O Discurso Silente: considerações sobre linguagem no Hinduísmo, Budismo e Taoísmo

July 24, 2017 | Autor: Giovanna Giffoni | Categoria: Orality-Literacy Studies, Filosofia
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GIOVANNA MARINA GIFFONI

O DISCURSO SILENTE: Considerações sobre linguagem no Hinduísmo, Budismo e Taoísmo

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura: Poética, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura: Poética.

Orientador: Professor Doutor Antonio Jardim .

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 2009

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.....................................................................................................5 PRIMEIRA PARTE...................................................................................................8 I - A LINGUAGEM.....................................................................................................8 II - A DEMANDA......................................................................................................16 III - O CAMINHO......................................................................................................21 IV - OS CAMINHOS DA LINGUAGEM.................................................................30 V - O JOGO................................................................................................................32 VI - O GESTO............................................................................................................39 VII - O EQUÍVOCO...................................................................................................42 VIII - O GESTO IMPOSSÍVEL.................................................................................45 SEGUNDA PARTE..................................................................................................47 I: TAT TVAM ASI: O ISTO QUE SE APONTA NO HINDUÍSMO VÉDICO..........47 i) O antigo caminho, extremamente estreito e extenso, e a estreita esfera do conhecimento..................................................................................................................47 ii) Ouvir à distância: o conhecimento revelado......................................................52 iii) Ver de perto: o conhecimento secreto...............................................................60 iv) Ouvir x ver: disputa pelo conhecimento............................................................68 v) Revela-se o grande conhecimento secreto: a realidade é apenas isto...............75 II: A GRANDE BALSA E A IMPOSSÍVEL CONTEMPLAÇÃO DO RIO.............88 i) O claro discurso de obscuros rios.........................................................................88 ii) A aceitação do curso do rio..................................................................................94 iii) Grande balsa ao sabor do curso do rio.............................................................99 iv) O caminho do meio............................................................................................104

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Entrecaminhos: I Ching.........................................................................................110 Entrecaminhos: o supremo caminho do não caminho........................................114 Entrecaminhos: Tao dito tao não é tao.................................................................116 v) O caminho indescritível......................................................................................119 TODOS OS CAMINHOS DA LINGUAGEM.....................................................124 APÊNDICE A: CHANDOGYA UPANISHAD (Capítulo VI).............................131 APÊNDICE B: O SUTRA DO DIAMANTE.........................................................139 BIBLIOGRAFIA....................................................................................................154

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Quando coisas criadas por mágica são vistas como tais, elas deixam de existir. Tal é a natureza de todas as coisas. (NAGARJUNA. Mahayana Vimsaka, "Vinte [versos] do Mahayana")

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APRESENTAÇÃO

Isto é um percurso. Nele, percorrem-se três caminhos filosóficos em busca do Isto. Seus nomes indicam-nos o caminho sem dar conta da viagem: Hinduísmo, Budismo, Taoísmo. Isto é uma busca, a busca de como se dá a busca, a pergunta pelo que é o Isto nesses três percursos. Teriam eles realmente se debruçado sobre a questão do Isto?

Isto é o mesmo que perguntar se eles de fato constituem filosofia. Pois Isto e filosofia são o mesmo. Por isso, aqui já se assumiu o pressuposto: o de que há o Isto, ou seja, de que há filosofia, no que se convenciona chamar por aqueles três nomes, ou por um só: Oriente.

Por muito tempo houve a recusa em reconhecer e estudar as produções "orientais" como obras filosóficas. E, mesmo quando passa a haver algum reconhecimento de sua importância, ainda são vistas como assistemáticas. Afirmações, que servem convenientemente tanto ao menosprezo quanto ao elogio, de que não teriam separação de disciplinas, de que não teriam especialização em sua organização (ou "desorganização"), negaram por muito tempo, portanto, o fato de elas mesmas terem consciência de serem sistemas1.

Sistema, em filosofia, liga-se à noção de totalidade, um todo organizado, constituído por partes desenvolvidas umas a partir das outras. Na totalidade sistemática, portanto, está resguardada a unidade do pensamento, sua especialização e seu desenvolvimento, sua “evolução”. Não é a totalidade de seu discurso (muito menos ainda sua dedutibilidade) que se

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Sistema: 1. Uma totalidade dedutiva de discurso. Essa palavra, desconhecida neste sentido no período clássico, foi empregada por Sexto Empírico para indicar o conjunto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de premissas, e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado dedutivelmente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes derivam de outras. (ABBAGNANO: 2000, 908. Grifo nosso.)

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tem negado à filosofia hinduísta ou budista, mas a sua constituição histórica, documental, evolutiva.

No Ocidente as distinções mencionadas aqui [entre as filosofias grega e indiana] têm sido tratadas como dicotomias simples e absolutas: história vs. atemporalidade, análise crítica vs. misticismo. Devido à sua permanente conexão com religião, e, particularmente, à presença preponderante do Hinduísmo, o pensamento indiano é frequentemente encarado no Ocidente como outra coisa que não – e, implicitamente, menor que – filosofia, algo que carece da autonomia e abstração da pura filosofia. (McEVILLEY:2002, 650)2

Que maior abstração há do que a unidade, no entanto, que concretude alcança ao se identificar com a verdade. Ao se negar a abstração no pensamento indiano, nega-se com isso a sua unidade, a sua verdade. A verdade é sempre o uno que se depura de uma dinâmica, ou mesmo a verdade pode ser a dinâmica da unidade, mas sua propensão ao uno é evidente.

Verdade nada mais é para a filosofia, desde a sua origem sacerdótica, a unidade. Verdade, história, evolução, desenvolvimento, são, todas, palavras muito caras à modernidade, modernidade que já se inicia com o movimento de se afastar desse âmbito atemporal, onde não se podem vislumbrar nem mesmo vestígios de escritas em lápide erodida. O discurso silente não-gravado em pedra documenta a presença de uma dinâmica do tempo. É a essa dinâmica que se cunha a-histórica. História é verdade, verdade é o testemunho da unidade. É por se negar a proferir e professar tal testemunho que as filosofias aqui tratadas são alijadas da história, da filosofia, da história da filosofia, da filosofia da história, da verdade.

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Todas as citações e apêndices traduzidos são traduções do autor.

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No entanto, a distância alcançada pela filosofia oriental em relação ao percurso ocidental não está em ser assistemática ou não. O caminho é o mesmo. A diferença está na linguagem3. A linguagem é o que, de um lado, aproxima todos os discursos filosóficos, e, de outro, impõelhes uma barreira e uma distância.

Não conseguimos, portanto, escapar à tarefa de confrontar essa diferença em nosso trabalho, principalmente porque todo pensamento é impregnado de linguagem. Assim, antes mesmo de passarmos à investigação do que é o Isto para o Hinduísmo, para o Budismo, e para o Taoísmo, e antes de investigarmos a busca do Isto em si, traçaremos algumas considerações sobre o caminho da linguagem.

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Esta tese é, antes de tudo, sobre linguagem. Linguagem aqui não se trata, entretanto, da linguagem entidade Linguagem, nem, tampouco, da linguagem instrumento linguagem. Nas páginas que se seguem: linguagem não é linguagem: linguagem é a palavra linguagem.

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PRIMEIRA PARTE

I - A LINGUAGEM

Qual o percurso da linguagem na filosofia ocidental? O que é o Isto da filosofia ocidental, da propriamente chamada filosofia?

O pensamento parte da Grécia, já desde os pressocráticos, principalmente com Heráclito e Parmênides, como um exercício esmerado de linguagem. Heráclito é quem vai primeiro abandonar o caminho da origem do universo para pensar e fazer surgir o Logos. Deste primeiro passo surgem os conceitos que, desde os seus mais antigos comentadores, permanecem como questões a impulsionar o movimento dos discursos.

O principal objeto dos mais antigos e deliberados esforços para explicar o mundo permanece na descrição de seu desenvolvimento a partir de um simples, e, portanto, totalmente compreensível, começo. Questões concernentes à vida humana pareciam pertencer a um diferente tipo de investigação – à tradição poética na verdade, pela qual as antigas crenças herdadas, ainda que algumas vezes inconsistentes, eram ainda consideradas válidas. Além disso, o estado original do mundo, e o modo como se diversificou, eram geralmente imaginados antropomorficamente, em termos de um ancestral, ou um par de ancestrais. Esta atitude genealógica persistiu mesmo depois do eventual abandono pelos filósofos milesianos da tradicional investigação mitológica (...). É parte da originalidade de Heráclito que ele tenha rejeitado tal investigação por completo. (KIRK, G. S.; RAVEN, J. E. e SCHOFIELD, M: 1983, 8)

Ainda entre os pressocráticos, portanto, acontece a separação entre pensar os fenômenos e pensar a linguagem. Esta especialização vigora até hoje e foi responsável pela divisão dos discursos em filosófico e científico. É devido a esta cisão que muitas vezes se retira o pensamento pitagórico do âmbito do pensamento pressocrático, pois passamos a conceber

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filosofia como o pronunciar-se da linguagem por si só, e não mais "a serviço" de investigações científicas, místicas ou míticas.

Para entender o que é esse pronunciar-se da linguagem, basta que comparemos os tipos de discurso em que ela se manifesta. Os textos do Budismo Zen lançam mão em particular de dois gêneros, o yü-lu (do chinês, "compilação de ditos", "dizeres registrados") e o wen-ta ("pergunta e resposta"). O cânone pressocrático que nos resta constitui-se de compilações, em diferentes épocas, tardias em sua maioria, dos dizeres de diferentes filósofos. Platão utiliza o método dialógico, explicado muitas vezes como permanência de uma oralidade que já em seu tempo estava com os dias contados, ou mesmo como uma reação ao apelo da escrita, numa patente desconfiança. A partir do abandono destes gêneros pelo ocidente, o texto filosófico torna-se quase uma entidade, uma verdade que se pronuncia, que se gera. Ninguém pergunta por ela, e eis que, de repente, brota, passando-nos a impressão de que não foi obra de um filósofo, mas a própria verdade que se pronunciou, que se doou à escuta.

A linguagem não é A Linguagem, não é uma entidade. A linguagem é a palavra linguagem. Ao dizer filosofia é linguagem, tendemos a pensar num movimento recíproco que não é verdadeiro. Linguagem não é filosofia. Linguagem é sempre predicado, um predicado que se quer sujeito, exorbitando a esfera de suas possibilidades.

É por esse tratamento conferido à linguagem que a filosofia de tradição ocidental é marcada pela cisão, pela dialética, pela crítica, pelo combate, e, acima de tudo, pelo eterno retorno da tentativa de superação de si mesma. Mas uma superação que nunca chega a atingir seu fim, pois sempre parte daquele mesmo isto que constitui o objeto a ser superado: a linguagem.

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A cisão empreendida pelo filósofo de Éfeso, além de definir os limites entre filosofia e ciência, erigiu uma barreira que separou estas duas instâncias definitivamente do discurso mítico, que, primitivamente, reunia em si todas as possibilidades da linguagem. Reunir em si todas as possibilidades da linguagem não significa, porém, ser uma linguagem mais "pura", significa apenas reunir pensamento cosmológico, pensamento lógico e pensamento da linguagem, todos, ainda, como pensamento.

A linguagem, seja para os mitos ou para a ciência, é sempre discurso. Mas, como a linguagem da filosofia, após os pensadores originários, tornou-se cada vez mais especializada, mais distante de qualquer possibilidade de reunião, houve a necessidade de se resgatar uma instância primeira, uma protolinguagem filosófica, aliás, uma linguagem despida de qualquer termo adjetivante, uma linguagem substantiva; nem mesmo isso: uma linguagem linguagem. Linguagem.

Por isso, há o retorno ao caminho iniciado por Heráclito. Ao chegar lá, os filósofos do ocidente olham para trás e tudo o que veem são os mitos já bastante degenerados, já bastante dispersos, fragmentados, que se conservam esparsamente em Homero e Hesíodo4. O que fazer com um discurso em ruínas, o que fazer com ecos que mal podem ser ouvidos da distância? O pensador toma então uma nova decisão. Tenta resgatar os mitos como origem do pensamento, como fonte de toda linguagem, como linguagem propriamente, uma linguagem concreta, e, a partir deles, tenta novamente refazer o caminho de volta até nossos dias.

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Esta afirmação, que soará estranha a alguns, não intenta de modo algum diminuir a importância destes mitos para a nossa cultura, sobretudo a nossa cultura enquanto fundamentada numa época idealizada de Homero e Hesíodo. Como não cabe aos propósitos deste trabalho estender-nos sobre este assunto, indicamos alguns pesquisadores que tratam da questão do processo de degenerescência do discurso mítico na Grécia Antiga. Ver KIRK, G. S., RAVEN, J. E. e SCHOFIELD, M com relação aos mitos do oriente próximo e OTTO, W. para uma confrontação com os hinos homéricos, e sobre uma possível heterodoxia daqueles autores.

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Acredita-se, dessa forma, que possa haver uma linguagem concreta, que traria em si uma experiência originária. Esta é uma via que nasce da própria negligência com a verdade de fazer o caminho em direção a si mesmo, em conhecer-se: a linguagem em que se funda a filosofia ocidental, e, não só ela, mas toda linguagem, é abstrata, é raciocínio, é logos. Ir à origem não quer dizer necessariamente encontrar uma linguagem originária. Origem só pode ser entendida a partir de um movimento de fora, ou seja, de quem já se encontra longe da origem. Mas, é verdade que estamos fora da origem? Se estamos, como compreendê-la, se não estamos, por que buscá-la?

A cisão que houve nos modos de pensar não pode ter havido na linguagem. Não há linguagem anterior, ou posterior, ou concreta, ou abstrata, ou originária. Ela é sempre originária, pois é sempre condição humana, a partir dela tudo o que é humano brota. A menos que tivesse ocorrido uma cisão também no humano, poderíamos distinguir dois apelos da linguagem e estaríamos à procura igualmente desse outro que ficou para trás. O homem é sempre o mesmo, pois a linguagem é sempre a mesma. A linguagem do homem, portanto, não é a linguagem do homem. É a linguagem, que lhe confere existência.

No pensamento oriental essa experiência traduz-se numa angústia. O filósofo oriental sente-se assolado pela linguagem, como o filósofo ocidental sente-se assolado pela existência. Em lugar de se encontrar para além de uma instância do ser, a existência conferida pela linguagem no pensamento oriental é, antes de tudo, uma instância delimitada por ela, determinada por suas infinitas manifestações. É preciso cessar esse mostrar, esse aparecer da linguagem sob diferentes formas, é preciso dominá-la.

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"A palavra que eu pronuncio me domina, a que eu não pronuncio é dominada por mim" 5. Eis uma conduta que se apresenta de uma maneira bastante heterodoxa aos nossos olhos carregados de linguagem. Dominar a linguagem é para nós, no mínimo, estéril, sem o extático prazer de se deixar dominar por ela. No entanto, esta frase constitui um princípio, constante em todo o pensamento oriental.

Um pensamento que não se deixa dominar pela linguagem, que evita os discursos. Isso, contudo, não quer dizer que não produza obras filosóficas; é extensa a produção na Índia, na China, no Japão, na Pérsia. É, por outro lado, uma produção que apresenta um cuidado com a linguagem bastante diferente. Tentaremos daqui para frente dar algumas indicações do que seria esse cuidado, entretanto, isso só pode de fato ser sentido num contato direto. Assim, estudaremos nos próximos capítulos uma ínfima parte, é certo, dessa extensa produção, tendo sempre em mente a busca do Isto nos diferentes modos de pensar, bem como o caminho trilhado em cada busca.

Mas, em que, verdadeiramente, constitui esse domínio? Dominar significa tornar-se senhor. E já não são os homens, todos, senhores da linguagem?

Não.

É um lugar-comum a ideia de que a linguagem é o que diferencia os homens dos demais habitantes da Terra. Aliás, é com e pela linguagem que é ele o único a habitá-la. Enfim, é ela que confere a humanidade do humano.

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Esta frase encontra-se no Kalila e Dimna, tradução para a língua árabe de uma versão persa de uma obra considerada, pelo saber que encerrava, um tesouro da Índia, cobiçado por muitos reis: o Pañcatantra. Como nada que é dito num texto de tradição oriental, principalmente nas fábulas, diz o que está dizendo, deve-se tomar o cuidado com a "palavra".

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A linguagem é própria à condição humana. Desse modo, todos os homens compartilham essa condição e, mais do que isso, sofrem essa condição. A linguagem é, a um tempo, condição e gênero. A partir dela todo humano brota, nela habita o homem; a partir dela o homem constrói, nesta construção habita o homem; a partir dela o homem destrói, nesta destruição habita o homem; a partir dela.

Como pode, então, o homem diferenciar-se dos outros seres se, como todos eles, sofre também uma condição, a condição de sua humanidade? Se está sempre correspondendo à linguagem? Esse humano corresponder é o voo da águia e o rastejar da serpente. De que modo, pode, então, dominar a linguagem se, mesmo quando ela cessa, correspondemos com o silêncio. Haveria um meio de escapar à condição humana?

O homem nunca duvidou dessa possibilidade nem por um segundo em toda a sua humana trajetória. Ele cria, busca, questiona. Sempre de novo e novamente. Para cada criar, uma resposta, para cada busca, uma resposta, para cada questão, uma nova questão. E cuida, assim, através da criação, escapar à condição – ao constituir mundo. Entretanto, constituir mundo é próprio do homem, que, habitando este mundo, humanamente o sofre. O homem sofre o mundo em que habita. Sustenta-o como a tartaruga ao seu casco. A linguagem, genus de todo movimento e criação, é humano casco.

A rota de fuga traçada pelo homem só o tem levado cada vez mais ao centro do labirinto. E, quanto mais ao centro, mais próximo da linguagem; quanto mais em sua proximidade, mais acredita que escapou à sorte dos outros seres. Quanto mais afirma sua humanidade, mais afirma sua condição; quanto mais nega essa condição, mais afirma sua humanidade. Nunca do mesmo modo, e, portanto, sempre do mesmo modo, o homem corresponde. Não há como

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fugir. Uma leoa, que, num dia caça uma zebra, em outro um bisão, e, em, outro, se não sentir fome, descansa à sombra, está sempre caçando. Assim também é o homem com sua própria determinação.

O homem é um ser determinado. Imaginando a determinação como movimento voluntário e criativo, não desperta para o fato de que voluntário e criativo é o corresponder determinado do homem. O homem não está desperto, mas é preciso que desperte para tentar dominar a linguagem. Mas, ainda, pouco antes de despertar, o homem desespera. Para desesperar é preciso ainda um outro movimento: é preciso que se depare.

O homem se depara quando percebe o movimento. Percebê-lo é parar. Quando para, o homem depara-se com alguma coisa. Esta coisa faz com que se desespere. O que é isto que o faz desesperar? Esporadicamente o homem depara-se com a morte e isso muitas vezes o faz desesperar. O desespero causado pela visão da morte leva-o a criar cada vez mais. É um deparar que não para o movimento. Ao contrário, perpetua-o.

O deparar-se com a morte é um deparar estático de algo que, em cessando, faz com que o homem deseje o movimento, impulsionando-o sempre de novo, a cada nova morte. Ao desejar escapar da cessação da morte, o homem esquece que ela também é a linguagem que o atira sempre em frente e o domina. Como cessação não consegue angustiar o homem tanto como a sua outra faceta, que tanto pode levar à criação quanto à não-criação. Esta outra manifestação da linguagem é a mutação.

Antes de se deparar com a morte, o homem depara-se perplexo com a transitoriedade. Na vida de Buda, o consciente da transitoriedade por excelência, isto fica bem claro. Suas quatro

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visões, ao contrário do observado em hagiografias católicas, não têm nada de "extraordinário": são o próprio extraordinário que possui morada no comum, em todas as partes. Mais do que visões, a experiência de Buda é de contemplação. É uma contemplação no espelho de um rio em curso, a impossível contemplação, pois tudo flui em águas sempre turvas pelo seu revolver constante. Sua contemplação perfaz o seguinte curso:

A visão do ancião; A visão do enfermo; A visão do cadáver; A visão do asceta.

A morte, portanto, é apenas mais um entre os aspectos da mutação. A morte é uma entre as mudanças. Não ocupa uma posição privilegiada no rol das angústias humanas. Não é AQuestão-Humana. Talvez, nem mesmo exclusiva do homem. Esta constatação provoca o homem, incitando-o a desejar a superação da transitoriedade e partir em busca. A busca acaba, como acontece sempre que se quer mudar o destino, por fazê-lo aproximar-se cada vez mais da verdade da triste constatação: tudo passa. Mas, enquanto em busca, não se dá conta de que aquilo que busca, o permanente que permanece diante de todas as transformações – o Uno, a Essência, o Vazio, o Tao, ou o Isto – também é impermanente. Não há mundo que gira, pois isso necessitaria de uma perspectiva, de um ponto de vista, de uma visão de fora. Só há o movimento, e nele, ele mesmo, tudo, passa. Ignorar essa verdade é partir em busca. E a busca só aumenta a velocidade das transformações transitórias.

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II - A DEMANDA

Um dos mais importantes rituais hindus era o rito de consagração do kshatrya6 herdeiro de um determinado reino. Este ritual, em que há o sacrifício do cavalo, é o chamado asvamedha. Uma importante etapa do asvamedha é o digvijaya.

Durante um digvijaya, "conquista das direções", um rei, desejando ser aclamado imperador, libertaria um cavalo para vagar à vontade em torno de vários reinos adjacentes. Algum rei que não aceitasse a jurisdição do aspirante a imperador poderia capturar o cavalo e, desse modo, provocar uma confrontação. Outros, permitindo ao cavalo transitar pelos seus reinos, atestariam sua subserviência, e deles se esperaria o pagamento de tributos.

O cavalo, nos primórdios da cultura indo-européia, está sempre associado aos rituais de conquista do outro mundo. Ele era o elemento que unia os dois mundos. Está, por isso mesmo, associado à água, aos oceanos. É montaria de Possêidon, cultuado em Tróia; é associado a Vāruna, deus dos oceanos no Hinduísmo. Contudo, ao longo dos séculos e das conquistas arianas nas quatro direções, este papel do cavalo foi-se esvaecendo, seu status sagrado dos rituais védicos, e, profano, de ligação com os reinos ínferos, apagou-se da memória das gerações. Com a expansão das conquistas, expande-se o sentido do digvijaya, expandem-se suas proporções, seu poder bélico.

Isso se encontra muito bem ilustrado nos grandes épicos hindus: o Mahabharata e o Ramayana. Aí, o ritual perde muito de seu simbolismo para se tornar apenas uma prática arma 6

Os termos em Sânscrito ou Chinês que não tenham sido incorporados ao Português, ou com os quais não tenhamos familiaridade, não estão transcritos foneticamente, mas transliterados de modo convencional, sem uso de símbolo especial. O sh representa dois sons distintos em Sânscrito que correspondem mais ou menos ao nosso dígrafo (ch). O ch, por sua vez, deve ser pronunciado como uma africada, semelhante ao inglês chair. Todos os demais h devem ser pronunciados com uma aspiração como no inglês madhouse ("mad-house").

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de dominação. Representando todo o poder bélico de um determinado clã, o cavalo é agora um entre muitos, utilizados como montarias a serviço de bigas que conduzem jovens guerreiros com seus exércitos. A conquista não é mais uma questão sagrada, mas terrena, com homens e armas terrenos, sem mitos, sem mistério. Desta maneira, o antigo ritual torna-se uma questão sangrenta, de invasões, de violência. Ao dominado não é mais permitido prestar reverência a um ser divino, a contemplar uma visão extraordinária. Esta mudança de conduta irá operar uma nova mudança do digvijaya.

Conta-se que foi o rei Ashoka, que viveu entre os séculos III e II a.C., e unificou de maneira violenta os reinos da Índia, dominando de maneira mais ou menos direta o vasto território compreendido entre o Afeganistão e o Sri Lanka, que operou esta mudança. Atormentado pela truculência de suas próprias ações, parte pelo mundo numa outra conquista, uma conquista espiritual, de libertação. Ashoka torna-se, por influência de sua esposa, o primeiro rei budista e passa a divulgar os ensinamentos de Buda até o sul da Índia. Assim, ele instaura um novo digvijaya, o chamado dharmavijaya, a conquista do dharma, da correta conduta.

A partir daí opera-se simultaneamente uma transformação no conceito de herói. Vira, que antes designava o jovem militar, o jovem príncipe, um kshatrya, ou seja, um membro da casta dos guerreiros, começa, pouco a pouco, a designar o sábio ou o santo, como aquele que conquistou a si mesmo. A esta mudança na concepção do ritual e do herói corresponde a utilização do digvijya como tema literário. E como tema literário possui uma amplitude de sentido ainda maior.

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Na literatura contemplamos diferentes buscas, diferentes conquistas em diferentes planos. Ainda há a conquista concretizada pelo guerreiro, mas ao seu lado atuam as conquistas amorosas (estas são as mais recorrentes), e as conquistas espirituais. Entre o vira guerreiro e o vira santo, surge um novo herói, que, comparado aos nobres propósitos de seus antecessores, ocuparia uma escala mais baixa de heroísmo. E que se espalharia pelo mundo como o herói típico dos romances de aventura, dos romances picarescos, até se traduzir em modelo de herói de nossos dias, nós que não buscamos mais nada.

Várias obras iniciam-se com o tema da viagem de jovens príncipes e seus fiéis escudeiros em busca da realização, seja ela material (com os reinos e poder), sensual (com mulheres e riquezas) ou "dhármica" (com o cumprimento de seus deveres como chefe de estado, ou com crescimento espiritual). O digvijaya, deste ponto de vista, como tema literário, é universal – o tema da errância, do cavaleiro errante que tão bem ilustram as mais diversas novelas de cavalaria.

E, no entanto, tudo isso nasce a partir daquela busca inicial. Da busca buscada por quem contempla o transitório estado de tudo. A busca pelo permanente subjacente a toda transitoriedade. Não foram só a Buda concedidas aquelas visões, sempre inaugurais. Não é preciso ser como os santos para encarar a velhice, a doença, a morte e a outra morte.

E foi essa mesma melancolia incutida por essa mesma busca, que levou o homem a desenvolver sistemas filosóficos, a querer compreender o funcionamento, a grande máquina do mundo. O que antes lhe advinha como concessão divina, ou como prêmio após a sua errância, mas nunca, de fato, chegava, ele teria que conquistar de uma outra maneira, errando por outros caminhos – o caminho da linguagem. Assim o homem tem errado nesta outra

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busca, tida muitas vezes como superação das ingênuas buscas sagrada e literária – a busca pelo conhecimento.

O permanente que antes era concebido como a perpetuação de uma vasta dinastia sobre a terra ou como a glória de um nome numa obra, agora seria suplantada pelo domínio da Verdade. A Verdade é o Isto de todos os sistemas filosóficos. Todos eles querem encontrar, e não só isso, mas também sistematizar, uma verdade que seja universal, pura, concreta, e, principalmente, imutável.

Um texto clássico da China, e que percorre uma história anterior a 1500 anos antes de Cristo até nossos dias, é o tardiamente chamado I Ching (ou "livro", "clássico" – Ching – das "mutações" – I). Ele é uma incógnita para nós, mesmo para os chineses, pois lida com símbolos que não se encontram em mais nenhum outro lugar. E assim, diversas especulações têm sido feitas acerca de seu sentido. É, originalmente, um livro composto apenas por elementos, figuras lineares, sem nenhum texto, e assume-se que ele teria sido utilizado em rituais divinatórios a princípio, e, mais tarde, também como compêndio filosófico, para investigações acerca do conhecimento. Entretanto, estas funções foram atestadas já tardiamente pela Dinastia Chou, quando foram escritos textos explanatórios acerca de cada elemento do livro.

E, para provar que nada permanece, nem a mais pura das descobertas filosóficas, os textos explanatórios também se obscureceram com o tempo, e foi preciso que Confúcio (segundo alguns; segundo outros, que seus discípulos) acrescentasse novas explicações àquelas providas pelo Rei e pelo Duque da Dinastia Chou. Hoje esta é uma obra que permanece inacessível. Toda obra o é. Apesar de não ser visível, como ocorre com os símbolos do "I",

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todo símbolo é transitório porque é uma coisa e como coisa muda; seu sentido é sempre imediato, mesmo quando pensamos estarmos diante de grandes questões universais.

Tudo é "I". E ainda assim há a distinção, criando um ponto de vista, um ponto de partida de onde se poderia contemplar a transitoriedade. Quem parte em busca corre sempre o risco de descobrir que não há esse eixo em torno do qual giraria o mundo e que caberia a nós descobrir para alcançar a eternidade, a cessação, a verdade, o vazio, o tao. Dizer "Tudo é um", "Tu és aquilo", "Tudo passa", ainda é crer na possibilidade de contemplação da coisa. A coisa nunca pode ser contemplada, pois giramos com ela, e nosso discurso gira conosco, tudo gira ao mesmo tempo. Esta é a impossível contemplação do rio.

Buda percebe que não há caminho, não há permanente, não há verdade, não há essência, mas perceber isto é não poder dizer isto, o dizer é um Isto, o não dizer também. E, pela errância dos discursos, que superam a nós mesmos (que julgamos ser os pronunciadores dos discursos), o Budismo é tanto inaugurado como um sistema filosófico, quanto como religião.

Maior do que a impossibilidade material de se apreender a transitoriedade das coisas, maior do que a impossibilidade visual de se contemplar a transitoriedade das coisas, é a impossibilidade filosófica, da linguagem, de se pensar, ou melhor, de dizer a transitoriedade das coisas. Não há rio, não há ideia que acomode ou desacomode a transitoriedade das coisas, pois o rio e a ideia existem tanto quanto as coisas, que não existem, nem não existem. Esta é a impossível contemplação do rio.

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III - O CAMINHO

O percurso da tradição oriental também se faz com e pela linguagem. É preciso que se tome conhecimento disto. É exercício de linguagem, é discussão, é pensamento. Os caminhos são diferentes, mas existe o caminhar, a busca. E a busca, que é sempre pelo Isto, é também a mesma busca desse percurso.

Não só no ocidente há a questão "o que é o Isto?". Não só no ocidente ela vem sendo respondida de diferentes modos. As inúmeras escolas de pensamento no oriente, sejam da Índia, da China, ou de qualquer outro lugar onde tenha lugar a questão, elaboraram vastas obras, promovendo intensas discussões acerca do tema. Neste trabalho procuramos discutir como a questão está presente.

Apresentaremos as filosofias orientais como escolas, que trabalham na elaboração de seus discursos, que buscam o Isto. Não apenas como filosofias "de vida" que podem ser tomadas fora de seus contextos e aplicadas na vida de indivíduos que sigam outro percurso filosófico.

Muitos serão os questionamentos. Hinduísmo não é religião? Budismo não é religião? Taoísmo não é religião? Todos eles não são uma espécie de idílio de serenidade e sabedoria almejado por uma cultura que caminha numa velocidade atroz rumo ao aniquilamento traçado por seu próprio percurso filosófico-científico? Estas "doutrinas" não estão aí a nosso serviço? Não são a resposta a todas as nossas ansiedades consumistas? Não são elas apenas "filosofia de vida"?

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É, no mínimo, curioso o fato de a filosofia ocidental, que vem refazendo seu caminho a fim de resgatar os mitos como fundadores, não conseguir reconhecer como filosofia sistemas de pensamento que ainda co-habitem com eles, que não se dissociem da religião. Ainda mais quando, no fundo, qualquer filosofia é sempre religião, mesmo as que não mais vivenciam a proximidade de seus mitos.

Realmente, não se deve confundir mito e religião, nem podemos confundir: desconhecemos o que seja mito. E, atualmente, desconhecemos religião. Sim, corremos então o risco de confundi-las por nossa própria ignorância. Ambas são um mistério e o que mais se aproxima de mistério, o que nos chega sempre como tal é a filosofia. Filosofia requer uma iniciação em seus mistérios, há ali sempre um discurso que nos escapa, um fundamento que não podemos (não nos é lícito), ou não somos capazes de ver.

Jamais nos iniciamos em filosofia, contudo. Nós a estudamos, como a um objeto, como se não o estivéssemos, de certa forma, ajudando a montar. Como se não fosse quase impossível desmontá-lo. Queremos conhecer as raízes de uma árvore através de seus ramos mais finos, os que nos espetam os olhos, e, por isso mesmo, nos presenteiam com uma cegueira que, de modo algum, tem sido passageira. Mas será que desejamos, de fato, conhecer essas raízes tão profundamente arraigadas em nós mesmos? Talvez sejamos nós os primeiros a nos arremessar violentamente em seus espinhos para que não vejamos: a verdade da origem do nosso pensamento.

Buscamos nossa origem de fora, de cima, do alto, ao rés do chão, de forma rasteira ou elevada. Nunca descemos, cavamos, desenterramos. Ela sempre parece nos iludir como a inscrição tumular que diz ao caçador de tesouros: “Oh, homem, quem quer que sejas e de

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onde quer que venhas, pois estou certo de que virás, eu sou Ciro, que conquistou o império dos persas, e rogo-te não tenhas nenhuma inveja deste pouco de terra que cobre meu pobre corpo”7.

