O DISCURSO SOBRE A FAMÍLIA E A VIDA NO HGPE DE 2010: A BATALHA TELEVISIVA ENTRE DILMA E SERRA NO SEGUNDO TURNO

July 22, 2017 | Autor: C. Cardoso de Que... | Categoria: Eleições, Familia, Eleições 2010, José Serra, HGPE, Dilma Rousseff
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O DISCURSO SOBRE A FAMÍLIA E A VIDA NO HGPE DE 2010: A BATALHA TELEVISIVA ENTRE DILMA E SERRA NO SEGUNDO TURNO 1 Ana Lúcia Pitta2 Caio Cardoso de Queirós3 Franciane Moraes 4 Lívia Machado5

RESUMO Nas eleições presidenciais de 2010, temas tidos como tabus pela sociedade brasileira foram trazidos ao primeiro plano das discussões. Os candidatos Dilma Rousseff e José Serra posicionaram-se quanto a seus valores relativos às concepções de “família” em seus programas. Por meio de uma análise de conteúdo do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) de televisão do segundo turno, o artigo procura apontar qual foi o posicionamento discursivo dos candidatos sobre a questão familiar e sobre debates relacionados a esta temática, como a questão do aborto/defesa da vida.

PALAVRAS-CHAVE Eleições; família; vida

INTRODUÇÃO A campanha presidencial de 2010 trouxe à discussão uma série de temas que tradicionalmente não estiveram em evidência nos pleitos brasileiros anteriores, como religião, aborto e descriminalização do consumo de drogas. Essas questões são frequentemente

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Trabalho apresentado ao GT 2 “Televisão” do X Congresso Brasileiro de Marketing Político.

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Graduanda do 5º período do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista do Programa de Educação Tutorial PET–FACOM. Email: [email protected] 3

Graduando do 4º período do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista do Programa de Educação Tutorial PET–FACOM. Email: [email protected] 4

Graduanda do 5º período do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista do Programa de Educação Tutorial PET–FACOM. Email: [email protected] 5

Graduanda do 6º período do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista do Programa de Educação Tutorial PET–FACOM. Email: [email protected]

evitadas nas disputas majoritárias, em grande medida, porque forças políticas com efetivas chances de vitória não costumam considerar desejável um conflito com segmentos do eleitorado que tradicionalmente têm mais resistência ao debate de tais temas. Ronald Kuntz (1996, p. 63) conceitua esses como temas segregacionistas, pois “ao abordá-los, o candidato é obrigado a definir uma posição que vai, inevitavelmente, dividir o eleitorado”. O autor explicita que entre os assuntos que constituem temas polêmicos, “poderíamos citar aqueles ligados ao credo, à classe social ou econômica, às questões raciais, às rivalidades cotidianas (regionais, esportivas, etc), à ideologia, ao sexo, à idade” (p. 63). Segundo ele, “essas posições devem ser particularmente evitadas por quem concorre às eleições pelo sistema majoritário” (p. 63). Nas eleições presidenciais brasileiras de 2010, contudo, uma dessas questões (o aborto) emergiu com papel destacado: ainda durante o primeiro turno das eleições, uma suposta mudança de posicionamento da candidata Dilma Rousseff (PT) no tocante à descriminalização do aborto foi destacada pela Revista Veja como oportunismo eleitoral. A candidata tentou se desvencilhar desta imagem de contraditória, pois contava com o apoio de religiosos à sua candidatura e o tema poderia gerar perdas em sua base aliada, mas o tema foi explorado pela candidatura de José Serra (PSDB). A discussão se estendeu durante todo o restante da campanha, no bojo de discursos relativos a quem seria mais apto a apresentar-se como “defensor da família brasileira” e “quem valoriza a vida”. Qual é o discurso social a respeito do que é um núcleo familiar? Certamente, como fenômeno histórico, há processos de (re)significação das percepções públicas do que seria a família padrão. Aquilo que as forças políticas dizem sobre o tema constitui variável relevante para indicar quais são essas percepções (e as mudanças ali operadas), com impacto em debates como qual deve ser a função da família na educação dos filhos, quais seriam os parâmetros das relações conjugais e qual deve ser o papel da mulher dentro desta família. O silenciamento sobre as novas conformações do que pode ser chamado de família também constitui indício sobre quais são os lugares de onde partem esses discursos e quais as suas intenções. Através de uma análise de conteúdo qualitativa dos doze primeiros programas dos candidatos, veiculados entre 08/10 e 19/10, no segundo turno do pleito, busca-se, no presente artigo, verificar quais foram as concepções de família e de defesa da vida presentes nos

