O discurso polifônico de um contemporâneo: Romantismo, improvisação e narrativa em Brad Mehldau

June 14, 2017 | Autor: Bia Cyrino | Categoria: Popular Music, Jazz Studies, Romantism, Música Popular, Brad Mehldau
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O discurso polifônico de um contemporâneo: Romantismo, improvisação e narrativa em Brad Mehldau MOREIRA, Maria Beatriz Cyrino (UNILA) [email protected] SILVA, Alberto Ferreira da (UNICAMP) [email protected] Resumo: Este artigo almeja ampliar através da análise da música “Resignation”, presente no disco Elegiac Cycle do pianista Brad Mehldau, a reflexão em torno dos aspectos extra-musicais do arranjo. Para isso, propõe-se uma discussão crítica a respeito das “notas” escritas pelo músico, buscando discutir as conexões do pianista com um passado “romântico” idealizado e sua posição dentro do campo político-social da arte contemporânea. Na análise são levantados aspectos essenciais da construção musical do arranjo para piano solo, como harmonia, textura, melodia e forma, procurando entender até que ponto Brad Mehldau se desvencilha dos conceitos standardizados do jazz e como ele dispõe estes elementos que remetem à música romântica, demonstrando uma maneira específica de se pensar o piano. Palavras-chave: jazz, piano popular, romantismo. Abstract: This article seeks to extend through the analysis of the song “Resignation” included in the Brad Mehldau´s album “Elegiac Cycle”, a reflection around the nonmusical aspects of the arrangement. In this regard, we propose a critical discussion about the “liner notes” written by the musician, trying to discuss their connections with an idealized “romantic” past and your position inside the contemporary art’s socialpolitical field. In the analysis we try to raise essential aspects from the arrangement’s musical construction for solo piano, as harmony, texture, melody and form, trying to understand whether he disengaged of the jazz standard’s concepts and how he set these elements which refer to a romantic’s sonority and shows a specific way to think the piano. Keywords: jazz, popular piano, romanticism.

Introdução Muito se discute sobre a fusão entre o “erudito” e o “popular”, mas poucos foram os esforços que não resultaram em reflexões que acabassem por esvaziar o problema de sentido, levando a uma tentativa falha de borrar suas fronteiras. Estas tentativas só reforçaram o aspecto aparentemente incomunicável de um para o outro, cristalizando o ensino da música e aqui mais especificamente, o do piano. Um olhar mais atento para a produção artística dos dois universos ressalta um paradoxo: a distância que o ensino está do que é produzido musicalmente e de suas reais propriedades; daquilo de que é constituído.

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A problemática questão de como se estabelecer uma narrativa numa linguagem não verbal como a música instrumental foi aprofundada, de modo que seus resquícios estão presentes até hoje, no período romântico. As ideias românticas de fusão e unidade associadas à sinestesia nortearam os princípios criativos de compositores como Chopin, Schumann e Schubert resultando em estilos específicos de composição musical e abordagem pianística. Através do pressuposto de liberação metafórica da linguagem artística buscava-se uma espécie de “poetização” das artes contraposta ao ideal classicista que “separara nitidamente as artes e dentro das artes, os gêneros”. (Rosenfeld, 1969, p. 168). Para Schlegel, poeta alemão: “Dever-se-iam aproximar as artes e buscar transições de uma a outra. Estátuas talvez se transformem em quadros, quadros em poemas, poemas em música (...)”. (Schlegel apud Rosenfeld, idem) Este artigo almeja ampliar, através da análise da produção de um artista atuante no mercado do jazz, as reflexões em torno da obra musical tratando-a como um objeto de significados plurais, extra-musicais, históricos e filosóficos que condicionam sua expressão. O exemplo a ser analisado, consiste na música “Resignation” presente no disco Elegiac Cycle realizado no ano de 1999. Elegiac Cycle é o primeiro álbum de piano solo de Mehldau após uma série de discos dedicados à formação de trio. O disco vem acompanhado de um encarte com algumas “notas” redigidas pelo músico que procuram expressar as motivações que o fizeram compor suas próprias elegias. Imbuído de uma forte conexão com o passado “romântico” e com a cultura germânica, Mehldau descreve seus pensamentos a respeito da função da arte nos dias de hoje. Alguns anos após o lançamento do álbum, Mehldau revisitou com outro texto sua posição ideológica e política, reconhecendo sua necessidade de recuperação, naquele tempo, de alguns pressupostos românticos.

