconização do discurso está presente em toda a obra, na medida em que são constantes as ancoragens a lugares reais, cidades de Minas Gerais, como se pode observar no trecho "Aos poucos, fui contando o que sabia, o prestígio da velha fazenda no Município, seus senhores, que mantinham casa aberta nas cidades de Leopoldina, de Ubá, e outras mais próximas..."(CARDOSO, 2013, p. 143, grifos nossos). A obra consta de 56 capítulos, arrolados a seguir.

Quadro 1 - Capítulos de Crônica da casa assassinada

Capítulo

Título

Páginas

1

Diário de André (conclusão)

19 - 36

2

Primeira carta de Nina a Valdo Meneses

37 - 45

3

Primeira narrativa do farmacêutico

47 - 53

4

Diário de Betty (I)

55 - 70

5

Primeira narrativa do médico

71 - 81

6

Segunda carta de Nina a Valdo Meneses

83 - 92

7

Segunda narrativa do farmacêutico

93 - 106

8

Primeira confissão de Ana

107 - 116

9

Diário de Betty (II)

117 - 125

10

Carta de Valdo Meneses

127 - 132

11

Terceira narrativa do farmacêutico

133 - 140

12

Diário de Betty (III)

141 - 149

3

Programa narrativo é o sintagma elementar da narrativa, que integra estados e transformações, e que se define como um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. (BARROS, 2003, p.89)

11

13

Segunda narrativa do médico

151 - 160

14

Segunda confissão de Ana

161 - 170

15

Continuação da segunda confissão de Ana

171 - 179

16

Primeira narração de Padre Justino

181 - 192

17

Diário de André (II)

193 - 203

18

Carta de Nina ao Coronel

205 - 212

19

Continuação da carta de Nina ao Coronel

213 - 217

20

Diário de André (III)

219 - 229

21

Diário de André (IV)

231 - 237

22

Carta de Valdo a Padre Justino

239 - 245

23

Diário de Betty (IV)

247 - 256

24

Terceira narrativa do médico

257 - 266

25

Diário de André (V)

267 - 275

26

Diário de André (V) (continuação)

277 - 284

27

Terceira confissão de Ana

285 - 293

28

Segunda narração de padre Justino

295 - 298

29

Continuação da terceira confissão de Ana

299 - 304

30

Continuação da segunda narração de Padre Justino 305 - 310

31

Continuação da terceira confissão de Ana

311 - 319

32

Fim da narração de Padre Justino

321 - 324

33

Fim da terceira confissão de Ana

325 - 331

34

Diário de Betty (V)

333 - 339

35

Segunda carta de Nina ao Coronel

341 - 347

36

Diário de André (VI)

349 - 360

37

Depoimento de Valdo

361 - 367

38

Diário de André(VII)

369 - 377

39

Depoimento do Coronel

379 - 389

40

Quarta confissão de Ana

391 - 402

41

Diário de André (VIII)

403 - 410

42

Última narração do médico

411 - 418

43

Continuação do Diário de André (IX)

419 - 428

44

Segundo depoimento de Valdo (I)

429 - 435

12

45

Última confissão de Ana (I)

437 - 442

46

Segundo depoimento de Valdo (II)

443 - 448

47

Última confissão de Ana (II)

449 - 454

48

Diário de André (X)

455 - 460

49

Segundo depoimento de Valdo (III)

461 - 467

50

Quarta narrativa do farmacêutico

469 - 476

51

Depoimento de Valdo (IV)

477 - 488

52

Do livro de memórias de Timóteo (I)

489 - 495

53

Depoimento de Valdo (V)

497 - 506

54

Do livro de memórias de Timóteo (II)

507 - 514

55

Depoimento de Valdo (VI)

515 - 522

56

Pós-escrito numa carta de Padre Justino

523 - 536

Fonte: Elaborado pelo autor

Como se pode notar pelo Quadro 1, embora Nina se o principal ator da narrativa, os atores André e Ana representam a maior parte das enunciações enunciadas (21 capítulos, correspondentes a 36% do total do romance). O ator Nina é narrador em 5 capítulos (8,9% do total), exatamente o mesmo número de capítulos em que a governanta Betty é narradora. Como exporemos no capítulo 2 deste relatório, a recomposição dos percursos narrativos de Nina terá de ser feita a partir dos depoimentos de outros atores e das falas de Nina em que ela, por debreagem interna, é interlocutora. Trata-se de uma narrativa em que o tempo é enuncivo (o então) que vem à tona a partir simulacros de cartas, depoimentos, diários, confissões etc., que um enunciador coligiu e organizou, portanto trata-se de uma reconstituição de fatos como num inquérito policial em que uma autoridade, a partir de documentos esparsos, reconstitui os acontecimentos ocorridos há tempos, como se observa no trecho a seguir "Pesa-me a consciência, no entanto, ocultar fatos que poderiam elucidar alguns daqueles mistérios que na época tanto abalaram nosso povoado" (p. 151). Esse enunciador, em alguns poucos momentos, deixa explícita na narrativa sua participação como organizador dos discursos por meio de rubricas em itálico e entre parênteses em que esclarece ao enunciatário algum dado sobre o discurso narrado, por exemplo, se ele foi escrito com tinta diferente, se ele está escrito na margem, como no trecho a seguir no qual mantivemos os recursos gráficos originais: (Escrito com a mesma letra à

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margem do caderno, tinta diferente). Devemos ainda levar em conta que a forma como as enunciações enunciadas dos atores, intercalando umas nas outras na sequência temporal do discurso, é de competência desse enunciador. Apenas no último capítulo da narrativa, o narrador (Padre Justino) faz menção explícita ao enunciador: "Sim, resolvi atender ao pedido dessa pessoa. Não a conheço, nem sequer imagino por que colige tais fatos, mas imagino que realmente seja presente o interesse que a move" (p. 523). Esse enunciador instala dez narradores distintos por meio de desembreagem enunciativa, o que confere efeito de sentido de subjetividade e de proximidade da instância da enunciação. O estatuto desses dez narradores é diverso, além de as enunciações situarem-se em momentos diferentes do passado. As narrativas de Betty, a governanta, são feitas poucos dias após os fatos que ela narra "...à medida que o tempo vai passando sobre os acontecimentos do pátio - já decorreram sete dias - eu me surpreendo ainda abalada com o que assisti" (p. 339). Sua narrativa ocorre num momento em que tanto a Casa quanto os atores existiam. Os depoimentos de André, por outro lado, são feitos num tempo bastante distante dos fatos narrados "... E agora que este pobre caderno veio novamente ter às minhas mãos, entre outros restos dessa casa que não existe mais, digo a mim a mesmo que não há grande diferença entre aquele que fui e o que sou hoje... (p. 377). Quando André narra, a Casa não existe mais. Em suma: a pluralidade de narradores corresponde também a uma pluralidade de momentos da enunciação que podem estar mais próximos ou distantes do momento da enunciação. Nina, Valdo, André, Timóteo e Ana são narradores protagonistas, narram apenas o que é relevante para eles próprios. Betty, Padre Justino, o farmacêutico, o médico e o Coronel são narradores testemunhas. Como se pode observar, os dez narradores estão divididos em dois grupos: os narradores protagonistas são moradores da Casa, fazem uma narrativa de dentro; os narradores testemunhas não moram na Casa, fazem uma narrativa de fora. Há poucos momentos da narrativa em que ocorre embreagem temporal, com o uso do presente no lugar do passado, como nesse trecho do Diário de André (VIII).

Enquanto tomo minha sopa, imagino que esta análise poderia levarme mais longe ainda, caso tivesse liberdade para dedicar-me a ela. Mas o ambiente em que o jantar decorre não parece fácil, e noto, sem surpresa, que os arranjos feitos em sua intenção são mais cuidados do que habitualmente. Há uma verdadeira exuberância de pratos, e entre os copos e talheres circulam terrinas com fumegante molho pardo, que é a especialidade da velha Anastácia; e numa travessa cercada de alface, um lombo mineiro, certamente preparado com o carinho que a iguaria requer; e chouriços negros, feitos à moda da casa, que meu tio

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Demétrio aprecia acima de tudo. Observo, e em minhas retinas, momentaneamente turbadas, a luz cintila no facetado dos cristais. (CARDOSO, 2013, p. 405)

Esse jantar ocorre no dia em que Nina volta do Rio de Janeiro, onde fora consultar um médico, retornando à Chácara já ciente de que teria muito pouco tempo de vida. A embreagem temporal cria o efeito de sentido de presentificação do jantar. Associada às figuras ligadas à culinária mineira (molho pardo, lombo mineiro, chouriços), passam ao enunciatário a sensação de que o jantar é algo que se desenrola aos seus olhos. Mas temos de notar o efeito de sentido de estranhamento que esse jantar tem na narrativa, pois os Meneses, sempre sisudos e comedidos, e agora arruinados financeiramente, oferecem a Nina um jantar de gala, farto e com cristais, como se fosse essa a última ceia de Nina. Essas dez vozes dissonantes narram seus percursos em discursos materializados em diferentes gêneros (diário, carta, confissão, depoimento, memórias), num (des)concerto polifônico, uma vez que o discurso de uns entra em relação polêmica com o discurso de outros. Quando uma voz emerge, outras são ouvidas em contraponto. Cada vez que uma voz se vê confrontada ou espelhada noutra (s), o leitor é levado para veredas de um labirinto, numa leitura que se pode dizer hipertextual. Como há contradições reveladas nos discursosenunciados dos diversos sujeitos, os fios da narrativa parecem não se encaixar, o que, segundo Brandão (1998, p. 33) seria uma forma de "desconstrução da técnica do romance realista tradicional que supõe uma única verdade subjacente à superfície narrativa". No quadro a seguir, apresentamos os dez narradores da Crônica, os narratários, quando houver, e o gênero do discurso de que se valeu o narrador. A nomenclatura para designar os gêneros foi a utilizada por Lúcio Cardoso.

Quadro 2 - Os narradores de Crônica da casa assassinada

narrador

narratário(s)

gênero

1

André

não explicitado

diário

2

Nina

Valdo, Coronel

carta

3

Farmacêutico

não explicitado

narrativa

4

Betty

não explicitado

diário

5

Médico

não explicitado

narrativa

6

Ana

não explicitado

confissão

7

Valdo

Padre Justino

carta

15

8

Padre Justino

não explicitado

narração

9

Coronel

não explicitado

depoimento

10

Timóteo

não explicitado

memórias

Fonte: Elaborado pelo autor

Dos atores presentes no nível discursivo, apenas dois não exercem a função actancial de narrador: Demétrio e Alberto, o jardineiro, cujos discursos são manifestados por desembreagem interna, ou seja, são interlocutores. O fato de Demétrio não ter voz narrativa acentua seu caráter obscuro e, quanto a Alberto, a fala de outros narradores, especialmente as de Nina e Ana, centra-se principalmente em sua descrição física, apresentando-o com muito jovem e extremamente belo. Dos dez narradores, seis fazem parte da "família" Meneses e habitam a Casa: André, Nina, Betty, Ana, Valdo e Timóteo. Dos outros quatro, apenas o Coronel é um narrador distante, pois narra do Rio de Janeiro; os outros três, Padre Justino, o médico e o farmacêutico, são representantes da sociedade de Vila Velha. Dos seis narradores do círculo da Casa, a narração mais objetiva, menos passional, é a de Betty. Isso decorre de sua posição na Casa. Trata-se de uma governanta, portanto não pertencente à família e é mais testemunha dos fatos do que participante deles. A seguir apresentamos um breve resumo da fábula. A narrativa se inicia in ultima res, pela narração de André, em seu diário, Capítulo 1 Diário de André (Conclusão), dos últimos momentos de Nina, com seu corpo já se decompondo pelo câncer, exalando mau cheiro, mas mesmo assim capaz de despertar desejo. Sua morte é também a morte dos Meneses, figurativizada na destruição da Casa. Como Nina morre sucumbindo à doença que lhe vai apodrecendo o corpo, a Casa também vai morrendo de uma doença que lhe corrói as entranhas de seu corpo, como se pode observar no trecho que segue, em que o médico relata como vê a Casa. Observemos como há uma isotopia de figuras relativas à doença e ao apodrecimento, que revestem o tema da morte próxima.

Aquele reduto, que desde a minha infância - há quanto tempo, quando a estrada principal ainda se apertava entre ricos vinháticos e pés de aroeira, tortuosa, cheia de brejos e de ciladas, um prêmio para quem avançasse tão longe... - eu aprendera a respeitar e a admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos, frágil ante a destruição próxima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos próprios venenos que traz no sangue. (Ah, esta imagem de gangrena, quantas vezes teria de voltar a ela - não agora, mais tarde - a fim de explicar o que eu sentia, e o drama que se

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desenrolava em torno de mim. Gangrena, carne desfeita, arroxeada e sem serventia, por onde o sangue já não circula, e a força se esvaiu, delatando a pobreza do tecido e essa eloquente miséria da carne humana. Veias em fúria, escravizadas à alucinação de um outro ser oculto e monstruoso que habita a composição final de nossa trama, famélico e desregrado, erguendo ao longo do terreno vencido os esteios escarlates de sua vitória mortal e purulenta. (CARDOSO, 2013, p. 159-160)

Do ponto de vista do esquema narrativo, inicia-se pelo percurso da sanção do ator Nina. O tema da morte de Nina e da Casa é revestido por figuras como:

Quadro 3 - Figuras que revestem o tema da morte de Nina Casa

Nina

"... vaguei pela casa deserta..."(p. 20) "... aquela carne já fora viva..."(p. 20)

"... uma coisa despojada..." (p.20)

"... derradeiro eco da experiência..."(p. 20)

"... a casa não existia mais..." (p. 20)

"...quatro velas solitárias...: (p. 21)

"... os Meneses não existiam mais..." (p. 34)

"...sua derradeira despedida." (p. 21) "... estendida sobre a mesa, enrolada num lençol..."(p. 21) "No tabuleiro vazio, o destino havia colocado afinal seu irrefutável tento preto." (p. 26) "... férias eternas..." (p.27)

Fonte: Elaborado pelo autor

Nina, uma mulher de extrema beleza e sensualidade, que mora no Rio de Janeiro com o pai inválido, conhece Valdo Meneses com quem vem a se casar por interesse ("... ah, jamais tive paciência para ser pobre...", p. 84) e muda-se para Minas Gerais, onde vai viver na Casa com o marido. Na Casa, moram também os dois irmãos de Valdo, Demétrio, o patriarca da família, casado com Ana, e Timóteo, homossexual, que vive maquiado e vestido de mulher,

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("...trajava um vestido de franjas e lantejoulas que pertencera à sua mãe." (p.56) com a aparência deformada pela gordura e pelo álcool ("... não era propriamente um ser humano que eu tinha diante de mim, mas uma construção de massa amorfa e inchada." (p.87), confinado em seu quarto, sem poder manter contato com os demais membros da família e até mesmo com a criadagem ("Recebera avisos formais para que jamais fosse atendê-lo..."(p. 56). Além dos Meneses, mora também na Casa toda a criadagem, merecendo destaque Betty, que desempenha o papel temático de governanta, e Alberto, o jardineiro. Nina, ator central do romance, casara-se com Valdo por imaginá-lo rico, mas ao chegar à Casa se dá conta de que fora vítima de mentira, uma vez que os Meneses estão em profunda decadência econômica ("Você sabe muito bem o que representamos: uma família arruinada do sul de Minas...", p. 66); ("- Mas não tem nem onde cair morto! Devemos aos empregados, à farmácia, ao banco do povoado...", p. 67). Nina sente-se enganada por Valdo e cercada de inimigos na Casa ("Valdo realmente me disse que era um homem rico, que aqui nesta casa eu não teria necessidade de coisa alguma. Para que fez isto, por que me enganou deste modo?, p. 69). Nina, vinda do Rio de Janeiro, acostumada à vida social intensa, não se adapta à vida no interior de Minas. Para agravar sua situação no novo lar, ela é vítima de inveja e de ciúme por parte de Ana ("... não podia mais tolerar aquela mulher, vê-la absorver dia a dia o que existia de vivo diante de nós..."(p. 164); "... a verdade é que o ciúme me corroía, era como um ácido mortal a escorrer dentro de mim..."(p. 168- 169) e encontra forte oposição de Demétrio, o patriarca do Meneses, e fonte dos valores que regem a Casa e contra o qual Nina se insurge ("Eu não quero viver, segundo o sistema do Sr. Demétrio..."(p. 117). O marido mantém-se sempre omisso, de sorte que Nina só conta com dois aliados dentro da Casa, a governanta Betty e Timóteo. Certa feita, Nina pede ao jardineiro Alberto que lhe deixe um ramo de violetas todos os dias na janela. Não encontrando, um dia, as violetas, discute com o jardineiro e lhe dá um tapa. Alberto pede desculpas e se ajoelha aos pés de Nina e lhe beija as mãos. Essa cena é presenciada por Demétrio, que passa a acusar Nina de adultério ("Demétrio veio encontrar aos meus pés, como uma cena de adultério habilmente preparada, aquele pobre rapaz que cuidava do jardim.", p. 85). Nina diz que vai abandonar a Casa e voltar para o Rio. Inconformado com essa atitude, Valdo tenta o suicídio com uma arma que Demétrio, intencionalmente, deixara em lugar visível. Nina retarda sua volta e conversa com Valdo, acusando Demétrio de incitá-lo ao suicídio. Pega a arma com que Valdo tentara o suicídio e a joga pela janela. Essa arma é encontrada pelo jardineiro Alberto. Esse episódio é presenciado

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por Ana, "...uma mulher madura, cuja carne jamais vibrara de amor..." (p. 170). Mesmo sabendo que Alberto usaria a arma para se matar, Ana nada faz para impedir isso. Sua atitude é esperar que Alberto se mate para que ele não fique com Nina e esta ainda sofra a culpa pelo suicídio do jardineiro "... resolvi não intervir, deixando que se cumprisse até o final o destino daquele rapaz" (p. 174). A mulher de Demétrio entra em choque por causa da morte de Alberto e acusa Nina de ser a responsável. Mesmo vendo o corpo baleado do jovem de vinte anos agonizando, Ana sente forte atração sexual por Alberto que agoniza no subsolo do Pavilhão ("achei-me numa peça ainda mais baixa que a anterior..."(p. 184), ou seja, no baixo do baixo.

Jamais tinha visto assim um corpo de homem, e o do meu marido, que em certas noites se encostava ao meu para uma carícia amarga e passageira, eu o adivinhava disforme e sem vitalidade sob a roupa. Aquele não, era o corpo de um adolescente, com esse rosado seco da carnadura humana quando é pura, pronto para o grande salto no pecado; mal acabara de se tornar homem, e já se percebia claramente, como uma música voando, a vibração que o animava. Agora eu compreendia perfeitamente por que era impossível a Nina deixar de tê-lo visto, e eu a imaginava correndo os dedos experimentados através daquela carne tenra, dela arrancando seus primeiros estremecimentos de prazer, e devolvendo-o a si mesmo através da descoberta. (CARDOSO, 2013, p. 175)

Nina retorna ao Rio grávida. A morte de Alberto e o retorno de Nina ao Rio podem ser considerados como o fim do primeiro ato de uma peça em dois atos. Há entre eles um salto temporal 15 anos. Nina, vivendo em situação de penúria no Rio ("... obrigada a viver num apartamento acanhado, que cheira a pobreza e a essa coisa inominável que é existência de uma mulher abandonada pelo marido." p. 39) escreve a Valdo que pretende retornar à Casa "... estou disposta a voltar à Chácara, a ocupar o lugar que me pertence, e isto enquanto viver, enquanto me sobrarem forças para lutar contra Demétrio e até mesmo contra todos os Meneses reunidos" (p. 91). De volta à Casa, reencontra seu aliado Timóteo, já completamente deformado, ("... um vulto enorme, desproporcionado, em que não reconheci de pronto o meu antigo amigo.", (p. 214). Encontra também o filho, André, que não via desde que nascera no Rio de Janeiro e fora trazido à Casa ainda nenê por Ana ("Vejo-a [Ana] ainda, toda de preto, sem que a emoção lhe contraísse um único músculo da face. Sim, foi ela a quem você [Valdo] encarregou de vir buscar nosso filho."(p. 91). André se apaixona pela mãe e se sente fortemente atraído por ela.