programas de Dilma e de Serra, com base não somente naquilo que se disse, mas também nesses silenciamentos acima mencionados. Família é um conceito que atravessa os anos passando por diversas modificações e, por carregar consigo um valor político considerável, “ela tem vindo a constituir uma unidade política constantemente sob a mira do poder, ansioso por lhe configurar a forma ‘ideal’, bem como seus modelos de funcionamento”, segundo Isabel Dias (1994, p. 97). A partir do engendramento dos discursos de uma família nascente da sociedade sobre si mesma com o discurso dessa sociedade sobre o que seja o modelo familiar é que surge o conceito central de família. Cynthia Sarti (2004, p. 13) lembra que o discurso oficial sobre família, “embora culturalmente instituído, comporta uma singularidade. Cada família constrói sua própria história, ou seu próprio mito, entendido como uma formulação discursiva em que se expressam o significado e a explicação da realidade vivida” Pensar a família, então, como uma realidade que se constrói por meio do discurso sobre si mesma, internalizado pelos sujeitos, é uma forma de buscar uma definição que não se antecipe à realidade das famílias, mas que permita pensá-las como elas constroem a noção de si. Supõe-se que isso se faz em cultura, dentro, portanto, dos parâmetros coletivos de tempo e do espaço no qual vivemos e que ordenam as relações de parentesco (entre irmãos, entre pais e filhos e entre marido e mulher) - e os seres humanos se constituem em cultura, portanto, simbolicamente, diz Sarti (2004, p. 14). A família, portanto, é arena de um jogo entre o mundo subjetivo e o mundo exterior no qual as relações se estabelecem entre o discurso social sobre família e seu reflexo nas diferentes famílias. Dentro dessas diferentes formações familiares, no entanto, “há uma tradução desse discurso, que, por sua vez, devolverá ao mundo social sua imagem, filtrada pela singularidade das experiências vividas” (SARTI, 2004, p. 15-16). Essa formulação familiar se mostra marcadamente contrária à noção de família como unidade de reprodução biológica (pai, mãe e filhos) e se contrapõe à suposição biológica humana como parte da ordem da natureza. Essa naturalização das relações sociais acontece de forma mais evidente em relação à família do que a outras instituições sociais, porque a família é o espaço social onde se localizam fatos da vida “vinculados ao corpo biológico, como o nascimento, o crescimento, o acasalamento, o envelhecimento e a morte” (SARTI, 2004, p. 15)

O apelo à ordem natural das coisas para explicar fatos humanos faz referências claras à separação entre biologia e cultura, com base na qual se assume que o corpo biológico existe de maneira independente da cultura, ao invés de pensá-lo como inscrito na e pela cultura. As mudanças no que se refere ao pensamento sobre o que é a família são particularmente complicadas, uma vez que as experiências vividas na família têm como referência definições cristalizadas de família socialmente instituídas pela nossa sociedade, que dispõem, ainda, dos meios de comunicação um veículo fundamental de propagação deste modelo cristalizado sobre o que é um núcleo familiar padrão. Essas referências constituem os “modelos” do que é e deve ser a família, visivelmente baseados numa visão de família como uma unidade biológica constituída segundo as leis da “natureza”. De acordo com FILHO et al (2007, p. 21), atualmente não se pode pensar em uma estrutura familiar levando-se em conta apenas a família nuclear, ideal burguesa do século XVIII, composta por pai, mãe e filhos. Além da configuração nuclear, existem famílias monoparentais (cujos filhos (as) são criados ou apenas pelo pai ou pela mãe); recompostas (cujos pais se divorciaram); famílias adotivas; famílias onde os pais não são juridicamente casados, mas tem reconhecimento social, e também com pais gueis e mães lésbicas, chamadas de famílias homoparentais.