Mas não são só tesouros que se encontram sob a terra que cobre o cadáver de alguém. Além do cadáver, que lá se encontra, pode haver uma maldição, uma praga, uma peste. Houve já um filósofo que desenterrou o cadáver originário da nossa filosofia, e, ao fazer isso, despertou um mau cheiro que, se não nos assola desesperadoramente, se não nos incomodamos com ele é porque somos nós mesmos que continuamos a exalá-lo em nossos próprios corpos, em nossa mente, em nossa filosofia. Quando ele pioneiramente o desencavou esperava causar náusea, esperava que nós renegássemos toda uma tradição putrefata que contaminava há milênios nosso pensamento. Mas o fato é que já abraçávamos a carniça e o seu cheiro nos era costumeiro, mais do que isso, uma fragrância que nos agrada e com a qual nos perfumamos diariamente: o cristianismo.

Nietzsche vai desencavar a origem da filosofia ocidental num terreno que a nós sempre professa o testemunho enganador da lápide de Ciro. Passamos sempre ao largo desse pedaço de terra que, no entanto, parece esconder o nascimento do mundo inteiro: o Oriente Médio. É lá que o filósofo alemão vai encontrar o tesouro que buscava. A origem da filosofia ocidental encontrava-se nada mais nada menos do que no pensamento judaico, cujo princípio inquebrantável é ser sacerdotal, do qual seriam apenas derivações o que chama de cristianismo primitivo, em menor grau, e o nosso cristianismo atual, num grau acentuadíssimo. A conformação sacerdotal é a própria condição de ser do judaísmo: se não é sacerdótico, não é. O próprio ser só é concedido ao divino, e quem o concede ao divino 7

Alexandre avançando com suas tropas pelo território iraniano chega à tumba de Ciro, o fundador do grande império persa. Pensando encontrar ali tesouros chocou-se com a simplicidade do sepulcro encontrando apenas uma espada, dois arcos cítios e a inscrição citada.

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unicamente, é o sacerdote. É desse pensamento que deriva a filosofia dita “dos gregos”, dita “ocidental”, dita “Filosofia”. Quem concede essa instância privilegiada a ela, quem lhe concede o ser são os sacerdotes, os filósofos. Por isso, podem negar o ser, a “Filosofia”, das outras filosofias, porque foram eles que negaram há muito tempo o ser de todos os deuses, de toda a dinâmica da multiplicidade de todos os deuses para apontar o ser exclusivo do único deus, para proferir a profissão de fé da unidade divina, para professar a verdade. A verdade está na unidade. Não tão conscientes disso os filósofos atualmente professam a seguinte verdade: “Filosofia fala grego e somente grego!” Quão cristão, e quão semelhante não é da shahâda islâmica: “Não há deus senão Deus e Maomé é seu profeta.” Artigo Segundo – Qualquer participação num ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais duros para um protestante do que para um católico, mais duros para um protestante liberal que para um puritano. Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão. Por conseguinte, o maior dos criminosos é o filósofo. (NIETZSCHE: 2000, 129.)

Ao estabelecer as suas “leis contra o cristianismo”, pensava o filósofo que inauguraria a partir daí um novo calendário, um dia “da Salvação”. Sua preocupação era menos com a redenção dos homens do que com a da própria filosofia e não percebia que se utilizava também de um discurso messiânico, de levar a luz a todos os homens, tão próprio ao judaísmo de que se queria salvo. O próprio filósofo que, mais do que todos, embrenhado em sono profundo, pensa ser seu o dever de fazer acordar a humanidade.

Ao homem, entretanto, convém a crença na verdade alcançável, na ilusão que se aproxima de modo confiável.(...) Curiosidade fatídica dos filósofos, que possibilitou olhar para fora e para baixo, por uma fresta na cela da consciência: talvez o homem pressinta, então, que se apóia no ínfimo, no insaciável, no repugnante, no cruel, no mórbido, na indiferença de sua ignorância, agarrado a sonhos, como sobre o dorso de um tigre. “Deixem-no agarrar-se”, grita a arte. “Acordem-no”, grita o filósofo, no pathos da verdade. Mas ele mesmo mergulha em sono ainda mais profundo, enquanto acredita estar sacudindo aquele que dorme (...) (NIETZSCHE: 2005, 29-30)

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Para esta verdade, contudo, ninguém quer estar desperto. Há uma repulsa, convulsão, náusea, instantâneas, como as que causa a presença de um cadáver horrendo e podre: Filosofia é sempre religião.

Filosofia é sempre religião porque está sempre lidando com a crença. É a crença em determinado conceito, em sua validade, que movimenta a roda dos discursos filosóficos e que dirige seus fiéis, os filósofos, para a mesma trilha de seus profetas. O caminho em busca do Isto de qualquer filosofia é antes de tudo uma peregrinação.

De outra parte, os mitos sempre fundamentaram os discursos filosóficos. A cisão entre mito e filosofia foi um empreendimento ocidental, mas não foi um empreendimento voluntário. Há muito o conhecimento transmitido por eles já teria se perdido para que tivessem se degenerado em meras histórias de deuses, tão criticadas por Platão, cujas críticas confundem-se com um moralismo, uma correção, mas que, de fato, refletem essa mesma percepção da distância.

Além disso, deve-se sempre levar em conta que a descrença na religião é, também, própria dos filósofos, que, em qualquer cultura, são aqueles que tentam dominar o discurso, que têm consciência dos discursos, sejam eles religiosos ou filosóficos. A consciência de que o discurso religioso é só isso, discurso, e de que como discurso já se encontrava bastante inconsistente, levou o ocidente ao desapego da fé religiosa. Entretanto, ainda não acordara para o fato de que o discurso filosófico também não passa de discurso, e, por isso, houve uma mera substituição do objeto da fé. O ocidente tirou do altar os deuses e colocou o filósofo, a Filosofia.

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A fé na filosofia é um princípio da cultura ocidental. E a sua filosofia é linguagem, é o caminho da linguagem, a busca da linguagem. Ela é tão cara ao filósofo que, mesmo quando nos chegam apenas extratos fragmentários de um determinado pensador, busca-se a sua reconstituição. Qualquer palavra é importante nesta trajetória que se faz muitas vezes por uma via unicamente filológica. Heidegger (HEIDEGGER e FINK: 1973), por exemplo, distingue dois extremos na discussão do pensamento de Heráclito: a filologia pura que julga sozinha dar conta de todo o pensamento, e o filosofar instantâneo que se disfarça em muito pensar. Entre os dois diz haver uma terceira via que deve buscar na tradição a compreensão, o sentido e a interpretação.

A linguagem no percurso filosófico do ocidente é um caminho, ou melhor, o caminho. Para as filosofias orientais que estudaremos a seguir a linguagem é um obstáculo, ou melhor, o obstáculo. Mesmo sendo ela sempre obstáculo e, em todos os lugares, caminho.

Nem sempre o caminho mais fácil é o mais rápido; nem sempre o mais longo é o mais difícil. E tomar o rumo da linguagem é caminho costumeiro de todos os homens, demorar-se em suas paragens constitui-se mesmo um vício de linguagem. Difícil é levitar, é não ser incomodado por pedras, é não se iludir com a falsa impressão de possibilidades que a encruzilhada dá. Difícil é tirar os olhos do caminho, do chão. Este é o caminho mais curto, porém. Este, que é o caminho mais difícil.

Empenho mais acurado com a linguagem é procurar evitá-la. É, fazendo-a aparecer, resistir a ela. Mostrar que é um empecilho, não uma via. É por esse motivo que é muito difícil estudar as filosofias ditas orientais. Não porque elas trabalhem com a linguagem de modo a torná-la inacessível, mas porque a própria linguagem dificulta o acesso.

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Entretanto, assumimos que mesmo esse cuidado com a linguagem é um cuidado com a linguagem. Pensamento é linguagem. A linguagem é tudo o que nos é possível, é tudo o que conhecemos. Os mitos, a religião, a filosofia, a ciência, e mesmo a descrença em tudo isso é sempre linguagem.

Todo pensamento é linguagem. Quando se afirmou anteriormente que o Isto da filosofia ocidental era a linguagem, havia o intuito de se chamar atenção para o seu percurso, o seu caminho e a sua busca. E, esse buscar da linguagem revela-se como perseguição, infinitamente seguindo os passos de uma tradição em direção à superação pela linguagem.

Na tradição do pensamento ocidental, o cuidado com a linguagem dá-se no cuidado como cultivar, acolher, resguardar do logos; crê-se no logos como lugar onde habita a verdade e não é por acaso que o mito no ocidente cedo se transformou em logos. Em textos filosóficos do Budismo ou Taoísmo, o cuidado com a linguagem é o cuidado de quem se resguarda do seu domínio.

A possibilidade de linguagem deve necessariamente pré-existir sua descoberta e uso. Seu ponto de partida recai, não na mudança de costumes, mas em princípios eternos. O rol de nossas possibilidades de conhecimento é determinado pelos limites da linguagem. (DANIÉLOU: 1987, 252)

A certeza de que os limites da linguagem impõem limites ao pensamento, ao próprio conhecimento, leva o sábio a desejar transcender a linguagem. A linguagem é o caminho, a via por onde almeja chegar à superação o filósofo. Ao pensar escolher o caminho a seguir, não percebe que caminha pelo único caminho possível. Um caminho que, longe de levá-lo ao lugar que procura, cerceia os seus horizontes. Ao pensar escolher o caminho, o filósofo imagina-o pleno de possibilidades, como via de infinitas possibilidades. Assim, não tira os 27

olhos do caminho, não sabe se percorre tranquilas pradarias floridas ou desertos áridos e tempestuosos. Ao pensar que escolhe o caminho, pensa que é o guia e não que é guiado, como um cego que não tirasse os olhos do chão.

A crítica feita a Platão ao longo dos séculos tem se revelado infrutífera com relação à tentativa de superação da ideia. Localiza-se a origem do pensamento abstrato, discutem-se seus efeitos na trajetória do pensamento ocidental, busca-se o resgate de um modelo originário, mais concreto, através dos mitos. Mas não se chega a reconhecer que o resgate é debalde, pois não se questionou a origem de toda abstração que mora na linguagem. Os mitos são, de fato, o que mais se aproxima de uma experiência concreta (ou, talvez, apenas não nos tenha chegado a totalidade de suas abstrações), mas, ao tentar resgatá-los, o filósofo tende a fazê-lo com uma linguagem racionalizante, com investigações etimológicas, históricas ou, mesmo, mitológicas. Portanto, o mito já há muito se tornou o que talvez sempre tenha sido: logos.

Mito é logos porque o mito diz. Dizendo, o mito pronuncia-se. O que diz o mito? Quando essa questão é feita acerca dos mitos fundadores do ocidente, torna-se muito difícil de ser pensada.

Ainda não se atentou para o fato de que mesmo o mais "concreto" dos discursos ainda é linguagem, a mais "concreta" manifestação da linguagem é fenomênica. Como dizer e mostrar, o fenômeno não exclui o dizer, não é livre do dizer. É bem difícil ver (justamente porque é o ver que está em questão), mas, mesmo no mostrar não há concretude. É essa confusão que faz com que vejamos concretude nos mitos, que vejamos concretude nas origens do pensamento ou no Oriente.

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É claro que, comparado à nossa forma de dizer, de ar-ti-cu-lar pensamento, um discurso do Budismo ou de tempos anteriores parecerá mais concreto. Mas só o que todos eles são: discurso. Sobre as origens não se pode saber mais do que aquilo que elas nos trazem de ecos, mas o pensamento budista tem consciência disto, não pretende fugir da linguagem, sabe que isso não é possível, pois é ela que determina e limita o caminho do próprio conhecimento, mas seu cuidado e desconfiança com ela é que são, digamos, mais "concretos".

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IV - OS CAMINHOS DA LINGUAGEM

Em diversas escolas filosóficas do Budismo, o conhecimento percorre etapas que vão do mais baixo, mais elementar, e, por isso, mais acessível – transmitido por meio do fala – passa pelo estágio do gesto, até chegar ao silêncio. Não devemos cair na fácil armadilha de comparar esta instância ao hermetismo em que se movimenta grande parte dos discursos filosóficos, porque, no fundo, eles muitas vezes se revelam apenas como um jogo de palavras: quem detém as regras básicas de seu esquema pode "decifrá-lo", além disso, podem ser, algumas vezes, apenas uma espécie de idioleto de cada filósofo.

Coloquemos, desse modo, lado a lado, dois discursos, dois extratos filosóficos originários:

O Discurso da Flor Nos tempos antigos, em uma reunião no Pico do Abutre, Buda apanhou uma flor e mostrou-a para a multidão. Todos permaneceram em silêncio, exceto pelo santo Kashyapa, que abriu um sorriso. Buda disse: “Eu tenho o tesouro do olho da verdade, a inefável mente do nirvana, o mais sutil dos ensinamentos da aformal forma da realidade. Isto não é definível em palavras, mas é transmitido fora das doutrinas. Eu o confio a Kashyapa, o ancião”.

Fragmento 50 Ouvindo não a mim, mas ao logos, é sábio dizer: tudo é um.

É bem grande a diferença dos discursos. No primeiro texto, tudo o que se acrescenta ao primeiro enunciar – que é o gesto – se contrapõe a este, é para se contrapor a este, para validálo ainda mais pela ausência de discurso. O discurso proferido por Buda vai de encontro ao gesto. É puro logos, pura enumeração de diversos conceitos sobre a Verdade, sobre o Isto. Ao

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dizer "olho da verdade", "inefável mente do nirvana", "mais sutil dos ensinamentos", "aformal forma da realidade", Buda não está querendo ratificar o gesto anterior pela afirmação, definição, conceituação de seu sentido. Mas pela anulação da validade desses mesmos conceitos, todos surgidos anteriormente ao ou com o Budismo, mas todos adjetivos.

De modo bastante distinto, a inserção de elementos adjetivos no texto de Heráclito é para ratificar através de cada novo conceito adjetivante, com afirmação de validade desses conceitos. Tem-se nesse caminho a logia do logos, impregnando-se cada vez mais de linguagem, embrenhando-se cada vez mais em suas trilhas que apenas dificultam o acesso.

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V - O JOGO

Já se chegou a dizer que entre os pressocráticos ainda não haveria conceitos. Eles teriam surgido a partir de interpretações posteriores. Mas, na verdade, essa questão dos conceitos surge daquela opinião de que haveria uma linguagem concreta, não abstrata, não baseada em conceitos. Assim parte-se em busca dos substantivos numa linguagem que sempre é, e só pode ser, adjetiva. A linguagem, portanto, é sempre conceitual. Mesmo os gestos do Zen são conceitos, tanto que eles se cristalizaram, são utilizados, podemos citá-los. Como citar o concreto das coisas? Como retirar da linguagem seu caráter abstrato?

Não podemos, dessa forma, concordar com Hegel sobre a natureza substancial dos pensadores originários. O que, dessa forma, teriam originado, se o percurso seguido pelos seus sucessores foi o da conceituação? Por termos consciência de que toda linguagem é abstrata, admitimos os conceitos pressocráticos. Logos, alethea, panta, não são conceitos? Sua investigação não é também sempre conceitual?

Pode-se identificar no Fragmento 50 de Heráclito, um conceito: o Uno. Mais do que isso, o uno que brota da aproximação de opostos, e igualmente, da oposição de elementos próximos e e da identificação de elementos distantes. Não só há unidade entre Tudo e Um, como há unidade na diferença entre o Eu e aquilo que pronuncia – o Logos. Entretanto, diversas foram as interpretações sobre o que seria o Logos. A dicotomia estabelecida entre o "não a mim, mas ao logos" talvez seja o que há de mais perturbador nos textos de Heráclito.

Ouvindo não a mim, mas ao logos. Tem-se aí também um gesto, uma postura como de quem aponta. Entretanto, a simplicidade do gesto não se basta a si mesma. A inserção de

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outros elementos, a produção de mais discurso, causa tanto aclaramento como obscurecimento. É própria aos discursos filosóficos a explanação, o cuidado em deixar claro; e, ao mesmo tempo, todo este esforço traduz-se muitas vezes como jogo com as palavras, como aproximação de opostos, analogias, comparações, refutações. Afirmar os opostos, pôlos lado a lado é um exercício recorrente, que, apesar de simples, dá a um texto a aparência de coisa hermética, misteriosa, sutil.

No entanto, este fragmento é feito de respostas, tudo é dado, tudo está categoricamente estabelecido, mas, apesar disto, não é um discurso que se pode perceber com um sorriso. É obscuro, causa discussões, diferentes interpretações. O jogo com as palavras é o causador deste efeito. Quando se percebe isso, e se percebe que é apenas uma questão de distinção e aproximação de elementos que se querem opostos, percebe-se a chave para compreender este tipo de discurso.

Uma negação que leva a uma afirmação: as duas juntas são unidade: tudo é um. Para se chegar a esta conclusão deve-se negar a unidade entre o Eu e o Logos, entre o ato de ouvir a mim e o de ouvir ao Logos. Mas os dois são um – tudo é um. É uma incoerência de Heráclito?

Não. É um jogo.

Num jogo de xadrez as peças brancas e pretas também vivem essa tensão dilatada entre aproximação/anulação X distanciamento/ afirmação. Estaticamente, o jogo é só um tabuleiro com peças brancas e pretas que ocupam limites demarcados. Esteticamente, essas peças articulam-se. Ora joga-se de um lado, ora de outro do tabuleiro; ora com peças brancas, ora

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com pretas. Tanto faz, basta virar o tabuleiro. Qual o sentido de se diferenciar peças brancas de pretas? Qual o sentido em aproximá-las?

O discurso oriental, após examinar peça a peça, e cuidar a respeito de cada categoria do jogo, assim como fez e vem Fazendo o discurso do pensamento ocidental, cansou-se do jogo; o discurso da flor assinala para o movimento de guardar as peças, juntas, no mesmo lugar, no lugar de sempre. Restou a percepção de que o jogo existe e de que o jogamos exaustivamente. O fato de analisarmos meticulosamente suas peças desvia a nossa atenção para o fato de que estamos apenas jogando, sendo dominados por um jogo em que não estamos de modo algum vencendo.

Inúmeros são os fragmentos de Heráclito que se constroem a partir de aparentes oposições. A aproximação de contrários forma o paradoxo. Mas o paradoxo é apenas aparente, uma mera questão de ausência de determinantes ou de referentes que, se recuperados, poderiam tornar as mesmas sentenças, antes obscuras, em inconsistentes do ponto de vista filosófico. Sobre isso, aponta-nos Barnes (1982, 74) um fragmento que dá testemunho da construção de seus paradoxos: Fragmento 61 A água do mar é a mais pura e a mais impura das águas. Peixes podem bebê-la, é saudável para eles; para os homens ela é insalubre e destrutiva. (Grifo nosso)

Se dele houvesse restado apenas: "a água é pura e impura, saudável e insalubre" estaríamos diante de mais um paradoxo. Mas será que paradoxo é simplesmente esse arranjo totalmente lógico de opostos? A doxa realmente não compreende tal aproximação? Isso realmente habita fora da doxa? A noção de contrariedade não é por si só um conceito dos mais abstratos?

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O paradoxo do pensamento originário grego é baseado numa lógica bastante precisa. Seu sentido paira sempre sobre termos adjetivos, na maioria das vezes sem referentes. A obscuridade reside em não se saber sobre o que realmente se fala. Daí todo aquele esforço filológico que não vê outra saída senão tentar recuperar a substância contida em termos adjetivos.

A linguagem, como já dissemos, é sempre adjetiva. Não é de adjetivo e substantivo como classes gramaticais que se está falando. As categorias gramaticais de substantivo e adjetivo são altamente arbitrárias. Não é por aparentemente não permitir pares de oposição que o substantivo guarda em si uma concretude que o adjetivo não possui; não é por aparentemente permitir pares de oposição que o adjetivo carece de concretude. A própria noção de oposição e aproximação é em si uma noção arbitrária.

E, no entanto, ambas as arbitrariedades

obedecem a uma lógica. É tão lógico aproximar Tudo de Um, quanto afastar Eu (a mim) de Logos. Pensamos que é tão lógico opor adjetivos quanto seria ilógico opor substantivos. Jamais abandonamos a lógica de nossas categorias arbitrárias.

Ao contrário, "não há solução lógica às palavras paradoxais e ações estranhas que se introduziram na escola Zen do sul da China." (DUMOULIN: 1969, 99), não é uma mera questão de aproximação ou afastamento de adjetivos vazios de referentes. Não se trata mais de obedecer às categorias gramaticais de substantivo e adjetivo. Trata-se agora de revelar a inconsistência da linguagem como um todo, a ausência de lógica. Nesta desconstrução, é a própria linguagem, sempre adjetiva, que serve ao jogo de oposição e aproximação, é através dos discursos, com os discursos e pelos discursos que o processo se dá.

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Exemplos de como a desconstrução do raciocínio lógico se dá no discurso Zen são as respostas dadas pelo mestre Chao-chou a discípulos que lhe vinham com questionamentos metafísicos:

Quando o corpo se decompõe por inteiro, resta aí uma coisa, a alma eterna. O que então acontece com ela? O vento está soprando novamente esta manhã. (In: IDEM: Ibdem, 100)

O paradoxo Zen é proposto pela própria natureza paradoxal de todo e qualquer discurso. Ou:

Uma grande zombaria de todas as regras da lógica. Geralmente, o discípulo Zen primeiro procura resolver o problema intelectualmente. Mas isso se prova impossível. (...) tal assalto contra os muros da razão humana inevitavelmente dá surgimento à desconfiança em qualquer percepção racional. (In:IDEM: Ibdem, 130)

O discurso proferido pelas escolas do Budismo Zen quer descortinar sua própria incongruência, revelar sua fragilidade. Mas é muito difícil perceber isto. Não é com um niilismo instantâneo que se pode disciplinar a linguagem, desmascará-la. É preciso muita linguagem para fazê-la aparecer. É preciso muita linguagem para fazê-la desaparecer. Um lendário episódio que revela o surgimento da cisão dentro do Budismo Zen na China, inaugurando duas escolas – a do norte e a do sul – nos mostra como o trabalho com a linguagem, mesmo quando se quer evitá-la, é árduo, e, por menos que se diga, extrapola-se o seu uso: Hung-jên ordenou todos os discípulos a compor um gatha (estrofe ou verso) com a finalidade de revelar ao mestre seu grau de iluminação. Desta forma, ele planejava descobrir um sucessor a quem passar a insígnia patriarcal. Destaque entre os discípulos naquele tempo era Shên-hsiu (606-706), que, em vista de seus companheiros, merecia a sucessão. Shên-hsiu,

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entretanto, apesar de bem versado nos sutras, estava ainda longe da iluminação. A demanda de seu mestre tomou-o de uma aura de profunda apreensão. Mas, finalmente, ele produziu um gatha, e à noite escreveu-o na parede do salão do monastério: O corpo é a árvore Bodhi (iluminação), A mente é como um límpido espelho suspenso. Cuide em poli-lo todo o tempo, Não permita nenhum grão de poeira assentar. Na manhã seguinte, os outros discípulos leram as linhas com admiração e secretamente pensaram que a sucessão estivesse definida. Na presença de todos, Hung-jên elogiou a composição, mas, privadamente, disse a Shên-hsiu que o poema não mostrava nenhum sinal de iluminação e sugeriu que escrevesse outro. Estas linhas estavam destituídas de contradição lógica e poderiam ser prontamente interpretadas resolvendo-se as duas alegorias; elas não eram, portanto, aceitáveis como uma expressão de verdadeira iluminação. Neste momento, um jovem de pouca ou nenhuma educação chamado Hui-nêng (638-713) estava vivendo no monastério. Ele viera do sul da China oito meses antes e pedira ao mestre admissão no círculo de discípulos, mas tinha ficado encarregado, em vez disso, de cortar madeira e pilar arroz, apesar de o mestre ter imediatamente reconhecido sua extraordinária capacidade intuitiva e intelectual. Este rapaz ouviu sobre o gatha, e, como não soubesse ler ou escrever, ele pediu para que o lessem a ele duas vezes. A partir daí formulou uma segunda estrofe e pediu que esta também fosse escrita na parede. Estas foram as linhas:

Bodhi não é como uma árvore, O límpido espelho não está suspenso em parte alguma. Fundamentalmente nada existe; Onde então um grão de poeira se assenta? A admiração de todos os discípulos pelos versos do camponês iletrado foi sem limites. E, mesmo assim, o mestre foi reservado em seus elogios. Ele apagou as linhas, Dizendo que Hui-nêng também ainda não havia alcançado a iluminação. Mas, secretamente, convocou-o em seus aposentos à noite e conferiu a ele a insígnia patriarcal. Depois ordenou que fugisse para o sul, pois temia a inveja de Shên-hsiu e dos outros discípulos. (In: IDEM: Ibdem, 81-82)

Desta anedota percebe-se o cuidado com a contradição lógica. Mas não apenas uma contradição lógica baseada numa lógica a priori ou, pior ainda, no senso comum. Ela não pode ser passível de ser recuperada. Porque não há lógica a priori; todo discurso é carente de lógica; lógica também é uma abstração, uma arbitrariedade, isto é, mais um nome, mais uma categoria da linguagem.

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É isto que se quer fazer aparecer, e não, com um aparente paradoxo, firmar conceitos apoiados numa lógica, ou firmar a própria validade desses conceitos pela desconstrução de sua lógica (que sempre se assume como existente). A lógica no discurso pressocrático não está em jogo. A linguagem é sempre lógica, por isso, pode criar jogos que a escamoteiem. A linguagem é sempre ilógica, por isso, o Budismo Zen a quer revelar, fazendo-a aparecer.

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VI - O GESTO

O Discurso da Flor integra o conjunto dos chamados Koans, da escola do Budismo Zen. "Koans", cujo significado estrito é "causas públicas", "causas a serem julgadas", são histórias, exemplos, diálogos, questões, postulados, da tradição Zen. São grande parte da obra filosófica desta escola, que surge na China com a aproximação do Budismo chegado da Índia com sistemas autóctones como o Taoísmo. Na China há uma máxima que diz "A sabedoria de um pensador se mede pela sua capacidade de dar um exemplo" (Cit. in: PINTO, Gustavo. "Prefácio". In: I Ching: 2003, xiv). Os exemplos são a base do pensamento de diversas escolas orientais.

História exemplar, paradigma, fábula. Nenhum destes gêneros de narrar manteve-se com prestígio no ocidente. Nem como literatura, menos ainda como filosofia. Sua característica fundamental é o didatismo e o didatismo vigora como gesto de apontar um caminho. Sobretudo, apontando, mostrar que é caminho, com obstáculos. Sobre o gesto de apontar disse um mestre Zen que: "O dedo serve para apontar a lua; o sábio olha para a lua, o ignorante, para o dedo".

Em se tratando de filosofias orientais, não devemos nos ater ao dedo que aponta. Espantarse com o risível, o prosaico ou a crueldade desses textos é assumir a postura do néscio. Os néscios riem das situações cômicas das fábulas, divertem-se com a fala dos animais, ou dos rios e das plantas, e não percebem que ali, por trás da árvore, no fundo do rio, jaz o discurso. Um discurso tão elaborado quanto perigoso, pois, na medida em que ele ilustra a armadilha da linguagem, ele pode conscientemente atrair para essa arapuca. Cabe assim, a quem se depara com este tipo de discurso, puxar a corda e ficar preso, ou não a puxar e escapar.

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Ao lermos os koans, encontramo-nos diante de armadilhas. Seus textos, todos desta natureza, são um exercício de linguagem. Uma prática de disciplina da linguagem. Em todas elas perpassa a noção de que se devem evitar os discursos, de que se deve buscar a sua cessação. Ora, como uma escola filosófica pode seguir esta via?

Não seria mais fácil, mais coerente, nem mesmo se fundar como filosofia, abandonar este ofício? Não. Não seria mais fácil, mais coerente, isolar-se numa alta montanha ou numa profunda e escura caverna? Não. Assim não se evitariam, de modo mais radical, todos os discursos? Não.

Somos linguagem e a linguagem é sempre discurso. Todos os nossos atos, até mesmo o menor dos gestos nascem com ela. O gesto de apontar ou de se mostrar uma flor, por mais concreto que pareça, é discurso. Com ele há o que ele mesmo enuncia, e tudo aquilo que já foi enunciado, tudo aquilo que ele, como inaugurador, rejeita, quer abandonar, quer apontar. Mostrando-se a flor, mostra-se tudo o que não é flor e nisto mora muito mais discurso do que se pode perceber à primeira vista.

É uma escolha, uma via, um caminho. Kashyapa, que é o segundo da linha patriarcal da escola Zen, consegue perceber, não a flor, mas todo o caminho seguido para mostrá-la, ele é o único que consegue perceber o discurso, por isso, a ele se confia, já é confiado desde então, todos os ensinamentos.

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Não há hermetismo aqui, não há um exercício virtuoso da linguagem. O gesto de mostrar e o silêncio que o complementa são o que há de mais simples, de mais acessível. Entretanto, apenas um discípulo compreendeu. E, novamente, o mestre Zen nos diz: "o sábio olha para a lua, o ignorante para o dedo". Contemplar a flor é olhar para o dedo que aponta.

Quase sempre que um pensador ocidental volta-se para o estudo de sistemas filosóficos de outras tradições é para a flor que está olhando, e assim classifica-a de "bela", "ingênua", "simples", "pura", "concreta", "impossível". Pega a flor e a analisa à luz de seu próprio percurso, de suas doutrinas. Mas, antes que ele o faça: é a flor que o permite. Mesmo a mais concreta manifestação permite o uso, a aplicação e adequação.

Ao contrário, a experiência, que concentra a harmonia do gesto e do silêncio, só ocorre aí neste koan, é um princípio do Zen, não pode se dar em nenhum outro contexto. É fácil tomar uma flor nas mãos, retirá-la de seu lugar original e usá-la como ornamento, depô-la em um vaso ou pisar sobre ela. Com o discurso da flor isso não é possível. Os que tentam fazer isso recaem em erro. E este parágrafo talvez seja um erro. Não sorrir simplesmente já é errar, como sorrir.

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VII – O EQUÍVOCO

Se, mesmo quase puro de linguagem, o discurso ocasiona mal entendidos, incompreensões, equívocos, o que não ocasiona uma filosofia que tem somente na linguagem e no trabalho com ela, todo o seu fundamento e superficialidade?

Até certo ponto, o verdadeiro pensamento filosófico tem que ser de difícil compreensão quando se considera a totalidade de seu alcance e de suas implicações. Ainda que enunciado com absoluta claridade e a mais precisa coerência lógica, permanece fugidio. (ZIMMER: 2005, 30)

(...) A Antigüidade possuía todo o texto de Heráclito – não apenas os poucos e incompletos fragmentos e referências ocasionais que chegaram até nós – e já então ele era conhecido como "o obscuro"; entretanto, na literatura ocidental, Heráclito é o primeiro mestre das frases incisivas e dos aforismos claros e sucintos. (ZIMMER: 2005, 30-31)

Esta incompreensão, que se enraíza na linguagem, nasce, porém, de um contexto bem mais específico: na linguagem escrita. A inevitável fixação de toda tradição filosófica cria a impressão de que ela é como a flor, que pode ser arrancada de seu lugar e transportada. Quando, na verdade, nem mesmo a flor poderia ser retirada, se pensarmos radicalmente. A filosofia escrita leva à incompreensão de que não é experiência de discurso, exercício dinâmico do discurso, mas postulados estáticos, válidos eternamente, pois são a verdade afirmada pelo documento.

O filósofo vive iludido com a sua linguagem, acreditando nela como verdadeira, como genus da verdade8. E, quando ele, ou outros, escrevem esta verdade, passam a viver iludidas

8

A afirmativa, que aponta de modo tão genérico, não pretende ser a enunciação de um preconceito, nem pretende, muito menos, dar conta de toda a filosofia de todos os filósofos. Nem é preciso. Não é preciso que se acumule um vasto conhecimento da obra de todos os filósofos – além de desnecessário, impossível. É preciso que o filósofo, e, não só ele, que todos os homens, andem iludidos com a linguagem: só assim a enunciam, só

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as gerações futuras. E, quanto mais distante da enunciação da verdade, mais difícil parece o texto filosófico, quanto mais longe da escrita do texto filosófico, mais cristalizada torna-se a sua linguagem, o que, consequentemente, cria a ideia de dificuldade, hermetismo.

Não acontece isso a todos os fragmentos heraclíticos? Já há muito não foram arrancados de seu lugar de origem para ilustrarem obras que lidam com questões completamente diversas religiosa e filosoficamente? E, mesmo os que tentam "salvar" o discurso pressocrático, que tentam replantá-lo, num movimento ecológico de reflorestar a Grécia, não o fazem também segundo suas especulações sempre arbitrárias acerca da religião, dos mitos e do pensamento grego? Por isso, com humor evidencia Barnes (1982, 57): "A verdade é que Heráclito atrai exegetas como um pote vazio de geleia atrai abelhas; e cada abelha discerne traços do seu sabor favorito".

Afirmações como estas são fruto dessa espécie de maldição que se atrela aos textos escritos. Eles viram objeto de uso, e os objetos ficam obsoletos, empoeirados, obscuros, rotos ou mesmo vazios. A filosofia que se escreve é como o cadáver que monta o dorso do rei e o obriga a ir por um caminho que não quer, que o desagrada, decifrando seus enigmas. Este exemplo é o tema de uma obra da literatura indiana, Vetalapancavimsatika ("Vinte e cinco [histórias] do vetala") que se encontra no Kathasaritsagara ("Oceano dos Rios de História").

"Vampiro" é a tradução de mais fácil entendimento para o termo do sânscrito vetala. De fato, vetala é uma raça de demônios, que nesta história se apodera do cadáver de um enforcado e o anima, de modo que deve ser conduzido nas costas do rei, de um extremo ao outro do cemitério, enquanto lhe vai contando uma história, sempre exemplar, que provocará

assim a correspondem, só assim a fazem aparecer, só assim pretendem fazê-la desaparecer, ou pensá-la, ou escamoteá-la, ou purificá-la, ou concretizá-la, ou consertá-la, ou concertá-la, ou...