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Nina inicialmente evita ter com ele qualquer contato de natureza sexual ("Escuta, André, você não passa ainda de uma criança" (p. 271). Por fim, Nina cede e ela e André passam a manter relações que vão muito além das que ocorrem entre mãe e filho. Trocam carícias, beijos, confinam-se no Pavilhão, uma construção abandonada anexa à Casa. Nina faz de André um homem. O relacionamento entre mãe e filho causa indignação principalmente em Demétrio e na esposa. Valdo, como sempre, se omite. Timóteo e Betty mantêm apoio a Nina, que, a esta altura, descobre estar com câncer. A doença vai se agravando e o corpo de Nina começa a exalar mau cheiro. André se revolta e se sente traído por Nina, que lhe jurara amor e agora vai abandoná-lo. Nina morre e, em seu funeral, realizado na Casa, comparece toda a sociedade de Vila Velha, pobres e ricos. Quando o Barão, a pessoa de maior prestígio social na região, entra na sala onde se velava o corpo de Nina, Timóteo surge de repente, vestido de mulher e todo maquiado, carregado numa rede por três empregados negros. Esbofeteia o cadáver de Nina depois lhe atirar violetas, começa a girar feito louco e tem um ataque. André se desespera e sai correndo, abandonando a Casa. Num pós-escrito de Padre Justino, o leitor fica sabendo que Ana, vivendo sozinha no Pavilhão, chamara o Padre e lhe confessara seu amor por Alberto e seu ódio a Nina, que lhe teria roubado o jardineiro. Conta que, quando fora ao Rio buscar o filho de Nina, estava grávida de Alberto, sem que o marido soubesse e, na verdade, a criança que trouxera do Rio era seu próprio filho, que ali nascera, e não o filho de Nina, que ficara num hospital aos cuidados de uma enfermeira. Feita a confissão, Ana morre. Ressaltamos que o que se leu é um resumo da fábula, em que respeitamos a ordem cronológica dos acontecimentos para facilitar a compreensão por parte do leitor que não conhece a obra. No plano da expressão, a programação temporal da narrativa não segue a ordem cronológica, havendo analepses e prolepses. Por outro lado, dadas as coerções do discurso, são apresentados

em sequência

no plano sintagmático acontecimentos

concomitantes. Quanto à cronologia dos acontecimentos e tomando por parâmetro o ator central Nina, teríamos a seguinte organização temporal do discurso. Quadro 4 - Cronologia dos acontecimentos

Capítulos 2 a 16

Primeira temporada de Nina em Vila Velha

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17 a 37

Segunda temporada de Nina em Vila Velha

38 a 40

Viagem de Nina ao Rio de Janeiro

41 a 55

Terceira temporada de Nina em Vila Velha, agonia e morte de Nina

Fonte: Elaborado pelo autor

Como já expusemos, a narrativa começa em ultima res, pelo percurso do destinadorjulgador: o primeiro capítulo, Diário de André (Conclusão), relata fatos ocorridos após a morte de Nina. O último capítulo (56), Pós-escrito numa carta de Padre Justino, relata fatos ocorridos bem depois da morte de Nina.

II - Do tema da pesquisa

Vários temas são cobertos na narrativa da Crônica: morte, ressurreição, família, religiosidade, amor, sexo, casamento, pecado, salvação, homossexualismo, incesto. Esses temas convergem para um tema mais amplo que subsume os demais: a decadência de uma família (a Casa dos Meneses), que pode ser interpretada como a ruína da tradicional família mineira, caracterizada pelo conservadorismo. Decadência, aspectualmente, implica processo lento e gradual. A decadência é contínua e atinge a todos da Casa, econômica, moral e fisicamente. A decadência física de Nina é marcada pela duratividade, estende-se no tempo, a doença não a mata de vez, mas vai fazendo seu corpo apodrecer aos poucos. Timóteo vai inchando paulatinamente em decorrência da bebida, a decadência moral da Casa não se dá de pronto. Para esses atores, a duratividade está ligada ao desejo de prolongar a vida. Alberto suicida-se com a arma atirada por Nina pela janela, mas não morre de imediato. Morte, decadência e ruína são sempre aspectualizadas em sua duração. Todos os valores assumidos pelos Meneses vão ruindo aos poucos. Primeiro, um casamento que pouco dura, para escândalo da sociedade local; depois a tentativa de suicídio de Valdo, em seguida, o suicídio do jardineiro, acusado de ter uma relação com Nina. Segue-se a expulsão de Nina da Chácara, a acusação que paira sobre ela de manter relação incestuosa com filho, a morte lenta e agônica de Nina e, por fim, o vilipêndio de seu cadáver, num funeral marcado pelo escândalo. Tudo rui, a Casa apodrece, material e moralmente. O trecho a seguir traz os valores axiológicos da Casa.

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Assim rumamos em direção à Chácara, aquela velha Chácara que sempre fora a lenda e o motivo de orgulho da pequena cidade em que vivíamos. Querelas, notícias de violências e rivalidades me vinham ao pensamento - a lembrança do Barão, por exemplo, mais ilustre, mais rico e mais nobre que os Meneses, morando numa fazenda distante da cidade, mas cujo nome e cuja casa, apesar de tudo, não conseguiam ter em nosso pensamento o prestígio romântico dos Meneses. E de onde vinha esse prestígio, que poder garantia a essa mansão em decadência o seu fascínio ainda intacto como uma herança poética que não fora ruída pelo tempo? Seu passado, exclusivamente seu passado, feito de senhores e sinhazinhas que haviam sido tios, primos e avós daquele Sr. Valdo que agora ia ao meu lado - Meneses todos, que através de lendas, fugas, romances, de uniões e histórias famosas, tinham criado a "alma" da residência, aquilo que, incólume, e como suspenso no espaço, sobreviveria, ainda que seus representantes mergulhassem para sempre na obscuridade. [...] Sim, essas velhas casas mantinham vivo um espírito identificável, capaz de orgulho, de sofrimento e, por que morte também, quando arrastadas à mediocridade e ao chão dos seres comuns. E não era isto o que acontecia, com a escória última daqueles Meneses que não chegavam mais ao tope do prestígio mantido pelos seus antecessores? (CARDOSO, 2003, p. 259)

Nesse trecho, o médico narra sua chegada à Chácara, chamado por Valdo, para atender ao filho, André, que passara a ter comportamento estranho e agressivo após a chegada de Nina. Trata-se de uma enunciação enunciada do percurso narrativo do médico, que sincretiza as funções actanciais de narrador e de destinador-julgador. Quanto ao tempo, temos desembreagem enunciva. No trecho, manifesta-se o percurso da sanção em que o destinador-julgador, sanciona o sujeito Meneses, por não ter cumprido o contrato de manter o prestígio social de seus antecedentes. O médico está investido dos valores da sociedade a que os Meneses pertencem, que via neles razões para orgulho, fascínio e prestígio. A narrativa do médico atualiza a axiologia presente na estrutura profunda /vida vs. morte/, em que a vida, valor eufórico, é negada e a morte afirmada. Morte lenta marcada pela duratividade ("... ela parecia estar se decompondo em vida" (p. 417). Retomando a categoria tempo, temos um tempo passado. Quanto ao aspecto, o processo é narrado em sua duração. Mas o que é narrado não é o fato que levou o médico a ir à Chácara, mas suas lembranças de um passado mais distante, em que os Meneses tinham o prestígio que deixaram de ter. Se pensarmos na espacialização, veremos que a decadência dos Meneses, vista sob o sema /verticalidade/ corresponde a uma descida, como se nota em figuras como ruir (= desmoronar, vir abaixo), mergulhar, chão, não chegar ao tope. O processo de decadência é absoluto, uma decadência que não permite que se reerga, pois nela está presente a morte.

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Para finalizar o comentário sobre esse fragmento, chamamos a atenção para a figura "escória", que, além de revestir os temas da morte e da decadência, traduz a avaliação negativa a respeito dos atuais Meneses, que são a parte mais desprezível (escória) de uma sociedade que desmorona. Dentre essa variedade temática, optamos por trabalhar com o tema da interdição, especialmente a interdição do incesto, verificando como ele se manifesta nos três níveis do percurso gerativo do sentido. O tema da homossexualidade também foi abordado; pois, no romance, ela é também apresentada como relação "nociva" e, portanto, interdita. Tomamos por hipótese que, no romance, há uma correspondência entre interdição e segregação espacial, pois os sujeitos das relações sexuais ditas "anormais", "nocivas" e "temidas" são confinados em espaços como doentes portadores de moléstias contagiosas, sendo-lhes vedado o acesso a outros espaços da Casa. Essa disjunção espacial cria então dois espaços: o das relações prescritas e o das relações interditas.

III - Metodologia: seleção do corpus e fundamentação teórica

Como se trata de um romance longo (536 páginas) em que vários temas são tratados e, como esta pesquisa tem por objetivo investigar apenas um dos temas, a interdição, tivemos de fazer um recorte a fim de estabelecer o corpus sobre o qual trabalhamos. Dois critérios nos orientaram para a formação do corpus: o actorial e o espacial. Separamos inicialmente os capítulos em que Nina e André desempenham a função de actantes da narração. Nina é narradora em 5 capítulos, todos pertencentes ao gênero carta, em que os narratários são Valdo e o Coronel. Em nenhuma dessas cartas, Nina faz menção direta ou indireta a qualquer relação de natureza sexual com o filho. André é narrador em onze capítulos, todos pertencentes ao gênero diário, sem narratário explícito. Esses onze capítulos narram todo o envolvimento dele com Nina, desde o momento em que a conheceu até a sua morte. Portanto, a investigação da relação interdita entre André e Nina tem de ser feita a partir do diário de André. Como a relação entre mãe e filho passou a ser de conhecimento de outros atores, particularmente Ana, nos capítulos em que esses atores são corporificações de actantes narradores, encontramos referências à relação interdita. Mas salientamos - sobre a relação incestuosa - nada sabemos sob o ponto de vista de Nina. A interdição autoimposta ao ator Timóteo é narrada em capítulos em que a governanta Betty, Nina e o próprio Timóteo exercem a função de actante narrador.

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Nesses capítulos que formaram o corpus, procuramos relacionar o percurso narrativo4 dos sujeitos ao espaço, uma vez que a programação espacial do romance segmenta o espaço em espaços de interdição: o Pavilhão e o quarto de Timóteo, e espaço não interditos. Quanto à fundamentação teórica, aportamo-nos da semiótica de linha francesa, da qual fizemos uma revisão da literatura, aplicando-a a análise do corpus. Embora no título do trabalho conste o sintagma nominal "discurso da interdição", nossa pesquisa não se centrou exclusivamente no nível discursivo. Para compreender como esse discurso se manifesta no nível mais superficial e concreto do percurso gerativo do sentido, tivemos de analisar os esquemas narrativos em que os sujeitos da interdição participam, e também analisar como o valor interdição se articula com outros no nível fundamental. Para análise desse item foi-nos de grande utilidade o texto O jogo das restrições semióticas, de A. J. Greimas e François Rastier. A interdição, como se verá neste relatório de pesquisa, manifesta-se principalmente na exclusão de relações sexuais "nocivas"; no texto, representadas pela relação incestuosa entre mãe e filho, o tabu do incesto, analisado a partir da oposição fundamental /natureza vs. cultura/. Isso nos obrigou em complementariedade a nos aportar em estudos que tratam o incesto sob o ponto de vista antropológico. Para isso, a obra As estruturas elementares do parentesco, de Claude Lévi-Strauss nos foi fundamental. Cremos que, ao nos socorrer desse autor, não tenhamos nos afastado muito da semiótica de linha francesa, já que o estruturalismo de Lévi-Strauss é considerado um dos fundamentos da semiótica de linha francesa. A interdição do incesto apresenta também um componente individual, na medida em que as coerções sociais (domínio da cultura) atuam sobre pulsões individuais (domínio da natureza). Para estudar a questão do incesto como manifestação de pulsões do indivíduo, recorrermos a Freud, em especial a Totem e tabu. Na medida em que nos socorrermos desses autores, pudemos compreender melhor as oposições /querer fazer vs. dever não fazer/ e /volição vs. interdição/.

IV- A relação enunciador / enunciatário

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Um percurso narrativo é uma sequência hipotáxica de programas narrativos (abreviados em PN), simples ou complexos, um encadeamento lógico em que cada PN é pressuposto por outro PN. (GREIMAS; COURTÉS, 2012, p. 334).

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A relação entre enunciador e enunciatário comporta dois aspectos: a) um fazer-saber por parte do enunciador que demanda do enunciatário um fazer interpretativo; b) um fazer persuasivo por parte do enunciador que pretende que o enunciatário aceite o texto. O enunciador, portanto, vai se valer de procedimentos argumentativos. Na Crônica, os procedimentos do fazer-crer do enunciador estão manifestados no nível discursivo. Vejamos. A escolha do lexema crônica, que faz parte do título, é o primeiro deles. O título é um contextualizador prospectivo, vale dizer, cria para o enunciatário uma expectativa a respeito daquilo que vai ler, orientando, dessa forma, sua leitura. Quanto ao gênero, não há o que discutir, a Crônica é um romance, gênero caracterizado pela ficção. O gênero crônica, embora possa ser ficcional, normalmente se caracteriza pela abordagem de fatos reais recentes. Nela, muitas vezes, a distância entre narrador e a pessoa empírica é tênue como nessa crônica escrita por Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal do Brasil, em 29 de setembro de 1984, na qual ele se despede de seus dos leitores e do próprio gênero crônica. Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou: ― Sobre o que pretende escrever? ― Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível. O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices. Disponível em , acesso em 10 mar. 2016.

Ora, o título de crônica ao romance cria um efeito de sentido de realidade, aproximando aquilo que é mímesis, representação, ficção (o romance), de uma crônica policial. Lido o título, o leitor, antes mesmo de entrar na narrativa propriamente dita, depara-se com a planta da Casa dos Meneses, bem desenhada, com a indicação dos arredores, dos quartos dos atores, do Pavilhão e do jardim, ou seja, o espaço não é construído apenas verbalmente, mas também pictoricamente, permitindo ao leitor visualizar os espaços internos por onde se deslocam os atores, conferindo efeitos de sentido de realidade.

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O enunciador instala no texto por desembreagem enunciativa dez narradores, ou seja, essas diferentes vozes constituem dez pontos de vista diferentes sobre o mesmo fato. Para usar uma expressão de Todorov (1966), temos uma focalização estereoscópica, na medida em que um mesmo fato é narrado por narradores que assumem posições ideológicas e existenciais distintas, quando não antagônicas, o que reforça o caráter polêmico da narrativa. A escolha dos narradores mostra ainda a pluralidade de valores dos atores, na medida em que nos narradores estão representadas classes sociais e ideologias distintas. Ouve-se a voz do padre, do médico, dos dominantes (Valdo, o patrão), dos dominados (Betty, a governanta), de homens, de mulheres, de interditos, dos acusados e dos acusadores. Enfim, monta-se o texto como um processo judicial, ou um inquérito policial, o que configura mais um procedimento persuasivo para a construção do sentido de realidade dos textos. V- Os sentidos de Crônica da casa assassinada: o nível fundamental.

Para a semiótica, o sentido obedece a um percurso gerativo que vai de um nível mais simples e abstrato, o nível fundamental, de caráter lógico-conceptual, a um nível mais concreto e superficial, o nível discursivo, o mais próximo da manifestação textual. Entre o nível fundamental e o discursivo, há o nível narrativo, de caráter antropomórfico. Cada um desses três níveis apresenta uma sintaxe e uma semântica próprias. O nível fundamental, em que aparece o mínimo de sentido sobre o qual o discurso é construído representa a primeira etapa da geração do discurso. Nele, temos oposições binárias de termos de um mesmo eixo semântico. O quadrado semiótico é o modelo lógico que nos permite operacionalizar a oposição semântica fundamental. As suas articulações semânticas principais em torno das quais se constroem os sentidos da Crônica são /vida vs. morte/ e /natureza vs. cultura/. Esses valores ora se mostram eufóricos, ora disfóricos, dependendo do programa narrativo dos atores. Para André e Nina, envolvidos numa relação erótico-afetiva que contraria as normas sociais, natureza é assumida como valor eufórico. Para Demétrio e Ana, guardiões dos valores da Casa, cultura é o valor eufórico. Na articulação semântica /vida vs. morte/, morte assume valor eufórico para grande parte dos atores; Nina, em especial, que morre crendo na ressurreição. A oposição /vida vs. morte/ está presente no percurso narrativo de Nina, que faz um pacto com André de que ressuscitaria. Sobre essa oposição semântica fundamental faremos uma abordagem perfunctória, uma vez que o tema da pesquisa está ligado à oposição fundamental, /natureza vs. cultura/.

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A essa oposição semântica correspondem as oposições /querer-fazer vs. dever-nãofazer/, /pulsões individuais vs. coerções sociais/. O /querer-fazer/ manifesta-se nas pulsões individuais que levam Nina e André a manterem relações de natureza sexual e o /dever-nãofazer/, nas coerções sociais que declaram interditas as relações sexuais entre mãe e filho. Nos percursos narrativos de Nina e André, observamos a manifestação do desejo (sexual), um /querer-fazer/ que entra em choque com os valores culturais que impõem um /dever-não-fazer/, em outros termos, há um conflito entre /volição/ e /interdição/. O dever-não-fazer (interdição) é negado e o querer-fazer (volição) é afirmado.

Ilustração 2: Oposição natureza vs. cultura natureza querer-fazer volição

cultura dever-não-fazer interdição

não-cultura não-dever-não-fazer permissividade Fonte: Elaborado pelo autor

Ressaltamos que a interdição tem por termo contrário a prescrição. No eixo dos contrários da categoria modal /prescrição vs. interdição/, o termo complexo é injunção. Etimologicamente, injunção (lat. injunctio, -onis) tem o sentido de impor (uma carga) a alguém. Podemos destacar, portanto, na injunção um destinador que modaliza um sujeito atribuindo-lhe uma obrigação de fazer (prescrição) ou de não-fazer algo (interdição), instituindo assim um sistema normativo. O contrato que se estabelece entre destinador e destinatário, nesse caso, é o que se pode denominar contrato injuntivo. Como o destinador é a fonte dos valores, aquilo que será ou não interdito é determinado por ele. Assim o que é interdito numa determinada sociedade e momento poderá não sê-lo em outra. Apenas a título de ilustração, relacionamos alguns interditos cuja presença pode ser observada em várias culturas: o interdito do sangue menstrual, o do canibalismo, o da nudez dos corpos, o dos mortos, o do incesto. Desses nos interessa nesta pesquisa, o do incesto. De todos, o mais universal.

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Na seção seguinte, discutiremos com mais detalhes a oposição semântica /natureza vs. cultura/ e a interdição do incesto.