Essa diversidade foi levada em conta nos discursos de Dilma e de Serra na campanha de 2010. Os programas do HGPE de ambos, nos debates relativos ao tema que se intensificaram no segundo turno, encontraram quais convergências e divergências? É o que se discute a seguir.

O TEMA DA FAMÍLIA NA PRIMEIRA SEMANA DE HPGE DO SEGUNDO TURNO As propagandas eleitorais televisivas do segundo turno começaram a ser exibidas no dia 8 de outubro de 2010. O tema do aborto, fortemente evocado no final do primeiro turno, esteve presente com centralidade: enquanto Dilma destacava em seu programa de abertura o apoio à “família brasileira”, Serra apresentava sua campanha como “a favor da vida, a favor do Brasil”. Ambos os destaques são consequências possíveis da repercussão e especulação sobre a opinião de Dilma contra ou a favor da legalização do aborto. Ocorreu um claro deslocamento da discussão em torno da descriminalização do aborto para o ponto moralreligioso da prática em si. O discurso da oposição era a de que a candidata seria a favor da prática, o que não necessariamente seria verdadeiro, mas traria um amplo prejuízo eleitoral à

candidatura petista. Em resposta a essa insinuação, a campanha de Dilma tentou vincular-se à imagem de defesa de “valores” que a candidata intitulou “os mais sagrados”, como a família. Serra, por sua vez, apresentou aos eleitores propostas em “defesa da vida e dos valores cristãos” como diferentes às supostas opiniões e propostas da candidata adversária. Vídeos da veiculados pelo tucano ao longo da campanha reiteravam a seguinte frase: “Serra sempre condenou o aborto e defendeu a vida”. No primeiro programa do segundo turno, exibido no dia 8 de outubro, Dilma destacou o tema “família” em falas como “Dilma apóia a família brasileira” e na apresentação da candidata como uma alternativa para “fortalecer a família brasileira”. O programa de construção de casas “Minha Casa, Minha Vida” foi apresentado a partir da ideia de que propiciaria a felicidade das famílias, com “amor, união, segurança”. Em uma das falas, Dilma dizia que “não é a casa. São as pessoas que estão na casa”. Já Serra falava, no primeiro programa, da “defesa da vida”. A conciliação entre os termos “vida” e “família” pode ser observada em uma de suas primeiras propostas, o projeto “Mãe Brasileira”. O programa abordava a ideia de que a família só seria possível com “o dom da vida” dado à mulher. Desta forma, o candidato se protegia de uma narrativa que poderia ser construída contra ele pelo fato de sua adversária ser uma mulher. A escolha estratégica da apresentação dessa proposta, com imagens de grávidas e bebês, logo no primeiro programa do segundo turno, remetia indiretamente aos discursos de que Dilma seria a favor do aborto. O contraponto se construída com narrativas como “Serra sempre condenou o aborto e defendeu a vida” e “Serra defende os valores da família brasileira, o valor cristão, o valor da vida”. No segundo dia de programa eleitoral (09/10) Serra apresentou o mesmo programa do dia anterior. Dilma voltou a apresentar o programa “Minha Casa, Minha Vida” como realização dos sonhos da família brasileira: o programa trazia a imagem da família Silva, mostrada como feliz e realizada por ter participado do “Minha Casa, Minha Vida”. A realização do sonho era citada por um dos membros da família: “Eu já vejo um Brasil com condições de comportar os meus sonhos”, numa clara associação de que a felicidade passava pela construção de uma família. Outra menção feita à família no segundo dia da campanha petista apareceu na frase “Governo Lula pra gente é um governo família. A favor da família, a favor da vida”. Depois da forte tentativa de Serra de associar Dilma à legalização aborto, enfatizar o compromisso da candidatura governista com o conceito de família e de defesa da vida foi a estratégia utilizada.