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uma questão a ser respondida corretamente pelo rei. O rei a responde adequadamente e o cadáver desaparece de seus ombros para voltar à árvore de onde pendia anteriormente. E, assim, novamente o rei deve voltar para transportá-lo até a outra ponta do campo de cremação.

Somos muitas vezes os que procuram responder de maneira adequada a questões impostas por uma filosofia morta. Se correspondemos, ela nos atira de volta ao ponto de partida para que sempre a sustenhamos nas costas por mais um tempo. Se não respondemos adequadamente, corremos o risco de ter a cabeça explodida – pois é com isso que o vampiro ameaça o rei.

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VIII - O GESTO IMPOSSÍVEL

Heráclito foi o primeiro pensador do ocidente a se deparar com a mutação. A notar que as coisas estão em constante fluxo, constante mudança, mas todas são o mesmo: Tudo é um.

Mas, numa prática que se estabeleceu como marca de nossa cultura, estas constatações, já desde Heráclito, são vistas sempre de fora, objetivamente, como se parando o movimento da terra, dos seus elementos, do fluxo. A busca do Isto na filosofia ocidental dá-se sempre para fora, como objeto de análise. O filósofo pensa que pode se retirar por uns momentos da roda do mundo para pensar seus elementos e fenômenos, mas não pode. Primeiro, porque eles estão em eterna mudança, e, como tais, são tão fugazes quanto eternos. Fugazes, escapam-nos à percepção; eternos, transcendem-na. Segundo, porque somos tão eternos e fugazes quanto aquilo que pensamos reconhecer como eternos e fugazes.

Nesse sentido, lá atrás na história do pensamento grego, já houve um pensador que questionou Heráclito, proferindo um tipo de discurso tão mais próximo do pensamento oriental quanto distante de nós. Cratylus pensou a impossibilidade da linguagem, dizendo que sobre qualquer coisa nada se deveria dizer, apenas mover o dedo. E reprovou Heráclito por ter dito que não se pode pisar o mesmo rio duas vezes pela própria impossibilidade de pisá-lo mesmo por uma única vez.

Se atentarmos ao gesto inicial do Fragmento 50, veremos que ele aponta para algo que está muito próximo – há o eu que aponta o logos. Mas desse apontar não surge uma proximidade como a do dedo que, apontando a lua, coisa longínqua, parece tocá-la ou cobri-la em todas as suas dimensões. Dando a impressão de que ela pode se reduzir à dimensão de uma polegada.

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Apontando o que está extremamente próximo, Heráclito o distancia a uma distância lunar. O eu e aquilo que eu profiro – o logos – não dizem o mesmo. Essa é uma questão que atenta para a própria impossibilidade de se apontar para as coisas. É dela que vai surgir a constatação de que nada é transitório nem permanente, porque não se pode apontar para nada. Tudo está muito próximo do dedo que aponta, ou extremamente distante. E a tudo o dedo reduz às suas próprias dimensões.

Reduzir às suas próprias dimensões é o caminho inevitável de quem olha para algo. Um ponto aponta sempre um ponto numa reta. Uma reta aponta sempre uma reta num polígono. Estamos limitados pelas dimensões que constituem nossa natureza física e pelo caminho traçado por nosso pensamento. É impossível apontar para qualquer coisa: corremos o risco de apartá-las demais de nossa proximidade (num empenho altamente artificial, próprio da ciência) ou de reduzi-las ao nosso esparso entendimento, que nesse âmbito possui as dimensões de um dedo.

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SEGUNDA PARTE

I: TAT TVAM ASI: O ISTO QUE SE APONTA NO HINDUÍSMO VÉDICO

i) O antigo caminho, extremamente estreito e extenso, e a estreita esfera do conhecimento

Neste capítulo buscaremos o Isto que brota no Hinduísmo védico, mais precisamente nas Upanishads, que, a partir de seu aparecimento, passaram a constituir propriamente o saber hindu. De fato, elas dividem com o seu surgimento a religião hindu. Assim, chama-se "Brahmanismo" a religião própria dos Vedas, e "Hinduísmo", propriamente dito, a religião desenvolvida a partir dos textos upanishádicos:

Apesar de os hindus considerarem toda a literatura védica como fundamento de sua tradição, na prática, os Brahmanas e Aranyakas, e, até mesmo, a maioria dos hinos do Samhita, são agora do domínio de especialistas. Mas as Upanishads ainda são amadas, estudadas e tratadas como guias para a vida pelos hindus até hoje, talvez mais do que qualquer texto exceto o Bhagavadgita. (ROEBUCK: 2003, xix)

O que vem a ser este saber introduzido pelas primeiras Upanishads no contexto do Hinduísmo védico dos primeiros hinos aos deuses? E, principalmente, qual a pertinência para o nosso estudo do Isto o conhecimento de alguns extratos das principais Upanishads?

Sua importância está na linguagem que elas inauguram, pois elas inauguram a própria linguagem (Linguagem) na filosofia indiana, quiçá na grega. Elas também – aliás, de modo inédito – fazem aquele movimento de abandono do pensamento cosmogônico para pensar questões mais próximas do humano, de sua condição – a Linguagem. 47

Alguns, entretanto, consideram esta linguagem ainda bastante aformal, inconsistente, revelando uma ausência de reflexão propriamente filosófica. Para eles ainda não poderia ser considerada filosofia de filósofos, que ainda seriam, nas palavras de Radhakrishnan e Moore (1957, 37), "veículos mais de uma iluminação espiritual do que de uma reflexão sistemática".

Esta, mesmo se referindo especificamente às Upanishads, é aquela mesma visão, que insiste em permear os estudos filosóficos, de que as filosofias orientais seriam a-históricas e assistemáticas. Estudos filosóficos tornam-se, portanto, estudos culturais, baseados em noções de raça, genialidade, "povo eleito". Não se ouve, não se vê, muito menos se chega a perceber o sentido próprio desses textos, e o grande motivo é: não se quer ouvir, não se quer ver, nem perceber coisa alguma – isto poria em risco o chamado "milagre grego", que, já sabemos, advém de outra parte.

A afirmação feita na introdução deste trabalho de que tudo é discurso e de que todo discurso trava sempre um combate com outro, do qual muitas vezes não temos referência, torna-se ainda mais válida no tocante ao início dos estudos orientais feitos por pensadores ocidentais. O “Orientalismo”, inicialmente, apresenta-se, na verdade, como uma grande querela entre estudos clássicos e indologia. E o vencedor já nos é bastante conhecido.

Zimmer nos conta que, em seus tempos de estudante de filosofia, falar em filosofia indiana era tão absurdo como dizer "madeira de ferro". O único a se aventurar pelos caminhos dessa disciplina foi um professor seu que teria sido discípulo de Schopenhauer. Este discípulo, no entanto, talvez estivesse apenas influenciado por um eufórico e acalorado Orientalismo Romântico, abundante também em visões preconceituosas, e cuja infeliz contribuição foi instituir o termo "sabedoria" para se referir ao pensamento oriental.

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Entretanto, "pode-se referir à sabedoria dos animais, mas não à sua filosofia. Pode-se referir à sabedoria da natureza – mas não à sua filosofia. Sabedoria significa algo mais instintivo que filosofia, menos rigoroso e sistemático – em suma, menos racional."(McEVILLEY: 2002, 650)

E esse preconceito funda-se numa cega confiança na escrita. Ora, no mínimo já não mereceria atenção a "paradoxal" disciplina (Filosofia Oriental) por legitimar e incentivar a desconfiança na escrita. Mas a questão é mais profunda. Por desconfiarem da escrita, os textos orientais não confiam a ela todos os seus ensinamentos, ou o fazem de maneira velada na mais obscura simplicidade. Isto faz com que imaginemos não haver filosofia, foi isso que levou AlBiruni a escrever:

Os hindus não possuem homem desta qualidade [referindo-se a Sócrates] capaz e pronto para elevar as ciências a uma clássica perfeição. Por isso, muitas vezes você percebe que mesmo os chamados teoremas científicos dos hindus encontram-se num estado de grande confusão, destituídos de qualquer ordenação lógica, e, em última instância, sempre misturados às ingênuas noções do povo. (AL-BIRUNI: 1983, 11)

Nascido no século X d.C., no território persa de Khwarizm (atual Khiva), o mesmo do matemático que leva seu nome e que, através da língua árabe, nos legou a palavra "algarismo", Al-Biruni expressa uma reação que se pode esperar e justificar até mesmo pelo seu meio, que estava impregnado de pensamento matemático. Conhecia várias línguas (árabe e persa profundamente, e, além de seu dialeto local – o khwarizmi – hebraico, sânscrito e siríaco); era leitor de Platão e outros mestres gregos através de traduções árabes e siríacas; escreve toda sua obra em árabe, língua científica de então. Confiava na ciência e confiava na linguagem, sobretudo na linguagem escrita, por isso não podia perceber que as "ingênuas noções do povo" nos textos orientais cumprem determinadas funções, não são para serem tomadas ao pé da letra. Ele não tinha a menor noção de que: 49

Fábulas, histórias e piadas têm sido utilizadas por filósofos por milhares de anos como meio de transmitir ideias e impressões à mente receptiva. São particularmente úteis para sutilezas que não são bem traduzidas pela lógica formal, e para causar uma impressão direta, evitando preconceitos intelectuais na mente do leitor. (CLEARY: 2003, 53)

Entretanto, o texto de Al-Biruni, mesmo pecando às vezes por falta de percepção como esta, ainda dista muito de estudos modernos, não só pelo tempo em que foi escrito. Seu texto, de um muçulmano medieval (duas informações que para o preconceito imperante são sinônimo de tudo que é retrógrado e bárbaro), demonstra na maioria das vezes um respeito e uma curiosidade de busca que não temos demonstrado com a tradição oriental até hoje, das alturas de nosso moderno ateísmo9.

Como aconteceu ao Rio da fábula taoísta a seguir, atribuída a Chuang Tzu, após ouvir algumas grandes verdades, julgamo-nos inequiparáveis em conhecimento, técnica, ciência, filosofia.

As cheias de outono Na época das cheias de outono, centenas de regatos afluíram para o rio. Ele tanto se avolumou em seu turbilhão, que era impossível, da margem oposta, ou das pequenas ilhas, distinguir uma vaca de um cavalo. Então, o Espírito do Rio rejubilou-se por abrigar em si toda a beleza da terra. Rio abaixo, fez sua jornada para o leste, até tocar o Mar do Norte. Lá, mirando a Oriente e não vendo limites à sua vasta expansão, sua aparência começou a mudar. Contemplando suas águas, suspirou ao Deus do Oceano: "Um conhecido provérbio diz que aquele que ouviu algumas verdades considera-se inigualável em sabedoria. E tal homem sou. Antes, quando ouvia pessoas menosprezando a erudição de Confúcio ou subestimando o heroísmo de Po Yi, eu não podia acreditar em meus ouvidos. Mas, agora que eu estou consciente da tua inexaustibilidade – pobre de mim! Não tivesse eu 9

Curiosamente, McEvilley nos indica um outro pesquisador islâmico, o filólogo Darah Shukoh, que, já no séc. XVII de nossa era, estudou séria e respeitosamente as Upanishads, referindo-se à mensagem nelas contida como "o Grande Segredo". (McEVILLEY: 2002, 652)

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alcançado a tua morada, teria para sempre servido de piada estúpida aos de grande iluminação!" A isto o Espírito do Oceano respondeu: "Não se pode falar de oceano a um sapo de poço, limitado que é pela sua própria morada. Não se pode falar de gelo a um inseto de verão, limitado que é pela sua curta experiência. Não se pode falar em Tao a um 'mestre', que é limitado pelo seu conhecimento. Mas eis que tu emergiste de tua estreita esfera e contemplaste o desmedido oceano, então conheceste tua própria insignificância, e eu posso falar-te a respeito de grandes princípios." (In: YUTANG: 1957, 22)

Uma filosofia que imprescinde do "de repente (um de repente só possível através de muito estudo) perceber", não postula seu ensinamento, mas, sim, fabula na reunião de mestre e discípulos sentados. Há quem dê bastante importância às situações descritas nestas narrativas, às pessoas, às cores, ao mundo onde transitam; há quem, por outro lado, atenha-se a algumas das máximas que as histórias podem conter achando que num ou noutro caso encontraram o caminho. Entretanto, apenas erram à sua margem, desviados pelos sentidos e pelo desejo de entendimento rápido pelo logos. A filosofia nestas histórias não mora nem num, nem noutro universo: nem no colorido da fábula, nem na sentença que abruptamente se insere no meio delas. O ensinamento se dá através de um perceber, que só se dá ouvindo "o nunca antes ouvido" para enfim poder ver.

O "bem" e o "rio" são igualmente abstratos ou concretos. A experiência do rio de Heráclito como um dos primeiros "aforismos claros e sucintos" do pensamento grego, é abstração se comparada ao vigor do rio que é rio em direção ao oceano da fábula de Chuang Tzu. E, no entanto, ambos não são nem uma nem outra coisa: o Isto que devemos perceber.

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ii) Ouvir à distância: o conhecimento revelado

O Período Védico, que se pode situar desde mais ou menos quinze séculos antes da nossa era (datação proposta para a composição de seu texto mais antigo, o Rg Veda, que é, além disso, "o mais antigo monumento literário-filosófico indo-europeu" (RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 3), é aquele que tem no profundo conhecimento do Veda o seu fundamento. O próprio nome "veda" significa "conhecimento", "saber". O saber do Veda encerra-se nos quatro livros que o compõem, distribuindo-se em cada uma de suas quatro seções.

Os quatro Vedas são os seguintes: Rg Veda, composto por hinos; Yajur Veda, que lida com os rituais e fórmulas sacrificiais; Sama Veda, ocupado da música e da melodia; e o Atharva Veda, que, contendo um grande número de fórmulas mágicas, é considerado o precursor da ciência médica hindu.

E suas partes ou seções: Samhita (conjunto de hinos, orações,

fórmulas); Brahmanas (tratado em prosa sobre o sentido dos ritos sacrificiais e das cerimônias); Aranyakas ("textos da floresta", para serem recitados na floresta10) e as Upanishads (última parte de cada Veda). Estes dois últimos são posteriores desdobramentos dos Brahmanas.

Os textos védicos integram na classificação hindu o conjunto dos textos "revelados" (sruti, "o que é ouvido")11 e disso não se distinguem de nenhuma outra religião "revelada". Os Vedas também teriam sido revelados no início dos tempos pelos deuses. Sua revelação é, aliás, uma revelação contínua a cada recitação, por isso, o conhecimento desse "conhecimento" é relegado a poucos, à casta dos sacerdotes, os brâmanes, que são também os professores da 10

Al-Biruni testemunha-nos que: "Há certas passagens no Veda que, conforme eles [os hindus] asseguram, não devem ser recitadas dentro das habitações, pois temem que possam causar aborto tanto nas mulheres quanto no rebanho. Por isso, vão para campo aberto para recitá-las lá." (AL-BIRUNI: 1983, 59) 11 As outras categorias a que pertencem os livros sagrados da ortodoxia hindu são: smrti ("o que é recordado"), purana ("saber antigo") e tantra ("trama", "urdidura", "ritual", "doutrina").

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casta real e guerreira, os kshatryas, e a eles ensinam, não tudo, o que aprenderam em sua fase de discípulos jovens e castos.

Como conhecimento e como linguagem, o conhecimento revelado pressupõe sempre, e ao contrário do que se possa pensar, conhecimento velado. O conhecimento designado pelos Vedas não é um conhecimento humano, mas não-humano, atemporal e desconhecido até o momento em que os deuses, pela boca de Brahma, revelam-no ao homem.12 Revelam-no para que permaneça velado, e tanto é assim que:

Os brâmanes recitam o Veda sem entender seu significado, e, da mesma maneira, aprendem-no de cor, passando de um para o outro. Apenas alguns poucos entre eles estudam sua explanação, e um número ainda menor dentre estes dominam os conteúdos do Veda e sua interpretação num grau que lhes permita sustentar uma disputa teológica. Os brâmanes ensinam o Veda aos kshatryas. Estes o aprendem, mas não lhes é permitido ensiná-lo, nem mesmo a um brâmane. O vaisya (comerciante) e o sudra (trabalhador) não podem ouvi-lo, menos ainda pronunciá-lo e recitá-lo. Se isso puder ser provado contra um deles, os brâmanes arrastam-no até o magistrado e ele é punido com a língua cortada.13(AL-BIRUNI:1983, 58)

Este não entendimento mesmo por parte dos mais capacitados origina-se na linguagem. Primeiro, os Vedas não eram escritos.14 Além disso, como aquilo que é ouvido, sua oralidade foi preservada com esmero numa modalidade métrica diferente da sloka15, que é encontrada

12

Ver OLIVELLE (1996, nota 15, p. xxxiv): "A visão mais aceita é de que não possuem autores, nem humanos, nem divinos; eles são o conhecimento autoexistente "ouvido" pelos antigos sábios ["seers"] (daí sruti ou 'audição' ser um outro termo para Veda). Outros consideram que os Vedas foram revelados por Deus. 13 Comparar com: "Nos mais antigos Dharma-Sastra lê-se que, se um sudra ouvisse acidentalmente a recitação de um hino védico, deveria ser punido enchendo-se-lhe as orelhas com chumbo derretido". (GAUTAMA. Institutes of the Sacred Law 12-4. (Sacred Books of the East, vol. II, parte I, p. 236) Cit. em: ZIMMER: 2005, 56) 14 Excetuando-se a escrita do Vale do Indo, considerada uma das mais antigas, senão a mais antiga, a surgir, e que desapareceu sem ter sido decifrada até hoje, foi somente no século VI a.C. que Dario introduz a escrita aramaica na Índia, e é dela que derivam os antigos alfabetos sânscritos. As primeiras inscrições datam do século III a.C.. Consultar McEVILLEY (2002, Cap. V) e DANIÉLOU (1987, Cap.I) para mais informações. 15 Este metro, que também é sinônimo de "poesia", compõe-se de versos divididos em quatro partes (padas, "pés") de mesmo número silábico. Possui um nascimento mítico, que é o próprio nascimento da poesia, descrito no início do Ramayana, onde seu nome é associado à palavra soka, "lamento".

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na maioria dos textos versificados da Índia. Aliás, tal metro só é encontrado no Veda, tanto por ser considerado uma obra divina (e fenômeno semelhante se dá com o Alcorão, que pertence a um gênero cuja imitação é interdita), como também por ser considerado um metro muito difícil, na verdade impossível, de ser imitado. Sua recitação segue, de igual maneira, modelos bastante complexos, especialmente a do Rg Veda, na qual não se pode realizar a ligação das palavras (samdhi), podendo-se recitá-lo duas vezes simultaneamente, recitando-se um pequeno trecho e em seguida repetindo-o com o acréscimo do trecho seguinte, que, por sua vez, será repetido isoladamente, seguido de sua repetição acrescida de um novo trecho e assim sucessivamente. Al-Biruni nos conta que tal modo de recitação é o mais digno de méritos, para o qual estariam asseguradas promessas do Paraíso.16

Tamanha complexidade teria levado à necessidade de escrita nos tempos de indigência. A história de sua fixação nos dá testemunho do processo de degenerescência cultural marcante do Kali Yuga. O Kali Yuga, a nossa era atual, iniciada num jogo de dados que dita um destino sangrento no Mahabharata, é a última das quatro idades que constituem a visão cíclica de tempo na Índia. É somente nesta era de declínio que pode surgir a necessidade da escrita:

Esta foi a razão pela qual, não há muito, Vasukra, um nativo da Kashemira, um famoso brâmane, de espontânea vontade prestou-se à tarefa de explicar o Veda e fixá-lo na escrita. Ele se encarregou de uma tarefa que qualquer outra pessoa teria recusado, mas prosseguiu, porque temia que o Veda fosse esquecido e se esvaecesse completamente da memória dos homens, pois observou que o seu caráter só piorava, e que não se importavam mais com a virtude, e nem mesmo com o dever. (AL-BIRUNI: 1983, 59)

A filosofia sempre tende a buscar uma verdade que transcenda as esferas do tempo e do espaço; houve os movimentos de divinização dos postulados, como revelação (o Veda, a 16

AL-BIRUNI: 1983, 60.

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Bíblia, o Alcorão); há atualmente o esforço da comprovação científica. E tudo isso só se torna possível com a supervalorização da escrita. Como aponta Daniélou, a escrita é um fenômeno urbano característico do Kali Yuga (última idade no ciclo das eras da terra, marcada pela degeneração, pela decadência):

O advento da escrita permitiu a substituição dos conceitos de reformadores religiosos ou sociais, tidos como profetas inspirados, pelos ensinamentos de sábios [seers]. Isto deu nascimento à religião do livro, que caracteriza o Kali Yuga.(DANIÉLOU: 1987, 87)

A consciência “filosófica” só pode vir apoiada num suporte escrito. A inspiração dá lugar à autoria, a obra substitui a revelação. Assim nasceu a filosofia, que é uma grande religião do livro, todas as filosofias o são. Por isso, àquelas que possuem um menor grau de intimidade com essa que é a maior e mais complexa das tecnologias – a escrita – nega-se o status filosófico.

Chama-nos bastante atenção o fato de que aquela linguagem versificada de difícil entendimento, cuja sonoridade agrada tanto ao gosto hindu, passa agora a ser escrita, mas, assim como o conhecimento revelado se mantém velado, o texto escrito (não só os Vedas) se mantém oral. Por isso Al-Biruni (1983, 66), mais uma vez, observa:

A Gramática é seguida [em importância] por outra ciência, chamada Chandas, i.e. a forma métrica da poesia (...), uma ciência indispensável para eles [os hindus], já que todos os seus textos são em verso. Compondo seus livros em versos, intentam facilitar sua memorização e impedir que as pessoas recorram ao texto escrito, salvo em caso de suma necessidade. (...) Eles rejeitam composições em prosa apesar de serem de mais fácil entendimento. (Grifo nosso)

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Eis o problema do entendimento, que perpassa todas essas questões de oralidade/ escrita; poesia/ prosa. O problema da escrita leva ao problema da prosa: a necessidade de esclarecimento, de entendimento. Tal necessidade surge com os primeiros diálogos filosóficos. Mas, na Índia, assim como a escrita e como a prosa, esse entendimento pela linguagem é rejeitado, não é bem visto.

Se no ocidente só foi possível para a filosofia triunfar sobre o mito através da fixação dos textos, no oriente a escrita parece ter contribuído também para o enfraquecimento de seu vigor. Mesmo assim, a figura da deusa Kali, a devoradora, sempre nutre na memória da comunidade aquela ancestral desconfiança em relação ao texto escrito, especificamente, mas, de um modo mais amplo, a toda forma de linguagem.

E isso é justamente o que faz com que durante muito tempo as filosofias da Índia não tenham sido agraciadas com este título, de filosofias, por não abrirem mão de uma linguagem que não conduz de modo claro e evidente o discurso que sempre carrega. Desse modo estão atrelados ao discurso indiano tanto, de um modo mais abrangente, o gênero da poesia (como oposto ao da prosa, utilizando versos metrificados e melódicos), quanto, mais especificamente, os mais variados gêneros textuais: narrativas míticas, fábulas, fórmulas mágicas, biografias, e diálogo inquisidor presente nas Upanishads. E é por esse motivo que:

Todas as escolas de filosofia indiana, ainda que divirjam em suas formulações concernentes à essência de verdade última ou da realidade fundamental, são unânimes em afirmar que o objeto último do pensamento e a meta final do conhecimento estão além do alcance de namarupa17. Tanto o Hinduísmo vedantino quanto o Budismo Mahayana insistem constantemente no caráter inadequado da linguagem e do pensamento lógico para expressar e compreender seus sistemas. (ZIMMER: 2005, 32)

17

Totalidade do mundo subjetivo e objetivo como observado e conhecido.

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Na Índia, portanto, a recusa ao pensamento lógico se verifica em todos os níveis do discurso, como pode se ver a seguir:

A filosofia indiana afirma com insistência que as possíveis experiências que a mente pode ter da realidade ultrapassam, em muito, a esfera do pensamento lógico. Para expressar e comunicar o pensamento adquirido em momentos de intuição que transcendem o plano gramatical, devem ser usadas metáforas, símiles e alegorias que não são meros adornos e acessórios dispensáveis, mas os próprios veículos da significação, impossível de ser alcançada por meio de fórmulas lógicas do pensamento verbal comum. (IDEM: ibdem, 32)

Destarte, desde os primeiros hinos védicos, desde o sempre, há o cuidado com a linguagem, que é muito mais do que uma conformação racional do pensamento em discurso. O pensamento está além dessa filosofia da linguagem – racional e lógica – e é, portanto, anterior ao discurso racional e evidente, é anterior à linguagem como questão, e se fazia presente mesmo quando ela era "apenas" conhecimento revelado.

Apesar de já apresentarem uma investigação acerca do Isto, os Vedas, como "saber", não constituem ainda o que se entende por filosofia. Isso devido, basicamente, ao seu caráter cosmogônico, condicionado a uma fé politeísta, à sua ambiência predominantemente mítica. É digna de nota, aliás, a comparação feita por McEvilley (2002, 60-61) entre este estágio do contexto hindu e a produção de Homero e Hesíodo. O autor enfatiza a curiosa permanência do pensamento politeísta na literatura grega, mesmo após as primeiras discussões filosóficas sobre a Unidade, e o monismo; além disso, chama a atenção para o caráter essencialmente monoteísta do politeísmo de Homero, cujo Zeus "está mais próximo de Yahweh do que do panteístico Zeus de Ésquilo."

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Na Índia, ao contrário, as produções literárias, a partir do surgimento de novas doutrinas filosóficas, tentam incorporar os novos conceitos, num habilidoso exercício de síntese do qual o BhagavadGita, do Período Épico, é um exemplo. Esta, no entanto, é mais do que uma questão de incorporação, de síntese. É aquilo que nos faz pensar muitas vezes que não haja sistematização na filosofia indiana. É a linguagem. É a linguagem que congrega e resguarda todas as possibilidades de manifestação de si mesma, é uma linguagem que não privilegia um determinado discurso. Como linguagem é sempre discurso, não precisa se especializar. Filosofia é linguagem, não o contrário. Entretanto, quando se fala em filosofia está sempre se esperando uma determinada e especializada linguagem, racional, lógica, clara, objetiva. Uma linguagem, diríamos, per se. A Linguagem.

E é somente por isso que não se pode falar em filosofia védica, pois, na verdade, conceitos e um elaborado e consciente discurso filosófico só surgiriam depois de um período de degenerescência dos mitos védicos, o chamado Período Épico (cujas referências são os épicos Mahabharata e Ramayana), com o Mimamsa (entre os séculos VI e III a.C.), que é a posterior interpretação, tanto do sentido prático (Purva Mimamsa), como espiritual (Uttara Mimamsa ou Vedanta), dos Vedas, e outros sistemas filosóficos, entre heterodoxos e ortodoxos.

Esta degenerescência dos mitos é fundamental para o surgimento da filosofia em qualquer contexto. Pois a filosofia é aquilo que para sempre irá retirar os deuses, a magia, os mitos e, principalmente, os rituais, do lugar sagrado, substituindo-os pela Linguagem. Filosofia, portanto, é o culto da linguagem, o mostrar da linguagem, a saga da linguagem, e, principalmente, o trabalho com a linguagem. Nas duas civilizações das quais o ocidente atual é filho órfão, Índia e Grécia, isso assim se dá. Entretanto, é apenas na Índia que se pode "ver"

58

o processo em que isso se dá.18 Este processo inclui questionamentos filosóficos já encontrados em alguns hinos aos deuses, que aí já se despojaram de qualquer personificação mítica para encarnar o conceito de Todo / Unidade; inclui também os Brahmanas, com sua prosa interpretativa do sentido por trás dos ritos; e, por fim, as Upanishads.

18

E esta é a evidência utilizada por McEvilley para defender a transmissão, da Índia para Grécia, via Pérsia, dos conceitos de que se utilizam os filósofos pressocráticos.

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iii) Ver de perto: o conhecimento secreto

Inexistindo uma palavra genérica para designar filosofia, há um termo que diz de uma experiência que funda a própria experiência do pensar na Índia. Darshana, da raiz drs ("ver"), que se traduz no ocidente como a filosofia na Índia, significa "visão, ponto de vista, aproximação". Mas, ao contrário do que aparenta, não diz de um simples apelo sensorial. É o ver que já se retirou do âmbito sensorial, um ver a partir de dentro19, um ver que inaugura o nunca antes ouvido, o nunca antes pensado. No mesmo sentido, os sábios, são os rishi, os que veem. Vistas de uma maneira inaugural, as visões dos que veem tornam-se de difícil formulação, pois, "de qualquer forma, a relação entre a visão e as palavras que a expressam é válida somente num momento particular." (DANIÉLOU: 1987, 86)

Entretanto, o discurso é um caminho que leva a esta experiência de ouvir o nunca antes ouvido e ver, perceber. A superação do discurso só ocorre depois de longa trajetória de convívio em seu caminho. E, mesmo assim, corre-se sempre o risco de apenas se abandonarem os discursos à margem do caminho, convivendo-se ainda mais uma vez com eles, à sua sombra.

Abandonar os discursos não é evitá-los, mas tampouco é investigá-los, questioná-los, perdendo-se mais uma vez na trilha de um falar e um dizer inesgotável. Abandonar os discursos é, após muito discurso, desviar para a trilha do silêncio que se perscruta. Tendo estudado assiduamente os livros, os sábios, que têm por meta somente o conhecimento e a plenitude do conhecimento, devem dispensar os livros por completo, assim como quem quer conseguir o arroz atira fora as cascas.

19

Heráclito, Fragmento 101: "Eu busquei a mim mesmo."

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A sabedoria inferior e preliminar é como uma jangada: tem de ser abandonada tão logo o viajante chegue a seu destino.20 (Amrtabindu Upanishad. In: ZIMMER: 2005, 267)

As Upanishads vão sempre ao encontro daquele que já percorreu um vasto caminho de aprendizado, e, ao estender a mão ao caminhante convidando-o a retirar-se do caminho costumeiro, apresenta-o a uma série de histórias e exemplos como o acima, e é nas Upanishads que se encontra o mais remoto exemplo de fábula. É uma outra configuração de mundo, um outro arranjo. Um arranjo basicamente em forma de diálogos, diferenciando-se de todo o vasto campo de hinos, fórmulas mágicas e manuais de conduta do restante dos Vedas.

As Upanishads trazem em si a experiência do discípulo e do mestre; diferente dos outros textos védicos, seu ensinamento se dá através da contação de histórias de caráter dialógico, não mais do elogio aos deuses, ou das práticas litúrgicas. Anteriores ao Budismo, sua influência nesta nova e heterodoxa doutrina verifica-se mais acentuadamente em sua vertente ainda mais heterodoxa – a escola Mahayana, que estudaremos no próximo capítulo. O Budismo Mahayana também tende, pouco a pouco, a abandonar antigos gêneros filosóficos (o sutra e o shastra), culminando pela utilização também do gênero da fábula pelo Zen Budismo. E, mesmo os textos mais canônicos são impregnados desse caráter dialógico e biográfico que inauguram as Upanishads. Isto está, mais uma vez, diretamente ligado ao gosto pela oralidade da filosofia oriental como um todo, da qual as Upanishads são, sem dúvida, ilustres ancestrais.

20

Esta passagem aproxima-se muito do Budismo Madhyamika com a visão de Nagarjuna sobre os ensinamentos budistas serem uma etapa, um estágio (ver infra). Além disso, é inevitável comparar a imagem da jangada com a "balsa" da vertente Mahayana ("grande balsa") do Budismo, inaugurada por Nagarjuna.

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Última parte dos Vedas, as Upanishads estão na vanguarda desta sistematização filosófica que careceria da queda de alguns deuses para seu completo estabelecimento. Elas são a fonte do estudo daquele sistema filosófico de que se falou acima –Mimamsa – e, de fato, são a fonte de todos os outros sistemas, porque é nelas que se encontram pela primeira vez todos os conceitos fundamentais da filosofia e espiritualidade hindus até nossos dias. É nelas que vai se consolidar a transição do pensamento politeísta, ao panteísta e monista, bem próximo da filosofia dos primeiros pensadores gregos. É nelas também que surgem os conceitos de samsara, karma e nirvana, fundamentais à filosofia budista, desde seu surgimento (pois nasce com e a partir desses conceitos) até hoje em algumas escolas. Por isso: "As Upanishads têm dominado a filosofia, a religião e vida indianas por quase três mil anos. Apesar de distantes de nós no tempo, não o são em pensamento. O ideal buscado pelos pensadores das Upanishads (...) ainda é o nosso ideal". (RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 37.)

Conta-se entre 108 e 200 Upanishads, umas versificadas, outras em prosa, as mais antigas, que são pré-budistas, datando entre o século VIII e VII a.C.. Há catorze principais Upanishads, entre as quais, por sua vez, dez se destacam: Brhadaranyaka, Chandogya, Taittiriya, Aitareya, Kena, Katha, Isa, Mundaka, Prasna e Mandukya, sendo as duas primeiras (que juntas formam dois terços do corpus mais antigo) as mais antigas, mais importantes, além de mais conhecidas. Não nos deteremos sobre a questão cronológica, mas gostaríamos de ter sempre em mente que, de modo geral, estes textos são contemporâneos dos primeiros pensadores gregos (séculos VI a V a.C.) e de Buda (século VII a IV, dependendo da "conveniência").