VI- Natureza vs. cultura e a interdição do incesto

Normalmente, costumamos pensar as oposições fundamentais em termos de oposições semânticas em que o segundo termo se opõe ao primeiro por contrariedade. No que tange à oposição /natureza vs. cultura/, podemos enxergar uma zona neutra, ou um continuum entre esses dois semas. A pergunta que fica é: Onde acaba a natureza e onde começa a cultura? Vejamos. A distinção entre natureza e cultura se inicia pela observação do comportamento humano e animal, pois esse permite ilustrar bem os dois domínios da oposição. Partimos do pressuposto de que onde há regras se está no domínio da cultura, como atesta Lévi-Strauss.

Em toda parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. Simetricamente é fácil reconhecer no universal o critério da natureza. Porque aquilo que é constante em todos os homens escapa necessariamente ao domínio dos costumes, das técnicas e das instituições pelas quais seus grupos se diferenciam e se opõem. (LÉVI-STRAUSS, 2012 p. 45)

Se pensarmos no tema de nossa pesquisa, a interdição, não teríamos dúvida de que estamos transitando dentro de um sistema de valores em que há injunções que regulam o agir dos sujeitos. Assim sendo, poderíamos estabelecer a seguinte relação:

cultura : natureza :: injunções : não injunções

Quanto à interdição do incesto, em princípio, podemos afirmar que está no domínio da cultura, na medida em que estabelece um contrato injuntivo entre destinador e destinatário. Por outro lado, estudos no campo da antropologia mostram que se trata de uma regra que tem caráter de universalidade, portanto trata-se de algo que é contraditório, na medida em que apresenta traços da cultura (regras) e traços da natureza (universalidade), ou no dizer LéviStrauss "a proibição do incesto possui ao mesmo tempo a universalidade das tendências e dos instintos e o caráter coercitivo das leis e das instituições" (2012, p. 47). A interdição do incesto se configura um mistério para o homem, dada sua ambiguidade. Fixando-nos no domínio da cultura, trata-se de uma injunção que atua sobre

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aquilo que há de mais animal na natureza humana, o instinto sexual. Assim sendo, trata-se de uma regra que visa regular a vida sexual dos indivíduos, numa clara invasão do domínio da cultura no domínio da natureza. Mas, se pensarmos que o instinto sexual é o único que, para se manifestar, depende do estímulo do outro, ele pode ser considerado um prenúncio de vida social. As justificativas para proibição do incesto são de três ordens. A primeira seria uma forma de preservação da espécie, impedindo resultados não desejados de relações sexuais entre consanguíneos, tais como o surgimento de uma prole com "monstruosidades". A segunda justificativa seria uma projeção no plano da cultura de tendências que a própria natureza humana é suficiente para explicar, ou seja, a própria natureza do indivíduo tem horror ao incesto e isso é projetado socialmente. Tal justificativa não prospera, pois se os sujeitos já são naturalmente marcados pelo horror ao incesto, não há porque explicitar a interdição por meio de regras. A terceira justificativa é de ordem puramente social. A proibição do incesto seria derivada da exogamia, que

...em numerosas sociedades proíbe o casamento entre categorias sociais que incluem os parentes próximos, mas, juntamente com eles, um número considerável de indivíduos entre os quais não é possível estabelecer nenhuma relação de consanguinidade ou de colateralidade, ou, em todo caso, só relações muito distantes. Neste último caso, é o capricho aparente da nomenclatura que equipara os indivíduos feridos pelo interdito a parentes biológicos. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 87)

VII- Incesto: relação interdita.

No lexema interdição podemos ver um programa narrativo. Essa palavra tem sua origem no latim 'interdictio, onis'. Em português, os verbos correspondentes a esse substantivo são interdizer e interditar, o último mais usado. O substantivo latino corresponde ao verbo interdico, is, xi, ctum, cere, derivado de dico, is, xi, ctum, cere, que significa dizer, nomear, afirmar, falar em público. O verbo interdicere em latim era usado com o sentido de fazer um edito, lavrar um decreto (pelo Pretor). Santos Saraiva em seu Dicionário Latinoportuguês faz referência a esse verbo com o sentido de proibir a alguém a água e o fogo, isto é, desterrar alguém. O mesmo dicionário, no verbete interdictio, onis, reitera esse sentido ao afirmar "aquae et ignis interdictio", isto é, proibir alguém de água e fogo, o que significa desterrá-lo.

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A etimologia de interdição (interditar) nos leva ao seguinte: um sujeito, que detém um poder, proíbe alguém de fazer algo, sob pena de uma sanção, o desterro, ou seja, o ato de interditar pressupõe um destinador, um dito, um destinatário da ação de dizer e uma sanção. A interdição tem, portanto, caráter performativo, na medida em que se realiza pelo ato de dizer. Esse exercício de etimologia nos permite afirmar que a interdição se constitui no e pelo discurso. Dessa forma, podemos vê-la por quatro aspectos: a) uma relação comunicativa entre um destinador e um destinatário, em que o destinador, fonte dos valores, comunica ao destinatário a proibição de um fazer (um /dever-não-fazer/); b) uma relação entre um destinador-julgador e um destinatário-sujeito em que o primeiro sanciona o segundo. No caso de não cumprimento do contrato de injunção, essa sanção será negativa; c) uma relação de manipulação entre o destinador-manipulador e o destinatário-sujeito, em que o primeiro manipula por intimidação o segundo a um /dever-não-fazer/. Do ponto de vista psicológico, o interdito afasta de nossa consciência o objeto que ele interdita, controlando a violência. O valor interdição pode ser investido em objetos diversos dependendo dos valores culturais e sociais. O ordenamento jurídico das sociedades modernas estabelece casos em que é possível a interdição. No Brasil, esse estatuto se aplica, por exemplo, a estabelecimentos que possam oferecer riscos aos frequentadores, como na interdição de uma casa de espetáculos. A interdição pode ser aplicada também a pessoas como os incapazes com deficiência intelectual; o pródigo pode ser objeto de interdição, por exemplo. Não nos interessa aqui discutir o estatuto jurídico da interdição, uma vez que nossa pesquisa recai sobre a interdição do incesto, que, pelo menos em nosso ordenamento jurídico, não é objeto de proibição legal. Curiosamente, nossa legislação proíbe o casamento de parentes próximos, mas não considera crime relações sexuais incestuosas. Nossa pesquisa, voltada ao discurso da interdição, vai analisar como na Crônica esse discurso se manifesta relativamente à questão das relações incestuosas que teriam ocorrido entra os atores Nina (a mãe) e André (o filho). O incesto, evidentemente, não é o único objeto de interdição. Tão antiga quanto à interdição do incesto é o interdito da morte, expresso no mandamento "Não matarás" e na preservação da violência aos mortos. Sobre a preservação dos mortos, Bataille (2014, p. 70) é enfático ao afirmar que "o cadáver deve ter sido sempre, por parte daqueles de que, vivo, ele era companheiro o objeto de um interesse, e devemos pensar que, vítima da violência, seus próximos tiveram a preocupação de preservá-lo de novas violências".

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Antígona, de Sófocles, é a primeira obra literária da cultura ocidental a tratar do tema da preservação aos mortos. Em outro trabalho (TERRA, 2012), já nos referíamos ao direito natural de preservar os mortos da violência, comentando o episódio em que Antígona se opõe a Creonte a fim de poder dar sepultura a seu irmão.

Em Antígona, de Sófocles, estabelece-se um conflito entre Creonte, rei de Tebas, e Antígona em decorrência de significados diferentes que ambos atribuem àquilo que seja Justiça, Direito. Para Antígona, é Direito dar sepultura ao irmão Polinices, que morrera lutando por Argos contra Tebas, já que enterrar os mortos é algo natural e de acordo com a lei divina, thémis, por isso ela considera que tem o direito de dar sepultura a seu irmão. Para Creonte, no entanto, Direito não é aquilo que é natural e não emana dos deuses, mas aquilo que está escrito, diké. Para ele, o ato de Antígona de sepultar Polinices, embora seja natural não é Direito, porque não está escrito e, por isso, Antígona foi punida por Creonte, que a prendeu em uma caverna que lhe serviria de túmulo ainda em vida. O conflito reside, pois, no fato de o conceito de Direito poder ser expresso por significantes diferentes, thémis e diké, conforme emana a fonte da lei. (TERRA, 2012, p. 8)

Na Crônica, o tema da interdição aos mortos aparece no final da narrativa, por ocasião do sepultamento de Nina. Enrolado num lençol, o cadáver é posto sobre a mesa da sala para onde acorre grande parte da população de Vila Velha. O ponto alto do velório é a chegada do Barão com sua esposa. Nesse momento, adentra à sala, deitado numa rede e carregado por três negros, Timóteo, vestido com seus trajes femininos e excessivamente maquiado. Aproxima-se do cadáver de Nina e, antes de jogar violetas sobre o corpo dela, esbofeteia o cadáver. O narrador, neste trecho, é Valdo, marido de Nina e irmão de Timóteo.

A certa altura, desviando enfim a vista do rapaz [André], e como se fosse uma resposta cujo sentido ninguém entendesse, julguei tê-lo visto erguer a mão e desferir uma bofetada no cadáver. Sim, uma bofetada. Mas juro que como não sei qual foi o motivo - e esta dúvida até hoje ainda me persegue o pensamento. Para demonstrar somente seu pouco apego às convenções humanas? Não o creio, pois já não tinha mais necessidade disto - ultrapassara todas as fronteiras. Para desafiar alguma força oculta, tocaiada à sombra da morte? É possível. A verdade, reafirmo, é que jamais pude apreender o significado de gesto tão estranho. (CARDOSO, 2013, p. 505)

A atitude de Timóteo significa uma ruptura no contrato que postula o respeito aos cadáveres, um interdito. Ressaltamos que o ato interdito, um dever-não- fazer, foi praticado

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por um sujeito interdito: um sujeito que não dispõe da competência do /poder-fazer/ faz o que deve-não-fazer. É o interdito negando a própria interdição e afirmando a liberdade. Além de /natureza vs. cultura/, a outra oposição semântica em que se articulam os sentidos da Crônica é, como dissemos, /vida vs. morte/. No parágrafo anterior, chamamos a atenção para a ruptura do interdito por parte de Timóteo. O que desencadeia isso é a morte de Nina, sua aliada. Como fizemos com a palavra interdição, gostaríamos de traçar alguns comentários sobre a palavra incesto do ponto de vista de sua etimologia. Como aquela, esta também provém do latim, incestus, us, incesto, ação contra a castidade. Ao contrário do que ocorre em português, em latim o processo é lexicalizado por meio do verbo incesto, as, avi, atum, are, cujos sentidos são, manchar, poluir, tornar impuro, corromper, desonrar. Há em latim o substantivo neutro incestum, i (incestus, us é masculino da quarta declinação), cujo sentido é impureza, mancha e o adjetivo incestus, a, um, cujo sentido é impuro, poluído, manchado. O Houaiss registra o adjetivo incesto (datação de 1679) com o sentido de o que não é puro, o que não é casto. Essa breve pesquisa etimológica permitiu-nos chegar ao adjetivo latino castus, a, um (cestus é uma variante de castus). Socorrendo-nos mais uma vez de Santos Saraiva, verificamos que castus, é aquilo que é puro, íntegro, imaculado. Podemos então apresentar para o substantivo incesto os semas /impuro/ e /manchado/. Puro é o que não contém mistura e manchado é aquilo que contém marcas de sujeira; sujo. Incesto é, pois, uma mistura que deixa marcas de sujeira. Como podemos ver, a palavra em si mesma já expressa a condenação do ato, uma mistura suja. Chamamos a atenção para que, no caso do incesto, a interdição recai sobre a relação entre dois sujeitos que mantêm entre si parentesco próximo. Essa relação é sempre de natureza sexual. O que aproxima esses dois sujeitos é um /querer-fazer/. Portanto, incesto contém os seguintes traços: /humano/, /sexo/, /parentesco/, /interdição/, /condenação/. A interdição do incesto, uma regra antiquíssima que tem caráter de universalidade, é uma invasão da cultura na natureza, conforme afirma Levi-Strauss (2012, P. 45) "[...] constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza à cultura" e é a afirmação de um /não-poder-fazer/, ou seja, no domínio das relações entre os sexos, não se pode fazer o que se quer, o que significa que, para a sobrevivência do grupo, o social deve prevalecer sobre o natural; o coletivo, sobre o individual e a organização, sobre o arbitrário. Apoia-se também numa regra de reciprocidade, vale dizer, o sujeito renuncia a ter relação sexual com a filha ou irmã, desde que outro sujeito

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também faça a mesma renúncia. Portanto, podemos ver na interdição do incesto dois programas transitivos correlatos: um de doação e outro de renúncia. Na Crônica, o tema da proibição do incesto pode ser representado no seguinte esquema narrativo do sujeito da ação representado pelo ator Nina.

Quadro 5 - Esquema narrativo de Nina

manipulação competência performance sanção destinador 1 querer-fazer saber-fazer destinador 1 destinador 2 dever-não-fazer poder-fazer destinador 2 fazer-saber fazer-fazer fazer-crer contrato fazer interpretativo sujeito virtual sujeito atualizado sujeito realizado Fonte: Elaborado pelo autor

Explicando o esquema. O sujeito da ação é manipulado por tentação pelo destinador 1, figurativizado no ator André, que lhe atribui a competência modal do querer. O destinador 1 exerce seu fazer persuasivo, um fazer-crer, por meio de um fazer parecer verdadeiro (ver quadrado da veridicção, p. 54). Nina quer ter relação sexual com André. O sujeito da ação é manipulado por intimidação pelo destinador 2 (o destinador social) que lhe atribui a competência do dever-não-fazer. Apenas o contrato proposto pelo destinador 1 prospera. O sujeito aceita esse contrato, por considerá-lo vantajoso e o destinador confiável, instaurandose dessa forma um sujeito virtual. No entanto, o sujeito rejeita o contrato proposto pelo destinador 2 por considerá-lo não vantajoso. Modalizado pelo poder e pelo saber, temos um sujeito competente, isto é, qualificado para um fazer que o levará ao ser. A narrativa prossegue apenas em relação ao proposto pelo destinador 1 e o sujeito realiza o percurso da ação (ele quer, pode e sabe fazer). De sujeito virtualizado, torna-se atualizado. No percurso da sanção, o destinador 1 reconhece que o sujeito da ação cumpriu o contrato proposto (Nina teve relações sexuais com André) e o sanciona positivamente. Gostaríamos de chamar a atenção para um fato. Esse esquema narrativo nos mostra que o sujeito da ação é, em última instância, um sujeito cindido, entre um querer-fazer e um dever-não-fazer, ou seja, entre a volição e a interdição. O fato de ter rejeitado o contrato proposto pelo destinador 2, não afasta o sujeito dessa cisão, uma vez que o dever-não-fazer

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continua a existir potencialmente. Com relação ao destinador 1, o sujeito continua a existir em potência. Essa cisão do sujeito da ação é manifestada pelas oscilações tímicas em seu percurso narrativo, em que alterna estados de euforia com disforia. É preciso assinalar que o desejo incestuoso de Nina se manifesta antes mesmo de conhecer o filho do qual estava separada desde que este nascera há quinze anos ("Comecei a imaginá-lo não como um amante, mas como um filho, a quem eu ensinasse coisas, e apontasse os perigos deste mundo, salvando-o de si mesmo e dos outros. Filho, amante, que importa - a solidão tem desses enganos.", p. 90). A interdição do incesto corresponde a uma triagem (lembremo-nos que no lexema incesto está contido o sentido de mistura ruim). Portanto, separa aquilo que pode ser considerada uma boa mistura de uma má mistura. Em síntese: excetuando-se a mistura entre consanguíneos, todas as demais misturas são consideradas boas e, portanto, prescritas. Na Crônica, podemos observar duas categorias de espaço: o espaço da mistura, representando pela sala e pela varanda, e o espaço da triagem, figurativizado no Pavilhão, no porão e no quarto de Timóteo, locais das relações interditas, que em relação ao espaço da mistura, correspondem ao sema /baixo/. Falar em interdição nos leva a refletir sobre transgressão, pois, retomando a frase de Bataille, que nos serviu de epígrafe a este capítulo, "Não há interdito que não possa ser transgredido". O contrato proposto pelo destinador pode não ser aceito pelo destinatário. A transgressão do prescrito não suprime o prescrito, assim como a transgressão do interdito não o elimina, portanto a prática do incesto não suprime sua interdição. Por outro lado, há casos em que a transgressão é admitida e, muitas vezes, prescrita. Há a regra do Não matarás; no entanto, em determinadas sociedades, o matar é prescrito, como naquelas em que se admite a pena de morte e o duelo. Aspectualmente, transgredir não é terminativo, mas incoativo, indicando o início da passagem de um estado a outro. Do ponto de vista do destinador, de um estado de pureza para um de impureza. Portanto, o incesto representaria o retorno do sujeito da cultura ao estado de natureza. Nega-se a cultura para afirmar a natureza; nega-se a regra social para se afirmar o instinto. O incesto é, pois, o triunfo pulsão individual sobre a coerção social. Na Crônica, os atores Nina e André vivem um conflito porque dois destinadores lhes propõem valores opostos: o querer-fazer sofre a restrição do dever-nãofazer, o que lhes impingem, ao mesmo tempo, dois movimentos opostos, a repulsão e a atração. Nina e André circulam nesse espaço tensivo. Mas, quanto maior a atração, menor a repulsão. Para eles, a atração, o instinto, sobrepõe-se à repulsão, ao racional e ao contrato com

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o destinador que lhes propõe: o dever-não-fazer é rejeitado, enquanto o contrato proposto por outro destinador que lhes transmite o querer-fazer é aceito e cumprido. Finalizando esta seção, ressaltamos que o esquema narrativo apresentado no Quadro 4 refere-se apenas e tão somente ao percurso da ação de Nina na relação incestuosa com o filho. São vários os percursos narrativos desse ator, ligados a temas diferentes (adultério, casamento, doença, morte) e, obviamente, com destinadores (manipuladores e julgadores) figurativizados em atores distintos. O que chama a atenção é que a função de destinadorjulgador é exercida por todos os atores "...ela mesma, Nina, quantas vezes não fora julgada e dissecada sobre aquelas tábuas?"5 (p. 21).

VIII- Homossexualidade e interdição

Na seção anterior, tratamos da interdição do incesto. No romance, a relação interdita teria ocorrido entre mãe (Nina) e filho (André). A interdição também se manifesta no confinamento que ator Timóteo se impõe ("Diante de mim a porta haveria de se abrir, desvendando aquela paisagem que eu próprio me interditara" (p. 495). Confinado em seu quarto, vai passando por um processo de degradação física, até tornar-se uma figura completamente disforme, marcada pelo excesso, que se manifesta também em sua maneira de vestir e maquiar. Todo ele é exagero, vestido com as roupas da mãe, cheio de colares, com maquiagem excessiva, enfim, uma figura carnavalizada ("Não era mais aquele que eu conhecera, mas o que se poderia chamar de um exagero daquele, um excesso de exagero, uma caricatura" (p. 214). O vestir-se de Timóteo opõe-se aos dos demais Meneses (Demétrio, Ana e Valdo), que sempre se apresentam de maneira sóbria, vestidos de preto. Em relação à justa medida, Timóteo está muitos graus acima (excesso), o que lhe confere um caráter cômico. Apesar da aparência irreverente, ele e Nina são os únicos a não aceitarem os valores impostos na Casa por Demétrio, negando esses valores pela afirmação de uma sexualidade não prescrita e considerada "anormal": a homossexualidade e o incesto. Timóteo afirma sua rejeição aos valores da Casa, por meio da transformação de seu próprio corpo.