1- As primeiras notas de Elegiac Cycle Nas notas lançadas junto ao álbum Elegiac Cycle, Brad Mehldau expõe sua afinidade com a obra musical e literária do romantismo relatando sua afinidade com a idéia de autonomia do artista, do artista como um ser não-humano, capaz de criar a partir de um olhar que se distancia da sociedade. O músico afirmava que este pensamento era uma espécie de reconforto em meio à situação de seu momento presente; “num mundo onde nada parece ser permanente”. Mehldau via nestas obras um traço de universalismo, contrapondo a condição impermanente da arte num contexto capitalista: “A falsa imortalidade que a mídia apresenta a nós é impermanente no pior I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

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sentido. Ela nos vende agressivamente uma série de produtos e cinicamente prevê nossa resposta emocional, nos dando um ilusório senso de oclusão”. Como símbolos deste tipo de criação subjetiva e universal, Mehldau cita Beethoven e John Coltrane ressaltando o caráter dialético que suas obras estabelecem com o passado e a mensagem atemporal de “verdade e benevolência” que elas delegam ao futuro. Sua visão um tanto quanto descontextualizada do romantismo dissocia o movimento de seu entorno histórico, o que fica aparente na seguinte afirmativa: “(...) Mas eles (Beethoven e Coltrane) estavam comprometidos em fazer música para enriquecer a vida das pessoas e não somente para refletir a droga em volta deles.” Mehldau associa esta ideia de enriquecimento com o aspecto imortal da “verdadeira” obra de arte. Ao julgar a relação da tecnologia com a produção musical Mehldau critica os gêneros “híbridos” dos tempos de então: Nós vimos o advento do sampler: Pegue uma batida de funk de um álbum da década de 1970, coloque alguns licks sobre isso e você terá acid jazz. (...) Nós temos todos os grooves a nossa disposição... o problema com todos estes híbridos é que eles são tão impermanentes: Assim como toda a tecnologia que os gerou, eles foram embora num piscar de olhos.

Na concepção do músico, a experiência que o espectador tem ao se confrontar com uma obra de arte “verdadeira” é de êxtase; é este tipo de obra de arte que pode celebrar e nos colocar diante da nossa própria mortalidade. Ao compor as “Elegias” Mehldau propõe uma espécie de diálogo de uma produção “que não morre” com um conteúdo que celebra a finitude da vida humana. Em sua proposta musical tanto a forma (que é baseada nos princípios românticos de compositores como Beethoven e Schumann) quanto a improvisação devem dialogar com estes conceitos, a fim de proporcionar uma experiência duradoura para o ouvinte. Deste modo, o pianista justifica a utilização do legado musical romântico que grosso modo se define em seu texto como “tema que aparece no começo é retomado e desenvolvido através do tempo e retorna transfigurado”.

2- Revisão das notas Em sua revisão das notas originais, Mehldau diagnostica o anacronismo de suas ideias românticas56 a partir de um maior contato com os pensamentos de teóricos que 56

Em 1998, Mehldau passa algumas semanas em Berlin se aprofundando na cultura germânica a que tanto se devotava, entretanto, encontra uma cidade completamente mergulhada em um contexto “pós-

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criticaram a modernidade no começo do século XX, como por exemplo, Theodor Adorno. Mehldau reconhece até certa medida que o conceito de “arte pela arte” neutraliza a obra de arte, pois no ponto de vista de Adorno, a obra de arte está inserida num contexto real que é sempre político: Nas minhas notas, eu estava demonstrando a elegia dentro desta ideia de que a arte não teria que se explicar, a noção de arte pela arte, e este foi o ponto que as minhas razões se tornaram negligentes, porque eu não tinha pensado nisso profundamente. Eu estava apresentando meu desejo – que a arte poderia simplesmente ser por ela mesma – na forma de um ato evidente por si só.

De acordo com Adorno, a metáfora do artista romântico como “transgressor” perdurou durante o século XIX, entretanto, após duas guerras mundiais, o conceito de “arte pela arte” e a supremacia estética da beleza já não eram mais cabíveis ou pela falta de “utilidade social” ou por não denunciarem a realidade alienada do homem moderno. Mehldau avalia que seu álbum foi uma tentativa ingênua de reconciliar a ideia de autonomia do artista com o mundo atual em que vive, procurando uma alternativa para a criatividade em meio ao contexto mercadológico do jazz norte-americano, com o qual se defrontava naquele momento. O músico também se lançava na tentativa de desenvolver uma personalidade política que se opusesse à crítica musical radical norte-americana, que, ou distorcia os pensamentos de “utilidade social” da arte de Adorno, tentando encontrar valores morais que estariam por trás de cada criação artística ou vangloriava os chamados “mestres” da história do jazz57. Estas condições despertaram em Mehldau a sensação de não-lugar; aparentemente sua produção não fazia jus nem ao mercado de jazz contemporâneo nem honrava os pressupostos de uma arte elevada aos moldes românticos.