O termo "Upanishad" vem sendo mais comumente traduzido por "sentar-se próximo" ("upa" – "perto"; "ni" – "embaixo"; "sad" – "sentar"), o que traduz o próprio contexto dos

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discursos e ensinamentos filosóficos de todo pensamento originário, geralmente passado numa relação direta, de diálogo, entre mestre e discípulo(s).

Pensamos que é tarefa bastante vã assegurar-se de hipóteses filológicas e etimológicas para o resgate do sentido próprio de uma palavra proferida num tempo que não é mais; num contexto que não mais vigora. Mesmo assim, fomos buscar numa outra tradução um sentido mais próximo ao termo, que também se encontra na proximidade do sentido de sentar-se próximo. Olivelle (1996) propõe, baseado nos mais antigos usos da palavra nos textos upanisádicos, as traduções "conhecimento velado", "conhecimento oculto", "conhecimento escondido" e "conexão secreta". McEvilley (2002, 100) faz notar também que "muitas passagens deixam claro que este conhecimento não é o do tipo ordinário, discursivo, mas, antes, aquele 'pelo qual o inaudível é ouvido, o imperceptível é percebido, o desconhecido torna-se conhecido' (CU21 VI.i.3)".

É necessário sentar-se próximo para ouvir o que não pode ser dito a qualquer um, o conhecimento oculto, que desvendaria a secreta conexão do mundo dos deuses e homens. Além disso, quem percebe a "conexão" não a quer dividir com todos os homens, nem mesmo com reis. Assim é que o filósofo Yajñavalkya22, um mestre pertencente à casta dos kshatrya (a casta real e dos guerreiros), vai, disposto a não dizer, ao encontro de um famoso rei:

Um dia, Yajñavalkya pagou uma visita a Janaka, rei de Videha, pensando consigo mesmo, "eu não direi a ele". Entretanto, uma vez, quando ambos estavam entretidos numa discussão sobre o diário sacrifício do fogo, Yajñavalkya concedeu a Janaka de Videha um desejo. O desejo que escolheu

21

Chandogya Upanishad Sobre ele comenta McEvilley (2002, 114): "A engajada figura deste sábio ecoa largamente na história do pensamento indiano, na verdade, do pensamento mundial, apesar de isso não ser totalmente reconhecido." 22

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foi a liberdade de perguntar qualquer questão que quisesse e Yajñavalkya concedeu-o a ele. (Brahadaranyaka. In: OLIVELLE: 1996, 58.)

Esse trecho lida de uma só vez com muitas questões pertinentes à revolução operada na religião hindu pelas Upanishads. Primeiro, elas não compartilham com os hinos védicos o status de conhecimento revelado. Apesar de se inserirem também no gênero do "que é ouvido" (sruti), já são textos de filósofos, já nascem como discussão filosófica. Uma discussão, na maioria das vezes, do tipo pergunta-e-resposta.

Esse tipo de discussão filosófica, este inquérito (mimamsa), já era perceptível nos Brahmanas, de onde se desmembraram as Upanishads, que seguiram com o modelo e acrescentaram-lhe novas formas. Assim, há, ao lado da pergunta feita por um humilde discípulo que se posta aos pés do sábio, a pergunta "mal-intencionada", que induz ao erro do oponente, aquela desejosa apenas de testar, e que já possui no próprio questionamento a crítica à resposta. E, pela própria mudança em determinados valores, de que já se falou anteriormente, a sabedoria, antes irrefutável de alguns, é posta por terra por pessoas de menos prestígio até o momento.

Dessa maneira, tudo é posto em discussão, não só os espontâneos questionamentos acerca do Isto que seguiam um desenvolvimento natural dentro da matriz védica. Mesmo porque, mesmo esse desenvolvimento "natural" já é pôr uma Verdade – atemporal e revelada – em questão. Entretanto, o grande questionamento, antes inaudito, inaugurado por elas é o questionamento dos discursos, colocando a Linguagem como agente e alvo do processo de conhecimento.

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Nesses diálogos, em que um sábio era testado a todo o momento, era preciso desempenhar uma linguagem que se autoafirmasse, que sustentasse bem uma determinada visão. Uma linguagem que não facilitasse o acesso ao oponente para quebrar livremente seu argumento. A linguagem precisava ser o próprio argumento. Por isso: "Um sábio que desejasse exceder-se nisso [no combate verbal], necessitaria não apenas de um profundo conhecimento do ritual e seu significado, mas também poderosas habilidades de debate e a habilidade para propor e responder questões de novas e inesperadas maneiras" (ROEBUCK: 2003, xxxv).

Nas Upanishads cria-se, portanto, o jogo que também seria jogado pelos gregos, e que nós ainda continuamos a jogar, o jogo chamado Filosofia. A diferença novamente está na origem: a linguagem. Está em que essas "novas e inesperadas maneiras" de a linguagem mostrar-se já eram um caminho costumeiro percorrido pela filosofia e religião hindus. Fundamentavam-se naquela eterna desconfiança da linguagem, de sua eficácia em corresponder e em transmitir qualquer coisa.

"O enigma e o paradoxo são essenciais a este estilo de ensinamento [os debates verbais das Upanishads], tanto para abrir a mente do oponente a conceitos não familiares, como para deleitar, pois 'os deuses parecem amar o mistério e detestar o óbvio.'"23 (ROEBUCK: 2003, xxxv)

Assim como uma doutrina revelada como os Vedas não pode ser posta em discussão, não pode levar ao erro, e, sobretudo, não pode levar ao entendimento. Muito menos ao entendimento de todos. Neste todos habita o segundo movimento iniciado com as Upanishads, uma certa relativização do sistema de casta e suas atribuições, e que seria, um

23

Comparar com Heráclito, Fragmento 123: "A physis ama velar-se." / "É próprio da physis velar-se."

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pouco mais tarde, com a vertente Mahayana do Budismo, expandido numa crítica mais profunda.

Assim, o Hinduísmo upanishádico baseia-se em questões postas por filósofos, e são sete os que se destacam: o próprio Yajñavalkya, Uddalaka Aruni (também chamado Gautama), Janaka, Pravahana Jaivali, Ajatasatru, Sandilya e Satyakama Jabala. Entre estes há os que, sem dúvida, pertenciam à casta dos sacerdotes, os brâmanes, responsáveis pelos rituais védicos. Mas, em sua maioria, os novos pensadores hindus não tomam mais parte nos rituais e sacrifícios védicos, pois não fazem parte daquela casta, e, sim, são apresentados como membros da classe real e guerreira, a dos kshatrya, ou, até mesmo, como reis, como é o caso de Janaka.

Há que sempre se considerar que "filósofo" na Índia liga-se à sua capacidade de "enxergar", de "ver". Mesmo pertencendo as Upanishads, como obras do Período Védico, e, mais do que isso, como seções inseridas nos Vedas, ao gênero do que se ouve, daquilo que é revelado (sruti), seus "filósofos" são já aqueles que começam a "ver", a "enxergar", dentro de alguns hinos védicos de caráter mais reflexivo, alguns conceitos importantes concernentes ao Isto, à Verdade. Assim, "hinos a deuses e deusas são substituídos pela busca da realidade subjacente ao fluxo das coisas." (RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 38)

Não contentes em apenas enxergar, os filósofos das Upanishads são os que passam adiante a busca, a investigação filosófica, tornando-se os mestres de todas as demais doutrinas filosóficas a surgirem na Índia. Por certo, não há quem assine pelos hinos védicos, nem mesmo pelas Upanishads, mas delas nos chegam nomes mais próximos de nossa existência de

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mortais, e não apenas uma voz que se pronuncia a partir da physis para louvar algum deus. Mesmo que não haja autoria atestada para estes textos, aqueles sete nomes devem, seguramente, ter sido responsáveis pelo discurso neles contidos. Por isso, diferenciam-se fundamentalmente dos outros textos revelados. Constituem, verdadeiramente, um conhecimento passado de mestre para discípulo, através do diálogo, ponte que aproxima do saber oculto, quem antes dele se achava obrigatoriamente distante: os homens.

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iv) Ouvir x ver: disputa pelo conhecimento

Nas Upanishads observa-se uma das maiores questões trazidas com o desenvolvimento e especialização da filosofia: a disputa pelo saber entre os antigos sábios e os novos pensadores, que também se verificou na Grécia, dividindo poetas e filósofos. Essa é, sobretudo, a mesma disputa entre os antigos deuses telúricos e os novos deuses olímpicos; entre os antigos deuses pré-árias e os novos deuses védicos. Entre Shiva e Dionyso, de um lado, Vishnu e Apolo do outro; religiões do êxtase vs. religiões morais.

Em meio a muitas disputas "ficcionais" pelo saber presente nesses textos, há, digamos, a disputa "real" pelo conhecimento. A figura do brâmane, que congregava todas as atribuições de um filósofo dos tempos primevos (e que por essas mesmas atribuições deixa de ser filósofo) – poeta, profeta, médico, e filósofo – é retirado da cena principal para dar lugar ao kshatrya, que, nascido na realeza, vive para se dedicar confortável e exclusivamente à filosofia. Esta mesma batalha toma proporções ainda maiores no Mahabharata e no Vishnu Purana, onde é necessária a interferência de um avatar do deus Vishnu – Parashurama ("Rama com o machado") – para restabelecer a ordem do mundo, devolvendo o poder aos brâmanes, de quem é o protetor maior.

Parashurama nasce como o quinto filho de um brâmane que vem a ser morto pelos filhos de um rei, de um kshatrya. Por esse episódio, Parashurama jura vingança não só contra eles, mas contra toda a raça dos kshatryas, e, assim, "três vezes sete vezes [ou seja, por 21 gerações] ele livrou a terra da casta kshatrya, enchendo com seu sangue os cinco grandes lagos de Samanta-panchaka." (In: DOWSON: 1982, 231)

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Contudo, já abrindo a trilha seguida pelo Budismo, uma das passagens mais famosas de todo o conjunto das Upanishads parece mesmo desdenhar da divisão de casta, quando elege o caráter e a verdade como superiores ao nobre nascimento. É a história de Satyakama Jabala, contada na Chandogya. Desejando estudar as escrituras sagradas como discípulo de um brâmane, Satyakama precisa informar a que família pertence, ou seja, qual a família de seu genitor. Fica sabendo, entretanto, de sua mãe, mulher simples e honesta, que é um filho de mãe solteira e foi concebido enquanto ela trabalhava como serviçal, desconhecendo totalmente sua linhagem. Assim, esta resolve lhe dar seu próprio nome, Jabala, e ele, então, passa a se chamar Satyakama Jabala. O que segue é sua entrevista com o mestre:

Então foi até Haridrumata Gautama e declarou: "Levarei a vida de um estudante do sagrado conhecimento. Senhor, desejo tornar-me seu pupilo." Ele então lhe perguntou: "A que família, por gentileza, pertence, meu caro?" Ao que respondeu: "Não sei, senhor, a que família pertenço. Perguntei à minha mãe e ela me respondeu: 'Na minha juventude, quando, em grandes dificuldades, trabalhei como serviçal, tive você. Então não sei de que família você é. Em todo caso, tenho Jabala por nome, e seu nome é Satyakama.' Portanto, sou Satyakama Jabala, senhor." A ele então foi dito: "Um não-brâmane não seria capaz desta explicação. Traga o necessário, meu caro. Recebo você como discípulo. Você não se desviou da verdade.24" (In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 66)

E essa verdade que perseguem os novos filósofos direciona-lhes os caminhos para uma nova maneira de "ver". O "ver" ao qual está atrelada a origem etimológica da palavra em sânscrito para "filosofia" (darshana) é o próprio ver como conhecimento, não mais aquele conhecimento dos Vedas, condicionado a divinas revelações através da audição25. Fica bem clara a rejeição, pelos filósofos upanishádicos, do conhecimento de rituais, de sacrifícios,

24

Comparar com este ensinamento contido no Bhagavad Gita: "Melhor é cumprir o próprio dever (dharma), ainda que sem valor nem qualidades (vi-guna), que cumprir o dever de outrem, mesmo quando bem realizado." (In: ZIMMER:2005, 279). E, este mesmo autor, ao falar da verdade (satya): "Mesmo uma verdade vergonhosa é melhor que uma falsidade decente." (Ibdem, 131) 25 Heráclito, Fragmento 101: "Os olhos são testemunhas mais exatas do que os ouvidos".

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cerimônias e encantamentos. Sua mais nova questão é a Verdade, o conhecimento que retira o homem do ignorante contentamento de, através das boas ações (que se traduzem na boa condução e constância na observação dos sacrifícios) almejar a recompensa do além-morte ou de um nobre renascimento.

Para a nova "visão", só o conhecimento, o questionamento, podem tirar o homem de seus cuidados, libertando-os de qualquer esperança em uma outra vida. A nova meta que se quer alcançar pelo conhecimento é a cessação dos nascimentos, dos renascimentos e da morte.

O objetivo não é um celestial estado de paz ou renascimento num mundo melhor. Negativamente, é a libertação da objetiva lei cósmica do karma; positivamente, é a identidade com o Supremo. Até que estejamos libertos da lei do karma e alcançarmos moksha, estaremos no samsara ou processo temporal. (IDEM: Ibdem, 38)

Por isso, o foco da atenção da religião hindu desloca-se do tema dos rituais sagrados para questões filosóficas, como a doutrina tripartida da reencarnação, que lida com as questões do ciclo de renascimentos, karma e liberação da roda das encarnações, esta última envolvendo a concepção de práticas ascéticas e de meditação26. Coincidentemente, a questão da reencarnação vai constituir também um tema central das discussões filosóficas dos gregos desde os pressocráticos, principalmente Heráclito, Pitágoras e Empédocles. Os filósofos originários gregos, dos quais coincidentemente sete se destacam, também configuram o surgimento de uma nova maneira de pensar não mais apoiada em rituais e liturgias divinas, mas em questões filosóficas de pensadores.

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Eis aqui também uma nova mudança: a mudança no conceito de prática. A prática da religião védica, que antes se traduzia em ação por meio dos rituais sagrados, passa a designar a cessação e a quietude das práticas ascéticas de meditação.

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Esta nova doutrina, contudo, mesmo já despojada de um caráter sagrado, ainda necessita ser secreta.27 Na Brhadaranyaka Upanishad, a Upanishad mais antiga, aparece pela primeira vez dois dos três conceitos fundamentais à doutrina da reencarnação: samsara (o ciclo de nascimentos) e karma. É aquele mesmo filósofo do extrato citado anteriormente – Yajñavalkya – que os profere numa disputa que se dá entre todos os filósofos a serviço do rei e ele, uma disputa pelo mais sábio. Ao ser questionado por um dos filósofos sobre o destino de uma pessoa quando de sua reintegração cósmica, Yajñavalkya dá a seguinte resposta: "Meu amigo, não podemos falar sobre isso em público. Dê-me sua mão, Artabhaga, discutamos isso em particular". Então eles se foram e falaram sobre isso. E sobre o que eles falaram? – Sobre nada que não fosse ação. E o que eles prezaram? – Nada que não fosse ação. Yajñavalkya disse-lhe: "Um homem transforma-se em algo bom através de boas ações e em algo ruim através das más ações." Com isso Jaratkarava Atabhaga calou-se. (In: OLIVELLE: 1996, 38)

Este diálogo se passa nessa disputa pelo mais sábio da qual participa Yajñavalkya, e, não só ele, mas, de certa forma, todos os kshatryas e brâmanes. O rei Janaka, desejando saber quem entre seus ilustres visitantes era o mais douto no conhecimento dos Vedas, reúne um grupo de mil vacas adornadas com várias peças de ouro em cada chifre, e pede que o mais sábio as conduza adiante. Ninguém se atreve a fazê-lo exceto Yajñavalkya. Então, "os brâmanes ficaram furiosos e murmuraram: 'como ele ousa proclamar-se o mais douto?'". (BU28. In: OLIVELLE: 1996, 34).

Furiosos, todos eles, cada um na sua vez, começam a conduzir o malicioso inquérito sobre todos os conceitos; e, a cada novo questionamento, Yajñavalkya responde de "novas e inesperadas maneiras". Essas "novas e inesperadas maneiras" não dizem respeito somente à

27 28

Novamente Heráclito, Fragmento 54: "A oculta harmonia é melhor do que a aberta." Brhadaranyaka Upanisad

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conformação de sua linguagem – há, de fato, a refutação de todas as verdades estabelecidas ensinadas pelos brâmanes aos kshatryas. Mas talvez isso ainda signifique mais.

Vemos no trecho acima, que o opositor do filósofo-khsatrya (ou kshatrya-filósofo) cala-se ao final de sua explanação. Isso significa mais do que a aceitação deste no grupo dos homens doutos. Além de todos aqueles conceitos concernentes à reencarnação, esta passagem e todas as outras entrevistas com os outros brâmanes inauguram o silêncio. Todos os seus oponentes se calam após a sua resposta, isso quer dizer mais do que uma aceitação passiva. É a base do pensamento de nosso próximo objeto de estudo, o Budismo Mahayana, mais precisamente as escolas Madhyamika e Zen. É a compreensão que se reflete no silêncio.

A partir das Upanishads será cada vez mais frequente o uso deste modelo de ensinamento filosófico, em que um mestre é questionando por vários discípulos (que muitas vezes são mestres também) acerca do Isto. Por isso, as Upanishads são consideradas, juntamente com os sutras do Prajñaparamitra, os fundamentos da vertente Mahayana do Budismo, nascida com a Madhyamika, e que originaria a escola mais popular atualmente, o Zen. O que todos eles possuem em comum é essa noção do silêncio como resposta.

No fragmento supracitado, Jaratkarava não se cala por falta do que dizer. Se ele o fizesse não teria compreendido, se tivesse ainda algo a dizer igualmente não teria compreendido. Não. A sua resposta é o silêncio. Esta passa a ser a única resposta possível daquele que compreende.

E o que é essa compreensão? Tudo é discurso. Quando se começa a perceber a roda, a perpétua ilusão em que se vive, por fim se compreende que tudo é discurso e que ele é o

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grande e único agente, o único a mover a roda dos acontecimentos, das reencarnações, que leva tanto à degenerescência quanto à criação. Somente quando se percebe que tudo é discurso é que se pode querer parar o discurso, por meio da cessação. Este é outro dos muitos legados das Upanishads à filosofia oriental.

No capítulo seguinte ao que contém o trecho acima, portanto, nessa mesma Upanishad, que é a mais antiga e seguramente pré-budista, encontramos novamente o rei Janaka e Yajñavalkya. Mas, dessa vez, é Yajñavalkya quem vai testar diretamente o rei, atacando os conceitos que lhe transmitiram seus mestres brâmanes. Numa série de perguntas, Yajñavalkya põe por terra todo o conhecimento do rei, dando-lhe "novas e inesperadas" repostas. A mais importante delas e que resume tudo o que se falou até agora é quando discutem acerca do próprio conceito de conhecimento:

"O que constitui conhecimento, Yajñavalkya?" "Discurso em si, ó Majestade", ele respondeu. "Pois certamente, majestade, é através do discurso que nós vimos a conhecer o seu oposto. Rg Veda, Yajurveda, Samaveda, Atharva-Angiras, histórias, contos antigos, ciências, conhecimentos ocultos (upanisad), versos, aforismos, explanações, glosas; ofertas e oblações; comida e bebida; este mundo e o outro; e todas as coisas – é através do discurso, majestade, que conhecemos tudo isso. (BU, Cap. 4. In: OLIVELLE: 1996, 53)

Ao se referir às mais variadas manifestações da linguagem Yajñavalkya não privilegia, nem rechaça, nenhuma delas. O que ele procura fazer é de certo modo fugir das discriminações, que são sempre, como ele já percebeu, meramente aparentes. O Isto, aquele princípio buscado por toda filosofia, por toda criação, por todo movimento, o imutável, o permanente, é aquilo que curiosamente traz em si toda possibilidade de oposição: o discurso.

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Não por acaso as Upanishads inserem-se num contexto de profundas tensões. Até mesmo aquele elemento que aparentemente restabelece a ordem nesse caos de disputas pelo poder entre kshatryas e brâmanes, Parashurama, contém a tensão dentro de si. Porque ele também é discurso. Ele é um avatar de Vishnu, o deus dos brâmanes, mantenedor da ordem do mundo, mas, ao mesmo tempo, demonstra um vigor guerreiro que supera a força dos mais poderosos kshatryas, com uma sede de sangue que remete ao culto do deus Shiva29. E é por esse motivo que Daniélou (1987) afirma que os grandes movimentos de transformação do mundo, que o desconfiguram e fazem aparecer o novo, o inaudito, o nunca antes percebido, o nunca antes visto, surgem nos tempos de predominância das religiões extáticas.

São aqueles movimentos que percebem o movimento, é aquele discurso que percebeu que conhecimento é discurso, que o próprio discurso é discurso, que tudo é discurso. E que no discurso habitam todas as oposições, todas as tensões. Como as tensões fazem a roda do discurso girar cada vez mais rápido, percebê-lo é, pois, perceber o movimento. Perceber o movimento é o primeiro passo em direção a fazê-lo parar. Entretanto, como são muitas as questões das quais as Upanishads tiveram o pesado fardo de ser pioneiras, mesmo que todas sejam subjacentes a esta grande questão, caberia somente às outras filosofias inspiradas nestes importantes textos, desenvolvê-la de uma maneira consciente, desenvolvê-la propriamente como questão.

29

Deus de origem pré-ária, contém (às vezes de forma não-contida) em si todas as tensões e contradições: é o pacífico asceta, o chefe de uma verdadeira sagrada família, e o terrível deus da destruição, entre outras inúmeras atribuições.

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v) Revela-se o grande conhecimento secreto: a realidade é apenas isto

Até agora detivemo-nos sobre o contexto onde estavam inseridas as Upanishads, sobre suas contribuições para a filosofia hindu, sobre suas tensões. Entretanto, não se falou sobre o grande sentido contido em suas linhas, o "Grande Segredo" que desvelam. Procuraremos ouvir, ver, pensar e perceber, então, essa "conexão secreta", que liga todas as coisas, todos os discursos. Pois é, ao mesmo tempo, a Unidade, o Logos, a Ideia, o Ser, Brahman/ Atman, enfim, o Isto.

Como visto anteriormente, à época do chamado Orientalismo Romântico, foram consideradas a fonte primeira da "sabedoria", tese que, como nos afirma McEvilley (2003, 252) foi "reforçada pela tradução para o Francês, por Anquetil Dupperon em 1801-02, das cinquenta Upanishads que Darah Shukoh traduzira para o Persa em 1657 sob o título de Sirr-i Akbar ([do Árabe], "O Grande Segredo")." O mesmo autor nota também que:

As Upanishads parecem preceder Parmênides em relação ao monismo, e ter influenciado diretamente a visão de Heráclito sobre o processo da physis [o fluxo]; o atomismo jaina e o materialismo carvaca parecem preceder Demócritus (apesar de não muito). Por outro lado, Parmênides e Zenão formalizaram a dialética e Aristóteles formalizou a lógica bem antes dos pensadores indianos. Pode-se dizer que a Índia estabeleceu o conteúdo da filosofia, e a Grécia pioneirizou seu método e forma30. (IDEM: Ibdem, 653)

Já muitos outros também puderam ver as "surpreendentes" semelhanças encontradas em sua superfície31. Essa conexão, entretanto, não se dá ao sabor das interpretações parciais e

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E esta observação só vem a reforçar aquela diferença no cuidado da Linguagem que vimos discutindo ao longo deste trabalho. Novamente, a diferença está na Linguagem; é ela que dá a sensação de não-sistematização, é por sua causa que realmente se dá o abandono da sistematização. 31 McEvilley (2002, Capítulo II) enumera, por exemplo, uma série de correspondências, com extratos retirados (os upanishádicos, voluntariamente; inevitavelmente, os heraclíticos) de seu contexto original, entre o pensamento das Upanishads e o de Heráclito.

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escolhas arbitrárias dos estudiosos. É uma conexão profunda, estabelecida de modo radical, naquilo que constitui o fundamento de toda filosofia: a busca pelo Isto.

Buscando a si mesmos, os filósofos das Upanishads partem na busca pelo conhecimento. Com eles é inaugurado o caminho do conhecimento, com a doutrina bipartida dos dois caminhos: o caminho dos antepassados e o caminho dos deuses. A prática dos rituais sagrados, observada com constância e rigor (as ações) conduziria ao além-vida (com períodos intermediários de punição infernal e paradisíaca recompensa, podendo-se, até mesmo, morrer e reencarnar durante a morte), seguido de um renascimento terrestre de acordo com o mérito daquelas ações de outra vida. Este, que é, portanto, um caminho de dupla purgação, é o caminho dos antepassados, para onde se dirigem as almas dos homens de muita habilidade e experiência nos rituais védicos, mas de pouco conhecimento.

O caminho dos deuses, para onde se dirigem as almas dos de grande conhecimento, é o caminho da liberação; a liberação da roda das reencarnações. O conhecimento do conhecimento secreto, da secreta conexão, passa a ser o caminho mais desejado em detrimento de um conhecimento sagrado através da revelação. Além disso, o conhecimento passa a ser visto como o objetivo maior, como a maior herança, e o maior dom.

Na Brhadaranyaka Upanishad, ficamos sabendo que Yajñavalkya irá partir. Apesar de não ficar claro qual o caminho por ele tomado, o da morte física, o do retiro para a floresta32, ou o da mendicância imediata, ele irá partir. Como possuía duas esposas, chama-as para a partilha

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Terceiro estágio na vida hindu (vanaprastha), que Yajñavalkya provavelmente teria atingido, quando um chefe de família, tendo criado seu filhos e cumprido com todas as suas obrigações religiosas e seculares, parte para a floresta para estudar os Vedas. O próximo e último estágio é o da mendicância (sannyasa), quando se abandona desde a choupana da floresta, às próprias roupas e, principalmente, o conhecimento. Os dois primeiros estágios são o da vida casta do estudante (brahmacarya) e o do chefe de família (garhasthya).

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de todos os seus bens. Há duas versões para esta história, uma no capítulo II e a outra no IV33; em ambas é evidente a predileção de Yajñavalkya por Maitreyi34 a Katyayani. Isto porque:

Das duas, Maitreyi era uma mulher que tomava parte nas discussões teológicas, enquanto o entendimento de Katyayani limitava-se aos assuntos femininos. (Cap. IV.5. In: OLIVELLI: 1996, 69)

É ela a única que irá dizer na ocasião da partilha:

'Se eu possuísse o mundo inteiro coberto de riquezas, senhor, isto me faria imortal?' 'Não', respondeu Yajñavalkya, 'Isto só permitiria que levasses a vida de uma pessoa rica. Através da riqueza não se pode esperar a imortalidade.' 'Qual o sentido em possuir algo que não me tornará imortal?' retorquiu Maitreyi. 'Conta-me, em vez disso, senhor, tudo o que sabes.' Yajñavalkya disse em resposta: 'Tu sempre foste muito querida por mim, e agora falas em algo muito caro a mim! Vem e senta. Eu explicarei isto a ti. Mas, enquanto estiver explicando, tenta te concentrares. (Cap. II.4. In: IDEM: Ibdem, 29)

O conhecimento é a única coisa que pode conceder a imortalidade, que é a liberação da roda dos renascimentos. Mas, para percebê-lo, são necessárias duas coisas: sentar e se concentrar. As duas, na verdade, são uma: o sentar-se na proximidade [de si] – upanishad – o buscar a si mesmo – o calmo sentar.

Como se pode observar, esse é o primeiro passo no caminho em direção ao nirvana do Budismo; como não se pode facilmente observar, é o primeiro passo também em direção ao não caminho do não conhecimento que leva ao não nirvana.

33

Nesta versão o caminho é mais bem delineado, pois se diz que ele irá levar "um diferente modo de vida". Maitreyi e Gargi (uma entre os filósofos que questionam Yajñavalkya diante do rei de Videha) são as duas grandes personagens femininas da filosofia upanishádica.

34

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Uma outra passagem, encontrada na Katha Upanishad, composta por seis capítulos em versos, apresenta o diálogo entre Nachiketas e Yama (o deus do submundo, da morte). Este diálogo é na verdade a maior e principal parte da Upanishad, seus dois primeiros capítulos; os outros quatro restantes são tentativas posteriores de explicar seu sentido oculto. Realmente, o texto é obscuro não só pela sua linguagem carregada de expressões curtas e elípticas, e de termos raros e difíceis como se queixam os tradutores contemporâneos, como Olivelle. O velamento de seu sentido revela-se desde o seu enigmático início:

Ushan, o filho de Vajashravas, um dia abdicou de todas as suas posses. Ele tinha um filho chamado Nachiketas. Mesmo jovem como era, foi tomado pela fé, e, enquanto as vacas, que tinham sido oferecidas como prêmios sacrificiais, estavam sendo tocadas embora, refletiu:35 'Elas beberam toda a sua água, comeram toda a sua ração, Foram ordenhadas, e são totalmente estéreis36 – "Amargos" são aqueles mundos chamados, Aonde se dirige um homem Que as oferece como prêmios' (In: OLIVELLE: 1996, 232)

Neste trecho encontra-se o de repente perceber o nunca antes percebido. Nachiketas então percebe o caminho dos antepassados, dos rituais, do sacrifício, que só leva a "mundos amargos". Ao perceber isto ele se inquieta, ele apresenta aquele tormento de quem de repente se depara com a transitoriedade, que, aqui é este ciclo incessante de morte e renascimento até na morte. O tormento leva-o a buscar; a buscar a verdade.

Então perguntou ao seu pai: 'Pai, a quem você ira me oferecer?' e repetiu isso uma segunda, e de novo uma terceira vez. Até que o pai lhe vociferou: 'À Morte irei te oferecer!'37 35

As passagens em prosa utilizadas por Olivelle foram, como ele afirma, parafraseadas da Taittiriya Brahmana (Capítulo 3.11.8.1) onde há a narração deste mesmo episódio. 36 Olivelle nota o tom sarcástico aí presente que evidencia tanto a ineficácia das oferendas sacrificiais, quanto a hipocrisia das pessoas, que só doam o que possuem de pior (por ex. vacas estéreis). 37 Olivelle relata que, na versão em prosa desta história, ficamos sabendo que, não podendo voltar atrás nas suas palavras, seu pai lhe diz que, quando chegar à residência da Morte, ela estará ausente e Nachiketas permanecerá lá sem comida por três dias. O pai o instrui então no que fazer quando a Morte chegar. Quando retorna a casa, a Morte lhe pergunta por quantos dias esteve ali, e Nachiketas responde: 'Três.' Morte: 'O que comeste na primeira

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[Nachiketas reflete] Irei como o primeiro de muitos Irei como um entre muitos. O que é isto que Yama precisa fazer, Que irá fazer comigo hoje? (In: IDEM: Ibdem, 232)

Então, já no outro mundo, começa o diálogo de Nachiketas e Yama; antes, porém, uma voz (cuja função é a mesma do coro das tragédias gregas)38 nos descreve o que ele vê e como é recebido sem nenhuma hospitalidade, permanecendo três noites sem notícias de seu anfitrião e sem comida.

[Uma voz.] Olha à frente! Veja o modo como partiram, Aqueles que antes de nós partiram! Olha para trás! Desse modo partirão Aqueles que depois de nós virão. Mortais são ceifados como grão, E, como grão, novamente nascerão. Um hóspede brâmane adentra uma casa Como o fogo em todos os homens. Traga água, Ó Vaivashvata, Assim é como o apaziguam. Esperanças e expectativas, lealdade e boa intenção, Prole e criação, ritos e oferendas – Tudo isso um brâmane usurpa do homem tolo, Em cuja casa resida sem lhe ter sido oferecida comida. (In: IDEM: Ibdem, 232)

Mesmo sendo o Senhor da Morte, Yama reconhece a falta cometida no desrespeito às regras de hospitalidade para com um brâmane. Assim, como para apaziguá-lo, concede-lhe três desejos. O primeiro que escolhe, é, certamente, o seu retorno para o seu pai, na terra; o segundo, é o entendimento do fogo sacrifical que leva aos céus; o terceiro, que é o motivo de

noite?' Nachiketas: 'Seus filhos.' Morte: 'O que comeste na segunda noite?' Nachiketas: 'Seus animais de criação.' Morte: 'O que comeste na terceira noite?' Nachiketas: 'Suas boas ações.' 38 Aliás o texto como um todo apresenta uma ambientação trágica.

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toda discussão filosófica é a dialética questão existente/ não-existente encontrada também em outras Upanishads.

[Nachiketas] Sobre um homem que está morto paira esta dúvida. 'Ele existe,' dizem uns; outros dizem 'Ele não existe.' Isto desejo saber, ensine-me por favor. Eis o terceiro dos meus três desejos. ((In: IDEM: Ibdem, 234)

Yama recusa-se39, de fato, teme, revelar este conhecimento secreto que, nas palavras de Nachiketas, é um dom que não possui equivalente. Mesmo lhe sendo oferecidos abundantes e inestimáveis tesouros, entre os quais uma descendência centenária, muito gado, elefantes, ouro, cavalos e ninfas celestiais inacessíveis aos homens, Nachiketas persiste firme em seu desejo pelo conhecimento, numa recusa e desprendimento semelhantes ao de Maitreyi:

O transcorrer dos dias de um mortal, Ó Morte, Vai sorvendo a energia de todos os seus sentidos; Mesmo uma vida plena não passa de frivolidade; Assim sendo, guarde seus cavalos, suas músicas e danças! Com riqueza não se pode contentar um homem; Conseguirá ele mantê-la, vendo você? Pois nós só vivemos enquanto você permite! Este é, pois, o único desejo que eu gostaria de escolher. (...) O ponto sobre o qual eles têm grandes questionamentos O que se passa naquele grande trânsito Diga-me isto, Ó Morte! Este é o meu desejo, penetrar fundo o mistério. Nachiketas não deseja nada Mais do que isto. (In: IDEM: Ibdem, 235)

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Como na Brhadaranyaka Upanishad: "Eu não direi a ele."