Na propaganda eleitoral noturna exibida no dia 10 de outubro, a campanha de Dilma continuou com destaque principal na questão familiar, com foco na sua própria família: seus pais foram apresentados, sua maternidade foi comentada e o programa mostrava uma imagem de Dilma com seu neto. A frase de destaque nessa parte do programa ressaltava os laços familiares de Rousseff: “Mulher, mãe e avó movida a determinação”. A candidata dizia que a maternidade é uma “dedicação sem pedir nada em troca” e é também um privilégio, numa associação permanente de Dilma com sua família. A candidata também colocava a família como prioridade de campanha no terceiro programa eleitoral e dizia pretender fazer do país um lugar onde “toda família tem o direito de ser feliz”. Dilma Rousseff apresentava o projeto “Bolsa Família” como um programa que “desenvolve mérito e dignidade para as famílias”. Dentre os seus objetivos de governo relacionados à família, Dilma afirmava querer “amarrar a família, fazer com que ela se estruture”. Durante esse mesmo programa, todas as propostas de governo em diferentes setores eram relacionadas à família. O terceiro programa de Serra, por sua vez, introduzia uma crítica a Dilma, relativa à sua ligação com o então presidente Lula, apresentada como uma relação de “dependência. No discurso sobre si próprio, o programa enfatizava a trajetória de vida do candidato, focando a primeira comunhão de Serra (forma de aproximar-se do eleitorado cristão). O caráter de personalização no terceiro programa de Serra foi patente. No programa que foi ao ar no dia 11 de outubro, a questão da família persistiu no programa petista. Logo no início, foi exibido o mesmo clipe do terceiro programa, com fotos da infância da candidata, bem como fotografias de Dilma com sua filha ainda bebê e com seu ex-marido e com a filha já adulta. A candidata apresentou-se, novamente, como “mulher, mãe e avó” e afirmava que seu governo prezaria por “amarrar a família”, fazendo com que ela se reestruturasse. Enquanto a candidata falava do programa “Luz para todos”, eram exibidas imagens de famílias, mais uma vez, nucleares, em frente a casas simples, agora iluminadas. Serra, no quarto programa, apresentava trechos do último debate em que esteve presente, numa emissora de televisão aberta, e do encontro com diversos governadores e senadores eleitos pelo PSDB. Mas o tema familiar não esteve ausente: no fim da exibição, Serra dizia que desejava terminar o programa com uma palavra de esperança: em doze de outubro, dia da criança e dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, ele queria que