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Tábuas aí referem-se à mesa da sala em que os Meneses faziam as refeições e é usada para colocar sobre ela o caixão onde Nina jaz morta. Como os habitantes da Casa viviam recolhidos a seus cômodos, os julgamentos sobre a conduta de Nina eram feitos principalmente à mesa, na hora das refeições.

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Era um rebotalho humano, decrépito e enxudioso, que mal conseguia se mover e que já atingira esse grau extremo em que as semelhanças animais e se sobrepõem às humanas. Essa impressão de decadência era acrescida pela roupa que vestia, restos do que haviam sido pomposos vestidos, hoje trapos esgarçados, que se esforçava para cobrir não o corpo de uma senhora ainda nessa meia-idade capaz de ofuscar certos olhos juvenis, mas o de uma velha derrotada pelo desleixo e pela hidropisia. (p.238)

O estatuto da interdição não se aplica apenas a fazeres, como no caso do incesto, mas também a sujeitos que, na verdade, por sofrerem a interdição, acabam se transformando em não-sujeitos, já que lhes é cassado o direito de reger a própria pessoa. No caso de Timóteo, sua interdição não implica apenas uma segregação espacial, mas também a cassação de sua palavra. Não é à toa que, no romance, poucas vezes se ouve a voz de Timóteo. Isso ocorre apenas quando ele conversa escondido com Nina ou Betty. Seu discurso é normalmente um discurso relatado. Interditar, ação-processo aplicada, no caso de Timóteo, tem por complemento a própria Casa, pois na medida em que Demétrio obriga Timóteo a se manter confinado em determinado espaço (seu próprio quarto) lhe está interditando todo o resto da Casa, confirmando hipótese de nossa pesquisa de que há no romance duas ordens de espaço: o das relações prescritas e o das interditas.

[...] o médico não permite que ninguém entre nesse quarto. Atônito, André perguntara: Por quê? E ele respondera: Moléstia contagiosa. Durante anos e anos fizera-o evitar aquela porta como a de um autêntico leproso” (p.263-264).

Demétrio proíbe que todos da Casa entrem no quarto de Timóteo e falem com ele por crer que o homossexualismo deste é uma forma de "tentar destruir o nome de Meneses pela vida dissoluta" (p. 111). Timóteo se crê dominado pelo espírito de Maria Sinhá, uma ancestral dos Meneses, famosa por se vestir de homem e andar a cavalo. Seu retrato, que ficava na sala da Casa, foi depois transferido para o porão por ordem de Demétrio, quando Timóteo começa a manifestar suas "tendências". Demétrio não só esconde o retrato de Maria Sinhá no porão, como ainda proíbe que se fale tanto do retrato quanto da retratada, vale dizer, Maria Sinhá também é interdita. Como se pode observar, a forma como se interdita a figura de Maria Sinhá, é também escondê-la num espaço que corresponde aos semas /baixo/ e /escuro/. Para Timóteo, "Maria Sinhá seria a honra da família, uma guerreira famosa, uma Anita Garibaldi, se não

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vivesse nesse fundo poeirento de província mineira..."(p. 58). Nina, desafiando o interdito, desce ao porão para ver o retrato e encontra

[...] um rosto de mulher, não havia dúvida, mas tão severo, tão fechado sobre suas próprias emoções, tão definitivamente ausente de cogitações imediatas e mesquinhas, que mais se assemelhava ao rosto de um homem - e de um homem totalmente desiludido das vaidades desse mundo [...] desse retrato feito provavelmente por um artista ambulante, desses que outrora percorriam as fazendas, emanasse uma tão grande autoridade, uma sóbria atmosfera masculina (p. 145).

Assim, na Casa, toda manifestação de homossexualidade é punida com o confinamento espacial. E, pensando na categoria /verticalidade/ a interdição sempre se manifesta no /baixo/, Maria Sinhá, no porão; Timóteo, em seu quarto. Sim, pois embora não se visualize isso na planta da Casa, colocada nas primeiras páginas do livro e reproduzida, neste relatório (Ilustração 1, p.11), o quarto de Timóteo corresponde ao /baixo/, pois a casa fora construída sobre um declive e o quarto de Timóteo está na parte baixa do declive, como atesta o trecho que segue "... construída sobre um declive, a Chácara, muito alta do lado da varanda, ia baixando até o quarto do Sr. Timóteo, o último da escala, e que fazia paredemeia com a cozinha, naturalmente a parte menos elevada da construção." (p.144). Se retornarmos à planta da Casa, verificaremos que o espaço da interdição ocupado por Timóteo (o baixo) esta em oposição ao escritório, o ponto mais alto da construção. Esse espaço é ocupado por Demétrio para resoluções importantes, o que se pressupõe que os atos de interdição tenham sido emanados desse espaço. Contíguos ao escritório, temos outros dois espaços, a sala e a varanda, que são os espaços sociais da Casa, a primeira para as refeições em família; a segunda para o descanso e o lazer. Ainda sobre a segregação espacial, observemos esta fala de Timóteo.

- Houve tempo - disse ele de costas para mim [Betty, a governanta] -, houve tempo em que achei que devia seguir o caminho de todo mundo. Era criminoso, era insensato seguir uma lei própria. A lei era um domínio comum a que não podíamos nos subtrair. Apertava-me em gravatas, exercitava-me em conversas banais, imaginava-me igual aos outros. Até o dia em que senti que não me era possível continuar; porque seguir leis comuns se eu não era comum, por que fingir-me igual aos outros, se era totalmente diferente? [...] Foi a isto que eles [os Meneses] reduziram o meu gesto, Betty. Transformaram-no na mania de um prisioneiro, e estas roupas, que deveriam constituir o meu triunfo apenas adornam o sonho de um homem condenado. Mas um dia, está ouvindo? - um dia eu me libertarei do mesmo que me retém, e mostrarei a eles, ao mundo quem na verdade eu sou. [...]

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Quando me apertava em gravatas, quando me vestia como os outros homens, meu pensamento se achava cheio de vestidos suntuosos, de joias, de leques. Quando minha mãe morreu, ela que era famosa em sua mocidade pelo exagero dos trajes, meu primeiro ato foi apoderarme de seu guarda-roupa. E não só de seu guarda-roupa, mas de suas joias também. (CARDOSO, 2013, p. 59)

Detenhamo-nos neste fragmento. Na interdição, o destinador manipula o sujeito por intimidação a um /dever-não-fazer/. Vimos ainda que a interdição se opõe à volição, ou seja, a um /querer-fazer/. Essa oposição articula-se, no nível fundamental, à oposição semântica /natureza vs. cultura/. Vimos ainda que a passagem da natureza à cultura está ligada ao estabelecimento de regras. Nesse trecho, o percurso de Timóteo é o seguinte: i. respeito à regra social: "... achei que devia seguir o caminho de todo mundo..."; "A lei era um domínio comum a que não podíamos nos subtrair". ii. negação da injunção social: "Até o dia em que senti que não me era possível continuar; porque seguir leis comuns se eu não era comum, por que fingir-me igual aos outros, se era totalmente diferente?" iii. busca de novo valor: "...um dia eu me libertarei do mesmo que me retém, e mostrarei a eles, ao mundo quem na verdade eu sou." Timóteo, num primeiro momento, aceita os valores do destinador social, mas o estado do ser é marcado pela insatisfação, por isso não cumpre o contrato, sendo sancionado pragmaticamente com o confinamento. Sua situação é análoga à de Maria Sinhá (... "ela sempre sonhou com trajes diferentes do quer usava" (p. 60), que passa exercer a função de destinador-manipulador dando a Timóteo um querer. Timóteo, agora disjunto do valor liberdade, quer entrar em conjunção com ele e a casa em que esse valor é investido são as roupas e joias femininas. O tema da interdição por confinamento é revestido por figuras como criminoso, prisioneiro, condenado. Chamamos a atenção para a figura "apertava-me em gravatas", que ocorre duas vezes no trecho, como reveladora do sujeito preso a convenções de ordem social. Como veremos ao tratar do espaço Pavilhão, o destinador, figurativizado em Demétrio, fonte dos valores da tradição e da moralidade, que é também o destinador-julgador, sanciona negativamente os que não cumprem o contrato por ele proposto segregando-os espacialmente: Timóteo confinado em seu quarto, Nina e Valdo, no Pavilhão. A interdição de Timóteo atrela-se ao sentido etimológico da palavra, pois ele está "proibido da água e do

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fogo", isto é, desterrado. A identificação do sujeito desterrado com o espaço do desterro é total. Referindo-se ao espaço quem viveu confinado Timóteo afirma que

Finalmente eu ia começar a minha marcha, e fora o cadáver de Nina que descerrara as portas da minha prisão. Levantei-me de novo, inquieto, caminhei pelo quarto - ah, nunca me parecera tão pequeno, tão irrespirável, de paredes tão estreitas. Conhecia cada um dos seus cantos como pedaços de um território amigo - e eis que de repente, a um simples sinal do destino, tornavam-se estrangeiros para mim. (CARDOSO, 2013 p. 495)

O tema do confinamento se manifesta no percurso figurativo desse pequeno trecho em que Timóteo descreve seu próprio quarto: pequeno, irrespirável, enfim, uma prisão. Como se pode observar, as operações que instalam disjunções espaciais prestam-se a criar os espaços da interdição, em que se segregam os sujeitos dos atos ditos interditos como forma de punição. Acrescentamos, agora baseados em Foucault (2007), que a sociedade não só julga os crimes e os delitos previstos na codificação legal, mas julga e sanciona as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades. Nesse caso, a sanção visa mais a controlar o sujeito, do que sancionar a infração por ele cometida, ou seja, não se pune o que eles fizeram, mas, sobretudo, o que eles são ou possam ser. A espacialização na obra será objeto de análise na seção seguinte.

IX- A espacialização em Crônica da casa assassinada

O espaço na Crônica é descontínuo e os diversos espaços, Casa, jardim, Pavilhão, relacionam-se a temas como amor, liberdade, solidão, morte. Depois das leituras que fizemos do livro, tomamos por hipótese que há uma relação entre os espaços e as manifestações de interdição, por isso houvemos por bem traçar algumas considerações sobre a espacialização na obra, retomando alguns pressupostos teóricos em que nos fundamentamos. Das categorias da enunciação, instância pressuposta pelo discurso, a menos estudada é o espaço. Os estudos literários voltados a essa categoria são realizados sob o ponto de vista de uma semântica espacial, desprezando o componente sintático. Por outro lado, enquanto as categorias da enunciação sujeito e tempo estão sempre marcadas na língua por morfemas gramaticais, o mesmo não ocorre com o espaço, que é marcado por morfemas livres, ou podendo até estar ausente dos textos. Nesse sentido, é oportuno lembrar as palavras de Fiorin (2001).

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Parece que a linguagem valoriza mais a localização temporal que a espacial, pois podemos falar sem dar nenhuma indicação espacial, quer em relação ao enunciador, quer em relação a um ponto de referência inscrito no enunciado. (FIORIN, 2001, p. 258)

Para a semiótica, o espaço é um objeto construído que comporta elementos descontínuos. Pelo mecanismo da desembreagem, é instalada a categoria de pessoa (ego) e as coordenadas espácio-temporais (hic e nunc). Espaço e tempo podem corresponder ou não ao momento da enunciação. Quando corresponderem, temos desembreagem espacial e temporal enunciativas (sistema do aqui e agora). No caso de o tempo e o espaço não corresponderem ao momento da enunciação, temos desembreagem espacial e temporal enuncivas (sistema do alhures e então). No discurso, o espaço se organiza a partir do aqui (espaço da enunciação), que se opõe ao espaço fora da enunciação (o alhures). Dessa forma, temos duas ordens de espaço: o enunciativo (espaço do aqui) e o enuncivo (espaço do não-aqui). Os efeitos de sentido serão, respectivamente, os de proximidade e de distanciamento da enunciação. Greimas e Courtés (2012) fazem referência à espacialização pragmática (localização espacial propriamente dita) e à espacialização cognitiva do discurso. Esta diz respeito às relações cognitivas que se estabelecem entre os diferentes actantes, ou entre actantes e objetos, investidos de propriedades espaciais como tocar, ver, ouvir etc. Segundo esses semioticistas, "a noção de espacialização cognitiva introduz a problemática da proxêmica, disciplina que situa seu projeto fora da semiótica discursiva" (2012, p. 177). Fiorin (2001), apoiado em Vernant, afirma que o espaço articula-se "em torno de categorias como interioridade vs. exterioridade, fechamento vs. abertura, fixidez vs. mobilidade, que são homólogas à categoria feminilidade vs. masculinidade". Na cosmologia grega, o espaço aparece divido em camadas, sendo a superior a dos deuses, a do meio a dos homens e a inferior da morte e dos deuses subterrâneos. Vernant ainda associa a direita àquilo que é propício e a esquerda, àquilo que é sinistro. Os dicionários registram sinistro como aquele que usa preferencialmente a mão esquerda e como aquilo que causa o mal. Acrescentamos que, relacionadas à espacialização dos seres no discurso, temos também categorias como /proximidade vs. afastamento/ (relativas a distância), /verticalidade vs. horizontalidade/ (relativas a direcionalidade) e /englobado vs. englobante/ (relativas a abrangência).

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Analogamente ao tempo, em que o agora se institui como marco de referência; na categoria espaço, o aqui é o marco de referência espacial para a programação espacial do discurso. Ainda com base em Fiorin (2001),

[...] o espaço linguístico ordena-se a partir do hic, ou seja, do lugar do ego. Todos os objetos são assim localizados, sem que tenha importância seu lugar no mundo, pois aquele que os situa se coloca como centro e ponto de referência da localização. (FIORIN, 2001, p. 262)

Como os sujeitos deslocam-se no espaço, mudando de posição a partir de um referencial, as categorias espaciais dinamizam-se pelas operações de expansão e condensação. Relativamente à direção, provocarão /afastamento/ ou /aproximação/, a primeira decorrente da operação de condensação; a segunda, da operação de expansão. Quanto ao englobamento, temos a /extensão/, decorrente da expansão e a /concentração/, que decorre da condensação. Para Fiorin (2001), Afastamento e aproximação dão origem à distância, que é o efeito da aplicação de um movimento direcional a uma relação direcional. Extensão e concentração fazem aparecer a ocupação, que é a consequência da aplicação de um movimento de englobamento a uma relação de englobamento. (FIORIN, 2001, p. 264)

Para Greimas e Courtés (2012), a espacialização é um dos componentes da discursivização, ou seja, ela é um dos procedimentos pelos quais se fazem emergir as estruturas semióticas mais profundas. A espacialização permite que se inscrevam no discurso os programas narrativos, por meio da localização, que é a construção pelo sistema de desembreagem de um sistema de referências que permite situar no espaço programas narrativos. Dessa forma, pelos mecanismos de embreagem e desembreagem, vamos ter os pontos zero para a instalação de uma topologia tridimensional do discurso, que compreende os eixos verticalidade, horizontalidade e prospectividade. A semiótica faz referência ainda à programação espacial, procedimento que, após a localização dos programas narrativos, permite o encadeamento sintagmático desses programas, correlacionando os sujeitos e seus programas narrativos com os espaços segmentados. Os eventos narrados na Crônica ocorrem basicamente na casa dos Meneses, situada numa chácara no interior de Minas Gerais, por isso tecemos algumas considerações sobre esse espaço.

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Uma primeira oposição espacial deve ser tomada a partir da enunciação, que vai criar um espaço do aqui, que se opõe ao alhures. No romance, o espaço do aqui é a Chácara dos Meneses, em Vila Velha (MG), onde está localizada a Casa e seus anexos (o Pavilhão). O alhures corresponde ao Rio de Janeiro, cidade de onde veio Nina. Em apenas três capítulos, dos 56 que constituem a obra, o espaço enunciativo não é a Chácara, mas o Rio de Janeiro. São os capítulos 2 e 6, em que o narrador Nina está no Rio de Janeiro e escreve a Valdo, e o capítulo 39, que contém o relato do Coronel, protetor de Nina, que mora no Rio de Janeiro. Essa oposição espacial corresponde a uma disjunção temporal, na medida em que o Rio de Janeiro liga-se ao passado de Nina e a Chácara ao seu presente.

X- A Casa e o Pavilhão O espaço tem função relevante na medida em que a Casa não é apenas o locus onde se desenrolam os conflitos e paixões, mas também é a metaforização da ruína dos Meneses ("Vejo a casa se abalar, tremerem seus alicerces, ruírem os próprios Meneses..."(p. 441). Gostaríamos, antes de entrar na análise dos espaços do romance, tecer algumas considerações sobre a palavra casa, já que ela é parte do título. Em uma de suas acepções, casa é o edifício destinado a habitação, em que se destaca o traço /moradia/. A casa dos Meneses, nesse sentido, é o espaço físico edificado em que os Meneses exercem a moradia. É essa acepção que está presente nas páginas iniciais do livro em que há a planta da casa dos Meneses desenhada pelo próprio Lúcio Cardoso. Mas no título o substantivo casa está caracterizado pelo adjetivo assassinada. A acepção que apresentamos de casa não comporta o sema /animado/, de sorte que não poderia ser qualificada pelo adjetivo assassinada, uma vez que assassinar tem por sujeito e objeto o sema /humano/. Os dicionários registram assassinar como tirar a vida de (um ser humano) por ato voluntário (ação ou omissão). Veja-se a esse propósito os verbetes assassinado e assassinar do Dicionário de usos do português do Brasil, de Francisco S. Borba:

assassinado Adj [Classificador de nome humano] 1 morto por alguém: um homem que nem tem cara para falar de um filho assassinado (CA); as almas dos homens assassinados vagueiam na solidão (IA).