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Por estes esparsos trechos pode-se perceber que nela de fato se consolida a busca pelo conhecimento. Mas nela se consolida também o desapego do conhecimento.

Chafurdando em ignorância, mas se julgando sábios, Considerando-se instruídos, circulam os tolos, Acotovelando-se como um grupo de homens cegos, Guiados por um homem, por sua vez, cego.40 (In: IDEM: Ibdem, 235)

A descrença no conhecimento, em seu acúmulo, sustenta-se na visão de que só se pode chegar à compreensão pelo de repente perceber, por um intuitivo insight, como vai, mais tarde, pregar também o Budismo Zen através dos koans, como já se viu e se verá adiante.

Buscando o conhecimento e não mais uma revelação, nas Upanishads, em contraste com a famosa "universalidade" do pensamento oriental, pela primeira vez se vê um processo de cisão entre religiosidade e filosofia. Como pode então, que, mesmo após essa ruptura inaugural, as filosofias da Índia tenham conseguido manter até hoje uma estreita proximidade com os mitos demasiado religiosa para a visão ocidental; utilizando-se de gêneros textuais demasiado literários para a visão ocidental. E de uma linguagem demasiado poética para a visão ocidental.

Isto é assim porque, pioneiras na busca pelo conhecimento, são também pioneiras da desconfiança com o próprio conhecimento. Pondo primordialmente em discussão conhecimento e verdade, sempre subjacente à discussão entre filosofia e religião, perceberam,

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Esta passagem assemelha-se muito à imagem (já citada) de Nietzsche:

“Deixem-no agarrar-se”, grita a arte. “Acordem-no”, grita o filósofo, no pathos da verdade. Mas ele mesmo mergulha em um sono mágico ainda mais profundo, enquanto acredita estar sacudindo aquele que dorme.

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já muito antes de nós, que ainda não percebemos, que tudo é o mesmo discurso, as distinções "são apenas um instrumento verbal, um nome." A diferença, novamente, está na linguagem.

Há nas Upanishads, portanto, como em todo o contexto filosófico oriental, um desapego da Linguagem, que se traduz na desconfiança do conhecimento que se busca vaidoso, dos discursos. E eis que na menor de todas elas – a Isa Upanishad – no nono de seus meros, mas não desimportantes, dezoito versos há a assertiva:

Em profunda escuridão penetra Quem venera a ignorância Em maior do que aquela Quem se rejubila com o conhecimento (In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 40)

Eis a tensão em que se funda toda escola de pensamento de origem hindu. Eis a tensão que eles, ao contrário de nós, têm sempre conseguido equilibrar.

Levando-se em consideração que estas duas últimas Upanishads citadas não estão entre as mais antigas, poderíamos pensar que isto seria uma reação contra a euforia de conhecimento instaurada por suas antecessoras. Mas, estes mesmos versos acima encontram-se também na Brhadaranyaka Upanishad, recitados pelo filósofo Yajñavalkya ao rei Janaka de Videha. A desconfiança com a linguagem, como já sabemos, permeia todo o discurso filosófico oriental. E ela pode ser encontrada também na segunda Upanishad mais antiga, num de seus mais importantes episódios, onde se insere o gesto que encabeça o nosso capítulo.

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Debruçar-nos-emos a partir de agora sobre este que é um dos textos mais significativos de todas as Upanishads. O capítulo VI da Chandogya Upanishad41 conta a história de um pai e de seu filho, que acaba de retornar ao lar após os doze anos necessários de estudos védicos como discípulo de um brâmane:

Havia um Shvetaketu, filho de Aruni. Um dia seu pai lhe disse: 'Shvetaketu, adota a vida celibatária de um estudante, pois não há, meu filho, ninguém em nossa família que não tenha estudado, sendo brâmane apenas de nascimento.' Então ele partiu, com doze anos de idade, para se tornar estudante, e, depois de aprender todos os Vedas, voltou aos vinte e quatro anos, vaidoso, arrogante e se julgando instruído.

Inicialmente, também podemos detectar aqui aquela relativização de casta, já abordada no episódio de Satyakama Jabala. Assim como há os brâmanes verdadeiros, independente de sua linhagem, há os brâmanes apenas de nascença, que não se dedicam aos estudos, que não buscam o verdadeiro conhecimento. Mas, sendo Uddalaka Aruni um verdadeiro brâmane, tanto por sua dedicação quanto por sua linhagem, seu discurso não se enquadra naquela disputa pelo poder liderada pelos kshatryas. O que ele combate e invalida é o próprio conhecimento, o simples acúmulo de conhecimento que ele um dia já cultivou42, como já o fizeram seus antepassados e como aconselha seu filho a fazer43. A questão fundamental, não só deste pequeno trecho, mas de todo o capítulo, é a busca do conhecimento verdadeiro.

Disse-lhe seu pai: 'Shvetaketu, aqui estás, meu filho, arrogante e vaidosamente julgando-te instruído; pediste então aquele conhecimento44 41

Por toda a sua importância histórica para a religião e filosofia hindus, e, igualmente, para o mundo, onde se insere o presente trabalho, esse texto encontra-se integralmente no Apêndice A. 42 Heráclito, Fragmento 40: "O aprendizado de muitas coisas nada ensina ao entendimento, senão, teria instruído Hesíodo e Pitágoras, bem como Xenófanes e Hekataios." 43 Pois sabe que é somente depois de muito discurso que alguém consegue atravessar para a outra margem do rio das discriminações verbais. 44 Olivelle traduz "adesha" com um termo técnico da tradição gramatical do sânscrito, "regra de substituição" (i.e., um princípio metafórico, um termo por outro). Nossa tradução como "conhecimento" baseia-se em sua própria observação de que "no contexto da tradição upanishádica, tais regras de substituição são consideradas

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através do qual se chega a ouvir o que não se tinha antes ouvido, a pensar o antes não pensado e a perceber o que não tinha sido percebido antes?'45

Este conhecimento é aquela própria "conexão secreta" (upanishad) – o "Grande Segredo" – que abre os caminhos de um novo pensar, "nunca antes pensado". Opõe-se, portanto, a uma verdade antes estabelecida, passada de geração a geração, mas, que, contudo, se achava limitada, como o mestre da fábula de Chuang Tzu, por seus próprios conhecimentos. É a verdade religiosa que começava a se cindir, originando uma verdade filosófica, não mais de acúmulo de conhecimentos práticos, mágicos, transcendentes, mas de seu questionamento, de sua investigação.

Estende-se, dessa forma, o campo onde debatem os novos filósofos hindus. Nele se trava uma batalha em torno da questão do conhecimento em si, independente da casta que o proclame. Neste texto encontra-se a discussão de uma verdade que se encontra na origem de várias culturas: a de que o mundo teria se originado do nada, do vazio, do não-existente. Este é o início da dialética que discutirá a origem do ser, que será aperfeiçoada mais tarde pelo Budismo Madhyamika.

Na busca daquele princípio imutável que atravessa todas as mutações, a filosofia das Upanishads estabelece o existente como aquilo que sempre permanece. Deste permanente imutável nasce toda discriminação aparente, a maya, a ilusão, que povoa este mundo e todos os discursos.

secretas (...), aproximando-se, assim, do sentido de upanisad [conhecimento secreto]." (OLIVELLE: 1996, 305 – 3.6n.) 45

Heráclito, Fragmento 41: "O conhecimento é um só. É conhecer o pensamento através do qual todas as coisas estão ligadas a todas as coisas."

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'Como se dá este conhecimento, senhor?' 'Isto é assim, filho. Através de apenas um pedaço de argila, compreendese tudo feito de argila – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é argila". 'Isto é assim, filho. Através de apenas um jarro de cobre, compreende-se tudo feito de cobre – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é cobre". 'Isto é assim, filho. Através de apenas uma tesoura de unha, compreendese tudo feito de ferro – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é ferro". 'Isto é, filho, como esse conhecimento se dá'.

A partir das Upanishads o "conhecimento é um só", a busca é uma só, é a busca pela superação das diferenças aparentes manifestas pela linguagem, é a busca do princípio eterno e imutável. Este princípio, que nos primórdios da filosofia grega era o Logos, em Platão é a Ideia, e é nas Upanishads a tensão Brahman/ Atman, encontra-se na própria origem do mundo, é a própria origem do mundo, por isso, Aruni vai dizer:

'De fato, isto era o que eles sabiam, aqueles homens extremamente prósperos e imensamente instruídos de outrora, quando diziam: "Ninguém será capaz de produzir diante nós algo que já não tivéssemos ouvido, ou pensado, ou compreendido antes"

Por isso, a preocupação deste texto não é pôr à prova este ou aquele filósofo pertencente a uma determinada casta. Seu interesse é discutir uma grande verdade, uma verdade cosmogônica, uma verdade mítica, e transformá-la num discurso filosófico, precursor da mais importante questão tanto para a dialética, quanto para a superação da dialética: a questão do ser e não-ser.

Ao longo desse capítulo, o pai vai questionar o filho acerca de seus conhecimentos, mas não como fez Yajñavalkya com o rei Janaka, refutando ponto por ponto a doutrina passada

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por seus mestres. Ele simplesmente cala as vozes de todos os discursos anteriores, pela afirmação de algo "novo e inesperado":

'No princípio, meu filho, este mundo era simplesmente o que é existente – um somente, sem nenhum outro. Agora, sobre isso, há quem diga: "No princípio este mundo era simplesmente o que não é existente – um somente, sem nenhum outro. E do não-existente nasceu o existente". 'Entretanto, filho, como isso pode ser possível?' ele continuou. 'Como pode do não-existente nascer o existente? Ao contrário, filho, no princípio este mundo era simplesmente o que é existente – um somente, sem nenhum outro.46

Esta é a própria percepção da unidade ("Tudo é Um") e das ilusórias manifestações da linguagem, que sendo uma só, sem nenhuma outra, congrega em si todas as aparentes distinções. Neste perceber o nunca antes percebido está a atitude de alguém que, como o Rio de Chuang Tzu, emerge de seu estreito círculo e contempla um oceano, contendo em si todas as possibilidades do discurso, desfaz todas as distinções, diluindo em si todos os rios indistintamente. 'Agora, toma esses rios, filho. Os orientais fluem para o leste e os ocidentais para o oeste. Do oceano, todos mergulham deveras no oceano47; tornam-se apenas oceano. Neste estado não têm tal consciência: "Eu sou aquele rio". "Eu sou este rio". Exatamente do mesmo modo, filho, quando todas as criaturas alcançam o existente, não têm tal consciência: "Nós estamos alcançando o existente"48. Não importa o que sejam neste mundo – seja tigre, leão, lobo, javali, minhoca ou mosquito – todos eles mergulham dentro disto. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.(Grifo nosso)

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Aqui se ensaia o princípio de uma dialética que culminaria na obra de Nagarjuna, Mulamadhyamikakarikas.

47

Os dois oceanos são o oceano celestial e o oceano terrestre. Acreditava-se que tanto o rio Indo como o rio Ganges estariam conectados aos rios celestiais da Via Láctea. 48 Olivelle (1996, 349-350; 10.2n) declara haver uma outra tradução bastante usual para estas sentenças: "Apesar de todas essas criaturas terem vindo do Existente, não têm a consciência: 'Viemos do Existente'."

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Esta conclusão, em destaque, apresenta-se como um refrão após cada novo exemplo de Aruni para seu filho. Os exemplos são muitos, variam, mas o conhecimento que revelam é um só: Isto.

Ao nos depararmos com este texto é difícil não cair na armadilha de interpretá-lo à luz dos gêneros e da essência platônica. Entretanto, se persistirmos no cuidado de ouvir o que ainda não tinha sido ouvido, pensar o que não fora ainda pensado, e perceber o que não havia sido percebido, compreenderemos a diferença a partir mesmo do próprio gesto, que aponta sempre para algo concreto, a argila, o cobre, o ferro, todos eles artefatos de manipulação, de artes e ofícios. E, se a palavra "essência" soa-nos como testemunha contraditória do que acabamos de afirmar, isto é mais uma prova das limitações de nossa linguagem principalmente quando da tentativa de transmitir-se em outras línguas.

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II: A GRANDE BALSA E A IMPOSSÍVEL CONTEMPLAÇÃO DO RIO

i) O claro discurso de obscuros rios

Como vertente heterodoxa, o Budismo surge num período de grandes transformações sociais ocorridas em diferentes partes do mundo e, pontualmente, na Índia. É o Período Épico (por volta do séc. VI), tratado no capítulo anterior, quando a sacralidade do que é ouvido ajusta-se aos novos tempos, abrindo espaço para o que é recordado; confiando o saber à memória humana, e não mais a antigos sábios inspirados por divinas revelações. Neste período, portanto, dá-se um resgate do humano, primeiramente com os heróis sobrepujando os sábios, e, em seguida, com os santos sobrepujando os heróis. Durante esse período os avatares de Vishnu tornam-se humanos (Parashurama, o primeiro deles, seguido por Rama, herói do Ramayana, Krishna, herói do Mahabharata, e, o único de alegada existência histórica, Buda).

Este é o período em que a ortodoxia dos Vedas e das Upanishads daria lugar, pouco a pouco, aos ensinamentos tântricos de Shiva, (reforçando a tese de Daniélou sobre a presença das forças dionisíacas em tempos de grandes mudanças) e às mais diversas correntes filosóficas tais como Yoga e Samkhya, Vaisesika, Nyaya e Mimamsa, de um lado; Carvaca, Jainismo e Budismo, de outro.

Entretanto, há quem diga que nenhuma delas - muito menos o Budismo, como veremos a seguir – tenha criado qualquer postulado filosófico próprio, havendo, na verdade, várias novas interpretações daquele "Grande Segredo" revelado pelas Upanishads. Essas novas "visões" desenvolveram, sim, uma linguagem própria, que, pela primeira vez, pode ser considerada "filosófica" no contexto das diversas filosofias orientais. Sua nova linguagem é fruto de uma

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insurgência, num primeiro momento, contra aquela "falta de sistematização" anterior presente nas doutrinas veiculadas pelos Vedas, e, já em menor escala, pelas Upanishads. Por isso, elas representam uma crescente "sistematização" no pensamento hindu.

Como se viu anteriormente, a filosofia védica, por sua desconfiança com a linguagem, não abria mão da linguagem literária, metafórica, dos mitos, para a concepção de suas verdades. Esta linguagem era, além disso, e, antes de tudo, um mecanismo de velamento, utilizado para ocultar o pensamento sagrado, resguardando-o, assim, da gente comum, dos não-iniciados.

À época de Buda, no entanto, o conhecimento filosófico já começava a se difundir através de épicos como o Mahabharata e o Ramayana. Por esse motivo, estas obras já são consideradas marcas do declínio na transmissão do conhecimento. Mesmo assim, o princípio de velamento do discurso filosófico por meio dos mitos, agora heróicos, ainda de alguma forma se conservava. Eram discursos que não apareciam como tais; eram, portanto, de difícil sistematização e ainda relegados a poucos.

Isto se nos revela um pensamento dos mais desconcertantes. Os mitos contidos na poesia épica serem marcas de decadência cultural é uma ideia que incomoda o ocidente, quanto mais quando se sabe que o Mahabharata sozinho é oito vezes maior do que a Ilíada e a Odisseia juntas. Mais do que desconcertante, é uma ideia extremamente desconfortável. Para o Hinduísmo, no entanto, os textos do período épico já integram o cânone concebido para instruir os ignorantes. Isso, contudo, não significa que o ensinamento filosófico tenha se estendido às castas mais baixas, sem instrução. Isso significa que a ignorância expandia seu raio de influência entre os homens.

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Às margens do rio Ganges há a cidade de Patali-Putra. Lá houve uma vez um rei que possuía todas as qualidades de um governante. Um dia ouviu de alguém a recitação dos seguintes versos: “O conhecimento soluciona inúmeras dúvidas e revela além da percepção. O conhecimento é o olho universal; sem ele estamos cegos. Juventude, riqueza, poder, impetuosidade podem, cada uma, levar ao desastre; a um desastre ainda maior quando combinadas!” Quando o rei ouviu essas palavras, inquietou-se a respeito de seus filhos, que ainda não haviam recebido qualquer instrução, sempre seguindo o caminho errado, nunca os bons ensinamentos. Pensou então: “De que serve um filho se ele não é nem culto, nem virtuoso? – De que serve um olho doente? Somente para causar dor. Entre um não-nascido filho, um filho morto, e um filho estúpido, os dois primeiros são preferíveis, pois causam dor uma única vez, enquanto o último, a cada passo que dê.” (TÖRZSÖK: 2007, 63)

Esta é a introdução à obra Hitopadesha, uma compilação feita no século XII d.C. de 25 contos do Pancatantra e de contos de uma outra antologia desconhecida. Apresenta o mesmo argumento que, seis séculos antes, já figura na introdução do Pancatantra: um rei, desesperado com o estágio de ignorância avançado de seus filhos, vai pedir a um sábio que os instrua nos conhecimentos práticos (jurisprudência e política) de uma maneira rápida, simples e eficiente. Este é o domínio das fábulas, cujo gênero em sânscrito é nitishastra (niti “conduta” – de príncipes – shastra “manual”, “instrumento”), que restou como única fonte de conhecimento para os príncipes – a possibilidade mítica, filosófica, poética já descartada para sempre.

A doutrina e os fundamentos contidos nos hinos védicos já teriam desaparecido do convívio dos homens nesta última fase do ciclo da existência em que nós ainda nos encontramos: o chamado Kali Yuga. Assim, a nossa postura frente a um texto épico pode ser considerada ainda mais degradada do que a de um ignorante do Período Épico, pois nós podemos apenas nos encantar com os artifícios de uma narrativa cujos sentidos velados, em sua maioria, para sempre nos escaparão.

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O nosso encantamento com a narrativa é uma via de mão dupla. Ele faz com que nos sintamos na proximidade de qualquer mito, e, ao mesmo tempo, este mesmo encantamento causado pela narrativa faz-nos desconfiar desta como veículo para a transmissão do verdadeiro conhecimento: a filosofia.

Talvez, no tempo do surgimento daquelas novas correntes filosóficas da Índia, essa ignorância, essa distância, da qual compartilhamos num grau cada vez mais elevado, já fosse patente, e, por isso, mesmo o sentido dos textos de "mais fácil acesso" já seria do domínio de um círculo estreito de pessoas, os "árias" de todos os tempos. Talvez esse mesmo movimento tenha ocorrido na Grécia e é por isso que também se fala em degeneração dos mitos gregos já em Hesíodo e em Homero. Por isso, na introdução de seu The Epic of Gilgamesh, Andrew George, referindo-se a este épico, nos diz: “A principal função do poema não é explicar origens. Está mais interessado em examinar a condição humana tal qual ela se dá. Nesses termos, o épico não é mito.” (GEORGE: 1999, xxxiii. Grifo nosso.).

Na verdade, a questão dos mitos e a relação de sua degenerescência com a épica não é uma questão de simultaneidade. As duas instâncias – mítica e épica – jamais convivem. Os épicos não são somente uma versão degenerada dos mitos: a degenerescência dos mitos se dá, inicialmente (até desaparecerem por completo), sob a forma de uma épica. Mesmo os hinos aos deuses atribuídos a Homero já se encontram sob esse discurso de caráter edificante, conduzindo-se como uma narrativa de percurso da vida de um herói, seus feitos, suas alianças, suas derrotas, sua vitória. Não podem ser comparadas a esse gênero único, esse gênero interdito, inimitável, característico dos mitos, e de força tão estranha que um esforço exegético vai sempre, inevitável e necessariamente, acompanhá-lo, impulsionando toda a roda dos discursos filosóficos.

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A primeira escola filosófica propriamente dita da Índia, que passa a clamar pelo nome de darsana (que, como sabemos, liga-se à concepção de "ver"), o Samkhya, e, após ela, todas as demais filosofias tentam recuperar o discurso, evidenciando-o como discurso lógico, sistematizando-o. Assim, surgem as filosofias ortodoxas hindus, debruçando-se sobre o sentido por trás dos mitos e rituais védicos, e, predominantemente, sobre a secreta conexão presente nos diálogos proferidos pelos "filósofos" das Upanishads. Fazê-los aparecer por trás dos mitos e discuti-los como princípios válidos foi a pedra de toque para o surgimento das outras doutrinas, as heterodoxas, que não mais teriam como parâmetro um discurso mítico ou épico, mas, sim, o próprio Discurso.

As doutrinas heterodoxas que, portanto, se desligam do universo mítico da religião hindu, integram aquele segundo grupo supracitado: Carvaca, Jainismo e Budismo. O Budismo em suas escolas da vertente Mahayana, Madhyamika e Zen, que particularmente nos interessam neste trabalho, tem como principal meta revelar o discurso por trás de qualquer linguagem, revelá-la como discurso, revelando assim sua inconsistência e a impossibilidade de uma lógica, de uma verdade universal, baseada na linguagem.

O Budismo vai nos mostrar que, tanto o texto poético, quanto o filosófico, são exercício de linguagem para escamotear o discurso. Parece um contrassenso que os discursos queiram escamotear-se. Que eles não queiram ou não tenham a necessidade de se transmitir. Ora, mas se é desse impulso, de trazer à claridade, de tornar visível que as filosofias da Índia (darsanas) surgem... mas, por fim, o Budismo de repente percebe que, quanto mais se tenta clarificar a linguagem, despojando-a de seus elementos poéticos, metafóricos, mais se enreda na ilusão de que ela revela a verdade absoluta. Desconfiando da linguagem, através dos mitos,

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ainda se pode desconfiar do discurso que carregam. Sendo apenas discurso clarividente, a linguagem se mune de uma falsa obscuridade e de uma falsa verdade inquestionável.

Assim, o Budismo insere-se num contexto onde o problema da linguagem já havia se dirigido para o problema do discurso. Seguindo por um caminho que quer se distanciar cada vez mais dos mitos, o Budismo mune-se do discurso filosófico para interpretar de "novas e inesperadas maneiras" os conceitos pré-formulados por Yajñavalkya e seus companheiros. Mas, como veremos mais adiante, a filosofia budista não responde de novas e inesperadas maneiras às questões anteriores. Sua resposta será, na verdade, o silêncio, que naturalmente segue uma etapa inicial de negação, de refutação de todas as doutrinas anteriores e de sua própria doutrina, que, na verdade, não existe; Buda nunca teria ensinado coisa alguma:

Nenhuma [separada] realidade foi pregada Em nenhum lugar e nunca por Buda (Madhyamika. In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 345)

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ii) A aceitação do curso do rio

Ao longo de sua história e expansão pelos quatro cantos do mundo49 inserem-se todas as possibilidades de discurso. Por isso se torna, a despeito de sua motivação inicial, uma religião, com cultos, rituais, livros sagrados. De fato, torna-se uma das grandes religiões do mundo, mais uma entre as religiões moralistas.

A vertente mais antiga do Budismo, a escola Theravada (thera "antigo", "dos antepassados"; vada, "conhecimento", "doutrina") é, sobretudo, uma religião exclusivamente monástica. Como conhecimento antigo, ainda não consegue afastar-se dos preceitos instituídos desde as bases do pensamento hindu. De cunho altamente conservador, observa diligentemente a manutenção do antigo sistema de castas, reservando, somente aos brâmanes e kshatryas a possibilidade de iluminação (nirvana), que é a libertação da roda dos acontecimentos e das encarnações (samsara). É por esse motivo que ela será mais tarde pejorativamente chamada de Hinayana (hina, "pequena"; yana, "balsa"). Essa primeira vertente budista, que transformou os discursos e ensinamentos de Buda em religião moralista, traduz exemplarmente a confusão instaurada pela linguagem.

Despojada de qualquer carga mítica, a linguagem como puro discurso carrega-se de uma aura autossuficiente, que lhe dá a aparência de verdade absoluta, que pode ser adequada a qualquer intenção, a qualquer situação. Assim, o Budismo, que é um dos agentes de grandes transformações, que se volta contra todas as doutrinas pré-existentes, vê-se de repente transformado num conjunto de dogmas de conformação universal, absoluta. Vê-se também regressando ao misticismo dos antepassados. Como religião, aproxima-se bastante das 49

O Budismo é a única religião/ filosofia de origem hindu que extravasa os limites do subcontinente indiano e só sobrevive, na verdade, aí fora.

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grandes religiões do Ocidente, que são, na verdade uma só e a mesma. Possui como elas um salvador, que nasce de modo milagroso e puro – sua mãe sonha com a sua chegada, que é anunciada por uma série de sinais auspiciosos, e dá a luz não da forma natural, mas de pé, sob uma árvore, parindo a criança pela lateral de seu corpo, logo abaixo do braço.

É possível, entretanto, que a própria recusa dos mitos tenha originado o desejo do mito. De fato, há uma grande rejeição inicial a essa linguagem pura, sistemática, que tem início no Período Épico. O pensamento hindu, que sempre entendera linguagem como pobre de experiência, ainda necessitava equipá-la com instrumentos que levassem ao entendimento, à percepção do nunca antes percebido, nem visto, nem ouvido. Para esse pensamento a linguagem carece da ajuda da linguagem, a ajuda das imagens, dos mitos, das narrativas. Por isso o Período Épico ainda trabalha com narrativas “míticas” ao lado de concepções filosóficas das mais variadas e opostas; ainda busca o culto religioso mesmo num movimento de racionalização da fé hindu.

Por isso mesmo, tendo surgido num período de mudanças, em meio ao ressurgimento de antigas religiões pré-árias e extáticas, a religião Budista também irá admitir práticas ritualísticas de cunho shivaísta. Esta será a forma do Budismo Tibetano – herdeiro direto do culto de Shiva, cuja morada é uma montanha no Himalaia – chamado Vajrayana ("Veículo do Diamante"), Tantrayana ou Mantrayana, que adota uma meditação fundamentada no transe e no uso de entorpecentes.

Talvez o motivo para práticas tão díspares seja o próprio debruçar-se desta nova filosofia sobre o discurso, percebendo o até então não percebido fato de que toda manifestação da linguagem é o mesmo e único discurso: a própria Linguagem. Assim, o Budismo tenta superar

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esta superficialidade, que são as aparentes diferenças, dicotomias, contradições da linguagem, ao admitir e relevar qualquer divergência de prática, conceitos e até de propósitos. Mas, mesmo com essa postura tolerante, é inevitável, a partir do momento em que se profere um discurso, o surgimento do combate, e da partidaridade.

Assim, houve, depois que Buda parte em definitivo desta terra, depois de sua iluminação, inúmeras divergências entre seus discípulos, originadas já naquele primeiro estágio monástico. O mote principal das discussões teria sido a questão da própria iluminação, e de quem estaria habilitado a alcançá-la, enfim, que seres possuiriam a chamada "essência búdica". Eis o início do grande sismo, que dividiria o Budismo – tanto a religião como a filosofia – em Hinayana (que atualmente sobrevive apenas como religião e somente nos países do sudeste asiático) e Mahayana (maha "grande"; yana, "balsa").

Sobre toda esta polêmica conta-nos Zimmer que "um dia chegou aos ouvidos de Buddha este relato complexo:"

Senhor, um certo monge cometeu uma ofensa que considerou ser de fato uma ofensa, ao passo que os outros monges consideraram aquela ofensa como não ofensa. Depois, ele passou a considerar aquela ofensa como não ofensa, enquanto os outros monges começaram a tomá-la como ofensa (...). Então aqueles monges expulsaram o monge por sua recusa em reconhecer a ofensa (...). O monge, então, reuniu seus companheiros e amigos entre os monges que estavam a favor e enviou um mensageiro a seus companheiros e amigos entre os monges de todo o país (...) e os partidários do monge expulso permaneceram a seu favor e o seguiram. (Mahavagga 10. 1. In: ZIMMER: 2005, 353)

Este texto, contudo, como qualquer outro de tradição oriental não pode ser levado ao pé da letra, devemos olhar para o que ele aponta, para o que põe em evidência, não para o modo como o faz, não para o dedo. O indiscutível tom cômico aí presente enfatiza a banalidade dos 96

discursos, e das convicções, a fragilidade da linguagem que não consegue sustentar por muito tempo a validade de qualquer verdade, seu caráter pontual, seu caráter arbitrário.

Em sua passagem de Hinayana para Mahayna, o Budismo tende cada vez mais à aceitação. Aceita, primeiramente, que todos os seres, independente de casta, independente de ordenação monástica, possuem essência búdica. Aceitando que não há nem transitoriedade nem permanente absoluto – fundamento da escola Madhyamika, ou "Caminho do Meio" – aceita a triste constatação de que nirvana e samsara são o mesmo, e que, portanto, não há iluminação.

Não há qualquer diferença Entre nirvana e samsara Não há qualquer diferença Entre samsara e nirvana (Madhyamika. In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 344)

E, por fim, desta aceitação nasce a postura fundamental ao ponto culminante de sua filosofia – o Zen: a aceitação do assim sendo (tathata), onde o assim, significando o indescritível, aponta para a impossibilidade de qualquer postulação. Essa é a postura do seguinte mestre Zen, na China do século XIV:

Yün-mên um dia mostrou o seu cajado para uma assembleia de monges dizendo: "Pessoas comuns ingenuamente tomam-no por uma realidade; os dois Yanas50 analisam-no e declaram-no não-existente; os Pratyekabuddhas51 declaram-no como uma manifestação da Maya; e os Bodhisattvas52 aceitamno tal qual é, declarando-o vazio. Quanto aos seguidores do Zen, quando veem um cajado, simplesmente chamam-no cajado. Se querem caminhar, simplesmente caminham; se querem sentar, simplesmente sentam." (In: DUMOULIN: 1971, 37)

Ambos os extratos acima evidenciam o mesmo exercício de negação, a mesma cessação dos discursos presentes desde a origem do Budismo. Esta mesma negação e cessação dos 50

Mahayana e Hinayana. Os seguidores do Hinayana. 52 Os seguidores do Mahayana. 51

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discursos encontravam-se já no cânone theravada, num conjunto de textos denominado Prajñaparamita ("Perfeição da Sabedoria Transcendental"), que é considerado, desse modo, o precursor da vertente Mahayana.

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iii) Grande balsa ao sabor do curso do rio

O Budismo Mahayana surge, na verdade, com o próprio Buda. É o próprio discurso em discussão que motivou todas as demais doutrinas heterodoxas da Índia. Como qualquer outro movimento de rompimento com a tradição, o Budismo não poderia se contentar com um conhecimento dos antepassados inflexível e dogmático. Por isso, dissidente talvez seja apenas a vertente Hinayana, que resgata uma linguagem fundamentada em ações, em práticas de rituais e cultos religiosos, na manutenção da ordem estabelecida.

Conta-se, então, que a doutrina mahayana, ou seja, o real ensinamento de Buda, não surge como uma reação ao dogmatismo do Theravada, mas, sim, é resgatado após uma maturidade filosófica, após um acostumar-se aos discursos, desenvolvidos durante aquela primeira etapa, que, assim, é, apesar de tudo, de extrema importância.

Isto nos faz lembrar o caso de Uddalaka Aruni, que após aconselhar seu filho a uma dedicação exclusiva aos estudos durante doze anos, faz com que veja a vanidade do acúmulo de conhecimento. O entendimento disso, entretanto, só é possível através da experiência desse acúmulo. Este pensamento coaduna-se também com a imagem da jangada presente na citação da Amrtabindu Upanishad, no capítulo anterior. É o mesmo pensamento deste discurso de Buda pertencente ao cânone páli do Budismo Hinayana:

"O homem inteligente não seria aquele que abandonasse a canoa (não mais útil para ele) ao fluxo do rio e continuasses seu caminho sem olhar para trás? A canoa não é um simples instrumento a ser descartado e abandonado uma vez que tenha cumprido o propósito para o qual foi construída?" Os discípulos concordam que esta é a atitude apropriada a tomar em relação ao veículo, uma vez que desempenhou sua função. O Buddha conclui então: "Da mesma maneira, o veículo da doutrina deve ser descartado e abandonado quando se alcança a margem da Iluminação (nirvana)." (Majjhima-Nikaya 3. 2. 22, 135. In: ZIMMER: 2005, 344)

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Esta doutrina a que se refere está longe de ser apenas a doutrina dos antepassados (a filosofia védica ou upanishádica), ou a doutrina monástico-dogmática do Theravada. É todo e qualquer ensinamento, inclusive o ensinamento de Buda por excelência – a doutrina Mahayana, que, ainda apoiada em conceitos, é igual a todos os outros discursos: um instrumento que deve ser abandonado.

Isto vem ao encontro da questão do vazio (sunyata), que, ao lado do conceito de tathata (o assim sendo, o indescritível), é a nova base do Budismo Mahayana. Esta nova, porém desde sempre existente, vertente budista deixa de lado, como a uma canoa, a filosofia tripartida da reencarnação (karma, samsara e nirvana) para, "olhando para si mesma" questionar a própria validade de seus ensinamentos.

