O Display e as questões culturais: o caso dos Guerreiros de Xi\'an

July 15, 2017 | Autor: Ana Paula Salvat | Categoria: Display, Exposição, Arte Oriental
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UNIFESP

ANAIS DO ENCONTRO INTERNACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTE ORIENTAL

ORIENTE-SE: AMPLIANDO FRONTEIRAS

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Michiko Okano (Orgs.)

São Paulo 21, 22 e 23 de maio 2014

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem citação da fonte e créditos devidos. O conteúdo e a redação dos artigos é de responsabilidade de seus autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca do EFLCH / UNIFESP, Guarulhos, SP

E56a Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental (2014 : São Paulo, SP) Anais [recurso eletrônico] / Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental : oriente-se : ampliando fronteiras; org. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi, Michiko Okano. - Dados eletrônicos - São Paulo: UNIFESP, 2014. 840.p.; il. Disponível em: ISBN: Inclui bibliografias

1. História da Arte; 2. Arte Asiática; 3. Arte Oriental; 4.Arte Japonesa; 5. Arte Indiana; 6. Arte Chinesa; 7. Arte Tibetana; 8. Arte Coreana; 9. Arte Islâmica; 10. Arte Cinema Asiático; 11. Teatro; 12. Dança; I.Aldrovandi, Cibele Elisa Viegas II. Okano,Michiko III. Título CDD 709

O DISPLAY E AS QUESTÕES CULTURAIS: O CASO DOS GUERREIROS DE XI´AN Ana Paula dos Santos Salvat - UNIFESP

RESUMO: O estudo do display das obras de arte é uma abordagem recente que consiste em investigar o modo de mostrar uma peça ou uma coleção em uma exposição e as mensagens associadas a essa visualização, as quais atribuem um significado que conduz o olhar do visitante. O conceito de "arte" tal qual aplicamos hoje é uma criação ocidental do final do Renascimento. No entanto, engloba-se nesse conceito tudo o que foi produzido antes desse período bem como a cultura material de povos não-ocidentais, ou seja, artefatos que não foram feitos para serem obras de arte, mas que, hoje, são considerados como tais. Ao exibir essas peças no Ocidente, o desafio é remover sua própria lente cultural e deixar que cada povo fale por si com seus próprios conceitos. Esta pesquisa pretende levantar as questões referentes ao display dos soldados de terracota de Xi´an, em exposições no Ocidente, em comparação com a visualidade em seu local original, com destaque para o conceito e a prática da reconstrução e da cópia de elementos da cultura material na China. Palavras-chave: display, exposição, cópia, China, Exército de Terracota

ABSTRACT: The study of the display of works of art is a recent approach of investigating the way to show a piece or a collection in an exhibition and the messages associated with this view, which ascribe a meaning which leads the visitor's eye. The concept of "art " as we apply today is a creation of the end of the Renaissance in western world. However, this concept includes all that was produced prior to this period as well as non-western peoples material culture, in other words, artifacts that were not meant to be works of art, but today, they are considered as such. When viewing these pieces in the West, the challenge is to remove our own cultural lens and let each people speak for themselves with their own concepts. This research intends to raise issues relating to the display of the terracotta warriors in western exhibitions comparing them with the visuality in their original place, with emphasis to the concept and practice of reconstruction and copying elements of material culture in China. Keywords: display, exhibition, copy, China, Terracotta Army

O presente estudo pretende abordar os diferentes tipos de display aos quais os Guerreiros de Terracota de Xi´an são submetidos, desde seu contexto original de produção na China e suas especificidades culturais, até suas aparições no Ocidente por meio de exposições museológicas. Apesar de surgirem outros temas relacionados ao mausoléu do Imperador Qin Shi Huang Di, como a questão do realismo das figuras ou os prováveis motivos da construção do complexo funerário, a ênfase recairá sobre as implicações decorrentes dos diversos modos de mostrar as peças, e da cópia como uma questão cultural oriental.