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assassinar V [Ação-processo] [+-Compl: nome humano] 1. Matar traiçoeiramente e com violência: Assassinou o tio com dez canivetadas (PM); teve um acesso de loucura e tentou assassinar a mulher (CV)

Evidentemente, assassinar pode ter por complemento nome não humano, em caso de ser empregado em sentido figurado, como em assassinou a ortografia, escrevendo daquele jeito. A atribuição do adjetivo assassinada a casa, no título da obra - e aí não se trata de uso figurado - leva-nos a uma segunda leitura da palavra casa, que passa a comportar o sema /animado/. Casa no título pode e deve ser lida como família. A casa dos Meneses, portanto, não é apenas o edifício em que habitam os Meneses, mas os próprios Meneses. Essa ideia de casa como moradia e, ao mesmo tempo, família já existia entre os antigos gregos. Para eles, a casa (oikós) designava, ao mesmo tempo, o habitat e o grupo humano que nele reside. Essa associação sintagmática de assassinada a casa vai implicar outra leitura para assassinada, esta sim figurada, qual seja, atingida em sua honra, em sua dignidade, o que vai nos levar a um dos temas centrais do romance: o pecado, mas não um pecado qualquer, mas "um pecado que afronta as leis humanas e divinas", a violação de um interdito, o incesto. Reportando a Eliade (2010), sabemos que o espaço do sagrado não é homogêneo, apresentando rupturas que permitem a constituição do mundo a partir de um ponto fixo. A Casa, vista pelos Meneses como espaço sagrado, constitui uma imago mundi, se apresenta fragmentada; cada sujeito tem seu espaço próprio (seu quarto) em que se confina. O ator Timóteo está desterrado em sua própria casa, confinado em seu quarto, proibido por Demétrio de ausentar-se do espaço a que foi confinado e de se avistar com os irmãos e cunhadas, por ser considerado "vergonha da família" e portador de "moléstia contagiosa". Excetuando, o primeiro e o último capítulos, que relatam fatos ocorridos após a morte de Nina, e os capítulos 2, 6 e 39, em que o espaço da enunciação (o aqui) é o Rio de Janeiro, em todos os demais capítulos o espaço da enunciação é Vila Velha (MG). Dessa forma, podemos apresentar a seguinte oposição espacial:

/Vila Velha vs. Rio de Janeiro/ que corresponde às oposições:

/rural vs. urbano/ /arcaico vs. moderno/

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/opressão vs. liberdade/ /morte vs. vida/

Os valores manifestados pela oposição /Vila Velha vs. Rio de Janeiro/ vão subsumir a oposição dos sujeitos Demétrio e Nina, fonte de valores conflitantes. Enquanto Demétrio é o representante dos valores da tradicional família mineira, triste e avarenta, Nina representa os valores diversão e luxo. Creio mesmo que foi essa aversão, propalada inúmeras vezes, e em todos os tons de vozes, que para sempre levantou os alicerces do desentendimento entre a patroa e o Sr. Demétrio, de natureza tão arraigadamente mineira. Mais do que isso: mais do que seu estado natal, amava ele a Chácara, que aos seus olhos representava a tradição e a dignidade dos costumes mineiros - segundo ele, os únicos realmente autênticos existentes no Brasil. "Podem falar de mim", costumava dizer, "mas não ataquem esta casa. Vem ela do Império, e representa várias gerações de Meneses que aqui vieram com altanaria e dignidade. (CARDOSO, 2013, p.55)

As figuras relativas a Nina e aos Meneses trazem para o nível discursivo a oposição /extroversão vs. introversão/, sobretudo por meio de figuras visuais que revelam o modo como elas se apresentam no espaço público. Enquanto os Meneses se apresentam sempre de roupas negras ("...vestia-se com um vestido de um preto desbotado, sem enfeites e totalmente fora de moda.") (p.68), "...assustou-me a minha palidez, meus vestidos escuros, minha falta de graça."(p. 112). Nina se veste com roupas claras, que espalham luminosidade e tem sempre os cabelos soltos. No trecho seguir é Ana quem fala a respeito de Nina.

Ah, como era bela, como era diferente de mim. Tudo na sua pessoa parecia animado e brilhante. Quando caminhava, fazia girar no espaço uma aura de interesse e simpatia - exatamente o oposto do que sucedia a mim, ser opaco, pesadamente colocado entre as coisas, sem nenhum dom de calor, ou de comunicação. (CARDOSO, 2013, p. 112) De um só golpe compreendi toda a verdade: ah, como eu devia ser ridícula metida em meu vestido escuro, com os cabelos lisos amarrados em coque, os lábios estreitos apertados para a primeira injúria, para a primeira mentira, para a primeira oferta... (CARDOSO, 2013, p. 112)

O trecho seguinte é uma descrição do vestido de Nina.

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Era vermelho, escuro e encorpado, tão agradável ao tato quanto o cetim. Sua linha era simples, envolvia-a apenas como uma túnica que deixasse livre o nascimento dos seios, para desaguar depois, numa só vaga, extensa e cheia de melodia. Cobrindo essa túnica com um véu de gaze preta, recoberto de vidrilhos, que cintilavam assim que ela se movia - e que consciência do seu encanto possuía ela, ora estacando, ora movendo-se com estudada lentidão, infalível como as mulheres que sabem o que vestem. (CARDOSO, 2013, p. 202)

Enquanto Nina é figurativizada como bela, animada, brilhante, capaz de despertar interesse e simpatia, Ana se reconhece o oposto disso ("ser opaco"). Seu estado é de disjunção do objeto-valor que a rival possui. Esse estado é modalizado por um /querer-ser/ igual à outra, o que caracteriza a inveja. Além da inveja, o percurso passional de Ana é também marcado pelo ciúme e pela vingança. A oposição que marca esses dois atores não está apenas na aparência física e no modo como se vestem, está principalmente nos valores de que estão investidos. Enquanto Nina representa uma negação dos valores dos Meneses, Ana, pelo casamento com Demétrio, passa a incorporar todos os valores dos Meneses e a defendê-los.

Ah, imaginava comigo mesmo, como Ana havia assimilado o sistema dos Meneses; como se incorporara à austeridade da Chácara, e aprendera a ser calada e parcimoniosa de gestos. Nina, ao contrário, jamais se adaptara, vivia no ambiente como uma perpétua excrescência, sempre pronta a partir, voltando sempre. Ainda agora Ana demonstrava o quanto se integrara no espírito da família aceitando sem discussão a situação que se delineava, prestando calada o seu apoio, sem que para isso alguém a solicitasse ou lembrasse o dever a cumprir. (CARDOSO, 2013, p. 434)

O fato é que Nina, acostumada à liberdade que lhe conferia a vida urbana, sente-se prisioneira em Vila Velha, para ela um espaço disfórico em oposição ao Rio de Janeiro, espaço eufórico. Desde que [Nina] chegara, aliás, compreendera que não seria possível viver ali muito tempo. Era carioca, e estava acostumada a viver em cidade grande. Ali, tudo lhe desagradava: o silêncio, os hábitos, a paisagem. Sentia falta dos restaurantes, do movimento, dos automóveis e até mesmo da proximidade do mar. (CARDOSO, 2013, p. 79)

A Casa é o espaço fechado que segrega os sujeitos. Eles não estão somente presos à Casa, mas também acabam ficando presos uns aos outros, a única forma que encontram para escapar dessa prisão é entregarem-se às paixões as mais violentas, inclusive as interditas.

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Nina, que vem de fora, trazendo valores de liberdade que se chocam com os da Casa, acaba também virando uma prisioneira. Ah, foi sempre este o mal daqui: fazer-me sentir prisioneira, sozinha e sem possibilidades [...] no entanto transpus as portas de meu cárcere, porque há uma força superior que me impele, e eu vim ao encontro do meu destino, como quem abre espontaneamente as portas de sua prisão. (CARDOSO, 2013, p. 213)

A relação interdita do incesto vai transformar a Casa, de uma prisão, a um inferno na terra ("O inferno é isto, esta casa, esta varanda, este sol que uniformiza tudo" (p. 297). Podemos ver uma outra disjunção espacial: /casa vs. jardim/, correspondente à categoria /inferno vs. paraíso/. Se a Casa é o espaço dos conflitos, das rupturas, o jardim é o espaço de encontros furtivos (Nina e André, Nina e Alberto, Ana e Alberto) que prenunciam relações amorosas. No nível discursivo, essa oposição é marcada por temas e figuras que apresentamos no quadro que segue.

Quadro 6 - Temas e figuras da oposição /inferno vs. paraíso/

Casa (inferno)

jardim (paraíso)

morte

vida

cultura

natureza

prisão

liberdade

fechamento

abertura

obediência

transgressão

escuridão

claridade

decomposição

violetas

porão

lago

Fonte: Elaborado pelo autor Há outra disjunção relevante no espaço, pois paralelamente à Casa, propriamente dita, instala-se um espaço metonímico, o Pavilhão, locus das relações interditas e que vive trancado. Ocorreu-me que aquela parte da Chácara - o Pavilhão - sempre me parecera um lugar condenado, a que ninguém se referia; se acaso alguém a isto era obrigado, munia-se de uma série de precauções e nunca dizia abertamente o nome pelo qual a construção era conhecida, mas designava-a apenas como "lá" ou "lá embaixo", tal como ouvira,

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por mais de uma vez falar tia Ana. Também eu nunca indagara o motivo por que o local suportava o peso de tal condenação. (CARDOSO, 1997: 385)

O Pavilhão não é apenas o espaço da segregação, das relações interditas. A simples menção a seu nome já contém a interdição (palavra-tabu), razão pela qual, no discurso, é designado pelos sujeitos por meio da dêixis ("lá"; "lá embaixo"). Em relação à Casa, o Pavilhão se encontra em posição inferior. À articulação semântica /alto vs. baixo/ correspondem valores como /céu vs. inferno/, /salvação vs. pecado/, /felicidade vs. tristeza/, /consciência vs. inconsciência/. Na linguagem ordinária são comuns expressões em que o alto é marcado como positivo e o baixo como negativo, como em estar por cima, estar por baixo, estar no céu, cair em depressão, subir na vida etc. O Pavilhão é um espaço metonímico (pars pro toto), situado em posição espacial inferior à Casa sede, dela afastado, a que se chega por uma vereda secundária em relação a uma das veredas principais que dá acesso à Casa (ver planta da Casa, Ilustração 1, p. 11). À sua frente há um canteiro de violetas, as flores prediletas de Nina, cujos cuidados ficava a cargo do jardineiro Alberto. No interior do Pavilhão, havia um porão, em que Alberto guardava seus instrumentos de trabalho. Apesar de abandonado, o Pavilhão vivia trancado, mas dado seu total abandono e péssima conservação, era possível entrar nele forçando porta ou janela. Seu estado de conservação era o pior possível: umidade, ratos, baratas, sujeira, como atestam os trechos a seguir. [...] uma construção de madeira que existia no fundo do jardim, antigamente pintada de verde, há muito sem cor definida, estigmatizada pelo tempo, gasta pelas chuvas, com lances de mofo e estrias criadas pela umidade, o que lhe emprestava um caráter desagradável e sujo. (CARDOSO, 2013, p. 113) [...] o Pavilhão, uma velha construção de madeira, achava-se condenado há muito tempo, e no que eu soubesse, ninguém mais ousava penetrar em seu interior, dominado pelos ratos e baratas. (CARDOSO, 2013, p. 281) Baratas e ratos transitavam sofregamente pela escuridão – e durante um minuto, imóvel, ouvi todo aquele prodigioso concerto, e pressenti, ao vivo, o poderoso hábito da morte que vagava naquele lugar. (CARDOSO, 2013, p. 282)

O porão é o lugar do Pavilhão em que é depositado o corpo de Alberto, depois de morto. Se o Pavilhão localiza-se em posição inferior à Casa, o porão do Pavilhão está em posição mais inferior ainda.

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Bachelard (2008) refere-se à casa como um ser que nos dá uma consciência de centralidade e a imagina como um ser vertical. A verticalidade decorre da oposição /teto vs. porão/. O teto está ligado à proteção, pois protege o homem da chuva e do sol, às ideias claras, à racionalidade. O porão, para Bachelard, "é a princípio o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas" (2008, p. 36). Tomando por a base a ideia da casa como um ser vertical, proposta por Bachelard (2008), podemos distinguir no eixo da verticalidade três espaços.

Ilustração 3: Espaços no eixo da verticalidade CASA  RELAÇÕES PRESCRITAS PAVILHÃO  RELAÇÕES INTERDITAS PORÃO  MORTE

Fonte: Elaborado pelo autor

A Casa é o espaço das relações sexuais matrimoniais prescritas: Demétrio (marido) e Ana (mulher); Valdo (marido) e Nina (mulher). O Pavilhão é espaço das relações sexuais "anormais": Nina e André; Nina e Alberto. O porão é o espaço da morte: Alberto e Ana. Reproduzimos, a seguir, o quadrado semiótico O sistema social das relações sexuais, extraído de O jogo das restrições semióticas (GREIMAS; RASTIER, 1975), em que explicitamos as relações sexuais da Crônica.

Ilustração 4 - O sistema social das relações sexuais

Fonte: Greimas; Rastier 1975, p. 133

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Aplicando o quadrado aos atores do romance, temos: Nina e Valdo (mulher e marido) - relação permitida (relação matrimonial prescrita) Nina e André (mãe e filho) - relação excluída (relação "anormal" interdita) Nina e Alberto - relação excluída (relação não matrimonial: não prescrita) Ana e Alberto - relação excluída (relação não matrimonial: não prescrita) Ana e Demétrio (mulher e marido) - relação permitida (relação matrimonial prescrita)

O percurso de Nina é a negação da relação matrimonial prescrita, ou seja, de sua relação conjugal com o marido (Valdo) e a afirmação da relação "anormal" interdita, vale dizer, de sua relação com o filho (André). Há a negação do casamento, moldura das relações sexuais "lícitas" para a afirmação da relação sexual "ilícita", violando o interdito da Igreja romana "Não serás absolutamente impuro nem de corpo, nem de consentimento. Rejeitarás desejos impuros para conservar castamente teu corpo. Só consumarás a obra de carne dentro do casamento”. Essa transformação corresponde à negação das coerções sociais que condenam as relações incestuosas e a afirmação das pulsões individuais, ressaltando que essa transformação se faz pela construção do espaço da interdição. Lembremo-nos que o Pavilhão era uma construção abandonada em que ninguém ousava entrar.

Ilustração 5: Relações permitidas vs. relações excluídas

RELAÇÕES PERMITIDAS

RELAÇÕES EXCLUÍDAS

Cultura

Natureza

relação matrimonial

relação anormal

prescrição

interdição

coerções sociais

pulsões individuais

Fonte: elaborado pelo autor

Ainda relativamente ao espaço, gostaríamos de assinalar que o deslocamento dos atores não se dá apenas no espaço físico: da Casa para o jardim, do jardim para o Pavilhão, de Vila Velha para o Rio de Janeiro. Há os deslocamentos imaginários, em que os atores

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deslocando-se do real para o onírico, mudam de espaço, por isso é comum nas narrativas os sujeitos deslocaram-se de um lugar tenso e disfórico para outro distenso e eufórico por meio da memória. O ator Nina é o exemplo mais manifesto desse deslocamento do espaço real para o espaço do sonho. Inadaptada ao ambiente triste e tenso da Casa, vive imaginando estar num Rio de Janeiro alegre e distenso.

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Capítulo 2 “A sociedade só proíbe aquilo que suscita.” (Claude Lévi-Strauss)

I- O percurso de Nina

Nina é o principal ator da narrativa. Tudo gira em torno dela como se fora o sol em torno do qual circulam os demais atores atraídos pela sua luminosidade. No nível figurativo, isotopias conferem o traço /luminosidade/ a Nina.

Nenhuma delas tinha aquele tom veludosos e firme, nem aquela claridade aprisionada em sua pele, que parecia iluminá-la do interior, e que tantas vezes me fizera vê-la como um astro fulgindo doce e pacífico na obscuridade do quarto. (CARDOSO, 2013, p. 351)

Se por um lado ela causa admiração, despertando amor e desejo; por outro, seu brilho ofusca outros atores, o que motiva paixões de malquerer, como a cólera, a inveja e a vingança. O percurso narrativo de Nina pode ser apresentando em três tempos que acompanham a ruína da Casa. Para melhor visualizar esses três tempos, apresentamos o esquema que segue.

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Ilustração 6 - Esquema temporal da ruína dos Meneses

Chegada à Casa casada com Valdo Tempo 1 Espaço: Chácara

Relacionamento com Alberto

Volta ao RJ

Tempo 2 Espaço: RJ

15 anos

Volta à Casa

Tempo 3 Espaço: Chácara

Relacionamento com André

Doença: volta ao RJ Tempo 4 Espaço: RJ

15 dias Volta à Casa

Tempo 5 Espaço: Chácara

Morte

Fonte: Elaborado pelo autor

Tempo 1: Começa com a chegada de Nina à Casa, casada com Valdo. No tempo em que reside na Casa, mantém relacionamento amoroso com o jardineiro Alberto. Separa-se de Valdo. Tempo 2: Começa com a saída de Nina da Casa, separada de Valdo, para retornar ao Rio de Janeiro, onde fica por 15 anos. Durante esse tempo, pouco se sabe o que acontece com Nina,

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exceto que passa por dificuldades financeiras, o que é narrado numa carta que escreve a Valdo. Tempo 3: Inicia-se com o retorno de Nina à Casa onde encontra o filho André que não via desde que nascera. Nina passa a ter relacionamento amoroso com André. Nina está com câncer. Tempo 4: Nina vai ao Rio de Janeiro, onde procura um médico e reencontra seu protetor, o Coronel. Permanece no Rio apenas 15 dias e retorna à Casa, desenganada. Tempo 5: Nina está muito doente, começa a cheirar mal e morre.

Como dissemos, o romance se inicia pela narrativa de André que, em seu diário, relata os últimos momentos e a morte de Nina, portanto pelo percurso de um dos destinadoresjulgadores de Nina. A sanção de André incide sobre o percurso narrativo em que Nina estabelece com ele contrato de relação amorosa e sexual. André julga o contrato amoroso e de fidelidade que Nina aceitou cumprir. Outros atores também exercem a função de destinadorjulgador de Nina: Valdo, que vai sancioná-la pelo não cumprimento do contrato de casamento estabelecido entre ambos; Ana, Demétrio e o destinador social, que a sancionam negativamente por não cumprir o contrato pelo qual não deve manter relações interditas; Timóteo, que a sanciona positivamente por ter cumprido o contrato de vingança. No último capítulo da narrativa, Pós-escrito numa carta de Padre Justino, o leitor vem a ser surpreendido por uma confissão de Ana ao Padre Justino na qual ela revela que André não é filho de Nina, e sim dela (Ana). Se essa declaração de Ana for verdadeira, não teria ocorrido a relação incestuosa. Colocamos as três hipóteses, mostrando-as à luz do quadrado da veridicção.

Ilustração 7 - O quadrado de veridicção

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Fonte: Elaborado pelo autor

Hipótese 1: André é filho de Nina e Valdo (parece e não é: mentira) Hipótese 2: André é filho de Nina e Alberto (não parece e é: segredo) Hipótese 3: André é filho de Ana e Alberto (não parece e é: segredo)

Portanto, há um mesmo segredo compartilhado entre dois atores e, quando isso ocorre, o segredo torna-se objeto-valor. Ana e Nina são rivais. Ana é movida pela inveja, pelo ciúme e pelo ódio que tem de Nina, motivo pelo qual jamais revelou seu segredo à rival. Admitindo-se a hipótese 3 como verdadeira e considerando que Nina sabia isso, temos uma situação em que ela procura manter André em erro, fazendo-o crer seu filho. Nesse caso, do ponto de vista de André, ele parece ser filho de Nina, mas não é, ou seja, André vive uma mentira. Assim considerando o incesto, teríamos: para André, parece incesto, mas não é: mentira; para Nina (se André for seu filho), parece incesto e é: verdade; para Nina (se André for filho de Ana), não parece incesto e não é: falsidade. Seja André filho de Nina ou não, o fato é que durante toda a narrativa a relação sexual André/Nina, para André, para as demais pessoas da Casa e para o leitor se apresenta como uma relação verdadeira de mãe e filho, ou seja, para os demais atores e para o leitor André parece e é filho de Nina, daí a sanção negativa que recai principalmente sobre Nina, por manter relação interdita com o próprio filho. Acrescente-se que Nina confessa a Ana que é mãe de André, ao qual sempre tratou e o chamou de filho. Apenas, no último capítulo é levantada a hipótese de que, embora pareça, Nina não é mãe de André, pois Ana confessa a Padre Justino que André é filho dela, de sorte que a verdade construída pelo enunciatário é posta em dúvida no final da narrativa, deixando o enigma do incesto em aberto.

No

nível

discursivo, há uma sublimação do incesto por esses dois atores que não usam das figuras mãe e filho em suas interlocuções. A referência que um faz ao outro é sempre iconizada 6 por meio dos nomes próprios, Nina e André. A iconização, nesse caso, confere ao discurso efeitos de realidade ou de referente, ao mesmo tempo em que procede ao apagamento dos papéis temáticos de mãe e filho, ou seja, os efeitos de sentido decorrentes desse procedimento discursivo são que a relação sexual entre os atores é uma relação "normal" e prescrita e não

6

Iconização é o investimento figurativo exaustivo da última fase do processo de figurativização, com o objetivo de produzir ilusão referencial ou de realidade. (BARROS, 2003, p. 87)

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uma relação interdita. Quando, já próxima da morte, André se refere a Nina, chamando-a de mãe, esta estranha e adverte André desse uso.