É novamente a questão da cessação levada radicalmente a cabo pelo Budismo – principalmente na escola Zen. E é uma das maiores contradições encaradas por quem se dedica ao estudo desta filosofia. O questionamento levantado já no início deste trabalho é o questionamento que sempre se faz ao se deparar com o que parece um impasse. Como pode uma filosofia seguir por esta via, a via da cessação dos discursos? Como é possível que produza discursos como este, presente no Sutra do Diamante53 (VajrachchedikaPrajñaparamita-Sutra):

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Por sua grande importância para a compreensão do Budismo Mahayana, este texto encontra-se disponível integralmente ao final deste trabalho, no Apêndice B.

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7 Os maiores, perfeitos além do aprendizado, não pronunciem palavras de ensinamento Subhuti, o que pensa? O Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação? O Tathagata tem algum ensinamento a ser enunciado? Subhuti respondeu: Como eu compreendo o significado de Buddha54, não há nenhuma formulação de verdade na consumação da incomparável iluminação. Acrescentando que o Tathagata não tem nenhuma formulação de ensinamentos a enunciar. Por quê? Pois o Tathagata disse que a verdade não pode ser contida nem expressa. Ela não é ser nem não ser. Este é o princípio não-formulado do fundamento dos diferentes estágios de todos os sábios.

O Sutra do Diamante pertence àquele conjunto de textos chamado Prajñaparamita. Anterior ao Mahayana, é considerado de fundamental importância para o seu resgate, visto que participou de maneira chave para o amadurecimento das mentes dos discípulos budistas, influenciando aquele que é considerado o "fundador" do Mahayana: Nagarjuna, que, com sua doutrina do "Caminho do meio" (Madhyamika), lança definitivamente a grande balsa no fluxo do rio e, definitivamente, a abandona ao sabor do curso do rio.

Qual a sua participação no resgate deste que é, por excelência, o conhecimento búdico?

Seu nome evidencia-a. Na natureza o diamante é o material de maior dureza, de mais alta indestrutibilidade. Só ele é capaz de riscar todos os outros materiais, só ele é capaz de riscar a si mesmo. Filosoficamente, o Sutra do Diamante tem a habilidade de cortar, de destruir todas as categorias de distinção mental propostas pela linguagem filosófica como verdades absolutas, até mesmo aquelas propostas por si mesmo, pelo Budismo.

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Manteve-se aqui, contrariamente ao que se fez no restante do trabalho, a grafia original Buddha, para manter a predominante carga de epíteto, "o iluminado" que o termo apresenta neste texto, juntamente com Tathagata (de cujo controverso significado trataremos mais à frente). Assim, não é do "nome" como o personagem histórico, o filósofo, o líder religioso, é mundialmente conhecido que se fala aqui – é o modo como um discípulo se dirige ao seu mestre.

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18 Todas as modalidades mentais são apenas uma mente "Subhuti, o que pensa? O Tathagata possui o olho humano?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho divino?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho gnóstico?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho da verdade transcendental?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho búdico da onisciência?" "Sim, Honorável, ele possui." "Subhuti, o que pensa? Sobre os grãos de areia do Ganges, o Buddha lecionou sobre eles?" "Sim, Honorável, o Tathagata lecionou sobre esses grãos." "Bem, Subhuti, se houvesse tantos rios ganges como grãos de areia do Ganges e houvesse uma terra búdica para cada grão de areia em todos esses rios ganges, muitas seriam estas terras búdicas?" "Sim, realmente, Grande Honorável!" Então o Buddha disse: "Subhuti, tal seja o número de seres que habitem nestas terras búdicas, apesar de eles possuírem diversos modos mentais, o Tathagata compreende todos. E por quê? Pois o Tathagata ensina que todas estas não são mentes, elas são apenas chamadas mente. Subhuti, é impossível reter a mente passada, impossível reter a mente presente, e impossível tatear a mente futura."

Mais uma vez vemos esta prática, que já pode ser percebida lá no capítulo VI da Chandogya Upanishad55, de pôr em evidência as distinções aparentes da linguagem, de qualquer linguagem, mesmo, e principalmente, da linguagem filosófica. Como uma filosofia pode seguir esta via? Como pode uma filosofia abandonar o discurso? Como pode abandonar seu próprio discurso?

Percebendo que tudo é discurso, que tudo é o mesmo discurso, que discurso é apenas o nome discurso. O discurso é a balsa que deve ser abandonada ao sabor do curso do rio. A experiência da verdade é impronunciável, indescritível, vai além do jogo de afirmação ou negação. E isto é, contraditoriamente, entretanto, um novo discurso movimentando infinitamente a roda dos discursos ("impossível reter a mente passada, impossível reter a

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"A transformação é um instrumento verbal, um nome."

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mente presente, e impossível tatear a mente futura"). Estes são os novos ensinamentos do Budismo Mahayana:

A verdade não pode ser contida nem expressa. Ela não é ser nem não ser.

E cada um desses novos ensinamentos vai ser acolhido por cada uma dessas duas escolas mahayanas: o Madhyamika e o Zen. O "Caminho do meio" (madhyamika) segue a trilha do exercício da negação de postulados, negando, principalmente, ambos os extremos da preocupação filosófica: a afirmação e a negação do ser. A esse exercício dá-se o nome de Vazio (sunyata). Essa doutrina do Vazio relaciona-se diretamente com a "aformal forma da realidade", o indescritível "assim sendo" (tathata), que será cuidadosamente observada pelo Zen em seu resgate de antigos gêneros, abandonando o discurso lógico e racional através de uma linguagem figurativa, paradoxal, que tende a buscar aquele entendimento pelo silêncio.

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iv) O caminho do meio

Conta-se que, após atingir o estágio do completo despertar, da iluminação, Buda calou-se, e para sempre se calaria não fosse a súplica do deus Brahma, do panteão hindu, para que ele dividisse seu conhecimento entre deuses e homens. Tal conhecimento, entretanto, não podia ser revelado; mas não pelo mesmo motivo do Hinduísmo – por uma questão de manutenção dos segredos e mistérios nas mãos de castas superiores, mas por ser de impossível revelação. Buda, que nasceu numa casta guerreira, no clã dos Shakya, é propriamente chamado de "Shakyamuni" – o "silencioso sábio" (muni) dos Shakya.

Vemos assim, que desde o início, a doutrina budista está atrelada ao silêncio. É do silêncio que ela nasce. É, no mínimo, espantoso que uma filosofia que nasce do silêncio com o propósito de calar-se para sempre atinja tantas culturas para fora da esfera de sua origem e produza tantos textos filosóficos dos mais variados gêneros. Não, não é de se espantar: até mesmo o silêncio diz, até mesmo o silêncio é discurso. E talvez seja o mais profundo e profícuo dos discursos.

Como já foi tratado anteriormente, o gênero pergunta-e-resposta (chin. wen-ta), ao lado dos textos biográficos, é um dos meios mais utilizados na transmissão da filosofia budista. Estes gêneros resgatados pelo Budismo Mahayana, principalmente pelo Zen, cresceram e suplantaram os antigos gêneros do cânone Theravada – Hinayana – e do Hinduísmo, que são os tratados filosóficos – shastra.

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Neste exercício de pergunta e resposta, num esforço quase oral de linguagem56, a resposta é sempre desconcertante, no sentido de fazer aparecer, pela desconstrução lógica, a própria falta de lógica da pergunta anterior ou de qualquer formulação lógica. Anular os questionamentos é anular os discursos. Então, por que os discursos de Buda? Por que, então, estudar os textos do Budismo?

Pelo mesmo motivo por que eles se conceberam: para fazer aparecer a linguagem.

Não há filosofia sem dizer. Como então buscar o Isto, se tal busca é filosófica? Como buscar o Isto sem dizê-lo? O Isto existe, mas não é. O Isto é apenas mais uma entre tantas categorias criadas pela linguagem assim como a própria linguagem. Como podem, então, existir os ensinamentos budistas em torno do Isto, com categorias como a iluminação, o vazio, e o silêncio? É Nagarjuna quem vai primeiro questionar isto e, de não tão "novas e inesperadas maneiras" responder a isto.

A resposta dada por Nagarjuna é a de que há dois ensinamentos: o que é passível de ser transmitido e que confere uma verdade, e o que não é passível de ser transmitido e que confere, assim, não conferindo, uma outra verdade. No primeiro ensinamento ainda se deve buscar, já que é o único caminho possível, a discriminação e aproximação por meio da linguagem. Daí os termos "verdade", "iluminação", "vazio", "silêncio". Nagarjuna sabe-os apenas nomes, mas não os considera prova de contradição alguma no pensamento budista da cessação dos discursos. Mesmo sendo discursos, estes termos são necessários a um primeiro estágio de compreensão. São, novamente, como a canoa, a jangada.

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O Budismo Mahayana, por estender o acesso à outra margem a todos os seres, indiscriminadamente, vai também se desligar da língua sagrada, que era também a língua de cultura, o sânscrito, contemplando tanto os coloquialismos de diferentes dialetos, quanto outras línguas pelo mundo.

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Considerado o fundador do Budismo Mahayana, o Budismo que se difundiria pelo mundo, abarcando pessoas das mais variadas castas, Nagarjuna ("Luz das Serpentes"), que teria vivido no século II ou III d.C., possui uma origem incerta e questionável. Sobre ele, conta-nos um sábio hindu de nome Kumarajiva, numa biografia que traduziu para o chinês no século V, que nasceu numa família brâmane, e que, ainda garoto, dominava os quatro Vedas e todas as ciências, inclusive a magia. Mais tarde, fazendo uso dessa magia para se tornar invisível, entrou, junto com três amigos, no harém real, mas logo foram apanhados. Seus amigos foram condenados à morte, e a ele foi permitido escolher a outra morte: os votos monásticos.

Em noventa dias, estudou e dominou todo o cânone páli do Budismo (o cânone theravada), após o que, seguiu para o norte em busca de novos conhecimentos, chegando ao Himalaia, onde um velho monge ensinou-lhe os sutras do Mahayana. Após esse contato, um reiserpente (nagaraja) transmite-lhe um comentário autêntico sobre aquelas páginas.

Como pode então Nagarjuna ser considerado fundador de uma vertente filosófica que ele mesmo teve que aprender após estudo e peregrinação? Na verdade, ele apenas revela este conhecimento que surge desde os primeiros ensinamentos de Buda e os difunde pelo mundo. Diz-se que os ensinamentos do Mahayana foram considerados pelo próprio Buda demasiado profundos para os seus contemporâneos e, por isso, deixara-os guardados em segredo sob a proteção de competentes guardiães. Foram necessários séculos de aprendizado na doutrina Hinayana – institucional, monástica, voltada somente às castas dos brâmanes e kshatryas – para que esses ensinamentos pudessem finalmente ser revelados.

A história de Nagarjuna confunde-se, portanto, com a própria trajetória de amadurecimento do Budismo. Um brâmane que é condenado à vida monástica, necessariamente numa doutrina

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heterodoxa, já que o bramanismo não possuía ordem, passando pelo estágio da peregrinação até a obtenção dos sutras mahayanas. Mahayana, como se sabe, significa "grande balsa". Nagarjuna é, assim, o condutor dessa balsa que é levada pelo rio em que transitam os homens.

Mas em que consiste essa mudança de balsa em termos filosóficos? Nestes termos, é mais que uma mudança de veículo, é uma mudança no próprio curso do rio. É a percepção da impossibilidade do rio, do seu percurso e do seu transitar. Na busca do Isto de todas as filosofias anteriores a Buda havia a ilusão da Verdade. A Verdade que era o conhecimento dos mitos, que era a essência, que era nirvana, que, enfim, podia servir a diferentes doutrinas com diferentes nomes, chega até o Budismo como "iluminação".

A vertente Hinayana vai reservar esse conhecimento da Verdade, a iluminação, apenas às duas castas mais altas da sociedade hindu: os brâmanes e os kshatryas, e apenas por via monástica. A grande balsa mahayana vem e estende a possibilidade da iluminação, a "essência búdica", a todos os seres: todas as castas, estrangeiros, animais, plantas, etc. sem necessidade da ordenação religiosa.

Com Nagarjuna tem lugar a desconcertante visão: não há iluminação, não há balsas não há nem mesmo o rio. Nirvana (iluminação) e samsara (o mundo, a roda dos acontecimentos) são o mesmo. Não há como escapar à roda das encarnações. Não há salvação. Tudo é discurso. Nenhuma verdade existe, não há nada a ser ensinado.

Herdeira direta da filosofia contida no Prajñaparamita, sua obra Mulamadhyamikakarikas ("Versos sobre o Caminho do Meio") retoma, ao mesmo tempo que inicia, esta que será, mas sempre foi, a grande tradição budista: a cessação dos discursos. Sua obra, portanto, além de

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pôr em movimento uma outra balsa, um outro veículo, inaugura também uma outra via no rio dos discursos: o caminho do meio.

Este é o caminho entre a negação e a afirmação, entre ser e não ser. A partir de seus versos, que ironicamente protagonizam o surgimento das primeiras formulações do pensamento dialético na Índia, exerce-se radicalmente uma crítica às categorias discriminatórias da linguagem.

A partir daí se inicia, pois, todo um movimento que não postula nenhum ensinamento, nenhuma nova doutrina, contentando-se em negar conceitos pré-existentes. Já observamos este movimento no Sutra do Diamante e podemos observá-lo também em outro sutra que compõe o Prajñaparamita, o Sutra do Coração:

Não há nem forma, sem sentido, nem percepção, nem impulso, nem consciência, nem olho, ou ouvido, ou nariz, ou língua, ou corpo, ou mente, nenhuma forma, ou som, ou cheiro, ou sabor, ou tactilidade, nenhum objeto da mente... (In: McEVILLEY: 2002, 419)

Neste como naquele trecho do Sutra do Diamante, podem-se perceber várias categorias da linguagem sendo negadas, várias verdades e conceitos filosóficos anuladas por aquilo mesmo que as criaram: os discursos. Mas contra elas não se posiciona nenhum novo discurso, não há nenhum ensinamento, contra elas está apenas a sua própria inconsistência.

Este exercício de negação é, entretanto, mais antigo que os sutras do Prajñaparamita, iniciam-se, como toda filosofia da Índia, lá nas Upanishads, com os postulados, aparentemente contraditórios, de Yajñavalkya: "neti, neti" ("nem isso, nem isso") – referindose às manifestações aparentes, e "iti, iti" ("isso e isso") – referindo-se ao princípio universal e 108

imutável. A negação de Yajñavalkya é, portanto, uma negação inicial, que ainda possui um contraponto positivo, ainda se firma num conceito (o Todo, o Absoluto, a Unidade, o Permanente), numa afirmação absolutista. Em seguida, a filosofia theravada irá transformar esta afirmação em negação, com o conceito de Maya, não há ser, só o que existe são as manifestações da Maya, tudo é ilusão. E, da mesma forma que esses ensinamentos, a via do meio de Nagarjuna também vai se tornar uma etapa inicial, um veículo daquilo que culminará, e que vigora até hoje, no Budismo Zen.

A busca pelo Isto é empreendida sempre que o homem se depara com a transitoriedade; a transitoriedade para o Budismo é a infinita transitoriedade dos seres nas diferentes encarnações. Nagarjuna vai ser aquele que percebe que não existe tal transitoriedade. Nada de fato passa, tudo é uma infinita permanência, não há escapatória. Assim, o que pode buscar o Mahayana, já que não é atingido pela consciência da transitoriedade, se o que o atinge é a consciência da permanência?

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Entrecaminhos: I Ching

Há uma obra que aparece ter permanecido incólume em meio ao princípio da mutação: e, curiosamente, é a obra que se intitula "Mutações".

Já nos referimos a ela com relação à questão da busca. Deter-nos-emos agora sobre seu papel na história do Budismo. Como se sabe, o I Ching é, mesmo tardiamente escrito, o clássico mais antigo da China, remontando às suas origem como civilização. Usado em práticas divinatórias, impulsiona-se, como o próprio nome – I – já diz, para a questão das mutações. Diz-se que a simplicidade da composição dos seus signos foi baseada nos desenhos do casco de uma tartaruga, o próprio casco de tartaruga teria servido nos rituais mágicos57. Curiosamente é a tartaruga um símbolo de longevidade, é a própria permanência, ou a permanência por mais tempo. Nos símbolos do I-Ching conjugam-se, portanto, as duas maiores inquietações humanas: a transitoriedade e a morte.

Este conjugar traduz-se pela permanência da transitoriedade. As mutações, e somente elas, são o que permanece no infinito movimento da impermanência. Como as mutações são tudo o que permanece no eterno ciclo, os signos que compõem o livro conseguiram também permanecer e ser (não tão facilmente) compreendidos entre diversas e opostas escolas de pensamento em diferentes partes do mundo. Isto pode ser mais bem evidenciado no lugar onde teve origem, no que hoje é a China.

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No Hino Homérico a Hermes há também a presença marcante de uma tartaruga, cujo casco é transformado pelo deus na lira primordial. Antes de criá-la, porém, menciona uma estranha função mágica que teria sido desempenhada pela tartaruga: “Viva, serás uma fórmula contra feitiçaria, e, morta, um muito doce instrumento musical.” (In: TRZASKOMA, SMITH e BRUNET: 2004,188.)

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Lá, este clássico serviu e até hoje serve aos estudos confucionistas, taoístas e budistas. Atribui-se a Confúcio, ou aos seus primeiros seguidores, a eleição do livro como clássico e comentários esclarecedores. Taoístas e budistas escreveram novas versões do livro e novos comentários e interpretações. Assim, existem o I-Ching confucionista, o taoísta e o budista. Estes, sim, especificamente, não conseguem transcender sua espaço-temporalidade, como o fez e vem fazendo aquilo que originalmente se denominava somente por I: os símbolos sozinhos, sem qualquer comentário, divididos em trigramas (as formas mais simples) e hexagramas (formas mais complexas). Eles captam a eternidade do princípio da mudança de que trata o hexagrama 54 – Kuei Mei, "a jovem que está se casando"– sobre o qual um comentário, que integra o grupo de comentários chamado "Imagem", diz: "Assim o homem superior compreende a transitoriedade à luz da eternidade do fim".

Todos estes nomes, estes atributos (os títulos dos trigramas e hexagramas, os próprios nomes "trigrama" e "hexagrama", e, principalmente, seus comentários, do mais antigo ao mais recente, de qualquer escola) tornam a leitura desta obra bastante difícil, quase impossível para nós. Entretanto, seus elementos de harmonia simples, que lidam basicamente com o que se convencionou pelos princípios do Yin e Yang – princípio receptivo e criativo – despertam uma curiosidade e estudo permanentes e ainda continuam servindo àquele mesmo propósito por que foram criados: o uso oracular.

Isso se deve ao fato de que, mesmo sendo linguagem, constituem um mínimo de linguagem, seu discurso é praticamente inexistente e pode ser perigosamente confundido com o discurso dos comentários que não são propriamente I. Esses comentários nasceram, como todos os discursos, num período de decadência, de esquecimento, de deturpação. Servem para esclarecer os signos do I-Ching ou interpretá-los à luz de uma determinada filosofia e, assim,

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acabam por torná-lo de difícil acesso, sendo necessários sempre novos comentários e interpretações dando continuidade assim ao ciclo de todos os discursos.

O comentário budista à obra deu-se desta mesma maneira, mesmo sendo o Budismo uma filosofia que busca a cessação dos discursos. O I-Ching budista foi escrito durante a Dinastia Ming, no século XVII da nossa era, por Chih-hsu Ou-i (1599-1655). Sobre este período da história da China conta-nos Thomas Cleary que foi conturbado, de revoltas e dissidências dentro da doutrina budista na China e que se fazia necessária a escrita de compêndios e tratados filosóficos. A vida daquele autor é tão conturbada quanto a sua época e passa por diversas transformações que, por outro lado, ilustram muito bem e se coadunam com o próprio percurso das três filosofias chinesas: Confucionismo, Taoísmo e Budismo.

Conta-se que, como todo jovem letrado que almejasse ser bem sucedido nos concursos públicos, Ou-i inicia seus estudos no pensamento confucionista e escreve inúmeros ensaios antibudistas de que mais tarde se arrependeria. Entretanto, como seguisse uma escola taoísta de influência budista – e daí se percebe a profunda ligação que têm na China estas filosofias – aos vinte anos passa a adotar práticas budistas de meditação e de recitação de mantras. Ao longo de sua vida, sempre abalada por períodos de graves doenças, discute e questiona essas práticas e perfaz um caminho cada vez mais de volta à tradição budista, aos textos canônicos, principalmente quando passa a questionar a validade dos discursos dos Koans.

Todos esses questionamentos levaram-no à conclusão de que todas as diferenças doutrinárias entre Budismo, Confucionismo e Taoísmo devem-se ao fato de que todos esses ensinamentos não são nada mais do que meios temporários. Novamente a questão da mutação

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que assola todos os homens. E ela é ainda mais aterradora quando prova ameaçar a própria verdade ou as verdades em que se apóiam os homens ao longo de toda uma vida.

A vida de cada um pode acabar; mesmo que isso traga dor, isso é compreensível, esperado. O que nos pega de surpresa e causa uma dor muito difícil de ser superada é a transitoriedade dos discursos, é a sua não transcendência da finitude da existência humana. Assim, é possível ao longo de uma curta existência como foi a de Ou-i perceber a finitude da linguagem. É esta finitude, é esta fragilidade que aproxima todos os discursos, conclusão a que já havia chegado também o fundador de uma escola taoísta que propõe a união das três doutrinas, visto que são o mesmo: discurso.

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Entrecaminhos: o supremo caminho do não caminho

O que é o Caminho? Como se aproximar do Caminho? Como abandonar o Caminho? Estas questões fazem parte até mesmo do discurso mais reticente a qualquer forma de discurso. Neste koan, chamado "O normal é o caminho" fala-se do Caminho, onde os caminhantes que até aqui chegaram reconhecerão os passos percorridos.

Zhaozhou perguntou a Nanquan, "O que é o Caminho?" Nanquan disse, "A mente normal é o Caminho." Zhaozhou perguntou, "Pode-se dele aproximar deliberadamente?" Nanquan disse, "Se você tenta se dirigir a ele, você se desvia dele." Zhaozhou disse, "Se não se tenta, como saber que é o Caminho?" Nanquan disse, "O Caminho não fica na província do conhecimento, tampouco na do desconhecimento. O conhecimento é uma falsa consciência, desconhecimento é indiferença. Quando realmente se chega ao Caminho inimitável, é como num espaço, vazio e aberto; como insistir em afirmação e negação?" Com essas palavras, Zhaozhou de repente se iluminou. (In: CLEARY: 2005, 316)

Mas não é o Caminho também um princípio? Não é ele o princípio do Taoísmo? Tao não é caminho?

Atribui-se ao taoísta conhecido por Ancestral Li, que teria vivido durante a Dinastia Tang, no final do século VII d.C., a fundação da escola taoísta Completa Realidade. Em seus inúmeros ensinamentos, recolhidos em posteriores coletâneas de dizeres, volta-se para os obstáculos do caminho. Um desses obstáculos é o obstáculo dos princípios.

Mesmo quando o obstáculo da dúvida é removido, há ainda o obstáculo do princípio, que é ainda mais danoso ao Caminho. O obstáculo causado pelo individual apego à parcialidade impede a compreensiva percepção. O obstáculo dos confucionistas está na reificação, o obstáculo dos taoístas está no nada, e o obstáculo dos budistas está no vazio. (In: CLEARY: 2003, 103)

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Não deveria haver princípio no caminho. Mas os caminhos são geralmente princípios, ou param no princípio, ou o princípio se constitui em caminho. É isto que leva ao sectarismo que só promove ad infinitum a sucessão dos discursos. Por isso, Li propõe a integração:

O obstáculo da reificação conduz à ilusão, que torna difícil o despertar. O obstáculo do nada conduz à rigidez, na qual não há realismo. O obstáculo do vazio leva à quiescência, que se reverte em niilismo. Os antigos sábios eram realistas, mas abertos, vazios ainda que realistas. Eles viram que vazio não é vazio, que vazio não é destituído de nada. Este é o supremo Caminho. É atingido através da integração. É somente por sucumbir ao obstáculo do princípio que ninguém sabe isso. (In: IDEM: ibdem, 105)

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Entrecaminhos: Tao dito tao não é tao

Tao dito tao não é tao. Nome nenhum nome duradouro nomeia. Inominada: a origem do céu e da terra. Nomeada: mãe de dez mil coisas. Vazio de desejo, busque o mistério. Pleno de desejo, busque manifestações. Ambos têm mesma fonte, diferentes nomes. Cale-os ambos bem fundo – Em funda profundidade: Caminho de todo mistério

Tao dito tao não é tao. Isto diz o poema que abre o Tao Te Ching, obra situada controvertidamente entre os séculos VI e IV a.C. (mesmo período suposto para a vida de Buda), atribuída a Lao Tse, lendário fundador do Taoísmo. Vê-se desde a sua origem como pensamento a recusa dos discursos, que é a mesma recusa que vê as transformações como “instrumentos verbais, nomes”.

A semelhança de princípios, ou melhor, de “fonte”, com o Budismo, não fica só aí. Considerada uma filosofia autóctone da China, o Taoísmo é responsável pelo surgimento da mais popular e conhecida escola do Budismo Mahayana: o Chan Budismo (jap. Zen), que por sua vez, subdivide-se em inúmeras escolas.

Chan é a palavra chinesa para dhyana do sânscrito. Dhyana significa o calmo sentar. Mas, antes do Zen, ou Chan, o Taoísmo já se orientava para a meditação que se opera através da quietude do sentar. Nesta quietude encontra-se a quietude dos discursos e do agir. Mas há, de outra parte, um agir e um fazer que complementam esta busca: é o vagar pelo caminho, na viagem.

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Entretanto, é muito difícil estabelecer até que ponto Taoísmo é de fato originário da China. É possível que haja mesmo dois percursos para esta filosofia. Um que vem seguindo, desde os primórdios, práticas concernentes à magia, à alquimia, aproximando-se assim dos fundamentos e inquirições do I-Ching. Neste aspecto está o Taoísmo particularmente voltado às práticas das três metas da realização humana: energia, vitalidade e espírito. E mesmo aqui se pode estabelecer uma relação bastante forte com as metas hindus de artha, kama e dharma/moksha58, respectivamente. É, portanto, provável que mesmo nesta vertente partilhe com o Budismo da mesma origem.

Mas há o Taoísmo puramente filosófico, que se volta para a linguagem, seus obstáculos, sua transmissão e mesmo para o problema da escrita. Estas foram as preocupações que se instalaram nesta filosofia principalmente a partir do Ancestral Li. Estas preocupações aproximam-no como uma ponte no entrecaminho de Hinduísmo e Budismo. Assim, se o Hinduísmo upanishádico contém em si a conexão secreta que liga diversas escolas de pensamento, o Taoísmo é esta mesma conexão, mas visível, sensível, fundamentada em conhecimentos alquímicos milenares da China, unindo-se a todas as doutrinas originadas pelas Upanishads.

A importância do Taoísmo, mais precisamente da escola da Completa Realidade, para o Budismo é a mesma que, muitos séculos antes, teve a escola fundada por Nagarjuna, originando a vertente Mahayana, do grande veículo, que possibilitou a entrada da filosofia budista na China. A escola Madhyamika de Nagarjuna, o Taoísmo e o Zen possuem, pois, uma grande integração com relação à linguagem.

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Estas são as quatro metas na vida de um hindu (que mais ou menos correspondem aos seus quatro estágios): prosperidade, poder (artha); prazeres sensuais de qualquer tipo (kama); retidão no cumprimento das obrigações (dharma) e liberação final (moksha)

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Por isso, por sua grande e visível conexão com a filosofia upanishádica e com o Budismo, o caminho do não caminho do Tao foi brevemente percorrido aqui.

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v) O caminho indescritível

O que busca o Mahayana é a tranquilidade. Mais do que isso, é a cessação. A cessação de todos os discursos. Nada há para ser ensinado. Buda nunca haveria pronunciado uma palavra de ensinamento. Entretanto, o cânone mahayana é extenso e se expande pelo mundo fundando, através do seu contato com o Taoísmo, uma das mais populares escolas budistas: o Zen. A doutrina que busca a cessação sabe que, sendo apenas mais uma doutrina, não possui, nunca possuirá, muito menos transmitirá, alguma verdade. Esses fundamentos e essa percepção são transmitidos de preferência de "mente para mente" numa crescente desconfiança com a linguagem, principalmente com o texto escrito.

A mudança radical operada pelo Mahayana e principalmente por Nagarjuna opera-se verdadeiramente na linguagem. O Budismo Mahayana, ao livrar-se da característica institucional da escola Hinayana, livra-se também da ilusão do discurso lógico, da tentativa de sistematização dos manuais (shastra) e também dos sutras.

A literatura Zen quebra com a tradição dos gêneros literários herdados do Budismo indiano – o tratado formal ou científico (sastra) e o comentário sistemático (bhasya, vrtti, etc.) – convertendo-se a gêneros nativos, mas mantendo-se fiel ao conteúdo do Budismo indiano. A biografia e os registros são fundamentalmente budistas em crença, mas fundamentalmente chineses em gênero, estilo e linguagem. (BROUGHTON: 1999, 107)

No entanto, já desde o início, antes da escola Zen, é o Budismo desconfiado com a eficácia da linguagem. Nascido como uma escola heterodoxa de pensamento indiano, não podia desvencilhar-se desta que é uma das grandes preocupações de toda a filosofia hindu: a linguagem. A característica dialógica de todo o cânone budista tem suas raízes fundadas desde as Upanishads que, como já foi visto, têm, entre outros, o sentido de "sentar-se próximo". Os 119

textos do Budismo referem-se sempre ao contexto do ensinamento por meio de uma audiência atenta. Uma audiência constituída por pessoas das mais variadas castas, culturas e escolaridade. Sua linguagem, portanto, deveria atingir ao maior número possível de pessoas.

Já dissemos que a diferença fundamental no caminho seguido rumo ao Isto no Ocidente e no Oriente está na linguagem. Mas, um importante ponto em especial deve ser considerado. A ilusão, que existe no Ocidente com relação ao discurso filosófico, de que ele caminha sempre num processo de desenvolvimento evolutivo. Mesmo quando retoma o caminho, quando volta atrás, dá-nos testemunho de seu avanço. No Oriente, a profícua e precoce discussão acerca da linguagem pressupõe que ela sempre representa um embargo a qualquer possibilidade de avanço. E que, enquanto fundamentado na linguagem, ou melhor, enquanto linguagem, os discursos, de qualquer espécie, tendem sempre a degenerar.

O Budismo talvez seja o único sistema filosófico que tem consciência disso. E que tem consciência de que não há Verdade. Todos os seus ensinamentos são tentativas de evidenciar isto. A lógica de seus discursos é para atingir a falta de lógica de qualquer discurso, a falta de lógica de seus discursos é para evidenciar a falta de lógica de qualquer discurso.

O capítulo 21 do Sutra do Diamante chama-se, de modo bastante apropriado, "Palavras não podem dizer verdade, o que é dizer palavras não dizem verdade":

"Subhuti, não diga que o Tathagata concebe a ideia: 'eu devo pronunciar um ensinamento'. Pois qualquer um que diga que o Tathagata pronuncia um ensinamento, difama o Buddha e é incapaz de explicar o que ensino. Para qualquer sistema de declaração de verdades, a verdade é indeclarável; então 'a enunciação da verdade' é apenas o nome dado a isto." Assim, Subhuti disse estas palavras ao Buddha: "Honorável, nas eras futuras haverá homens que escutarão a declaração destes ensinamentos e serão inspirados por ela?"

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E o Buddha respondeu: "Subhuti, estes aos quais se refere não são nem seres viventes nem seres não-viventes. E por quê? Pois, Subhuti, estes seres viventes não são tais, eles são apenas chamados por este nome."

Alguns assumem que o Prajñaparamita é todo da autoria de Nagarjuna; outros, que parte desse cânone era-lhe pré-existente e parte surgiu após a sua revelação da doutrina mahayana. Seja como for, no Sutra do Diamante concentra-se o germe de um discurso que teria como proposta a anulação de todos os discursos. Por isso mesmo a imagem do diamante, material de maior dureza, capaz de riscar qualquer superfície e único capaz de riscar a si mesmo. O riscar a si mesmo é a empresa do Budismo inaugurado por Nagarjuna.

Diamante em Sânscrito é a mesma palavra para trovão (vajra), a arma do deus Indra, rei dos deuses. É a indestrutibilidade que a tudo destrói. O alvo dessa destruição devastadora é o próprio discurso. Neste fragmento encontramos vários conceitos a serem postos por terra: ideia, ensinamento, verdade. E, o maior deles: a palavra. De modo bastante inusitado refere-se às filosofias como "sistemas de declaração de verdades", mais ou menos como a ciência hoje faz em relação às doutrinas religiosas. O Budismo é o sistema filosófico que reconhece o cunho "religioso" de todas as filosofias, inclusive do próprio Budismo, se dele for tirado qualquer ensinamento59.

Tathagata é a maneira como Buda refere-se a si mesmo em seus discursos. Tathagata é uma palavra de etimologia duvidosa. Pode tanto significar "o que assim, dessa forma" (tatha), "se foi" (gata), como aquele que "assim, dessa forma" (tatha), "veio" (a-gata)60. Em qualquer

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“Se considerarmos que, em quase todos os povos, o filósofo é apenas o prolongamento do tipo sacerdotal...” De repente, percebe Nietzsche no Anticristo (p. 29 de nossa edição), mesma obra em que reconhece que o Budismo “surgiu após séculos de atividade filosófica” (p.39). 60 Há, ainda, uma outra tentativa etimológica em que o sentido seria "aquele que canta (de gatha) o indescritível (tatha)".