3- Análise da Peça Postas as motivações, a intenção de Brad Mehldau de solucionar esta tensão através da composição de peças para piano solo é colocada em cheque através de uma análise um pouco mais aprofundada do conteúdo musical. Até que ponto Brad Mehldau moderno”; os próprios alemães olhavam com distância para a “época de ouro” de sua história. O músico constata de que este foi o primeiro momento em que se questionou sobre esta “idealização do passado”. 57 Nas primeiras liner notes: “A vida útil de cada tendência cada vez mais curta perpetua um sentimento que é característico de alguns dos nossos críticos de jazz nos dias de hoje: a obsessão fetichista com os “mestres”. Para ser um “mestre” você deve fazer ou seguir uma ou mais das seguintes: a) deixar implícito com a ajuda de um “Yes –man” que você não é nada menos que um Messias. b) nasça de uma prolongada e inexplicável obscuridade. c) tenha uma boa porção da sua obra gravada antes de 1965. d) morra.

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se desvencilha dos conceitos standardizados do mercado do jazz e como ele dispõe estes elementos que remetem a sonoridade da música romântica? A faixa escolhida intitulada “Resignation” é um exemplo desta tentativa. A composição apresenta uma estrutura similar aos standards “Tin Pan Alley”(Freitas, 2010, p. 608) AABA. Logo após a apresentação dos 32 compassos segue dois chorus de improvisação e um retorno a seção intermediária AB, seguido de uma espécie de coda que se constrói através de “variantes motívicas” (Schoenberg, 2008, p. 36) já apresentadas anteriormente. Apesar do aspecto standardizado, a organização dos elementos na peça segue uma proposta narrativa específica através principalmente de uma ambientação mais horizontal e contínua - rítmica e melódica - dos elementos, resultando numa sonoridade contrapontística. Esta idéia contrapontística é construída engenhosamente através da relação resultante entre melodia no soprano e baixo nos tempos fortes do compasso (é interessante notarmos que nesta mesma composição, tocada no formato de trio de jazz, o contrabaixista realiza exatamente a mesma linha escrita para a mão esquerda no piano), mas evolui nos limites da proposta harmônica de um standard de 32 compassos.58 (Freitas, 2010, p. 621). O tema A enuncia uma sentença de 8 compassos construída sobre uma progressão típica do modo menor.59 A melodia, mantida na tessitura de uma oitava, se constrói sobre as notas características dos acordes. Esta sentença apresenta uma estrutura de variantes motívicas organizada ritmicamente em mínimas e colcheias pontuadas em seus primeiros quatro compassos, seguido por um segmento de contraste no qual percebemos o acréscimo de notas no desenvolvimento do tema, finalizando com uma cadência IV – V7. Podemos observar estes elementos no exemplo abaixo:

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O que descrevemos aqui se aproxima mais da idéia de “semicontraponto” que Schoenberg descreve da seguinte maneira: “O semicontraponto não se baseia sobre combinações tais como o contraponto múltiplo, as imitações canônicas etc., mas apenas sobre o movimento melódico livre de uma ou mais vozes”. (Schoenberg, 2008, p. 11) 59 : Im – IVm – V7/V7 – bVI – bIII – bII – V7 – I – IVm – V7. Este início lembra bastante a sequência harmônica do Prelúdio nº 20 op. 28 Chopin.

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Exemplo 1 – Tema A60

Durante os seis primeiros compassos o tema A se repete, seguido de dois compassos conclusivos que indicam o início da parte B. O “B”, como uma seção de forte contraste - a seção do “isso eu não esperava” (Idem, 2010) - apresenta uma complexidade harmônica destacada pela progressão que caminha por tonicizações nas regiões de Si Maior, Lá Maior e Dó menor. A melodia se aproxima da seção contrastante da primeira sentença, apoiando-se na maior parte das vezes nas extensões dos acordes e atingindo seu clímax no compasso 24 (Ex. 2) através de uma cadência de engano (ao invés de resolver em Dó menor, resolve em Lá bemol menor) sobre uma nota de duração prolongada. O retorno ao tom original acontece sem longas preparações, através de sua dominante.