- Sim, mãe - balbuciei, deixando pender a cabeça. Ela lançou-me um olhar onde brilhava ainda um pouco de sua velha cólera: - Mãe! Você nunca me chamou de mãe... por que isso agora? E eu, atônito, sem poder impedir que o espelho tremesse em minhas mãos: - Sim, Nina, voltarão os velhos tempos. (CARDOSO, 2013, p. 25)

Abrimos um parêntese. Não é fato que André nunca tenha chamado Nina de mãe. Na verdade, André, antes da aproximação sexual em relação à Nina, a tratava por mãe e/ou senhora, embora já percebesse que o termo mãe já começasse a esvaziar o sentido: "- Mãe! chamei; e aquele palavra me pareceu inconsistente e vazia de sentido"; “Esperava pela senhora" (p. 197). A mudança de tratamento ocorre a partir do momento em que André descobre a atração sexual por Nina, aos dezesseis anos.

Apesar dos meus dezesseis anos, confesso que era a primeira vez que uma mulher chegava tão próximo à minha pessoa. Já sabia tudo a respeito das mulheres, quer porque os livros mo ensinassem, quer o percebesse através do silêncio dos mais velhos. (CARDOSO, 2013, p. 198)

Nina, como se vê, será a primeira mulher de André e, para isso, ocorrerá antes a negação da mãe e a afirmação da mulher, o que no nível discursivo acarretará a mudança figurativa: a figura mãe é substituída pela figura Nina. Essa troca de figuras revela outro componente, esvazia-se o social, o convencional e afirma-se o individual. Para que nasça a mulher objeto de desejo sexual, é preciso antes, "matar" a mãe. Morta a mãe, o instinto aflora.

[...] na escuridão, senti apenas que suas mãos se moviam, despreendiam-se das minhas, alongavam-se e começavam a percorrerme o corpo numa terrível e inesperada carícia. Naquele minuto mesmo achavam-se, macias e tenras, sobre os meus ombros, afagavam-me a nuca, os cabelos, a ponta das orelhas, os lábios quase. Ah, podia ser que não houvesse nisto nenhuma intenção, que fossem simples gestos mecânicos, possivelmente a lembrança de uma mãe carinhosa - que sabia eu das mães e dos seus costumes! - mas a verdade é que não podia refrear meus sentimentos e estremecia até o fundo do ser, desperto por uma agônica e espasmódica sensação de gozo e aniquilamento. Não, por mais que eu repetisse "é minha mãe, não devo fazer isto", e imaginasse que era assim que todas procediam com os filhos, não podia fugir à embriaguez do seu perfume, nem à força

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de sua presença feminina. Era eu, eram os meus dezesseis anos em fúria que acordavam àqueles simples gestos de mulher. Tudo o que eu podia supor como atributo de uma fêmea, sua irradiação morna, seu contato macio e atraente, seu cheiro de carne e segredo conjugados, ali se encontrava junto a mim, e a mãe que durante dezesseis anos eu não conhecera, em vão invocava naquele instante, em vão repetia o seu nome [...] Pobre Nina, ainda aqui não havia em sua personalidade senão instinto: no esforço de submeter - o que era para ela como a própria vida - atravessava fronteiras e atingia em cheio o proibido. (CARDOSO, 2013, p. 199-200)

No nível narrativo, relativamente à relação sexual que se estabeleceu entre Nina e André, temos um esquema narrativo em que um destinador-manipulador, figurativizado em Nina, propõe ao sujeito da ação, figurativizado em André, um contrato, manipulando-o por provocação. André, um jovem que está se tornando adulto, é o sujeito de estado disjunto do valor união sexual, inscrito em Nina, que vai sincretizar funções actanciais de destinadormanipulador e objeto-valor. O sujeito da ação aceita o contrato proposto na medida em que o considera vantajoso e o destinador confiável. Este dota o sujeito da ação (André) da competência modal do dever, do saber e do poder fazer. Como expusemos, Nina fora praticamente expulsa da Chácara, acusada por Demétrio de cometer adultério com o jardineiro Alberto. Retorna ao Rio de Janeiro, onde vive por 15 anos, sem receber qualquer ajuda material do marido, com o qual continua casada legalmente e sem ver o filho, que mora na Chácara com o pai. Nina, pois, é modalizada pelo saber-nãoser, ou seja, sabe que está disjunta do filho e dos bens materiais a que tem direito pelo casamento. Seu projeto é, então, marcado por um fazer (reaver o que lhe é direito); no entanto sabe que esse projeto está comprometido pela objeção que Demétrio, o patriarca dos Meneses e quem dita as regras na Casa, impõe. Lembremo-nos de que Demétrio é o ator que encarna um dos papéis actanciais de antissujeito de Nina, na medida em que vê a presença dela na Casa como destruidora e desagregadora. Lembremo-nos, ainda, de que Valdo é marcado pela pusilanimidade, sendo incapaz de enfrentar qualquer determinação de Demétrio. E mais ainda: lembremo-nos de que Nina já sabe que está doente e não gosta da vida na Chácara, preferindo o Rio de Janeiro. Como se vê, os obstáculos à volta de Nina são de várias ordens. Nina sabe, portanto, que seu retorno pode-não-ser efetivado. Apesar disso, Nina faz tudo, inclusive ameaças ( "Preste atenção, Valdo, para que eu não seja obrigada a tomar atitudes extremas" (p. 45), para entrar em conjunção com o objeto do qual está disjunto ("Você não tem o direito de expulsar-me - minha saída, examinando bem, não passou de uma expulsão -

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de subtrair-me ao carinho de meu filho, de negar-me seu nome, e até de apontar-me à execração pública como o vem fazendo" (p. 45); "... previno-o, Valdo, de que nada, nem mesmo a vida de meu filho, me deterá deste caminho" (p. 84). O sujeito de estado é, pois, também modalizado pelo querer-ser. Quando o sujeito de estado é modalizado pelo /querer-ser/, entramos no domínio das paixões que, relativamente ao ator Nina, são diversas. Uma das paixões que modalizam o sujeito de estado Nina é a ambição. Vejamos o que dizem três dicionários a respeito do lexema ambição. O Dicionário de usos do português brasileiro, de Francisco S. Borba define ambição como desejo (veemente). O Houaiss como "forte desejo de poder ou riquezas" e o Aurélio como "desejo veemente de alcançar aquilo que valoriza os bens materiais ou o amor próprio". O que difere a ambição do desejo é o excedente modal 'forte', 'veemente', que o Houaiss define como "que possui força impetuosa, intenso, ardente". A ambição é marcada pelo excesso, pela intensidade do sentir. Trata-se, pois, de uma paixão de /querer-ser/. Segundo o que expõem Greimas e Rastier (1975) em O jogo das restrições semióticas, o casamento de Nina com Valdo, do ponto de vista das relações econômicas, não só é admitido, como também é proveitoso. Lembremo-nos de que Nina gosta de diversão e conforto, mas vive em grandes dificuldades financeiras. Valdo se apresenta a ela como pessoa rica que tem propriedade em Minas Gerais. Só, depois de casada e quando chega à Chácara, Nina descobrirá a mentira (Valdo parece rico e não é). Para entrar em conjunção com o objeto-valor riqueza, Nina deverá casar com Valdo. Para tanto, deverá ser investida da competência modal necessária. Ela quer, deve e pode casar com Valdo. Não era nosso objetivo fazer uma pesquisa profunda sobre os estados de alma dos atores da narrativa, por isso tratamos muito rapidamente da ambição no ator Nina. Quando tratarmos do percurso do ator Ana, também falaremos em poucas linhas da inveja.

II- Percurso narrativo de André

Antes de mais nada, relembremos que Nina e André foram separados logo que André nasceu e estiveram afastados durante quinze anos, durante os quais não houve qualquer contato entre ambos ("Nunca vira um retrato seu, nem pessoa alguma me falara a seu respeito" p. 219). Mais: para André, a mãe era assunto interdito, já que o pai não só não falava de Nina para ele, como também proibira que qualquer pessoa na Casa falasse a respeito

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de Nina, como se observa nesse trecho quem Betty fala a Nina "... o Senhor Valdo avisou-o de que a senhora chegaria hoje. Mas nunca o ouvi comentar nada a esse respeito, mesmo porque acredito que o assunto fosse proibido" (p. 211) e também neste outro em que André questiona o pai sobre o fato de nunca lhe falarem a respeito da mãe: "Por que ninguém me fala, por que ninguém diz nada a seu respeito? Que foi, que fez ela, por que me escondem tudo? p. 221). André vem a conhecer a mãe apenas aos dezesseis anos, quando Nina retorna à Vila Velha e logo se apaixona por ela. [...] procurava-a por toda a casa, seguindo o eco das vozes que não conseguia reconhecer, espiando pelas frestas e até mesmo o rastro de perfume que ela deixava pelos aposentos. Estranho perfume, não sei se já falei sobre ele - lembra um pouco o de violeta, mas misturado a não sei que essência humana, que o torna diluído e menos banal. Comigo mesmo, e com o pouco que conhecia dessas coisas, imaginava que representasse ele um verdadeiro perfume feminino, desses que tantas vezes deparei assinalado em romances, como característico de heroínas românticas. (CARDOSO, 2013, p. 232)

Citamos esse trecho porque ele nos permite conhecer André no momento em que, atraído por Nina, vai perdendo a inocência. O retorno de Nina à Casa, depois de quinze anos afastada, é o marco temporal zero do percurso de André. Antes disso, nada se sabe sobre ele, tampouco ele sabe qualquer coisa a respeito da mãe. Mais: André também pouco sabe a respeito de mulheres. Isolado na Chácara, a imagem que tem das mulheres é apenas a que os livros que Betty lhe emprestava lhe davam. Com a chegada de Nina, André descobre a mulher real, com cheiro (vide as figuras com os traços olfativos: perfume, violeta, essência). Cheiro apenas sugerido e imaginado nas heroínas românticas dos livros que lia. Nina agora encarna a sensorialidade real, não a de papel. Os sentidos agora se misturam (o eco das vozes, espiando, o perfume) e o inebriam. Aspectualmente, essas sensações boas se prolongam no tempo, são observadas em sua duração (vide os verbos no imperfeito e a forma nominal do gerúndio). A atração de André por Nina começa a trazer preocupação para os Meneses, que passam a responsabilizar Nina de corromper André ("... foi nesta hora que eu tremi da cabeça aos pés, compreendendo o perigo que ameaçava meu filho.", p. 242, "... e eu a supunha à mercê de todos os impudores.", p. 244). André é acometido de grave crise histérica é trancado no Pavilhão. Assim como Timóteo que se sente preso em seu quarto, André se vê prisioneiro no Pavilhão "... soltaram-me hoje...", a figura soltaram-me é reveladora da mudança de estado de preso para liberto. Apenas a governanta Betty, reluta em acreditar que Nina seduzira o

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próprio filho. "Recusava-me a acreditar que aquele ser tão belo, e que tão carinhosamente me chamava de sua amiga, fosse uma mulher baixa, de sentimentos infrenes e despudorados" (p. 253). O retorno de Nina também é responsável por subverter a lei da Casa, como se observa nesta fala de Valdo. ("... não havia mais um horário comum, nem ninguém se achava submetido à força de uma lei geral, pois vivíamos sob um regime de ameaça" (p. 254). O retorno de Nina é o marco zero entre dois tempos: o anterior é o tempo da ordem, do respeito às normas; o posterior é o tempo da desordem, do desrespeito às normas. A chegada de Nina marca também a divisão da Casa entre seus moradores: de um lado, os Meneses, Demétrio, Valdo e Ana, guardiões da ordem e da tradição; de outro, Nina e Timóteo, iconoclastas, doentes, degenerados ("Existia uma ação corrosiva, a família cindiase em partidos [...] se existiam partidos, se os lados se acham definitivamente delineados, o Sr. Timóteo jamais poderia se encontrar ao lado dos irmãos, a quem sempre detestara...", p. 255). E finalmente, há a disjunção espacial, em que os "degenerados" são segregados aos espaços de interdição. Nina exerce a função de destinador-manipulador em relação ao sujeito André.

Fora ela quem me criara, e me dera o poder de analisar as coisas, e dizer o que preferia; que instituíra a minha identidade, tornando-me homem e fazendo-me capaz de desdenhar tudo o que não concorresse diretamente para avolumar ou esclarecer o sentimento que me habitava. (CARDOSO, 2013, p. 351)

Manipula-o por intimidação para que ele, até então sem nenhuma experiência sexual, "torne-se homem". O contrato proposto pelo sujeito é que ele possua sexualmente Nina e que só o faça com ela. André que, até então não manifestara desejo sexual por mulher alguma, aceita o contrato por julgá-lo vantajoso, uma vez que já começava a ver em Nina não apenas a mãe, mas a mulher dotada de sexualidade.

[...] não poderia considerar nem tia Ana e nem Betty propriamente como mulheres, mas apenas como seres familiares, formas domésticas e sem brilho que viviam em minha companhia. [...] aquela mãe que era uma estranha para mim, e que sozinha, como um fato inédito, assumia aos meus olhos todo o inebriante fascínio das mulheres. (CARDOSO, 2013, p. 198)

O destinador-manipulador instala, pois, um sujeito virtual pelo dever: /deve-fazer/ sexo com Nina e /não-deve-fazer/ sexo com nenhuma outra. Acrescentamos que esse contrato

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de fidelidade proposto por Nina é mais voltado ao futuro distante do que ao presente, pois o receio de Nina era que André viesse a ter relações sexuais com outra após a sua morte [de Nina]. A aceitação do contrato proposto não se faz, no entanto, sem que haja um conflito vivenciado por André entre o que lhe propõe o destinador-manipulador (um dever-fazer) e o que propõe o destinado-social (um não-dever-fazer).

Não, por mais que eu repetisse "é minha mãe, não devo fazer isto" e imaginasse que era assim que todas elas procediam com os seus filhos, não podia fugir à embriaguez de seu perfume, nem à força da sua presença feminina. (CARDOSO, 2013, p. 199)

A coerção social que pesa sobre André é tal que ele vê em Nina não uma mulher interdita para ele, mas como a manifestação humana da própria interdição ao sexo. Como vimos, na interdição do incesto há a lei da reciprocidade, ou seja, alguém se proíbe de manter relação sexual com parente próximo, esperando que o vizinho também o faça. Agindo dessa forma, o valor sexo não deixa de circular. André, no entanto, via Nina como mulher proibida ao sexo, ou seja, Nina passa a ser vista por André como tabu. Como sabemos, aquele que viola um tabu, passa a ser ele próprio tabu.

Uma mulher bela, sem dúvida, uma mulher que sobretudo fora bela mas que nos dava a impressão de carregar uma secreta culpa. Ali se achava ela, e um estigma parecia interditar-lhe qualquer convívio humano. (Anotado à margem do Diário: só mais tarde vim a compreender; naquele minuto, eu a via isolada como uma ilha, completa e fechada, varrida por ventos que não eram do nosso mundo. Podia erguer-se, conversar, rir até como toda gente ria - mas um poder atormentado, de onde incessantemente estendia as mãos para os que passavam. Jamais vira ser tão solitário, que ansiasse mais por um carinho ou um esforço dos homens. (CARDOSO, 2013, p. 229)

Na relação que se estabelece entre destinador e destinatário, o poder persuasivo do destinador-manipulador se impõe sobre os valores dados pelo destinador social. Nina, na função de destinador, consegue conjugar a intimidação, própria do papel de mãe em relação ao filho, com a sedução da mulher em relação ao homem. Assim, o sujeito André disjunto do objeto-valor posse sexual transforma em sujeito conjunto com esse objeto-valor, figurativizado em Nina.

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[...] beijei-a entre os seios - não um simples beijo, mas uma mordida quase, um beijo furioso, perdido, mortal, como só o podem dar os adolescentes feridos de improviso pela descoberta do amor. (CARDOSO, 2013, p. 200) Tudo o que eu podia supor como atributo de uma fêmea, sua irradiação morna, seu contato macio e atraente, seu cheiro de carne e de segredos, ali se encontrava junto de mim [...] (CARDOSO, 2013, p. 199) Não tenho pudor em dizer, porque tenho certeza de que em toda minha vida jamais voltarei a deparar visão mais pura - mas era como se toda a sua vestimenta houvesse tombado de repente, e ela surgisse, nua e feminina, em plena escuridão do parque. De um só golpe alucinante e mecânico (pontual), eu desvendava aquilo que constituía a diferença entre o corpo de um homem e um corpo de mulher, e a sentia, franzina e delicada, como um vaso aberto à espera que eu vertesse nele o meu sangue e a minha impaciência. (CARDOSO, 2013, p. 273)

Apesar de ter cumprido o contrato, Nina, que sincretiza também a função de destinador-julgador, sanciona cognitivamente o sujeito da ação, por entender que ele não cumpriu o contrato no que diz respeito à fidelidade, uma vez que julga as ações de André mentirosas, pois ele parece, mas não é fiel. A relação incestuosa que André mantém com a mãe não se faz sem conflitos internos, decorrentes de uma cisão do sujeito entre os valores da axiologia fundamental /natureza vs. cultura/. André, manipulado por Nina, quer e pode manter com ela relações incestuosas. Mas o destinador social manipula-o por intimidação a não manter relações sexuais com a mãe. André quer, mas não deve. A negação do prescrito, as coerções sociais (cultura) e a afirmação do interdito, as pulsões individuais, o incesto (natureza) serão possíveis para André pela transformação do objeto-valor mãe em mulher. Há um longo processo narrativo de mudança de estado do sujeito André em relação à Nina. Haverá primeiro uma mudança de um estado de conjunção com o objeto-valor mãe para um estado de disjunção e, a seguir, uma mudança de estado de disjunção do objeto-valor mulher para um estado de conjunção. Essas transformações correspondem à disjunção com o objeto-valor inocência e a conjunção com o objeto-valor sexualidade. Esse processo é marcado pela duratividade e se pode observar momentos em que André vê, ao mesmo tempo, Nina como mãe e como mulher desejável sexualmente ("... aceitava pisar a área de um mundo que jamais seria aceito, onde eu sozinho teria de transitar, que me tornaria não o filho amado e bem-sucedido, mas o mais culpado e o mais consciente dos amantes" (p. 278).

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Há momentos em que Nina nem é mãe nem mulher.

[...] não posso designá-la como 'aquela mulher', e muito menos como 'minha mãe'. Não é uma coisa nem outra. Não é nem a mulher exterior a mim, que possa ser designada 'esta' ou 'aquela', nem o ser que me deu nascimento, alimentando-me com seu sangue e seiva. (CARDOSO, 2013, p. 352)

Num quadrado semiótico construído a partir do eixo dos contrários /mãe vs. mulher/, para André, Nina é o termo neutro da oposição /não mãe vs. não mulher/. A paixão por Nina faz André vê-la como um híbrido, um ser hermafrodita.