as crianças nascessem e crescessem num Brasil livre, em que se respeitassem os “valores cristãos”. O quinto programa do candidato tucano no HGPE, exibido no dia 12 de outubro, teve início com diversas imagens que remetiam à questão da maternidade e da vida: cenas de mulheres grávidas, ultrassonografias, nascimentos de bebês. Enquanto as imagens eram exibidas, afirmava-se em off que ter um filho significa fazer diversas escolhas, como apostar no futuro e “escolher o bem, escolher a vida”. Por fim, tais escolhas eram identificadas com a escolha por José Serra para presidente, deixando clara a mensagem de que optar pelo candidato implicava diretamente reforçar a posição contra o aborto e a favor da vida. Ainda nesse programa, ao apresentar a Rede Lucy Montoro, para reabilitação de pessoas com deficiência (que o candidato implantou em São Paulo), uma mãe era entrevistada com seu filho no colo, e afirmava que ele estava ser muito bem tratado ali. Por fim, o apresentador afirmava que a criação da Rede Lucy Montouro indicava o “respeito pela vida” que Serra teria – ou seja, mesmo num tema totalmente distito, a remissão à questão do aborto aparecia indiretamente. Já no quinto programa de Dilma, apresentavam-se fotografias da candidata, enquanto o narrador versava sobre Rousseff ser “mulher, mãe e avó”, além de ser uma mulher que “respeita a vida”. As fotografias mostravam Dilma com sua filha, com seu neto recém-nascido e com o Papa Bento XVI. As imagens, assim como o texto, serviam justamente para que fossem dissolvidas as ideias de que a candidata seria pró-aborto. Ao falar sobre os programas que tiveram início no governo Lula, e que contaram com sua participação, Dilma afirmava que tal governo “pensou na família brasileira em primeiro lugar”. A seguir, na descrição dos programas, enfatizava-se a importância que tiveram para as famílias. Na descrição do programa “Minha Casa, Minha Vida”, Dilma aparece entre uma mulher, um homem e seus dois filhos, enquanto se dizia que tal projeto estava realizando o sonho da casa própria de diversas famílias. Mais uma vez, a expressão família era utilizada concomitantemente à exibição de imagens de famílias nucleares, como se tais formações fossem as únicas existentes, as naturais. O programa mostrava, ainda, uma animação, em que apareciam ícones representativos de um homem, uma mulher com um carrinho de bebê e uma criança junto aos dois. Enquanto isso, era dito que Dilma iria fortalecer a família brasileira, novamente representada pela formação tradicional. Mais uma animação foi exibida, enquanto o narrador afirmava que no

governo da candidata seriam construídas creches, para garantir tranquilidade aos pais e mães e aprendizagem adequada às crianças. A animação mostrava uma professora que desenhava num quadro negro um homem de mãos dadas com uma mulher, segurando uma criança pela mão. Por fim, afirmava-se mais uma vez que, com ações integradas, Dilma fortaleceria a família brasileira (ressalte-se: uma família nuclear fortemente ditada por um conceito biológico). Enquanto isso, no sexto dia do horário político, Serra não apresentou um programa inédito, reprisando o último exibido.

O TEMA DA FAMÍLIA A PARTIR DO SÉTIMO PROGRAMA DO HPGE DO SEGUNDO TURNO No sétimo dia do HGPE (17/10), Dilma Rousseff disse que “as famílias brasileiras consolidaram várias conquistas”, lembrando os avanços econômicos durante o governo Lula, que teriam sido frutos também da intervenção da candidata através de programas como o “Minha casa, minha vida”. A ênfase na família brasileira evidenciou-se também em textos como “pra fortalecer a família brasileira, Dilma vai construir dois milhões de casas.” Ainda nesse programa, falava-se de mulheres que participaram da história como mulheres à frente do seu tempo: três personalidades era citadas - Anita Garibaldi, Madre Teresa de Calcutá e Joana D´Arc. Vale ressaltar que duas, das três mulheres, foram religiosas e defenderam valores familiares. Serra, no sétimo programa, também se apresentava como o defensor da família brasileira e dizia dar um grande valor às mulheres brasileiras, muitas vezes chefes de família, “que seguram a barra nos momentos difíceis”. O candidato chegava a dizer que o maior sonho das mulheres seria ter uma casa própria para sua família. Todas as famílias exemplificadas na apresentação do programa habitacional do candidato tinham mulheres mostrando seus apartamentos (todas elas com filhos e um homem). Famílias com todos andando de mãos dadas, juntos, cobriam um texto que falava em “benefícios para famílias de todo o país”. A inserção de mulheres grávidas, dizendo que o dom da vida é o mais importante, eram sucedidas pelo slogan “A favor da vida, a favor do Brasil”. A Propaganda Eleitoral veiculada no dia 14 de outubro começava com José Serra utilizando-se da moral religiosa, que apelava a esse sentido de família tradicional. Dilma mostrava um personagem popular, para exemplificar sucessos do governo. Em ambos os casos, essas personagens tinham a sua família nuclear tradicional estabelecida. No dia