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Entre as transcrições encontradas, optamos por utilizar esta versão em 7/8 que apresenta com mais clareza as vozes escritas para as duas claves. A transcrição é de autor desconhecido.

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Exemplo 2 – Tema B

O pensamento semicontrapontístico citado durante toda a peça resulta num acompanhamento como “movimento unificador” que revela “a harmonia inerente do tema” (Schoenberg, 2008, p. 107), reforçando assim, uma ambientação musical específica para o tema. Entretanto, é durante as seções de improvisação que esta proposta narrativa ganha maior destaque e significado – e afirma a assinatura do seu estilo: ela acontece sobre esta “resultante de acompanhamento” supracitada, na qual a mão esquerda permanece

em

movimento

melódico

que

segue

variantes

do

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motivo

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acompanhamento. A textura proposta sobre 4 vozes é mantida; textura sob a qual as articulações do contralto (staccatos e portatos juntos a acentos jazzísticos) aparecem indeterminadamente. (Ex. 3)

Exemplo 3 – Resultante de acompanhamento

É na transição entre um chorus de improvisação a outro que observamos uma modificação no discurso improvisatório61: a mão direita agora assume este “movimento unificador” revelador da harmonia enquanto a mão esquerda se destaca como condutora melódica, não perdendo de vista sua interação explicita com a subdivisão rítmica proposta da peça62 como podemos ver no exemplo abaixo:

Exemplo 4 – Mudança no discurso improvisatório

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Sobre sua maneira de pensar a narrativa musical, Mehldau afirma em seu segundo texto: “Eu estava pensando muito sobre narrativa naquele tempo. Sobre todas as artes, a música foi a minha primeira paixão e literatura – na maioria romances - viriam depois. Eu estava descobrindo como certas estratégias ou técnicas que eu encontrava nos romances poderiam migrar para um meio mais abstrato como a música instrumental, e comecei a pensar a música como uma forma de contar histórias também. A idéia de contar uma história através da música se tornou muito importante no meu desenvolvimento como um músico de jazz em todas as frentes – intérprete de standards/covers, compositor e talvez até mesmo mais importante, improvisador. 62 É importante citar que foi lançado um livro de transcrições e análise deste disco, intitulado “Elegiac Cycle: Transcription complete et analyse” de Phillippe André. Obtivemos acesso apenas a uma seção do livro em que o autor aponta a estrutura rítmica (7/4) subdividida em grupos de semicolcheias com a seguinte disposição: 4, 4, 3, 3.

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Ao fim do segundo chorus Mehldau se utiliza de uma nota pedal na dominante (ré), recurso ostensivamente utilizado pelos compositores do romantismo no final de uma transição ou elaboração “enfatizando o término de uma modulação precedente e preparando a reintrodução da tônica” (Idem, p. 58), ou seja, na maioria das vezes, com um significado de construção. Neste caso, um ouvinte de jazz acostumado aos formatos de seu estilo compreende esta mudança de estrutura como uma modificação “expressiva e pictórica” (Idem) dentro do improviso, além de um recurso que permite enfatizar a habilidade técnica do improvisador ao seu instrumento. (Ex.5) 63

Exemplo 5 – Nota Pedal

A coda (Ex. 6), o momento onde o compositor “quer dizer algo a mais do que já foi dito”, aparece também como “digressões conduzindo a regiões harmônicas mais distantes” (Schoenberg, 2008, p. 224). Também podemos observar o uso de variantes motívicas derivadas do tema prévio. Ela inicia na região de Sol e tende a uma cadência conclusiva curta, porém, a partir do aparecimento do acorde de mediante menor (Bm6) inicia-se uma retomada ao clímax da região da napolitana menor constituída entre dominantes estendidas, atingindo seu ápice em Eb7 – Abm. E é aqui que constatamos uma ênfase no recurso dramático previamente apresentado no clímax da seção B, na qual através da cadência de engano a melodia se apoiou no acorde de Lá bemol menor. A utilização do acorde Lá bemol menor (que aqui chamaremos de “napolitana menor”) e do acorde de Bm6 (compasso 130, Ex.6) (que chamamos mediante menor (III#)64) encontrados tanto na seção B quanto na coda nos momentos de ápice melódico, representa a utilização de um recurso expressivo do período romântico que faz parte do conceito de “tonalidade expandida” que Schoenberg define como “transformações e 63 64

É importante adicionar que nesta passagem do improviso a melodia é citada na voz do tenor. Ver “Quadro de regiões em menor” capítulo IV (Schoenberg, 2004, p. 49).