(Porque o Deus do amor é um deus hermafrodita - reunindo numa mesma criação dois sexos diferentes, esculpiu a imagem do ente de sabedoria e conhecimento que da dualidade faz o paradigma da perfeição) [...] Mulher e mãe, que outro ser híbrido poderia condensar melhor a força do nosso sentimento? (CARDOSO, 2013, p. 352)

A atração sexual que Nina desperta em André é, no entanto, incontrolável, não podendo mais ser escondida ("Durante todo o jantar devorei-a com os olhos a ponto de sentir em determinado momento que os outros também me fitavam", p. 403). Retomando as categorias da estrutura profunda, André nega a prescrição imposta pelo destinador social ("os olhos do mundo") e afirma a interdição (o amor interdito). Manipulado por Nina, aceita o contrato pelo qual manterá com ela relações interditas.

Que eu assumisse, que tivesse coragem para ser responsável pelo meu pecado? Pois sou eu quem propõe agora: fujamos, saiamos desta Chácara, afrontemos com o nosso amor os olhos do mundo. Que valem os outros, diante do que nos une? (CARDOSO, 2013, p. 405406) Ela própria não me incitara, não me dissera que era preciso atravessar o muro, possuir, romper e anexar os seres que amamos? Amei. Amei como nunca, sem saber ao certo o que amava - o que possuía. Não era um interior, nem uma mulher, nem coisa alguma identificável - era uma monstruosa absorção a que me entregava, uma queda, um esfacelamento. (CARDOSO, 2013, p. 427)

Ilustração 8 - Relações permitidas vs. relações excluídas

RELAÇÕES PERMITIDAS

RELAÇÕES EXCLUÍDAS

Cultura

Natureza

prescrição

interdição

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coerções sociais

pulsões individuais

Fonte: elaborado pelo autor

Nina arrasta André para o Pavilhão, local das relações interditas, para ter com ele relação sexual. André nota que Nina o olha como se olhasse outra ("E eu vi, tão claramente como se houvesse sido exposta ante meus olhos, uma cena idêntica à nossa, uma cena de amor, com outro homem que ocupava o meu lugar" (p. 353) e a dúvida o assola ("... até hoje não sei ao certo se foi a mim ou se foi a um espectro que ela amou" (p, 353), não tendo mais certeza de que Nina realmente o amara ("Pela primeira vez, confesso, tive o pressentimento de que ela realmente não me amava. Não me amava e nem poderia me amar nunca, havia nela um veneno que a impossibilitava disto"(p. 354). André também descobre que apenas no Pavilhão, embora cheirasse a mofo e estivesse infestado de ratos e baratas, Nina se realizasse sexualmente. Porque a verdade é que só ali Nina se realizava integralmente, florescia, recendia e brilhava, como um objeto sempre novo entre aquelas coisas carcomidas pelo tempo. Era a ela que designava o odor subterrâneo e mofado. Então era preciso reconhecer que aquela criatura frágil encarnava o mal, o mal humano, de modo simples e sem artifício. (CARDOSO, 2013, p. 359)

Nina declara que ela e André poderão ficar unidos como quando ela o carregava no ventre e, indagada por André sobre como, dá a ele uma resposta lacônica: mortos. Nina propõe então a André um novo contrato, desta vez, um contrato de morte: "Não era simplesmente o amor que ela desejava, mas a fusão, o aniquilamento. E eu aceitava morrer, fechava os olhos, atirava-me ao desconhecido - nossos corpos se fundiam "(p. 360). O percurso passional de André é marcado pelo ciúme que tem em relação à Nina ("Não poderia eu controlar meu ciúme, e imaginar que o fato de amá-la não significa que ela me pertencesse de corpo e alma?" p. 350). O ciúme de André determina que as relações entre ele e a mãe sejam sempre tensas, chegando a extremos de insultos e agressões físicas, mesmo nos momentos em que Nina está prestes a morrer. A agressão coexiste com a atração sexual. Embora moribunda, Nina ainda satisfaz os desejos sexuais de André. As palavras de Lacan

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(1990) nos permitem entender essa atração sexual mórbida e incestuosa: "A pulsão não tem dia nem hora, não tem primavera nem outono, não tem subida nem descida. É uma força constante".

Mas logo, sob o lençol, sua mão me procurou ansiosa, fria, até que me atingiu, primeiro o flanco, e foi deslizando ao longo do meu talhe, até o ventre - e pousou no local exato para onde afluía toda a força existente no meu corpo. Mais do que um toque, foi uma pressão o que ela exerceu - e esta pressão, não havia dúvida, significava um convite. (CARDOSO, 2013, p.427)

André considera que o contrato de amor e de fidelidade que estabeleceram não está sendo cumprido, sancionando Nina negativamente quando já está moribunda; pois, com a morte, Nina não estaria cumprindo o acordo pelo qual ficariam juntos sempre.

- Ah, você me prometeu, por que foi que fez isso? Você disse que voltava, que seria minha de novo! Que seria sempre minha! Por que foi que você me deixou? Infeliz de mim que fui me apaixonar por uma mulher sem piedade, sem coração, sem nada! Que espécie de criatura é você, uma à toa, uma ordinária? Então não pense que me importo que esteja aí correndo, e que seja a sua a pior das agonias... não! Não me importo, vou-me embora daqui, vou-me embora para longe, não volto nunca mais. Nunca mais torno a pôr os pés nesta casa. (CARDOSO, 2013, p. 424)

A morte de Nina é marcada pela duratividade, sua agonia (e aqui tomamos a palavra em sua acepção etimológica de luta) é extensa. Nina não morre, vai se decompondo, apodrecendo e exalando mau cheiro. Há uma relação conversa entre a intensidade da doença e a extensidade temporal. A intensificação da doença, no entanto, não faz arrefecer o desejo sexual que André tem por ela. Bataille (2015), ao analisar a obra de Emily Brontë, afirma que a intensidade é maior na medida em que a destruição e a morte do ser transparecem. A morte de Nina é apresentada em câmara lenta, o que nos faz lembrar o cinema do diretor norte-americano Sam Peckinpah (Sob o domínio do medo, Meu ódio será tua herança), que se valia da técnica do slow motion, a fim de intensificar os efeitos de sentido de violência das cenas que por si sós já são violentas. Os sentidos são de que, quanto mais apodrece e cheira mal, mais devagar corre o tempo ("... para que compreendam bem minha impressão, ela parecia estar-se decompondo em vida", p.417). Essa longa agonia é marcada pelo termo complexo da oposição semântica do nível fundamental /morte vs. vida/ ("E nem morta, nem viva; encostada à pilha de

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travesseiros, respirava com dificuldade, olhos fechados", p. 412). Não apenas a morte de Nina é apresentada em sua duração. Alberto, em seu suicídio, também não morre de pronto. Sua morte prolonga-se no tempo. A duratividade, nesse caso, produz o efeito de sentido de exacerbação da agonia ("Alberto foi morrendo aos poucos para mim, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, e eu acompanhava, calada e lúcida que se estendeu ao longo de anos" (p. 326). O processo de autodestruição de Timóteo também e marcado pela duratividade. Esse ator vai inchando aos poucos, deformando-se lentamente ("... O Sr. Timóteo - que começava a beber com certo exagero, talvez para fugir da causticante monotonia de sua vida entre aquelas quatro paredes, talvez por um motivo mais secreto e mais triste, um suicídio lento..." (p. 120). Todo esse processo de morte gradual de Nina, no nível discursivo, é apresentado por figuras ligadas principalmente ao sentido do olfato. Nina cheira muito mal ao se aproximar da morte. Voltando à oposição semântica do nível profundo /vida vs. morte/, ela é concretizada por meio de figuras que exprimem a oposição /cheiro bom vs. cheiro ruim/. Assim:

vida : morte :: cheiro bom : cheiro ruim O cheiro bom (a vida) é figurativizado nas violetas, as flores prediletas de Nina, que ela mandava que Alberto colocasse diariamente em sua janela. Nina pedira a Timóteo que jurasse que, no enterro dela, ele colocaria violetas em seu caixão. O cheiro ruim (a morte) é o que exala do corpo de Nina em seus dias finais. E aquele ainda não era, devo esclarecer desde já, o mau cheiro contínuo, insinuante, que durante muitos e muitos dias nos perseguiu, impregnando roupas, copos, móveis e utensílios, tudo enfim, com seu açucarado alento de agonia. (CARDOSO, 2013, p. 438)

André recebe de Ana a notícia que Nina morreu. No entanto, ao ir ver o "cadáver" constata que [...] ela respirava ainda, não mais do modo angustiante como o vinha fazendo nos últimos dias, mas com certa placidez...; Depois lhe tomei o pulso e verifiquei que ele batia, um tanto sem ritmo, mas que batia ainda, e isto era o bastante para me assegurar a validade de sua presença. (CARDOSO, 2013, p. 455-456)

Demétrio apressa-se em "decretar" a morte de Nina, ordenando que ela seja envolta em um lençol, e fazendo chegar a todos a notícia da morte. Para Demétrio, a morte de Nina é verdade (parece e é), mas para André é mentira (parece e não é).

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Os depoimentos de Demétrio e de André revelam que Nina está num estado de nãomorte e não-vida, termo complexo do eixo dos subcontrários, na medida em sua passagem de um estado a outro não se concluiu. Nesse estado, Nina ainda conversa com André

André, por que fez isto, por que me chamou de novo? André - tornou ela, e dir-se-ia que a cada palavra pronunciada seu alento ia-se esgotar - é preciso que você me deixe morrer. Eu já tinha ido, por que é que você me trouxe de novo? (CARDOSO, 2013, p. 457 - 458)

Nina quer morrer, mas não pode morrer, porque André não quer que ela morra. Enquanto Nina nega a vida e afirma a morte; André nega a morte e afirma a vida. Na passagem de Nina da não vida para a morte, André julga ouvir de Nina sua última palavra ("... julguei ouvi-la pronunciar um nome, um único nome - ALBERTO - que já era dito num tom diferente, como fora deste mundo, no limiar talvez do outro" (p. 458). Nina morre e não cumpre o contrato de ficar com André, que a sanciona negativamente. - Ah, é assim que você me quer? É assim que me ama, que disse tantas vezes que me adorava? Mentiu então, e não há de ter descanso, porque mentiu durante o tempo todo, e nunca me amou. Você nunca me amou, Nina. Por que fez isto, por que judiou deste modo de mim, por que é que ir-se embora, e deixar-me sozinho neste mundo? Tome cuidado, Nina, pois se Deus existe, não há de permitir que você tenha repouso do outro lado. A gente não engana os outros deste modo. É isto o que eu quero, e hei de rezar todas as noites para que Ele atormente sua alma e nunca mais a deixe em sossego. (CARDOSO, 2013, p. 458)

Os portões da Chácara são abertos para o funeral de Nina, que atrai quase todos os moradores de Vila Velha. Para lá, acorrem também o Barão, a figura mais proeminente do local, e sua família. Mas poucos davam importância para a morte, o que os vizinhos queriam era decretar o fim dos Meneses ("Os vizinhos se achegavam, e eram eles que denunciavam esse fim, como em pleno campo os urubus denunciam a rês que ainda não acabou de morrer" (p. 478). O fim do funeral se dá com a entrada de Timóteo na sala, vestido de mulher, despenteado, carregado numa rede pelos negros para cumprir a promessa que fizera a Nina. ("Finalmente eu ia começar a minha marcha, e fora o cadáver de Nina que descerrara as portas da minha prisão" (p. 495). Ao descer da rede, jogou, como prometera, violetas sob o corpo morto de Nina. Olhando em volta vê a figura de André, mas nela enxerga Alberto ("E foi então, Nina, que abrindo os olhos que cerrara no esforço do meu pedido, eu o vi - a ELE,

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Nina o moço das violetas" (p. 513). Timóteo, então, dá uma bofetada no cadáver ("... era ao nosso pacto que eu esbofeteara" p. 514). A seguir é acometido de um derrame cerebral e cai. Valdo ao olhar para Timóteo vê nele encarnado o espírito de Maria Sinhá.

Como fizesse um movimento, e ondulasse o grande corpo pesado e inútil, julguei de repente adivinhar o espírito que se encarnava nele, e a dama que representava de modo ostensivo: Maria Sinhá. Essa Maria Sinhá que havia fornecido tantos comentários aos Meneses antigos, cujo retrato, por fidelidade ao espírito da família, Demétrio mandara arriar da parede e ocultar no fundo do porão - Maria Sinhá, cuja revolta se traduzira por uma incapacidade absoluta de aceitara a vida nos seus limites comuns, e atroava os pacíficos povoados das redondezas com suas cavalgadas em trajes de homem, com seu chicote de cabo de ouro com que castigava os escravos, seus banhos de leite e de perfume, sua audácia e seu despudor. (CARDOSO, 2013, p. 504)

III- O percurso narrativo de Ana Meneses

Pesa, como vimos, sobre Nina a acusação de manter relações interditas com o próprio filho. Nos capítulos em que Nina é narradora não há referências sobre esse fato. Isso se justifica, por dois motivos, o primeiro é que, nas cartas em que Valdo é o destinatário, Nina ainda não conhecia André. Nas duas outras cartas, o destinatário é o Coronel, espécie de protetor de Nina. Na cronologia dos acontecimentos, a primeira carta ao Coronel é anterior ao encontro de mãe e filho, separados há quinze anos. Na segunda, não há qualquer referência de Nina às acusações que pesam sobre ela. Dessa forma, não temos o ponto de vista de Nina sobre o incesto nos textos em que é ela o actante narrador. A aproximação de Nina e André e suas relações incestuosas são narradas, principalmente, nos capítulos em que André é o actante narrador e nos capítulos em que o antissujeito de programas narrativos de Nina, Ana, é o actante narrador. Ana narra o que viu, porque espiona Nina; André narra acontecimentos dos quais participou diretamente. A versão de Nina sobre a relação incestuosa é apresentada por ela nos capítulos em que André e Ana são narradores por meio de desembreagem interna, vale dizer, Nina só fala sobre o incesto quando é interlocutora. Quando acusada por Ana de cometer o incesto, confirma as acusações. Pensando nas modalidades veridictórias (parecer + ser), que podem ser sobremodalizadas pelo crer, Ana passa a crer que a relação incestuosa é verdadeira e passa a se interpor a Nina, usando esse saber para persuadi-la por intimidação a não entrar em conjunção com o objeto-valor desejado, acumulando, portanto, as funções actanciais de

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antissujeito e destinador. Isso posto, obrigamo-nos a tecer algumas considerações sobre o percurso narrativo de Ana. Ana, desde criança, fora preparada para se casar com Demétrio Meneses. Até a maneira como se vestia, roupas negras e sóbrias, era para agradar a Demétrio. Enfim, Ana é educada nos valores dos Meneses e torna-se uma Meneses pelo casamento, assumindo esses valores e se apresentando como defensora deles. Ana é dos atores da narrativa aquele em que diversas paixões se manifestam com maior intensidade: inveja, ciúme, ódio, cólera, ressentimento e amargura são os estados de alma que marcam o percurso desse ator. Desde que Nina chega à Casa, casada com Valdo, Ana passa a invejá-la porque Nina é mais bonita, veste-se melhor, tem coragem de enfrentar os valores impostos pelos Meneses e de realizar seus desejos, mesmo que esses sejam declarados interditos ("Naquele momento eu a invejei, por ficar livre de nós, da Chácara - oh, com que certeza ela sabia o que desejava! e por ter liberdade, se quisesse, de levar uma vida completamente à parte, esquecida da existência dos Meneses" (p. 113). Assim:

Quadro 7: Traços de Nina e de Ana Nina

vs.

Ana

/beleza/

/feiura/

/coragem/

/medo/

/elegância/

/deselegância/

/brilho/

/opacidade/

/luminosidade/

/escuridão/ Fonte: Elaborado pelo autor

A oposição /coragem vs. medo/ liga-se à articulação fundamental /pulsões individuais vs. coerções sociais/. Nina nega as coerções sociais, valor disfórico, e afirma as pulsões individuais, o que significa um rompimento com os valores ideológicos impostos pelos Meneses. No entanto, Ana, embora queira, é incapaz de romper com esses valores, daí ser marcada por paixões como o ressentimento e a amargura. Ana quer ter valores desejáveis, beleza e coragem, investidos em Nina, o que a faz um sujeito desejoso. Quer ser aquilo que Nina é, por isso é movida pela inveja, inicialmente. Analisemos o lexema inveja de três dicionários da língua portuguesa.

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Dicionário de usos do português do Brasil, de Francisco S. Borba.

inveja Nf [Abstrato de estado] 1. desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade outrem. 2. desejo violento de possuir o bem alheio. [Concreto] 3. o objeto da inveja.

Houaiss 1. sentimento em que se misturam o ódio e o desgosto, e que é provocado pela felicidade, prosperidade de outrem. 2. desejo irrefreável de possuir ou gozar, em caráter exclusivo, o que é possuído ou gozado por outrem

Aurélio 1. Desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. 2. Desejo violento de possuir o bem alheio.

Nos três dicionários, a acepção que se enquadra no estado de alma de Ana é a 2. O desejo (querer-ser) violento, irrefreável (intenso, tônico). O intensificador é o que dá ao desejo de Ana o caráter passional, na medida em que o desejo é marcado pelo excesso. Violento contém o traço /força/, assim o desejo de Ana é ter para si o que a outra tem, nem que para isso tenha de usar de força. Irrefreável é aquilo que não pode ser freado, uma ação que não pode ser contida ou tornada menor ou menos intensa. Irrefreável aspectualmente é durativo (não cessa, não para, não se consegue pôr freio). O lexema inveja comporta um programa narrativo. Um sujeito de estado é modalizado pelo /querer-ser/. Trata-se de uma paixão de objeto, com aspectualização durativa e intensiva. O trecho a seguir é uma amostra apenas das paixões de Ana.

Do lado de fora, isolada daquele quadro harmonioso, pensei comigo mesma que eles tinham toda a aparência de uma família feliz. Aparência apenas, porque em todos eles havia um elemento destrutor que os corroía. Ah, podiam gozar daquela felicidade de se encontrarem juntos - sozinha eu assistiria a tudo como a um espetáculo que me houvesse sido vedado. E ainda daquela vez o ciúme encheu-me o coração e como tantas vezes já o fizera no decorrer da vida, contemplei minha cunhada com inveja - ela era a vitoriosa, e o seria sempre. Até mesmo seu próprio mal, essa doença que a corroía, transformara-se num motivo de preponderância e de domínio. Que Deus viesse em meu socorro, e atribuísse o castigo que ela merecia. Que me

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mostrasse o que havia de injusto e de pecaminoso em sua vitória. Que me salvasse, aniquilando-a. (CARDOSO, 2013, 401- 402)

Nesse fragmento, temos o percurso narrativo de um sujeito (S 1) que sofre por se ver disjunto do objeto-valor (Ov) que está de posse de outro sujeito (S 2). Reconhece não só sua inveja, mas também que S2 exerce sobre ela um poder. Como não pode se apropriar da beleza da cunhada (S2), pede ao destinador-maior a aniquilação do antissujeito. Ana, em confissão ao Padre Justino, diz: "Nunca saí sozinha, nunca vesti senão vestidos escuros e sem graça". (CARDOSO, 2013, p. 108). Referindo-se à cunhada,

Ah, como era bela, como era diferente de mim. Tudo na sua pessoa parecia animado e brilhante. Quando caminhava, fazia girar no espaço uma aura de interesse e simpatia - exatamente o oposto do que sucedia a mim, ser opaco, pesadamente colocado entre coisas, sem nenhum dom de calor ou de comunicação." (CARDOSO, 2013, p. 112)

A razão maior das paixões de malquerer que Ana nutre em relação a Nina não reside no fato de esta manter relações incestuosas com o filho. A bem da verdade, Ana pouco liga para André. Desde que este fora trazido pequeno para morar na Chácara, Ana raramente lhe dirigiu a palavra ou reparara nele (..."Praticamente era a primeira vez que reparava nele (p. 303). Indagada por Nina se ela a espionava por ter interesse em André, Ana responde "- Está enganada. André não me interessa em coisa alguma. Sei do que se passa, porque nesta casa não posso me livrar do castigo de saber tudo. Mas que me importa que role com ele pelos cantos escuros, como uma cadela no cio? O inferno é seu, a miséria é sua" (p. 288). Nina insiste em saber se Ana a segue por estar também apaixonada por André, valendo de uma provocação.