seguinte (o nono), Dilma repetia o programa e José Serra investia em uma série de ataques novos à adversária, tentando se mostrar como um governante generoso. Serra, então, apresentava-se como fruto de uma família pobre que tinha pai e mãe trabalhadores, uma família nuclear, “normal”. Ele diz que “Amigo de verdade é assim: Sempre aparece.” Havia, então, numa série de visitas dele a famílias comuns e uma passagem na qual ele lia a Bíblia, exaltando o “fazer de tudo o possível pelos outros”. Falava em famílias pobres, somente com as matriarcas em contato com ele, trazendo como exemplo a Dona Vera, “que se livrou de um câncer graças aos mutirões da saúde do Serra, ela junto com a família terão orgulho dele na presidência.” No programa do dia 16 de outubro, a petista enfatizava o fato de possuir um longo histórico de atuação na administração pública, tornando-se a primeira mulher ministra de Minas e Energia e a primeira mulher presidente do conselho de administração da Petrobrás. A breve biografia deteve-se também no papel de Dilma como membro de uma instituição familiar, fazendo uso de fotografias de família para indicar suas funções de mãe e avó. Durante o jingle, foi observada, nos recortes dos vídeos de transição, uma forte presença de temas familiares: crianças brincando e estudando, mulheres grávidas e casais com filhos, seguidos pelo anunciado “Essa é Dilma: mãe, avó, que com a força e a fé da mulher vai fazer o Brasil seguir mudando”, destacando, assim, seu papel como integrante de uma família. José Serra, por outro lado, teve foco na educação e, ao se declarar como procedente de família simples, que veio “de baixo”, o candidato se dizia conhecedor da realidade das famílias mais pobres e de seus problemas, sendo, portanto, apto a desenvolver uma política que privilegiasse a educação como forma de ascender socialmente. Em seguida, acompanha-se uma visita do candidato tucano a famílias humildes, sugerindo conversas informais sobre suas realizações políticas e os impactos destas nas famílias brasileiras, fazendo referência ao projeto Bolsa Alimentação como precedente do Bolsa Família. Ao abordar suas realizações, a propaganda eleitoral de Serra procurava demonstrar como se configuravam as respostas a esses projetos por parte das famílias brasileiras, em especial as menos abastadas. No décimo programa observou-se um leve decréscimo na centralidade do tema da família. Mas, ainda assim, o candidato tucano buscou operar por meio de depoimentos de personagens públicos de largo alcance no mundo evangélico, como os pastores José

Wellington Bezerra e Silas Malafaia, ambos com forte apelo à instuição familiar tradicional, ancorada na identidade religiosa. Dilma, por outro lado, fazia referências ao governo Lula como detentor de um “olhar social, fraterno e solidário”, pelo seu relacionamento com as famílias brasileiras de baixa renda. A candidata ainda reiterava sua proposta de desenvolver obras que atenderiam às famílias mais pobres. Já no décimo primeiro programa, houve um arrefecimento quase total do tema família, em decorrência das controvérsias geradas pelo debate ocorrido no dia anterior, que colocava em pauta a questão dos relacionamentos políticos dos candidatos, personificando a polêmica nas pessoas de Erenice Guerra, a ex-assessora de Dilma; e no ex-diretor do Dersa, Paulo Vieira de Souza (o Paulo Preto), ligado a Serra. Os dois programas apresentaram partes do discurso dos candidatos no debate recente, com recortes das melhores defesas, montando um mosaico de temas variados, sem enfoques específicos. Os efeitos do debate foram enfatizados no décimo segundo dia do HGPE de segundo turno: Serra deu destaque às práticas assistenciais realizadas em seu mandato de governador do estado de São Paulo, e Dilma destacou as possibilidades do campo da saúde em seu governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS No geral, ao longo do ciclo analisado, o discurso de Dilma a respeito da família surge de maneira mais frequente e direta em comparação ao de seu adversário – provavelmente como antídoto às críticas que ela recebeu pela questão do aborto desde o final do primeiro turno. Mas ambos os candidatos apresentaram-se como defensores e protetores “da família brasileira” e convergiram tanto na utilização sistemática de imagens de famílias estruturalmente muito parecidas entre si, quanto intimamente ligadas a um discurso religiosoconservador do que deva ser a conformação ideal de uma família. Quase sempre, esta família era apresentada com uma mãe, um pai e filhos. Houve momentos em que o programa de Dilma Rousseff investiu na imagem de mulheres “que lutam para sustentar a casa”, mas sem rupturas com o modelo familiar clássico. José Serra igualmente falou da mãe brasileira como “base que sustenta a família”, por diversas vezes atuando como chefe financeira de um lar. Também a concepção de lar foi outro ponto importante destacado pelos candidatos, pois ambos investiram na ideia de lar como o reduto familiar por excelência, onde impera o