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uma das duas, a situação de Buda é indescritível. Tatha é o impronunciável, é o indescritível caminho. Sobre o seu próprio epíteto nos diz Buda ainda nesse mesmo sutra:

"Subhuti, se alguém disser que o Tathagata vem ou vai, se senta ou se reclina, ele falha em compreender meus ensinamentos. Por quê? Pois o Tathagata não possui de onde nem para onde, por isso ele é chamado Tathagata."

Aqui se nota a descrença em qualquer aventura etimológica como base para compreensão de algum discurso. "Subhuti, palavras não podem explicar a natureza do cosmo. Apenas pessoas atraídas pelos méritos fazem uso deste método arbitrário".

Alguns afirmarão com toda razão e pleno de méritos: palavras não são linguagem. Palavras não dão conta da linguagem. A linguagem transcende o âmbito das palavras. Sim, mas igualmente verdadeiro é o risco traçado pelo diamante: linguagem é a palavra linguagem, é um nome a que se atribui o status de guardiã da verdade da condição humana. Numa visão de mundo onde o humano é apenas e igualmente um nome, não pode existir a condição humana. Pois onde manifestações fenomênicas são apenas os nomes que lhes são atribuídos, o que são as suas características senão um discurso terceirizado? Toda característica, condição, atributo é apenas discurso sobre mais discurso.

Seguindo esse caminho indescritível, assim, desse modo, o Budismo que se inaugura com o aprendizado de Nagarjuna aponta o vazio de todos os conceitos, principalmente o da transitoriedade. Algo que sempre fora tormento maior do que o temor da morte passa a ser destituído de existência. Transitoriedade não existe nem não existe. É uma palavra, um nome com o qual se designa um determinado conceito. Assim o Budismo retira do homem a possibilidade do tormento, a possibilidade da busca. O que buscar se não há morte, nem

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eternidade, nem transitoriedade? Retirar do homem os tormentos é retirar dele sua humanidade, visto que são todos eles apenas atributos.

Nada move o homem que não seja tormento, nada lhe confere mais humanidade. Despi-lo de sua própria humanidade é o que intenta o Budismo.

No homem, humanidade é linguagem. Já disse uma vez um filósofo ocidental: "O homem não seria homem se não pudesse dizer 'Isto é'". A linguagem quer dar conta do ser. O Isto trazido sempre por toda linguagem é a ideia do ser. O Budismo Madhyamika vai negar o ser a todas as coisas ao apontar a inconsistência da linguagem.

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TODOS OS CAMINHOS DA LINGUAGEM

Diante de toda existência transitória, a única coisa permanente neste mundo é a impermanência. (Kathasaritsagara, "Oceano dos Rios de História")

Tudo é mais complexo do que aparenta ser através da simplicidade superficial. Tudo é mais simples do que aparenta ser através da complexidade superficial. A complexa transitoriedade do mundo desdobra-se na simplicidade de uma permanência – a mudança.

Não se perguntar em tempo oportuno pelo Isto tem sido o grande erro de nossa demanda como pensadores, ilustrado muito bem pelo episódio de Percival.

Pois o espelho, de águas ou de aço, mostra ao homem, desde sempre e todos os dias, um testemunho da transitoriedade bem mais vigoroso, eficiente e cruel, porque veloz: a velhice. Esta é uma mudança de estado à qual nenhum estado se conforma.

Desde então, busca o homem um princípio que reja todas as transformações, um princípio com o qual possa identificar-se numa busca pela reunião a ele, um princípio imutável e indivisível. A este princípio ligam-se vários nomes, vários conceitos, em diferentes culturas e em diferentes campos do saber. É o Tao, da filosofia chinesa, o Tat do Hinduísmo védico, o Isto. A partir destes princípios, o homem em sua busca constrói sistemas filosóficos que se querem permanentes. Em busca da conquista do imutável, que é a própria mudança, o homem não consegue se dar conta de que até a linguagem em que se quer firmar é mutante, só serve a um determinado momento.

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No entanto, as conceitualizações também são mutáveis e só podem servir àquele momento que é na verdade um átimo na história do mundo. Esta é uma grande verdade que precisa ser conhecida dos homens. Sua vida é um total desamparo, não há princípios capazes de sustentar eternamente uma configuração cuja única constante é sua própria inconstância.

A busca do Isto tem sido apenas a busca pelo ser do Isto, ou mesmo, como propõe Heidegger, o deliberado esquecimento do ser do Isto. Heidegger que, no século XX, retoma o caminho do ser, abandonado no ocidente logo após os pressocráticos, confere novamente a todas as coisas o ser de todas as coisas. Todas as coisas são. Mas não existem. Apenas o homem é ao modo da existência.

Estudando diversos textos budistas, percebemos que o caminho retomado por Heidegger já havia sido conscientemente abandonado pelos filósofos do Budismo Mahayana. A ausência de ser de todas as coisas é a base para se compreender a noção de vazio, que leva a um consequente estado de iluminação. Esta postura parece contradizer, muitos séculos antes, todos os postulados heideggerianos. Nenhuma coisa é, de nenhuma coisa pode-se dizer que seja. Entretanto, todas as coisas existem. Mesmo ao homem é conferida a existência.

Esta diferença fundamental está, mais uma vez e sempre na linguagem. É a linguagem que confere existência a todas as coisas, inclusive a si mesma, inclusive ao homem. Linguagem é o que se denomina linguagem, linguagem é a palavra linguagem. É o exercício da linguagem – a nomeação, o conhecimento, o logos – que confere a ilusória existência às coisas, inclusive ao homem, que, sem isso, não existiria.

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Mas o homem existe porque a linguagem existe. O que parece ser um ponto de convergência entre o pensamento budista e o de Heidegger (e o pensamento ocidental como um todo) anula-se no momento em que o Budismo busca a cessação da linguagem e a inexistência do ser de todas as coisas. As coisas não são, nem não são, não fazem parte do ser nem do não-ser; isto porque sobre elas nada pode ser dito, não possuem características. Se as possuíssem, seria lícito distingui-las umas das outras ou aproximá-las.

Isso não se pode fazer. O movimento de diferenciação ou identificação das coisas não pode dar conta de seu ser, visto que ele não existe. Tal movimento dá conta apenas da perpetuação dos discursos e da ineficaz investigação acerca do Isto. Sobre o ser, acredita-se que seria o concreto subjacente a todas as relações não-concretas, aquelas que superficialmente carregam as características, os adjetivos, os atributos e filiações de todo e qualquer ser. Mas sem dar conta do concreto que é o próprio ser, porque habitam a esfera das relações superficiais de oposição e identificação. Por participarem no jogo de pares e de contrários, os atributos não podem dizer da unidade própria de todo ser.

No entanto, ser é a palavra ser, e a partir de toda palavra pode-se ou de nenhuma palavra pode-se estabelecer um par ou um contrário. Aqui se reafirma o que anteriormente já se afirmou: substantivos não são mais ou menos concretos que os adjetivos. Substantivos e adjetivos são nomes, são categorias da linguagem, ou melhor, pertencem a uma categoria mais específica de linguagem: a língua. Estabelecer o contrário de "claro" ou "doce" é tão legítimo quanto se chegar ao oposto de "amarelo" ou "pedra". Mas, neste movimento, não estamos querendo elevar a categoria dos adjetivos à concretude da categoria dos substantivos. Não. Ambos são atributos, ambos são adjacentes na mesma medida, nenhum dos dois poderia alcançar o ser do Isto se tal houvesse.

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Quando o que se quer encontrar é o nome do isto, a cor do isto, suas características, afastase consideravelmente do isto. Não existe isto em si como coisa sendo algo. O isto só existe enquanto nome isto. Não possuindo ser, não há o que se investigar. Esse não-ser das coisas é o princípio fundamental da filosofia budista: o vazio.

O vazio, entretanto, não significa a não-existência da coisa; significa apenas que não há o ser de todas as coisas nem de cada coisa em si, simplesmente por não ser possível, nem distinguir as coisas umas das outras, nem igualá-las. É impossível conferir características às coisas porque, sendo determinada característica diferente da coisa, não pode, dessa forma, ser associada a ela; sendo inerente à coisa, não pode vigorar numa relação adjetiva, sendo ela e a coisa um todo. O vazio como impossibilidade de ser é a cessação de todos os dizeres.

Muito se tem falado sobre o vazio desde o seu surgimento como princípio. Tanto entre as escolas do oriente quanto entre as do ocidente. Mas falar sobre o vazio não é compreendê-lo. Falar sobre o vazio é apenas conferir-lhe existência. Sobre o vazio, assim como sobre todas as coisas nada se pode dizer, não há nada a ser investigado. Então o que é o Isto para a filosofia budista?

É o indescritível vazio, e ele se diz na cessação de todos os dizeres. Na tentativa de dizer o vazio, o Budismo em suas diferentes vertentes vai silenciar sobre ele, vai desconstruí-lo apontando para a falha das construções lógicas de todos os dizeres.

Em qualquer compêndio filosófico sobre o qual nos debruçamos, sempre em leitura silenciosa, não percebemos o dizer que ali fala. É quase como se fosse um pronunciar-se por si só da própria filosofia enquanto ser em si mesma. A filosofia geralmente parte desse

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princípio: a de que é um ser em si mesma, baseada, obviamente, na segurança do ser da linguagem. A linguagem, contudo, não é. Ela diz. Os textos filosóficos tendem a escamotear os dizeres da linguagem, fazendo-a reinar absoluta, abstrata, intocável.

A escrita tem um papel fundamental neste processo de deificação da linguagem. A transformação de questionamentos filosóficos orais de discípulo e mestre – em meio a uma plateia ouvinte – em livro, elege este, o livro, como o pronunciador de determinada verdade por meio de uma linguagem revelada. Sacraliza-se o livro e seu conteúdo e se esquece que o seu conteúdo é um dizer que teve lugar num determinado espaço-tempo.

O existir é sempre pontual, pois é sempre da palavra; a palavra é o apontar que dimensionaliza todas as coisas para a proximidade. É sempre de um dígito, pois é sempre do gesto.

Sobre isso dirão que tempo e espaço são apenas duas categorias que se confundem, criadas pela linguagem e que, portanto, são também existências vazias de vigor, de ser, não tendo a menor importância para a leitura de qualquer obra filosófica. Mas a obra trabalha sempre com as categorias da linguagem e está a elas sujeita. Esquecer-se de que o dizer de cada tratado filosófico se deu num tempo e num lugar, abre uma via, inaugurada pela escrita, de duplo sentido: primeiro, aquele dizer corre o risco de ser considerado uma verdade universal, e, portanto, atemporal, somente pelo fato de que sua representação escrita resistiu ao tempo e pode ser copiada em qualquer suporte e transportada para qualquer lugar; segundo, como consequência disso, considera-se todo dizer como passível de ser utilizado em qualquer sistema filosófico.

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Ao resgatar a oralidade e temporalidade do diálogo, o Budismo resgata a transitoriedade de qualquer discurso e sua localização. Fazendo isto, podemos então compreender qualquer discurso filosófico como um diálogo travado entre uma verdade postulada e uma refutada. A não percepção desta estrutura é o que faz com que muitos discursos pareçam herméticos. A mistura de conceitos num jogo de afirmação e negação torna o texto filosófico carregado de dicotomias irrecuperáveis, dificultando o acesso. Ainda mais porque, sendo o texto escrito, no gênero prosa, não deixa transparecer a oralidade e temporalidade do diálogo, que, no fundo, está sendo travado entre um filósofo e outro.

Quando se percebe isso, percebe-se que todo o discurso filosófico do Ocidente é um diálogo travado entre Platão e seus seguidores, que o acusam sempre de alguma falha, ou entre Platão e seus refutadores, entre Platão e os pressocráticos, entre os pressocráticos e aqueles que tentam resgatar os seus discursos pela afirmação.

Neste imenso diálogo, nunca se calam as vozes que se tenta calar. Ressuscitam-se vozes que não mais ecoam, apenas deixaram gravados seus sons num pedaço de papel, muitas vezes por uma via já terceirizada, já de ouvir falar. Esquecendo que os questionamentos platônicos se deram num tempo e lugar específico, perpetua-se a inquietação platônica, e, quem lê as obras filosóficas contemporâneas não consegue entender a conveniência de determinada questão.

Pois não tem o menor sentido a discussão entre esses diferentes posicionamentos nos dias de hoje. As questões ou não são mais as mesmas, ou não podem ser ditas da mesma forma. Este é o princípio da mutação, da transitoriedade que, permanentemente, arrebata todas as coisas. Logicamente não pouparia nem mesmo as obras filosóficas, nem mesmo as suas

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verdades, nem mesmo aquelas que foram cuidadosamente escritas, nem mesmo aquelas que foram cuidadosamente preservadas ou sobreviveram por uma simples casualidade.

Com as filosofias originadas na Índia isso não se verifica de modo tão acentuado. É claro que, no início, durante a convivência e a ainda convergência de diferentes modos de pensar numa determinada localidade e por um determinado tempo, pululam os mútuos questionamentos e confrontações. Após isso, não há mais necessidade desse diálogo, de dar voz ao discurso do oponente, visto que o próprio ato de fazê-lo calar-se já é mostrá-lo através de outro discurso. Tudo o que não apontamos aparece da mesma forma. Por que então deliberadamente dizê-lo? Se, mesmo que apontemos para determinado fenômeno este escapa às dimensões de nosso indicador, se é sempre, ou com uma intenção de hipertrofiá-lo ou minimizá-lo a menos de uma polegada...

Um dedo Sempre que Mestre Judi era questionado, somente levantava o dedo. Mais tarde um jovem criado passou também a levantar o dedo quando gente de fora perguntava-lhe o que o mestre ensinava. Quando ouviu sobre isso, Judi decepou com uma faca o dedo do rapaz. O jovem correu gritando de dor, mas Judi chamou-o de volta. Quando ele se virou, Judi levantou o dedo. Imediatamente, o rapaz atingiu a iluminação. Quando Judi estava para morrer, disse a um grupo, "Eu obtive, de meu mestre Tianlong, o Zen do Um-Dedo, utilizando-o durante toda a minha vida sem o exaustar." Assim dizendo, faleceu. (In: CLEARY: 2005 Vol. 4, 257)

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APÊNDICE A

CHANDOGYA UPANISHAD

Capítulo VI61

1 Havia um Shvetaketu, filho de Aruni. Um dia seu pai lhe disse: 'Shvetaketu, adota a vida celibatária de um estudante, pois não há, meu filho, ninguém em nossa família que não tenha estudado, sendo brâmane apenas de nascimento.' Então ele partiu, com doze anos de idade, para se tornar estudante, e, depois de aprender todos os Vedas, voltou aos vinte e quatro anos, vaidoso, arrogante e se julgando instruído. Disse-lhe seu pai: 'Shvetaketu, aqui estás, meu filho, arrogante e vaidosamente julgando-te instruído; pediste então aquele conhecimento através do qual se chega a ouvir o que não se tinha antes ouvido, a pensar o antes não pensado e a perceber o que não tinha sido percebido antes?' 'Como se dá este conhecimento, senhor?' 'Isto é assim, filho. Através de apenas um pedaço de argila, compreende-se tudo feito de argila – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é argila". 'Isto é assim, filho. Através de apenas um jarro de cobre, compreende-se tudo feito de cobre – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é cobre". 'Isto é assim, filho. Através de apenas uma tesoura de unha, compreende-se tudo feito de ferro – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é ferro". 'Isto é, filho, como esse conhecimento se dá'. 'Certamente aqueles ilustres homens não o sabiam, senão, como poderiam tê-lo escondido de mim? Então, por que não mo ensina o senhor mesmo?' 'Tudo bem, meu filho', ele respondeu.

2 'No princípio, meu filho, este mundo era simplesmente o que é existente – um somente, sem nenhum outro. Agora, sobre isso, há quem diga: "No princípio este mundo era simplesmente o que não é existente – um somente, sem nenhum outro. E do não-existente nasceu o existente". 'Entretanto, filho, como isso pode ser possível?' ele continuou. 'Como pode do não-existente nascer o existente? Ao contrário, filho, no princípio este mundo era simplesmente o que é existente – um somente, sem nenhum outro.

61

Traduzido a partir da tradução de OLIVELLE (1996) do sânscrito para o inglês.

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'Então pensou consigo: "Que eu me torne muitos. Que eu me propague". E emitiu calor. O calor pensou consigo: "Que eu me torne muitos. Que eu me propague". E emitiu umidade. Dessa forma, fazendo calor, um homem certamente transpira; e, assim, é pelo calor que a água é produzida. A água pensou consigo: "Que eu me torne muitos. Que eu me propague". E emitiu comida. Sempre que chove, portanto, a comida torna-se abundante; e, assim, é da água que os alimentos são produzidos.

3 'Há, como podes ver, somente três fontes de onde as criaturas se originam: elas nascem de ovos, de indivíduos vivos, ou de brotos. 'Então, aquela mesma divindade62 [o existente] pensou consigo: "E agora, por que eu não estabeleço as distinções de nome e de aparência adentrando estas três divindades aqui com este princípio individual (atman), e torno cada uma delas trivalentes". Então, a divindade estabeleceu as distinções de nome e aparência adentrando estas três divindades aqui com este princípio individual (atman), e tornou cada uma delas trivalentes. 'Aprenda comigo, meu filho, como cada uma destas três divindades tornou-se trivalente.'

4 'A aparência vermelha do fogo é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra, a da comida. Assim, se desfaz do fogo o caráter de fogo – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências". 'A aparência vermelha do sol é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra, a da comida. Assim se desfaz do sol o caráter de sol – a transformação é apenas um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências". 'A aparência vermelha da lua é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra, a da comida. Assim se desfaz da lua o caráter de lua – a transformação é apenas um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências". 'A aparência vermelha do trovão é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra, da comida. Assim se desfaz do trovão o caráter de trovão – a transformação é apenas um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências". 'De fato, isto era o que eles sabiam, aqueles homens extremamente prósperos e imensamente instruídos de outrora, quando diziam: "Ninguém será capaz de produzir diante nós algo que já não tivéssemos ouvido, ou pensado, ou compreendido antes"63. Pois obtiveram tal conhecimento destes três – quando notavam qualquer coisa que fosse avermelhada, sabiam: "Esta é a aparência do calor"; quando notavam qualquer coisa que fosse esbranquiçada, sabiam: "Esta é a aparência da água"; quando notavam qualquer coisa que fosse escura, sabiam: "Esta é a aparência da comida"; quando 62

"O termo devata ( e também deva: lit. "deus"ou "divindade") é usado nesses textos com uma ampla conotação (...). Não raro (...), refere-se às várias funções vitais do corpo. Em outros casos, é usado com referência a realidades cósmicas, como sol, lua, e fogo." (IDEM: Ibdem, 264 – 3.9n) 63 Isto pode indicar aquele processo de empobrecimento cultural encontrado no Kali Yuga, visto que tais homens, de outrora, dominavam o "conhecimento secreto" antes de ele ser sistematizado.

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notavam qualquer coisa que fosse, de alguma forma, indistinta, sabiam: "Esta é uma combinação dessas mesmas três divindades". 'Aprenda comigo, meu filho, como, quando adentram um homem, cada uma dessas três divindades torna-se trivalente.

5 'Quando alguém come comida ela se divide em três partes. A mais densa torna-se fezes, a intermediária torna-se carne, e a mais sutil torna-se mente. Quando alguém bebe água ela se divide em três partes. A mais densa torna-se urina, a intermediária torna-se sangue, e a mais sutil torna-se alento. Quando alguém come calor ele se divide em três partes. A mais densa torna-se ossos, a intermediária torna-se medula, e a mais sutil torna-se fala. Pois a mente é feita de comida, filho; o alento, de água; e a fala, de calor'. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

6 'Quando se bate a nata do leite, sua parte mais sutil eleva-se até o topo e se transforma em manteiga. Do mesmo modo, filho, quando se come comida, sua parte mais sutil eleva-se até o topo transformando-se em mente; quando se bebe água sua parte mais sutil eleva-se até o topo transformando-se em alento; quando se come calor sua parte mais sutil eleva-se até o topo transformando-se em fala. Pois a mente é feita de comida, filho; o alento, de água; e a fala, de calor'. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

7 'Um homem, meu filho, consiste em dezesseis partes. Não comas por quinze dias, mas bebe água à vontade. Alento é feito de água; então não será extinto enquanto alguém beber.' Shvetaketu não comeu por quinze dias. Após o que retornou ao seu pai dizendo: 'O que devo recitar, senhor?' 'Os versos do Rg, as fórmulas Yajus, e os cantos Saman.' 'Senhor, simplesmente não consigo me lembrar deles', ele respondeu. E o seu pai lhe disse: 'Isto é assim, filho. Como se de uma enorme fogueira que alguém produziu só tivesse restado uma única brasa do tamanho de um vaga-lume – motivo pelo qual o fogo não queimasse mais daquela maneira. Da mesma forma, filho, só te restou uma das tuas dezesseis partes; motivo pelo qual não consegues, no momento, lembrar-te dos Vedas. 'Come, e, então, vem aprender comigo.' Ele comeu e retornou ao seu pai. Então conseguiu responder a tudo que seu pai perguntou. E o pai lhe disse:

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'Isto é assim, filho. Como se de uma enorme fogueira que alguém produziu só tivesse restado uma única brasa do tamanho de um vaga-lume – motivo pelo qual o fogo não queimasse mais daquela maneira. Da mesma forma, filho, só te restou uma das tuas dezesseis partes, e, quando a cobriste com comida, ela se incendiou – motivo pelo qual agora consegues lembrar-te dos Vedas, pois a mente é feita de comida, filho; o alento, de água; e a fala, de calor'. O que, verdadeiramente, aprendeu com ele.

8 Uddalaka Aruni disse ao seu filho, Shvetaketu: 'Filho, aprende comigo a natureza do sono. Quando se diz: "O homem está dormindo", meu filho, é quando ele está unido ao existente; dentro de si mesmo (sva) ele entrou (apita). É por isso que as pessoas dizem, referindo-se a ele: "Ele está dormindo" (svapiti)64, pois então ele adentrou a si mesmo. 'Isto é assim. Toma [como exemplo] um pássaro amarrado por uma corda. Ele voará em todas as direções e, quando não conseguir encontrar abrigo em nenhum outro lugar, pousará de volta à mesma coisa à qual está amarrado. De modo semelhante, filho, a mente voa em todas as direções65 e, quando não consegue encontrar abrigo em nenhum outro lugar, repousa novamente no alento em si; pois a mente, meu filho, está atada ao alento. 'Filho, aprende comigo sobre a fome e a sede. Quando se diz: "O homem está com fome", é porque a água levou embora o que ele comeu. Por isso, assim como alguém é denominado "condutor de gado", ou "condutor de cavalo", ou "condutor de homens", similarmente denomina-se a água "fome"66 – a "condutora de comida". 'Com relação a isto, filho, deves considerá-lo como um botão de flor que surgiu. Ele não é nada sem raiz, e o que poderia ser a sua raiz se não, comida? Igualmente, filho, a comida sendo o botão, vê a água como raiz; a água sendo o botão, vê o calor como raiz; e o calor sendo o botão, vê o existente 64

Sobre passagens como esta, que lembra muito uma escrita heideggeriana, comenta Roebuck em sua introdução: "Uma parte essencial das habilidades argumentativas dos sábios era o jogo de palavras, geralmente na forma de trocadilhos ou etimologias ambíguas." (ROEBUCK: 2003, xxxv) 65 A ideia da mente inquieta, muitas vezes comparada ao macaco (que pula de galho em galho), é constante tanto no Budismo quanto no Taoísmo, que estabelecem como meta principal do discípulo o calmo sentar da mente, mais do que o do corpo. É este princípio que está por trás também deste trecho da Brhadaranyaka Upanishad, de modo espantoso, já se adianta à doutrina mahayana budista: 'Qual destes é o Isto próprio a todas as coisas, Yajñavalkya?' 'É o que se encontra além da fome e da sede, arrependimento e desilusão, velhice e morte. É quando vêm a conhecer isto que os brâmanes abdicam do desejo de filhos, do desejo de riqueza, e do desejo de mundos, e levam uma vida mendicante. O desejo por filhos, no fundo, é o mesmo que o desejo por riqueza, e o desejo por riqueza é o mesmo que o desejo por mundos – todos são simplesmente desejos. Portanto, um brâmane deveria deixar de ser pandit e procurar viver como uma criança. Quando deixa de viver como uma criança ou um pandit, torna-se um sábio. E quando deixa de viver como um sábio ou do modo que vivia antes de se tornar sábio, torna-se um brâmane. E assim permanece, um brâmane, independente de seu modo de vida. Tudo que não seja isto é dor.' Após isto, Kahola Kaushitakeya calou-se. (In: OLIVELLE: 1996, 39-40) 66

Mais um exemplo de jogo de palavras, pois, segundo Olivelle, "aqui as correspondências baseiam-se na palavra "fome" ashana ou ashanaya. As duas sílabas finais, naya, podem ser relacionadas ao verbo nayati ("conduzir" ou "guiar"). Assim, um tocador de gado é um gonaya. Portanto, "fome" pode ser interpretada como "condutora de comida" (asha). Assim, a água é ao mesmo tempo condutora de comida e fome, e o calor é tanto condutor de água e sede. (IDEM: Ibdem, 348 – 8.3n)

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como a raiz. O existente, meu filho, é a raiz de todas essas criaturas – o existente é o seu abrigo, o existente é o seu fundamento. 'Quando, além do mais, se diz: "O homem está com sede", é porque o calor levou embora o que ele bebeu. Por isso, assim como alguém é denominado "condutor de gado", ou "condutor de cavalo", ou "condutor de homens", similarmente denomina-se o calor "sede" – a "condutora de água". 'Com relação a isto, filho, deves considerá-lo como um botão de flor que surgiu. Ele não é nada sem raiz, e o que poderia ser a sua raiz se não, água? Igualmente, filho, a água sendo o botão, vê o calor como raiz; o calor sendo o botão, vê o existente como raiz. O existente, meu filho, é a raiz de todas essas criaturas – o existente é o seu abrigo, o existente é o seu fundamento. 'Eu acabo de te explicar, filho, como, quando adentram um homem, cada uma dessas três divindades torna-se trivalente. 'Quando um homem está morrendo, meu filho, sua fala submerge dentro de sua mente; sua mente, no seu alento; seu alento, no calor; e o calor, na mais alta divindade [o existente]. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.67 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

9 'Agora toma as abelhas, filho. Elas preparam o mel recolhendo néctar de uma variedade de plantas, reduzindo-o a um todo homogêneo. Nesse estado, o néctar de cada planta diferente não é mais capaz de diferenciar: "Eu sou o néctar daquela planta", e "Eu sou o néctar desta planta". Exatamente do mesmo modo, filho, quando todas as criaturas mergulham no existente, não têm tal consciência: "Estamos mergulhando no existente." Não importa o que sejam neste mundo – um tigre, um leão, um lobo, um javali, um verme, uma traça, um pernilongo, ou um mosquito – todas mergulham nisto. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

10 'Agora, toma esses rios, filho. Os orientais fluem para o leste e os ocidentais para o oeste. Do oceano, todos mergulham deveras no oceano; tornam-se apenas oceano. Neste estado não têm tal consciência: "Eu sou aquele rio". "Eu sou este rio". Exatamente do mesmo modo, filho, quando todas as criaturas alcançam o existente, não têm tal consciência: "Nós estamos alcançando o existente". Não

67

Olivelle nota: "Agora e finalmente, Uddalaka personaliza seu ensinamento. Shvetaketu deve olhar para si mesmo [como em Heráclito, Fragmento 101: "eu busquei a mim mesmo"] do mesmo modo. (IDEM: Ibdem, 349 – 8.7 – 16.3n)

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importa o que sejam neste mundo – seja tigre, leão, lobo, javali, minhoca ou mosquito – todos eles mergulham dentro disto. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.

11 'Agora, toma esta enorme árvore aqui, filho. Se alguém a cortasse pela base, sua seiva vital jorraria. Da mesma forma, se alguém a cortasse ao meio, sua seiva vital jorraria. Da mesma forma, se alguém a cortasse no topo, sua seiva vital jorraria. Permeada pela essência (atman) vital (jiva), esta árvore está fincada aqui bebendo água e florescendo sem cessar. Quando, entretanto, a vida (jiva) abandona um de seus galhos, esse galho apodrece. Quando abandona um segundo galho, ele igualmente apodrece, e quando abandona um terceiro galho, ele também apodrece. 'Exatamente do mesmo modo,' ele continuou, 'saiba que isto68, é claro, morre quando desprovido de vida (jiva); mas a vida em si não morre. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

12 'Traz um fruto de uma árvore banyan.' 'Aqui está, senhor.' 'Divide-o'. 'Dividi, senhor'. 'O que vês aí?' 'Estas sementes bem pequenas, senhor.' 'Agora, pega uma delas e a divide.' 'Dividi-a, senhor.' 'O que vês aí?' 'Nada, senhor.' Então ele lhe disse: 'Isto que é a essência mais sutil, filho, que nem consegues ver – observa como desta mais sutil essência esta enorme árvore banyan se sustenta. 'Crê em mim, meu filho: 'Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

68

Aqui, notadamente, há um irrecuperável gesto.

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13 'Põe este grão de sal numa tigela de água e volta amanhã.' O filho fez como lhe foi pedido, e o pai disse a ele: 'O grão de sal que colocaste na água noite passada – traze-o aqui.' Ele procurou, mas não consegui encontrar, pois se dissolvera completamente. 'Agora, toma um gole por esta ponta,' disse o pai. 'Que gosto tem?' 'Salgado.' 'Toma um gole pelo meio,' disse o pai. – Que gosto tem?' 'Salgado.' 'Toma um gole por aquela ponta,' disse o pai. – Que gosto tem?' 'Salgado.' 'Deita a água fora e retorna mais tarde.' Ele fez conforme pedido e descobriu que o sal sempre estivera ali. O pai lhe disse: 'Tu, é claro, não o viste, filho; no entanto, ele esteve sempre bem aí. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

14 'Toma, por exemplo, filho, um homem que tivesse sido trazido aqui com os olhos vendados desde a região de Gandhara e fosse abandonado numa região deserta. Como tivesse sido trazido vendado e deixado aí vendado, ele erraria em direção ao leste, ou norte, ou sul. Agora, se alguém o livrasse de sua venda e lhe dissesse, "Siga naquela direção; a região de Gandhara é naquela direção"69, sendo um homem sábio e instruído, ele iria de vila em vila procurando orientação e, finalmente, chegaria na região de Gandhara. Exatamente do mesmo modo, nesse mundo, quando um homem tem um mestre, ele sabe: "Eu me demoro por aqui somente até que seja liberto; então eu chegarei lá!" Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. 'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

15 'Toma, por exemplo, filho, um homem gravemente doente. Seus familiares agrupam-se à sua volta e perguntam: "Você me reconhece?" "Você me reconhece?" Enquanto a sua voz não submergir na sua mente; sua mente, no seu alento; seu alento, no seu calor; seu calor, na mais alta divindade, ele os reconhece. Quando, entretanto, sua voz submerge na sua mente; sua mente, no seu alento; seu alento, no seu calor; seu calor, na mais alta divindade, ele não mais os reconhece. Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. 69

Mais uma vez o gesto, que, agora, se possa talvez recuperar pela própria direção de Gandhara, a oeste, a única direção não tomada pelo homem ainda vendado: a correta.

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'Senhor, ensine-me mais.' 'Muito bem, meu filho'.

16 'Toma, por exemplo, filho, um homem algemado trazido aqui por pessoas gritando: "Ele é um ladrão! Ele praticou um roubo! Aqueçam-lhe um machado!" Se ele for culpado do crime, então se mune de uma mentira; proferindo uma mentira e se protegendo com a mentira, ele segura o machado e se queima, após o que é executado. Se, por outro lado, ele é inocente do crime, então se volta para a verdade; proferindo a verdade e se protegendo com a verdade, segura o machado e não é queimado, após o que ele é libertado.70 'Isto que nessa ocasião protege-o de se queimar – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu. E ele, verdadeiramente, aprendeu-o com ele.

70

Nesta passagem encontra-se algo relacionado diretamente com o Ato de Verdade (ver supra), é um ordalho, uma "prova de fogo", pela qual também teve que passar Sita, esposa de Rama, para provar a integridade de sua honra durante o período em que esteve cativa do rakshasa (espécie de demônio) Ravana, no Sri Lanka. Prática muito comum, pode ser encontrada em fontes cristãs, como o atesta o Romance de Tristão e Isolda, onde esta deve provar que não traiu seu marido, o rei Marc da Cornualha, com o sobrinho deste, Tristão. Entretanto, ao contrário de Sita, ela não era inocente e, por isso, genialmente usou a verdade como um artifício para escapar: disse só ter tido entre as suas pernas dois homens – seu marido, e o leproso que a carregou nas costas na travessia do rio. O leproso era, evidentemente, Tristão disfarçado. E, assim, falando a verdade, ela não se queimou.

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APÊNDICE B O SUTRA DO DIAMANTE71 (Vajrachchedika-Prajñaparamita-Sutra) 1 A convocação da assembleia

Assim eu ouvi: Certa vez o Buddha permanecia em Anathapindika próximo a Shravasti com uma grande companhia de mendicantes (bhikshus), aproximadamente uns 1250. Certo dia, na hora do desjejum, o Grande Honorável, com seu manto e carregando sua tigela, fez seu caminho até a cidade de Shravasti para pedir sua comida. No meio da cidade ele pediu de porta em porta de acordo com a lei. Isto feito, retornou para o seu retiro e tomou sua refeição. Quando terminou, retirou seu manto e se afastou de sua tigela, lavou seus pés, arrumou seu assento e se sentou.