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sequências remotas que passaram a serem vistas como estando dentro da tonalidade” e que “funcionam, principalmente, como enriquecimento harmônicos e portanto, aparecem, com freqüência, em trechos muito curtos, até mesmo em um único compasso (...) em muitas situações seu efeito funcional é apenas passageiro e temporário” (Schoenberg, 2004, p. 99-100). Exemplo 6 – Coda

O resultado sonoro da utilização destes recursos é descrito por Tovey no seguinte trecho: “As relações Napolitanas, que algumas vezes aparecem como um paradoxo nas últimas Sonatas para pianoforte de Haydn são completamente racionalizadas por Beethoven, Schubert e Brahms. A supertônica bemol [bII, i.e., Db em Dó-maior] lança uma sombra cálida e profunda sobre o esquema tonal, e torna-se escuridão absoluta nos casos raros em que é alterada para menor [Dbm em Dómaior]”; por sua vez, as relações opostas de III# e VI#: “são muito brilhantes; as únicas realmente brilhantes que o tom menor possui” (Tovey apud Freitas, 2010, p.432)

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Para retornar a região de Sol, aparece novamente o acorde de mediante maior, para enfim, seguir a uma cadência conclusiva formada por I – VIm – IV – V7 – Im.

CONCLUSÃO Primeiramente, este artigo procurou lançar luz sobre o conceito do álbum Elegiac Cycle de Brad Mehldau através da discussão entre a articulação de sua posição artística e reflexiva, tentando desvendar as relações extra-musicais que informaram o ato criativo. No âmbito musical, pudemos observar que construção harmônica, disposição motívica, rítmica e o clímax característico advieram do diálogo com o passado romântico, tecido a partir de uma leitura um tanto quanto anacrônica deste, mas que motivou o questionamento sobre o lugar que o artista ocupa na contemporaneidade. Nossa análise se voltou tanto para a compreensão da “proposta narrativa” (vista aqui como maneiras de se pensar o piano solo) quanto para esclarecer até que ponto as reflexões se projetaram no arranjo, que criou um paradoxo discutível logo a partir do momento em que defende a “autonomia” do artista e utiliza-se de uma forma standard AABA. É possível levantarmos a hipótese de que esta produção esta dialogando com a posição mercadológica do artista no campo do jazz, que tem prerrogativas estabelecidas quanto às expectativas postas sobre sua atuação como instrumentista, devendo expor suas habilidades como improvisador. A partir disto, o interesse volta-se para a sessão de improvisação; o “fetichismo” polifônico junto aos clichês dramáticos harmônicos da exposição temática dá um novo tipo de suporte para o chorus improvisatório e acaba enfatizando as contradições levantadas por Mehldau, dando uma nova interpretação ao estilo do “jazz man”. Pode-se dizer então, que com este exemplo, retiramos certos parâmetros que demonstram uma maneira de se pensar o piano, um caminho para sua reinvenção. Arriscamos dizer que esta contradição de ambientação contínua, reminiscências do estilo “chopiniano”, dentro de uma forma musical “aberta”, faz-nos aprofundar um pouco mais a velha dicotomia artística “erudito” X “popular”, distante de pastiches inconscientes, ao mesmo tempo em que nos coloca além, dentro do ensino da música popular, das cercas da jazz theory, impelindo-nos a não nos esquecermos da extrema importância do posicionamento crítico e de uma abordagem que inclua o piano como parte de um contexto histórico e filosófico mais amplo.

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Referências ANDRÉ, Phillipe. Elegiac Cycle: Transcription complete et analyse. Outre Mesure, 2011. FREITAS, Sérgio. P. R. de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Tese (doutorado em Música). Campinas, UNICAMP. 2011 ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. Ensaios. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969. SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004. ____. Fundamentos da composição musical. São Paulo: Edusp, 2008. Sites Primeiras notas sobre Elegiac Cycle: http://www.bradmehldau.com/excerpt-elegiaccycle. Acesso em: 17 fev. 2015. Segundas notas sobre Elegiac Cycle: http://www.bradmehldau.com/looking-back-onelegiac-cycle. Acesso em: 17 fev. 2015. Álbuns Brad Mehldau. Elegiac Cycle. Warner Bros Records, 1999.

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