amor de mãe. A candidata petista chegou a enfatizar que “mais importante do que somente a casa, é saber que esta família tem um lar.” O conceito de família nuclear, vista como a família padrão, tradicional, usualmente propagado pela mídia (e reiterado copiosamente por novelas, filmes e pela indústria cultural de maneira geral) foi aquele que efetivamente apareceu no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral dos dois candidatos, numa abordagem calcada na narrativa tradicional. Foi perceptível no programa de Dilma Rousseff uma reatividade ao programa do adversário. Ao ser apontada como candidata pró-aborto, e consequentemente contra a vida e a família, Dilma apresentou de maneira muito acentuada um discurso de apego aos valores da família nuclear. Ela também assumiu um posicionamento de blindagem contra possíveis críticas, valendo-se do fato de ser mulher, mãe e avó para reforçar a ideia de que toda mulher é naturalmente contra o aborto, por entender o dom da vida. O candidato José Serra, por sua vez, tentou repercutir de maneira direta ou indireta, na maior parte das exibições, a ideia de que sua adversária era defensora do aborto, sendo contra a vida. Ao colocar-se como o candidato “a favor da vida” e pela esperança do Brasil, Serra tentou imprimir à sua adversária uma imagem oposta à sua. Ainda que tenha feito uso de mensagens diretas para criticar Dilma, foi através de suas referências indiretas à vida que Serra buscou consolidar sua imagem como candidato contra o aborto e a favor da família – o que implicava, obviamente, um discurso naturalizador também sobre como essa família deveria ser estruturada. É sintomático que os candidatos dos dois partidos que governaram o país nos últimos dezesseis anos, mantendo-se sempre em lados opostos, tenham defendido posições similares no que tange ao sentido social do que seja família e os debates a isso relacionados: essas narrativas sobre o tema reforçam como o temor de represália eleitoral, por parte dos setores mais conservadores da sociedade, constrangeu o debate público sobre o tema, que deveria ter sido potencializado num momento de escolhas cruciais para os destinos do país.

REFERÊNCIAS DIAS, M. Isabel Correia. Família e Discurso Político: Algumas Pistas de Análise, Sociologia, nº 4, pp. 97–172, 1994.

FILHO, Fernando Silva Teixeira; TOLEDO, Lívia Gonsalves & GODINHO, Pedro Henrique. A homofobia na representação de mães heterossexuais sobre a homoparentalidade. In: GROSSI, Miriam; UZIEL, Anna Paula & MELLO, Luiz. Conjugalidade, parentalidade e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. KUNTZ, Ronald A. Manual de campanha eleitoral: marketing político. São Paulo: Global, 1996. SARTI, Cynthia. A família como ordem simbólica, Revista Psicologia USP, v.15, n.3, p. 11-28, 2004.

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