- Responda, por que me segue? Que me quer? Acaso estará apaixonada também pelo meu filho? E isto o que deseja? Se tiver coragem... E revelou-se de súbito, descendo às supremas baixezas: - Se soubesse como ele tem a pele macia... como sabe beijar e afagar... Um homem feito não faria melhor. (CARDOSO, 2013, p. 289)

As paixões de malquerer que Ana tem para com Nina estão relacionadas ao fato de esta ter tido, na ocasião de sua primeira passagem pela Casa, relações sexuais com o jardineiro Alberto, a quem Ana desejava ardentemente, mas não tinha a coragem de Nina em

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romper com as coerções sociais. Como Ana seguia Nina e sabia que as relações desta com o jardineiro ocorriam no Pavilhão, espaço para onde foi levado o jardineiro depois que tentou o suicídio e onde viria morrer, toma a decisão de interditar o Pavilhão, jurando matar qualquer um que adentrasse àquele espaço em que jazera o homem a quem amara ("... eu prometera a mim mesma que ninguém - ninguém - jamais penetraria naquele quarto onde ele exalara seu último suspiro"; "Só havia um castigo para a falta daquela mulher: a morte. A morte pura e simples", "Jurei a mim mesma - continuei afinal - que mataria quem quer que entrasse naquele quarto" (p. 301, 311, 314), transformado, depois da morte de Alberto, em espaço sagrado ("Ela poderia manchar o que quisesse, destruir tudo o que lhe passasse ao alcance das mãos - somente naquele quarto, onde eu fizera meu altar, não poderia mais entrar..." (p. 302, grifo nosso). A disjunção espacial /Casa vs. Pavilhão/, que dissemos corresponder à categoria /alto vs. baixo/, para Ana corresponde também às categorias /céu vs. inferno/, /sagrado vs. profano/, sendo a Casa o espaço do inferno, do profano e o Pavilhão o do céu, do sagrado ("Se inferno existe, Padre Justino, é aqui nesta casa. O senhor pode bem conhecer em que desordem...", p. 306.). Inferno, para Ana, corresponde a caos, desordem; mas para o Padre é o contrário disso ("O diabo, minha filha, não é como você imagina. Não significa a desordem, mas a certeza e calma" p, 307). Como podemos notar, os conflitos no romance não são apenas de ordem interna dos atores, mas decorrem de embates entre atores cujo sistema de valores são opostos. Para Ana, o Pavilhão é sagrado (valor eufórico) a Casa é disfórica. Para Demétrio, dá-se o contrário. Por saber que Nina mantém relações com André, num local que considerara interdito e sagrado, Ana elege Nina como sua inimiga mortal. O trecho que segue revela que Ana não se importa com a relação incestuosa, mas com o fato de ela se realizar no espaço do Pavilhão: "Compreende agora que não me importa que você se deite com seu filho, que o degrade, que o faça gozar prazeres imundos? [...] mas não quero que frequentem este quarto, está ouvindo? Não quero que seus risos e seus gemidos acordem o eco de um morto" (p. 290). Nina, que já confessara a Ana, que mantinha relações incestuosas com o filho, confessa agora que no passado fizera o mesmo com Alberto. A relação entre elas agora atinge o mais alto grau de tensão. - Se quer saber... se ainda não sabe de tudo o que se passou... então tenha a certeza de que o amei, de que o amei perdidamente, e nesta mesma cama que agora me diz manchada de sangue. Era criança, mas eu fiz dele um homem. Marquei-o para que nunca mais se esquecesse de mim. [...] Como pode falar em amor, você, que durante toda a sua vida só conheceu um homem repugnante? Como ousa encarar-me e

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cobrar os juros de um pecado de que não sabe o preço? (CARDOSO, 2013, p. 291)

Gostaríamos de abrir aqui outro parêntese, retomando o que dissemos a respeito da palavra incesto. Vimos que essa palavra provém do latim, incestus, us, incesto, ação contra a castidade. Vimos ainda que o Houaiss menciona que o cestus de incesto, tem a variante castus. Há uma semelhança enorme entre a relação que Nina tem com o jardineiro Alberto e com André, quinze anos depois. Afora, ambas se darem no mesmo espaço das interdições, há enorme semelhança física entre Alberto e André. São ambos muito jovens, inocentes e ainda não haviam se iniciado sexualmente. Se atribuirmos ao lexema incesto o sentido de pecado contra a castidade, a relação incestuosa não se restringe apenas à que Nina teve com o filho, mas também àquela que teve quinze anos antes com o jardineiro Alberto, pois ambos eram castos quando se relacionaram com Nina. O leitor atento, pensando nessas coincidências e no lapso temporal que medeia as duas relações "incestuosas", já pode começar a levantar algumas hipóteses sobre esses dois relacionamentos sexuais de Nina. As coincidências que apontamos são depois insinuadas por Nina ao falar com Ana. Apesar de tudo - continuou depois de algum tempo - apesar de tudo... se você reparasse bem... [...] [...] se você reparasse... veria que há uma certa semelhança. Os lábios grossos, os dedos finos e fortes, o cheiro dos cabelos. Os olhos, os lábios. Você nunca notou alguma coisa? Nenhum sangue derramado - nem mesmo o do pai, está ouvindo? poderá fazer desaparecer a lembrança do gozo com que foi gerado. Ah, em que noite de febre... (CARDOSO, 2013, p. 316, 317, 318)

Esse diálogo entre Nina e Ana, em que a primeira acaba admitindo a relação interdita com o filho, desembocará em outro tema, já dado na epígrafe do livro, o da ressurreição. As duas mulheres rivalizam porque amaram o mesmo homem. Morto Alberto, Ana, em seu desespero, apela ao Padre Justino para que ressuscite o jardineiro. Para Nina, a ressurreição de Alberto se dará pela relação sexual com o filho gerado por ela e Alberto. A violação do interdito do incesto é a forma pela qual se restitui a vida. Embora um pouco longo, cremos que valha a pena reproduzir o diálogo das duas.

- Que é que você pensa que eu procuro nele? Quando nos atiramos à cama, que espécie de satisfação imagina que eu encontro? - É seu filho - murmurei, sentindo que apesar de tudo ela jamais compreenderia a exorbitância do seu crime, que não se achava em seu poder e nem em sua natureza entender a gravidade daquele incesto, e

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que sua paixão era somente uma das mil formas de loucura, sem possibilidade de esquecimento ou de cura. - É meu filho - continuou ela - mas é filho de um pai que não existe mais. Como amei aquele homem, como me lançaria a seus pés, e beijaria o chão que pisasse, caso ainda existisse. Se me deito com André, é para ver se o reencontro, se descubro nos seus traços, nos seus ombros, na sua posse, enfim, a criatura que desapareceu. Agora eu compreendia - e a surpresa, que subia em mim como uma grande chama subitamente batida pelo vento, fez-me baixar o revólver. Eu compreendia, e imaginava com um cruel prazer o esforço pecaminoso daquela ressurreição. Ah, eu ousara rogar a um padre que lhe desse a vida de novo, eu tivera coragem para caminhar até os limites da heresia e da blasfêmia, sacudindo o corpo sem vida e a que nenhuma força humana poderia mais insuflar o sopro da existência mas aquela mulher fora mais longe e inventara um substituto, erigindo seu próprio filho como uma estátua do pecado que não conseguia esquecer. (CARDOSO, 2013, p. 318)

Nina opta pelo incesto para trazer Alberto de volta; Ana vendo baldada sua tentativa de ressuscitar Alberto por meio de um milagre e não aceitando sua morte, transforma Alberto num mito, termo complexo da oposição /morte vs. vida/: "Se o corpo ali não se encontrava, não fazia mal: para mim, de há muito sua forma humana convertera-se em mito" (p. 326). Como nem o corpo do morto ficara na Chácara, ela elege o Pavilhão como túmulo, interditando-o a todos e tornando-o sagrado ("Instalar-se num território equivale, em última instância, a consagrá-lo"(ELIADE, 2010, p. 36).

Somente um nome, não - que outra coisa sobrava de Alberto. O quarto do porão, a parede ainda manchada com o seu sangue, e aquele catre forrado com uma esteira velha, onde agonizara, e que o representava, esplêndido, real, no seu derradeiro transe, naquele que para mim o fixaria na eternidade. (Algumas vezes, vencido pela umidade ou simplesmente pelo tempo, uma parte desse reboco, despreendia-se e começava a cair - e eu, cuidadosamente, o recompunha, colocando-o, reajustando-o ao seu primitivo lugar, tal como se recompusesse uma imagem pronta a se esfacelar, um corpo a que faltariam pedaços, e cuja integridade através do tempo sobreviveria assim pelo meu esforço e minha paciência.) Isto era o que me conduzia habitualmente ao porão, e me fizera vedá-lo a qualquer olhar estranho, como um altar que devesse permanecer imune da curiosidade profana. Só eu poderia ali penetrar, e tocar o desenho daquela mancha, continente preto alargando-se na cal, abrindo-se como uma teia num dos seus extremos, alongando-se, subindo mais num único traço agudo e rebentando, afinal, como um fogo de artifício que se desfizesse mudo e sem luz. (CARDOSO, 2013, 328)

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V - Semântica discursiva

No nível discursivo, como se sabe, temos uma sintaxe e uma semântica. Quanto à sintaxe, fizemos nossa abordagem em outras partes deste relatório, quando tratamos da instalação dos narradores e das categorias de tempo e de espaço. Gostaríamos de dedicar algumas linhas também à semântica discursiva. Quanto aos temas, já fizemos referência a eles, ressurreição, morte, incesto, família, religiosidade, amor, sexo, pecado, salvação, homossexualismo. No que se refere à figurativização, deparamo-nos com um arco de figuras que revestem vários temas, o que nos obrigou a fazer um recorte e comentar aqui apenas algumas delas. As duas principais isotopias figurativas da obra estão ligadas a sangue e flores, sendo a violeta a flor que mais aparece. Uma das características marcantes do texto de Lúcio Cardoso é o cromatismo. Não há como, pois, não associar sangue à cor vermelha e violeta à cor roxa. Ressaltamos, no entanto, que essas figuras têm apenas relação indireta com o tema da nossa pesquisa. O tema da interdição é recoberto principalmente por figuras relativas à prisão. Comentaremos rapidamente essas isotopias figurativas. O sangue manifesta a oposição fundamental /vida vs. morte/. André se refere ao próprio sêmen como sangue.

De um só golpe alucinante e mecânico (pontual), eu desvendava aquilo que constituía a diferença entre o corpo de um homem e um corpo de mulher, e a sentia, franzina e delicada, como um vaso aberto à espera que eu vertesse nele o meu sangue e a minha impaciência. (CARDOSO, 2013, p. 273)

Mas o mesmo sangue que dá vida aos atores, manifesta a morte, no suicídio de Alberto e na tentativa de suicídio de Valdo ("cenas de sangue"). O sangue de Alberto impregna as paredes do Pavilhão e lá ficam sob a eterna vigilância de Ana. O sangue é também a figura que manifesta os Meneses, enquanto família dotada de certos valores ("Tudo o que desprezam em mim é sangue dos Meneses!" (p.59). Sangue esse que Demétrio, o patriarca, não quer ver manchado. A condenação que ele faz ao casamento de Valdo com Nina decorre, sobretudo, do fato de que Nina estaria conspurcando o sangue dos Meneses. Quanto às violetas, as flores preferidas de Nina, revelam as ligações amorosas, particularmente as interditas. Quando chega pela primeira vez à Chácara, Nina recebe flores de Alberto, entre elas, estão as violetas, que passam a ser o primeiro signo de comunicação entre os futuros amantes ("... vi apenas que a patroa, quando voltou, tinha nas mãos um

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pequeno molho de violetas. 'Foram-me dadas por Alberto, o jardineiro', disse, como se quisesse evitar que supuséssemos as flores um presente do Sr. Valdo" (p. 65). Os encontros amorosos de Nina e Alberto ocorrem junto ao canteiro de violetas. Nina quer que Alberto coloque violetas diariamente em sua janela. Alberto faz isso, mas Timóteo, que também tem atração por Alberto, rouba para si as violetas ("Há poucos dias achei neste rebordo um ramo de violetas. Quem o teria posto aí? 'Um admirador', respondi, gracejando" (p. 144). Nina, quando percebe que não há violetas em sua janela, esbofeteia Alberto ("Fora à toa, e por causa das violetas, que ela lhe batera na cara" (p. 169). As violetas fazem parte do contrato entre Timóteo e Nina, pois esta pede àquele que, quando morrer, cubra-lhe o caixão com violetas ("... quero que me prometa que não se esquecerá de mim e levará umas violetas ao meu caixão" (p. 124). As violetas são citadas nominalmente, mas outras flores são também figuras representativas das relações amorosas, já que elas começam invariavelmente no jardim ("... e nunca se esqueça do primeiro beijo que trocamos, junto àquela árvore grande do Pavilhão. Quero que nunca mais pise num jardim sem lembrar do jardim que foi nosso" (p. 34). Lá Nina e André iniciam seu amor incestuoso. Violetas apresentam-se na cor roxa, tanto que se usa a palavra violeta como designativa dessa cor. No catolicismo (e os valores dessa religião estão presentes em toda a obra, a começar pela epígrafe), o roxo liga-se ao sentido de passagem da vida para a morte. É utilizada nos ofícios religiosos do catolicismo na Quaresma e nas missas de sétimo dia. As flores também estão ligadas ao odor, que na obra é usado para marcar a decadência moral e física da Casa e de seus habitantes. A casa cheira a mofo; o corpo de Nina exalava um mau cheiro insuportável. Pois bem, ali naquela atmosfera carregada, úmida e cheirando a mofo, senti que aquele odor já fazia parte da minha pessoa, impregnava-me, era o cheiro, por assim dizer, do que me acontecia - do meu amor, digamos logo. (CARDOSO, 2013, p. 358) Assim que girei o trinco, estonteou-me o ar que vinha lá de dentro, rançoso, misturado a um vago alento de flores ou de maçãs apodrecidas. Apesar de ser um odor de evidente repugnância, não era igual ao que sobreveio mais tarde, durante sua agonia, e em que se fazia sentir, quase palpável, o trabalho de dissolução do tecido humano. (CARDOSO, 2013, p. 422)

Neste relatório, chamamos a atenção para certos espaços que denominamos espaços de interdição, são eles o Pavilhão, locus de relações interditas de Nina, e espaço a que se segrega Ana, e o quarto de Timóteo, em que esse ator se isola. Os espaços de interdição recebem

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investimentos figurativos de elementos lexicais ligados a prisão, são mostrados como espaços fechados, apertados, malcuidados, em que os atores ali confinados se sentem presos ("E no entanto vim - e no entanto transpus as portas do meu cárcere, porque há uma força superior que me impele, e eu vim ao encontro do meu destino, como quem abre espontaneamente as portas da sua prisão" (p. 213). O espaço transformado em prisão é também figurativizado como inferno, em que os atores não só se sentem presos, como também sentem que ali estão purgando seus pecados. Nina, ao manter relações adulterinas com Alberto e, posteriormente, relações incestuosas com André, realiza sua descida ao inferno. Nesse sentido, os espaços fechados, a Casa e o Pavilhão, investidos no valor inferno, opõem-se ao jardim, espaço aberto em que ocorrem os encontros amorosos, investido do valor paraíso.

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Considerações finais

Como conclusão a este relatório de pesquisa, registramos que os temas de que se constitui a obra mantêm ligação entre si, de sorte que a análise a partir de um só tema acaba por determinar uma visão extremamente míope do romance como um todo. Nosso objetivo inicial era tratar na interdição, tema recorrente na obra, mas essa só pode ser compreendida não apenas na oposição ao seu contrário, a prescrição, mas como um tema de uma rede, cujos três principais pilares são vida, morte e ressurreição. A indagação que se fazem os principais atores da narrativa é: existe ressurreição? Todos vivem no fio que separa a vida da morte, fio esse marcado pela duratividade. O que buscam esses atores? A certeza da ressurreição. Como não há a certeza, buscam a extensidade no tempo, que é dada pela intensidade com que vivem as paixões. A inveja que Ana tem de Nina a leva a tentar ter com André, que ela, ao final, diz ser filho, uma relação incestuosa. Nina, ao ter relações com André, está na verdade tendo relações com jardineiro Alberto. O incesto é, então, uma forma de ressuscitar o morto. Timóteo, que rouba as violetas que Alberto colocava na janela de Nina, ao olhar para André durante o funeral de Nina, não vê André, mas "o moço das violetas" (Alberto). Há uma outra relação do interdito que consideramos relevante na obra. Trata-se da sacralização do interdito, na medida em que aquilo a cujo acesso se estabelece uma interdição tende a divinizar-se. Exclui-se algo para magnificá-lo. No entanto, qualquer programa narrativo que pressupõe um rompimento com o interdito pressupõe uma sanção em forma de expiação. A sanção ao sujeito que não cumpre o contrato do interdito é a maior de todas: a morte. Nesse sentido, a Crônica retoma valores presentes na tragédia grega e não pensamos aqui apenas em Édipo e a questão do incesto. O que pensamos é que, na Crônica, alguns atores representam o herói trágico, na medida em que são marcados pela transgressão da lei humana, cometendo um erro trágico. Quanto a Nina, principal ator da narrativa, responsável por acelerar a destruição dos Meneses, muitas indagações ficam, ao final da leitura, sem respostas. No fundo, pouco sabemos sobre a sua verdade e tentar descobrir a verdade de Nina é constatar a impossibilidade se definir aquilo que é verdade. Não poderíamos concluir se mencionar que no nível fundamental encontramos ainda a articulação /coesão vs. dispersão/. Todo o romance se desenvolve em torno de forças de atração e de repulsão. Se, por um lado, há forças que atuam no sentido de manter a Casa

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unida (Demétrio, o destinador social, a comunidade de Vila Velha); outras forças (Nina e Timóteo) atuam em sentido contrário, negando a coesão e afirmando a dispersão. Outras leituras são possíveis do texto de Lúcio Cardoso que intencionalmente deixamos de fazer por não se relacionarem ao tema da interdição. Uma delas seria uma leitura a partir do tema da decadência, da ruína. A destruição da Casa e de seus moradores num processo lento e agonizante corresponde à decadência da tradicional família mineira conservadora. Os Meneses são a metonímia dessa família apegada às tradições e às regras de conduta moral. Timóteo e Nina são os anjos exterminadores que vão proceder a dessacralização dos valores perpetuados por essa família por meio da transgressão dos valores por ela estabelecidos. Ao discutir a espacialização, quisemos chamar a atenção que, para os Meneses, a Casa, é objeto-valor em que estão investidos todos os valores que são os mesmos da tradicional família mineira. Assim sendo, a Casa é o ponto central, o umbigo do mundo, o espaço da ordem, o Cosmos. Qualquer ataque a ele origina o Caos. Qualquer um que represente um ataque a esse Cosmos, será visto como um inimigo dos deuses, portanto um demônio e o ataque de demônios sempre traz a mesma consequência: a ruína, a decomposição, a morte.

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