2 Subhuti faz um pedido

Agora, no meio da assembleia estava o venerável Subhuti. À frente ele se levantou, descobrindo seu ombro direito, ajoelhou-se sobre seu joelho direito, e, respeitosamente levantando suas mãos com as palmas unidas, dirigiu-se ao Buddha desta maneira: Ó, Grande Honorável, quão valioso é o cuidado do Tathagata com todos os bodhisattvas72, protegendo-os e instruindo-os tão bem! Se os bons homens e as boas mulheres buscam a consumação da incomparável iluminação, de que maneira eles devem habitar e como eles devem controlar seus pensamentos. Buddha disse: Muito bem, Subhuti! Assim como diz, ainda maior é o cuidado do Tathagata com todos os bodhisattvas, protegendo-os e instruindo-os bem. Agora ouça e tome no coração minhas palavras: Irei declarar de que maneira os bons homens e as boas mulheres buscando a consumação da incomparável iluminação, devem habitar, e como devem controlar seus pensamentos. Disse Subhuti: Conte-nos, Honorável. Com alegre ansiedade ansiamos por ouvir.

71

Traduzido a partir da tradução inglesa de A. F. PRICE (PRICE e WONG: 2005) com a providencial colaboração do querido companheiro e colega Diogo dos Santos Silva. 72 Devoto em processo avançado no caminho da iluminação. Sua etimologia, diz Price, é mais comumente ligada aos nomes bodhi (“iluminação”) e sattva (“ser”).

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3 O verdadeiro ensinamento do Mahayana

Buddha disse: Subhuti, todos os bodhisattvas-mahasattvas devem disciplinar seus pensamentos da seguinte maneira: toda criatura viva de qualquer espécie, nascida de ovos, de útero ou da água, ou pela transformação73, com forma ou sem forma, no estado de pensamento ou carente desta necessidade, ou além de todos estes reinos – todos estes são motivados por mim a alcançar a desapegada liberdade do Nirvana. Mesmo que um vasto, incontável, incomensurável número de seres tenha sido desta forma liberto, verdadeiramente nenhum ser foi liberto. Por que isto é assim, Subhuti? Pois nenhum bodhisattva que é um verdadeiro bodhisattva cultiva a ideia de um ego, uma personalidade, um ser ou de uma individualidade separada.74

4 Até mesmo as práticas mais beneficentes são relativas

Além disso, Subhuti, na prática da caridade o bodhisattva deve ser desapegado. Isto é dizer, ele deve praticar a caridade com cuidado às aparências, com cuidado ao som, odor, toque, sabor, ou qualquer qualidade. Subhuti, assim o bodhisattva deve praticar a caridade sem apegos. Para quê? Desta maneira seu mérito é incalculável. Subhuti, o que pensa? Pode você medir todo o espaço que se estende ao oriente? Não, Honorável, eu não posso. Então pode você, Subhuti, medir o espaço que se estende ao sul, ao ocidente, ao norte ou a qualquer outra direção, incluindo as profundidades e o zênite? Não, Honorável, eu não posso. Bem, Subhuti, igualmente incalculável é o mérito do bodhisattva que pratica a caridade sem nenhum apego às aparências. Subhuti, bodhisattvas devem perseverar em apenas uma direção nesta instrução.

5 Compreendendo o princípio último de realidade

Subhuti, o que pensa? O Tathagata é para ser reconhecido por alguma característica material?

73

Comparar com Chandogya Upanishad, VI.3. Isto é interpretado no Hinduísmo como fruto da Maya ("ilusão", "mágica", "magia", ou seja, as manifestações aparentes do Existente brahman/atman) de Vishnu, através da qual, como de repente (mas não por muito tempo) percebe Yashoda, mãe de Krishna, "surgem ignorantes noções como: 'Eu sou eu; aquele ali é o meu marido; e este é meu filho; eu sou a esposa virtuosa protetora dos bens do senhor de Vraj; e todas as vaqueiras e vaqueiros, assim como o produto do gado, são meus.'" (Krishna: The Beautiful Legend of God) 74

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Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser reconhecido por nenhuma característica. Por quê? Pois o Tathagata disse que as características materiais não são, de fato, características materiais. Buddha disse: Subhuti, onde quer que haja características materiais há desilusão, pois aquele que percebe que todas as características são, de fato, não-características, percebe o Tathagata.

6 Rara é a verdadeira fé

Subhuti disse ao Buddha: Grande Honorável, haverá sempre homens que verdadeiramente acreditarão após ouvirem estes ensinamentos? Buddha respondeu: Subhuti, não pronuncie tais palavras! Ao final do período dos últimos 500 anos após a morte do Tathagata, haverá homens que controlarão seu ego, enraizados em méritos, que ouvirão estes ensinamentos, que serão inspirados pela crença. Mas você deve perceber que estes homens não fortaleceram suas raízes de mérito sob apenas um buddha, ou dois buddhas, ou três, ou quatro, ou cinco buddhas, mas sob incontáveis buddhas; e seus méritos são de todos os tipos. Tais homens, ao ouvirem estes ensinamentos, terão uma imediata ascensão de pura fé, Subhuti; e o Tathagata os reconhecerá. Sim, eles de coração puro, claramente perceberão isto, e a magnitude de suas excelências morais. E por quê? Isto é porque tais homens não cairão na ideia do cultivo da entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. Eles, muito menos, cairão na ideia de cultivar a ideia de as coisas terem qualidades intrínsecas, nem mesmo de as coisas serem desprovidas de qualidades intrínsecas. E, por quê? Pois, se tais homens permitirem a suas mentes compreender e se segurar a qualquer coisa, eles estarão cultivando a ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada, e se eles perceberem ou se segurarem na noção de coisas como tendo qualidades intrínsecas eles estariam cultivando a ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. Desta forma, se eles percebessem ou sustentassem a visão das coisas como sendo desprovidas de qualidades intrínsecas, estariam cultivando a ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. Assim, você não deveria se prender às coisas como seres providos ou desprovidos de qualidades intrínsecas. Esta é a razão pela qual o Tathagata sempre pronuncia seu ensinamento: meu ensinamento da boa lei (dharma) é assemelhado a uma canoa. O ensinamento do Buddha deve ser abandonado; quanto mais, tanto maior o engano!75

75

Comparar com o trecho do Majjhima-nikaya supracitado.

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7 Os maiores, perfeitos além do aprendizado, não pronunciem palavras de ensinamento

Subhuti, o que pensa? O Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação? O Tathagata tem algum ensinamento a ser enunciado? Subhuti respondeu: Como eu compreendo o significado de Buddha, não há nenhuma formulação de verdade na consumação da incomparável iluminação. Acrescentando que o Tathagata não tem nenhuma formulação de ensinamentos a enunciar. Por quê? Pois o Tathagata disse que a verdade não pode ser contida nem expressa. Ela não é ser nem não ser. E tanto é assim que este princípio não-formulado é o fundamento dos diferentes sistemas de todos os sábios.

8 Os frutos da ação meritória Subhuti, o que pensa? Se alguém preenchesse 3.000 galáxias de mundos com os sete tesouros76 e distribuísse tudo em dádivas, ele ganharia grande mérito?" Subhuti disse: Certamente sim, Grande Honorável? E por quê? Pois que os méritos participam do caráter do não-mérito, o Tathagata caracterizou o mérito como grandioso77. Então o Buddha disse: Por outro lado, se alguém recebesse e retivesse apenas quatro linhas deste discurso e o ensinasse e explicasse para os demais, seu mérito seria ainda maior. E por quê? Pois, Subhuti, deste discurso partem todos os buddhas e a consumação do ensinamento da incomparável iluminação de todos os buddhas. Subhuti, o que é chamado “a religião dada por Buddha” não é, de fato, a religião de Buddha.

9 A real designação é indesignada

Subhuti, o que pensa? Um discípulo que entrou para a senda da vida de santidade diz consigo mesmo: “Eu obtive o fruto do que adentra a senda”? Subhuti disse: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois a “senda” é meramente um nome. Não há como adentrar a senda. O discípulo que não presta reverências à forma, ao som, ao odor, ao sabor, ao toque, ou qualquer outra qualidade é chamado aquele que adentra a senda. Subhuti, o que pensa? Um adepto que está sujeito a apenas mais um renascimento diz a si mesmo, “Eu obtive o fruto daquele que renascerá apenas uma vez”? 76

Ouro, prata, cristal, lápis-lazúli, cristal, ágata, pérolas vermelhas e cornalina. Esta e outras passagens semelhantes explicam-se pela noção de que “a verdadeira grandiosidade transcende o âmbito das condições e qualidades. O estudo das relações de proporção não oferece nenhuma pista à essência substancial do fenômeno.”(PIERCE, 159; 41n)

77

142

Subhuti diz: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois “o que renascerá apenas uma vez” é meramente um nome. Não há nem morte nem o vir a ser em uma existência. O adepto que percebe isto é chamado “o que renascerá apenas uma vez”. Subhuti, o que pensa? Um homem venerável que nunca mais renascerá como um mortal diz a si mesmo “Eu obtive o fruto do que não retorna”? Subhuti diz: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois “o que não retorna” é meramente um nome. Não há não retorno; daí a designação “o que não retorna”. Subhuti, o que pensa? Um homem santo (arhat) diz a si mesmo: “Eu obtive a iluminação perfeita”? Subhuti diz: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois não há tal condição chamada “iluminação perfeita”. Grande Honorável, se um homem santo de iluminação perfeita diz a si mesmo “assim sou eu” ele necessariamente partilharia da ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. Grande Venerável, quando o Buddha declara que eu me sobressaio entre os homens santos na yoga de perfeita quiescência, habitando na reclusão, e livre das paixões, eu não digo a mim mesmo “eu sou um homem santo de perfeita iluminação, livre das paixões”. Grande Honorável, se eu disser a mim mesmo “assim sou eu”, você não declararia “Subhuti encontra a felicidade morando em paz, na reclusão da floresta”. Isto é porque Subhuti mora em nenhum lugar: assim ele é chamado: “Subhuti, alegre morador na paz, recluso habitante da floresta”.

10 Partida para as terras puras

Buddha disse: Subhuti, o que pensa? No passado remoto quando o Tathagata estava com Dipamkara Buddha78, ele se elevou de alguma maneira em seu dharma? Não, Grande Honorável. Quando o Tathagata estava com Dipamkara Buddha, ele não se elevou em seu dharma. Subhuti, o que pensa? O bodhisattva parte para alguma terra búdica? Não, Grande Honorável. E por quê? Pois partir para alguma terra búdica não é um partir; isto é apenas um nome. Assim, Subhuti, todos os bodhisattvas, pequenos ou grandes, deveriam desenvolver uma mente pura e lúcida, não se apegando a sons, sabores, tatos, odores, ou qualquer outra qualidade. O bodhisattva deve desenvolver uma mente que se desprenda de qualquer coisa; e assim ele deve se firmar. Subhuti, isto pode se assemelhar a uma composição física tão grandiosa quanto o poderoso Monte Sumeru. O que pensa? Poderia tal corpo ser grandioso? Subhuti respondeu: Sim, realmente, Grande Honorável. Isto porque Buddha explicou que nenhum corpo é chamado um grandioso corpo79.

78

Uma das encarnações anteriores de Buda.

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11 A superioridade da verdade não formulada

Subhuti, se houvesse tantos Ganges como há grãos de areia no Ganges, os seus grãos de areia seriam muitos? Subhuti disse: Sim, realmente, Grande Honorável! Até mesmo os ganges seriam inumeráveis; quanto maior seria o número de grãos de areia! Subhuti, eu revelarei uma verdade a você. Se um bom homem ou uma boa mulher preenchesse três mil galáxias de mundos com os sete tesouros para cada grão de areia de todos estes ganges, e distribuísse em dons, ele ganharia grande mérito? Subhuti respondeu: Sim, realmente, Grande Honorável! Então Buddha disse: De qualquer forma, Subhuti, se um bom homem ou uma boa mulher estudasse este discurso de tal maneira que apenas retivesse quatro linhas, e explicasse aos demais, seu mérito seria muito maior.

12 Veneração da verdadeira doutrina

Desta maneira, Subhuti, você deve saber que onde quer que este discurso seja recitado, mesmo apenas quatro linhas, este lugar deverá ser reverenciado por todo o reino dos deuses, homens e ashuras80, como se este fosse um templo de Buddha. Quanto maior será ainda aquele que é capaz de receber e reter e assim recitá-lo inteiramente! Subhuti, você deve saber que este alcança a maior e mais venerável verdade. Onde quer que este discurso seja encontrado, aí você deverá se comportar como na presença do próprio Buddha e seus discípulos dignos de honra.

13 Como estes ensinamentos devem ser recebidos e retidos

Neste momento, Subhuti dirigiu-se ao Buddha dizendo: Grande Honorável, por qual nome este discurso deverá ser conhecido, e como devemos recebê-lo e retê-lo? Buddha respondeu: Subhuti, este discurso deverá ser conhecido como o Diamante da Perfeição da Sabedoria Transcendental – assim você o deveria receber e reter. Subhuti, qual é a razão disto? De acordo com o ensinamento de Buddha, a perfeição da sabedoria transcendental não é tal. “Perfeição da Sabedoria Transcendental”é apenas um nome. Subhuti, o que pensa? Tem o Tathagata um ensinamento a enunciar? Subhuti respondeu ao Buddha: Grande Honorável, o Tathagata nada tem a ensinar. 79 80

Ver nota 71. Demônios gigantescos, são como os titãs, em constante guerra com os deuses.

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Subhuti, o que pensa? Haveria muitos átomos na composição das três mil galáxias de mundos? Subhuti disse: Muitos, com certeza, Honorável! Subhuti, o Tathagata revela que todos estes átomos, não são tais, eles são chamados átomos. O Tathagata revela que o mundo não é realmente um mundo; ele é chamado mundo. Subhuti, o que pensa? Pode o Tathagata ser percebido pelas trinta e duas marcas peculiares [inerentes ao sábio]?81 Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser percebido pelas trinta e duas marcas de peculiares. E por quê? Pois o Tathagata explicou que as trinta e duas marcas não são tais, elas são apenas chamadas trinta e duas marcas. Subhuti, se por um lado um homem ou uma mulher sacrificasse tantas vidas quanto as areias do Ganges, e, por outro lado, alguém recebesse e retivesse apenas quatro linhas deste discurso, e ensinasse e explicasse aos demais, o mérito do último seria muito maior.

14 A paz perfeita está na libertação das distinções das características

Quando escutou este discurso, Subhuti percebeu seu significado e verteu lágrimas, e desta maneira se dirigiu ao Buddha: Nunca ouvira eu tal exposição desde o tempo em que meu olho de sabedoria primeiro se abriu. Grande Honorável, esta concepção de realidade fundamental não é, de fato, uma concepção distintiva; assim diz o Tathagata: “a concepção de realidade fundamental é meramente um nome”. Grande Honorável, tendo escutado este discurso, eu o recebo e o retenho com fé e entendimento. Isto não é difícil para mim; no entanto, em eras futuras, nos derradeiros 500 anos, se houver homens que ouvirem este discurso e o receberem e o retiverem com fé e entendimento, estes serão seres de grande compreensão. E por quê? Pois eles serão livres de uma concepção de uma entidade do ego, livres da concepção de uma personalidade, livres da concepção de um ser, e livres da concepção de uma identidade. E por quê? Pois a distinção de um ego é errônea. Assim como a distinção de uma personalidade, de um ser ou de uma identidade é errônea. Consequentemente, todos aqueles que abandonaram todas as distinções fenomenológicas são buddhas. Buddha disse a Subhuti: Assim é como diz. Todos aqueles que escutarem este discurso sem alarde, sem medo e sem receio, que saibam que são seres de grande compreensão. E por quê? Pois, Subhuti, o Tathagata diz que a primeira perfeição não é, de fato, a primeira perfeição, este é apenas um nome. Subhuti, o Tathagata diz da mesma maneira que a perfeição da paciência não é a perfeição da paciência, este é apenas um nome. E por quê? Quando o Raja de Kalinga mutilou meu corpo, eu 81

“As trinta e duas marcas do sábio são pré-budistas em origem, derivadas das escrituras hindus. Os itens na lista dos sinais atribuídos à pessoa de Gautama Buddha são, provavelmente, em parte simbólicos e em parte ideiais estéticos.” (PRICE, 160; 46n.)

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estava, naquele tempo, livre de uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. E por quê? Pois quando meus membros foram cortados pedaço por pedaço, se estivesse acorrentado às distinções, sentimentos de ódio e raiva surgiriam em mim. Subhuti, lembro que, há muitas eras, em algum tempo, durante minhas últimas cinco mil vidas mortais, eu era um asceta (rishi). Desde então eu era livre das distinções de um ego. Por isso os bodhisattvas devem abandonar todas as distinções fenomenológicas e despertar o pensamento para a consumação da incomparável iluminação, não permitindo que a mente dependa de noções evocadas pelo mundo sensível. A mente deve permanecer independente de qualquer pensamento que surja nela. Se a mente depende de algo, ela não tem a iluminação. Este é o porquê do Buddha ensinar que a mente de um bodhisattva não deve aceitar as aparências como fundamento para o seu exercício. Subhuti, como bodhisattvas estão no empenho do bem-estar de todos os seres vivos, eles devem agir desta forma. Assim como o Tathagata diz que características são não características, assim ele diz que todos os seres vivos não são, de fato, seres vivos. Subhuti, o Tathagata é aquele que aponta o que é verdade, o que é fundamental e o que é derradeiro. Ele não aponta aquilo que é enganador ou aquilo que é monstruoso. Subhuti, a verdade que o Tathagata alcançou não é real nem irreal. Subhuti, se um bodhisattva pratica a caridade com a mente atada a noções formais, é como um homem tateando cegamente na penumbra; mas um bodhisattva que pratica caridade com a mente desprendida de noções formais é como um homem de olhos abertos à radiante glória da manhã, para quem todos os objetos estão claramente visíveis. Subhuti, se houver bons homens e boas mulheres em eras futuras prontos para receber, ler e recitar este discurso integralmente, o Tathagata claramente os perceberá e reconhecerá através de seu conhecimento búdico; e cada um deles irá trazer incomensurável e incalculável mérito.

15 O incomparável valor deste ensinamento

Subhuti, se, por um lado, um bom homem ou uma boa mulher realiza pela manhã um número de atos de caridade e abnegação de igual número aos grãos de areia do Ganges, e realiza o mesmo número à tarde, e o mesmo número novamente à noite, e continua da mesma maneira por incontáveis eras, e, se, por um outro lado, alguém escuta este discurso com o coração e sem discórdia, o segundo destes será muito mais valoroso. Mas quão impossível seria compará-lo com aquele que o escreve, o recebe, o retém e o explica aos demais. Subhuti, nós podemos resumir o assunto dizendo que o valor deste discurso não pode ser concebido nem estimado, nem tampouco qualquer limite imposto a ele. O Tathagata pronunciou estes ensinamentos para os iniciados no grande caminho. Todo aquele que puder receber e retiver este ensinamento, estudá-lo, recitá-lo, e divulgá-lo, será claramente reconhecido pelo Tathagata e alcançará

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uma perfeição de mérito além do cálculo ou da medida. Ou seja, este irá exemplificar a consumação da incomparável iluminação. E por quê? Pois, Subhuti, todos aqueles que encontram consolação em doutrinas limitadas envolvendo uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada são incapazes de aceitar, receber, reter e explicar aos demais este discurso. Subhuti, a qualquer lugar em que este discurso for encontrado, todos os reinos de deuses, homens, e ashuras devem prestar reverência; pois você deve saber que tal lugar é sagrado como um templo e deverá ser venerado com todos os preceitos cerimoniais e circunambulações, e com ofertas de flores e incenso.

16 Purgação pela retribuição de pecados passados

Subhuti, se este bom homem ou boa mulher que recebe e retém este discurso é tiranizado, seu destino é a inevitável retribuição pelos pecados cometidos em suas outras vidas. Subhuti, eu me recordo do passado remoto antes mesmo de Dipamkara Buddha. Havia oito mil miríades de milhões de buddhas, e a todos estes realizei oferendas; sim, a todos estes eu servi sem a menor falta. De qualquer maneira, se alguém for capaz de receber e retiver este ensinamento, estudálo, recitá-lo, e divulgá-lo pelos próximos aeons, este ganhará tal mérito, que o meu, a serviço de todos estes buddhas, não pode ser reconhecido como uma centésima ou milionésima parte deste – certamente, nenhuma comparação é possível. Subhuti, se eu detalhasse o mérito ganho pelos bons homens ou boas mulheres que receberem e retiverem este ensinamento, estudarem-no, recitarem-no, e divulgarem-no pelos próximos aeons, meus ouvintes estariam imersos em dúvidas e ficariam desorientados. Você deve saber, Subhuti, que o sentido deste discurso está além da concepção; assim como os frutos de seus méritos estão além da concepção.

17 Ninguém alcança a sabedoria transcendental

Neste momento, Subhuti voltou-se ao Buddha, dizendo: Grande Honorável, se um bom homem ou uma boa mulher procurar a consumação da incomparável iluminação, por que critério eles devem habitar e como eles devem controlar seus pensamentos? Buddha respondeu a Subhuti: Bons homens ou boas mulheres que buscam a consumação da incomparável iluminação devem criar esta resoluta atitude mental: “devo me liberar de todos os seres vivos; mesmo assim, quando tudo está liberto, nada está liberto”. E por quê? Pois um bodhisattva que cultiva uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma

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individualidade separada, não será, consequentemente, um bodhisattva, Subhuti. Isto se deve ao fato de não existir nenhum caminho que leve à consumação da incomparável iluminação. Subhuti, o que pensa? Quando o Tathagata estava com Dipamkara Buddha, havia algum caminho que levasse à consumação da incomparável iluminação? Não, Grande Honorável, como eu compreendo os ensinamentos de Buddha, não há nenhum caminho pelo qual o Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação. Buddha disse: Está certo, Subhuti. Não há nenhum caminho pelo qual o Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação. Subhuti, se houvesse tal caminho, Dipamkara Buddha não haveria predito a mim: “nas eras futuras você virá a ser um buddha chamado Shakyamuni”; no entanto, Dipamkara Buddha fez esta predição pois não há nenhum caminho que leva à consumação da incomparável iluminação. A razão aqui é que o Tathagata é o sentido englobando todos os caminhos; na possibilidade de alguém dizer que o Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação, eu direi a verdade, Subhuti, que não há caminho pelo qual o Buddha a tenha alcançado. Subhuti, a base pela qual Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação está totalmente além; ela não é real nem irreal. Por isso eu digo, todo o reino das formulações não é tal, este é apenas chamado “reino das formulações”. Então Subhuti disse: O Grande Honorável declarou que tal não é um magnífico corpo; “magnífico corpo” é apenas o nome dado a isto. Subhuti, o mesmo é o que concerne aos bodhisattvas, se um bodhisattva anuncia: “eu liberarei todas as criaturas viventes” este não é chamado um bodhisattva. E por quê? Pois, Subhuti, o Buddha ensina que todas as coisas são desprovidas de um ego, desprovidas de uma personalidade, desprovidas de uma entidade, e desprovidas de uma individualidade. Subhuti, se um bodhisattva anuncia: 'eu partirei paras as majestosas terras búdicas', este não é chamado um bodhisattva, pois o Tathagata declarou que partir para as majestosas terras búdicas não é tal, pois partir para as majestosas terras búdicas é apenas um nome. Subhuti, bodhisattvas que são totalmente desprovidos de qualquer concepção de um ego distinto são realmente chamados bodhisattvas.

18 Todas as modalidades mentais são apenas uma mente

Subhuti, o que pensa? O Tathagata possui o olho humano? Sim, Honorável, ele possui. Bem, você acha que o Tathagata possui o olho divino? Sim, Honorável, ele possui. Bem, você acha que o Tathagata possui o olho gnóstico? Sim, Honorável, ele possui.

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Bem, você acha que o Tathagata possui o olho da verdade transcendental? Sim, Honorável, ele possui. Bem, você acha que o Tathagata possui o olho búdico da onisciência? Sim, Honorável, ele possui. Subhuti, o que pensa? Sobre os grãos de areia do Ganges, o Buddha lecionou sobre eles? Sim, Honorável, o Tathagata lecionou sobre esses grãos. Bem, Subhuti, se houvesse tantos rios ganges como grãos de areia do Ganges e houvesse uma terra búdica para cada grão de areia em todos esses rios ganges, muitas seriam estas terras búdicas? Sim, realmente, Grande Honorável! Então o Buddha disse: Subhuti, tal seja o número de seres que habitem nestas terras búdicas, apesar de eles possuírem diversos modos mentais, o Tathagata compreende todos. E por quê? Pois o Tathagata ensina que todas estas não são mentes, elas são apenas chamadas mentes. Subhuti, é impossível reter a mente passada, impossível reter a mente presente, e impossível tatear a mente futura.

19 Realidade absoluta é a única fundamentação

Subhuti, o que pensa? Se alguém preenchesse as três mil galáxias de mundos com os sete tesouros e os distribuísse em esmolas, ele ganharia grande mérito? Sim, realmente, ele ganharia grande mérito! Subhuti, se tal mérito fosse real, o Tathagata não o declararia como grande, pois é sem fundamentação a declaração caracterizada pelo Tathagata como “grande”.

20 A não realidade das distinções fenomenológicas

Subhuti, o que pensa? O Buddha pode ser percebido pelo seu corpo perfeitamente formado? Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser percebido pelo seu corpo perfeitamente formado, porque o Tathagata ensina que um corpo perfeitamente formado não é tal, ele é apenas chamado um “corpo perfeitamente formado”. Subhuti, o que pensa? Pode o Tathagata ser percebido por qualquer característica fenomenológica? Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser percebido por qualquer característica fenomenológica, porque o Tathagata ensina que as características fenomenológicas não são tais, elas são apenas chamadas características fenomenológicas.

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21 Palavras não podem expressar verdade; o que expressam não é verdade

Subhuti, não diga que o Tathagata concebe a ideia: “Eu devo pronunciar um ensinamento”. Pois qualquer um que diga que o Tathagata pronuncia um ensinamento, difama o Buddha e é incapaz de explicar o que ensino. Para qualquer sistema de declaração de verdades, a verdade é indeclarável; então “a enunciação da verdade” é apenas o nome dado a isto. Assim, Subhuti disse estas palavras ao Buddha: Grande Honorável, nas eras futuras haverá homens que escutarão a declaração destes ensinamentos e serão inspirados por ela? E o Buddha respondeu: Subhuti, estes aos quais se refere não são nem seres viventes nem seres não-viventes. E por quê? Pois, Subhuti, estes seres viventes não são tais, eles são apenas chamados por este nome.

22 Não é possível dizer que qualquer coisa é alcançável

Então Subhuti perguntou ao Buddha: Grande Honorável, na consumação da incomparável iluminação o Buddha não realizou qualquer tipo de aquisição? Buddha respondeu: Subhuti, através da consumação da incomparável iluminação eu não adquiri nem a última das coisas; por isso isto é assim chamado “consumação da incomparável iluminação”.

23 A prática dos bons trabalhos purifica a mente

Além disso, Subhuti, Isto é em tudo, sem diferenciação ou grau, por isso é chamada consumação da incomparável iluminação”. É imediatamente alcançada pela liberação de um ego distintivo e pelo cultivo de toda forma de compaixão. Subhuti, apesar de dizermos “compaixão”, o Tathagata diz que não há compaixão, isto é apenas um nome.

24 O incomparável mérito deste ensinamento

Subhuti, se alguém se desfizesse em dádivas de esmolas de uma quantidade de tesouros na mesma proporção de Monte Sumerus existentes em três mil galáxias de mundos, e se houvesse um outro que selecionasse apenas quatro linhas deste discurso sobre a perfeição da verdade transcendental, recebendo-as e guardando-as, e claramente expondo-as aos demais, o mérito do segundo seria muito maior.

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25 A ilusão do ego

Subhuti, o que pensa? Não permita que alguém diga que o Tathagata cultiva a ideia “eu devo libertar todos os seres viventes”. Não permita tais pensamentos, Subhuti. E por quê? Pois não há nenhum ser vivente a ser libertado pelo Tathagata. Se houvesse ser vivente a ser libertado pelo Tathagata, ele compactuaria com a concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou uma individualidade separada. Subhuti, apesar de o homem comum aceitar o eu como real, o Tathagata declara que o eu não é diferente do não-eu. Subhuti, aqueles a quem o Tathagata se refere como “homem comum” não são homens comuns; isto é apenas um nome.

26 O corpo da verdade não possui marcas

Subhuti, o que pensa? Pode o Tathagata ser percebido pelas suas trinta e duas marcas?" Subhuti respondeu: Sim, realmente pode o Tathagata ser percebido desta forma. Então o Buddha disse: Subhuti, se o Tathagata pudesse ser percebido por estas trinta e duas marcas, qualquer grande monarca seria o mesmo que o Tathagata. Subhuti então disse ao Buddha: Grande Honorável, como eu compreendo o sentido das palavras de Buddha, o Tathagata não pode ser percebido pelas suas trinta e duas marcas. Assim o Grande Honorável pronunciou estes versos:

Aquele que me vê pela forma Aquele que me ouve pelo som, Pervertidos são seus passos no caminho; Pois não pode perceber o Tathagata.

27 É errôneo afirmar que todas as coisas extinguem-se

Subhuti, você não deve cultivar a ideia de que o Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação através de sua forma perfeita. Subhuti, se você cultivar a ideia de que qualquer um que declare que todos os meios para a consumação da incomparável iluminação se finalizaram e se extinguiram, não se prenda a estes pensamentos. E por quê? Pois o homem no despertar da consumação da incomparável iluminação não afirma, concernente a qualquer fórmula, que ela finalmente se extinguiu.

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28 Apego às recompensas do mérito

Subhuti, se um bodhisattva fizer uso da caridade com uma quantidade dos tesouros suficiente para encher tantos mundos quanto grãos de areia do Ganges, e outro, percebendo que tudo é desprovido de um ego, ativer-se à perfeição através da paciência perseverante, o mérito do segundo em muito ultrapassa o do primeiro. A que isto se deve, Subhuti? Pois todos os bodhisattvas são insensíveis às recompensas do mérito. Então Subhuti disse ao Buddha: O que é este discurso, Grande Honorável, que os bodhisattvas são insensíveis às recompensas do mérito? Subhuti, os bodhisattvas que alçam méritos não podem se agrilhoar aos desejos de recompensas. Isto é dizer que as recompensas do mérito nunca são recebidas.

29 A perfeita tranquilidade

Subhuti, se alguém disser que o Tathagata vem ou vai, se senta ou se reclina, ele falha em compreender meus ensinamentos. Por quê? Pois o Tathagata mão possui de onde nem para onde, por isso ele é chamado Tathagata.

30 O princípio integral

Subhuti, se um bom homem ou uma boa mulher reduzisse uma infinidade de galáxias dos mundos ao pó, as partículas resultantes seriam muitas? Subhuti respondeu: Sim, realmente, Grande Honorável! E por quê? Pois se realmente existissem partículas, o Buddha não haveria se referido a elas como partículas. O Buddha teria dito que não existem “partículas”, isto é apenas um nome. Da mesma forma, quando o Tathagata fala em “galáxias dos mundos” tal não existe, pois se a realidade pudesse ser predicada como um mundo, este seria um cosmo autoexistente, e o Tathagata ensina que tal não existe. “Cosmo” é meramente uma figura de discurso. Subhuti, palavras não podem explicar a natureza do cosmo. Apenas pessoas atraídas pelos méritos fazem uso deste método arbitrário.

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31 A verdade convencional deve ser extirpada

Subhuti, se alguém disser que o Buddha declara qualquer concepção de uma entidade do ego, você considera que ele compreendeu de alguma forma meu ensinamento? Não, Grande Honorável, este não compreendeu nenhum som do ensinamento de Buddha, pois o Tathagata diz que uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada, é um erro – estes termos são apenas figuras de discurso. Subhuti, aqueles que aspiram à consumação da incomparável iluminação devem reconhecer e compreender todas as variedades de coisas e extirpar a concepção de aspectos. Subhuti, no que se refere aos aspectos, o Tathagata diz que estes não existem. Eles são apenas chamados “aspectos”.

32 A desilusão das aparências

Subhuti, se alguém preenchesse os mundos com os sete tesouros e os distribuísse em dádivas de esmola, e se um bom homem ou uma boa mulher despertasse o pensamento para a iluminação e retivesse apenas quatro linhas deste discurso, recitando, usando, recebendo, retendo e espalhando e explicando para o benefício dos demais, isto seria muito mais meritório. Agora, de que maneira ele poderá explicar aos demais? Pelo desprendimento às aparências – habitando na absoluta realidade. Assim eu lhe digo:

Assim você deve pensar deste mundo fugaz: Uma estrela no alvorecer, uma bolha na correnteza; Um lampejo de um raio na nuvem de verão, Uma lâmpada vacilante, um vulto, e um sonho.

Quando o Buddha encerrou seu discurso o venerável Subhuti, juntamente com os bhikshus e bhikshunis, e todo o reino de deuses, homens, e ashuras, encheram-se de regozijo com estes ensinamentos, e, tomando-o sinceramente, eles partiram em seus caminhos.

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