Introdução ao estudo do display O contato do público com artefatos e obras de arte de outras culturas e épocas ocorre, sobretudo por meio das exposições, cujo formato atual teve origem

no Século XVIII com o advento dos museus. No entanto, tais mostras não são absolutamente neutras ou ingênuas, mas preparadas para conduzir o visitante a um “modo de ver” proposto por meio da mediação, da informação textual e do modo de apresentação do objeto e sua relação com os demais. O display é justamente o “modo de mostrar” uma peça ou uma coleção e as mensagens

associadas

a essa visualização,

intencionais ou não, estando

intimamente ligado ao contexto cultural de um determinado local em uma determinada época, regido por questões sociais, políticas e econômicas. Essa abordagem é recente na História da Arte e tão importante que, pela primeira vez, o The Getty Reserarch Institute dedicou dois biênios consecutivos (2009/2010 e 2010/2011) ao estudo do display. Os textos de apresentação dos Programas Acadêmicos trazem reflexões sobre o conceito: Mostrar um objeto é afirmar que ele é digno de ser visto. (...). A criação de determinadas condições de visualização reúne ideias e objetos, criando narrativas que atribuem significados de modo que nossa experiência com qualquer objeto e o significado que apreendemos dele mudam de acordo com o modo de exposição. (THE GETTY RESEARCH INSTITUTE, 2009, tradução nossa) Display é uma força motriz no mundo da arte, reunindo ideias e objetos e criando narrativas que atribuem significados. Nossa experiência com qualquer objeto e o significado que apreendemos dele mudam com os contextos sociais, políticos, econômicos e culturais da sua exibição. Em alguns casos, os objetos só se tornam obras de arte em virtude de serem mostrados [como tais]. (THE GETTY RESEARCH INSTITUTE, 2010, tradução nossa)

Desta forma, o conceito de display está diretamente associado a exposições e museus. No entanto, sua análise pode ser estendida aos períodos anteriores à própria noção de arte, como entendemos hoje. Conforme afirma Susan Vogel (1991, p. 191, tradução nossa),"quase nada exposto nos museus foi feito para ser visto neles. (...). De alguma maneira, atribuímos à arte ou aos artefatos de todos os períodos os nossos próprios valores". Essa afirmação é essencial para a compreensão do que se vê nas instituições. Em

museus de arte ocidental moderna e contemporânea pode-se de dizer que grande parte dos objetos exibidos aspiravam aquele local. No entanto, os museus históricos ou os etnográficos, ou mesmo todos aqueles que guardam e expõem objetos anteriores ao século XV e/ou de povos não-ocidentais, reúnem coleções de peças funcionais de determinadas épocas e regiões. Além dessas peças não terem sido feitas para museus, a segunda parte da afirmação de Vogel é igualmente importante e destaca a ação do olhar contemporâneo, e todas as questões culturais que o forma, sobre o objeto. Introduzir um objeto, seja ele qual for, em um museu ou numa exposição, é,

por princípio, reterritorializá-lo, ou seja, implica na retirada do objeto de seu local original de produção ou de funcionalidade e na inserção do mesmo em um outro contexto, o museu, ou seja, um espaço artificialmente criado para recebê-lo, conservá-lo, estudá-lo e relacioná-lo com outras peças da mesma coleção ou de uma mesma exposição. Desta forma, a partir da musealização, cria-se uma nova mensagem por meio do modo de mostrar o objeto ou a coleção. Esse novo modo de apresentar um ou vários artefatos reflete os conceitos de quem concebe essa exposição. Partindo da premissa de que os objetos não foram feitos originalmente para serem expostos em museus, a mensagem que se passa não é a originalmente concebida por quem os produziu. No entanto, é primordial que essa "intenção original" seja conhecida pelo espectador para evitar ideias equivocadas a respeito da origem e do percurso dos objetos vistos. De fato, nenhuma exposição é neutra, cada elemento escolhido é carregado de significados que produzem efeitos entre si, com os objetos, com a arquitetura, com o visitante. O historiador da arte britânico Michael Baxandall considerou que uma exposição seria um campo onde três agentes ativos jogam um jogo diferente num mesmo lugar. Esses agentes são: o autor do objeto, o idealizador da mostra e o visitante. O primeiro agente, o autor, é o que "compreende sua cultura de maneira mais imediata e espontânea do que qualquer outro (incluindo o idealizador da exposição e o visitante)" (BAXANDALL, 1991, p. 35, tradução nossa) e, portanto, o objeto produzido é fruto de um contexto intrínseco a ele. O segundo agente, o curador, ou idealizador da exposição, tem como propósito montar uma mostra instrutiva sob a rubrica de uma teoria da cultura. Por fim, o terceiro agente é o

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espectador, o visitante, o qual quer ver objetos de interesse visual de outra cultura e entendê-los. O seu modo de olhar é influenciável pelo modo de mostrar. Nessa perspectiva, pretende-se apresentar os diferentes modos de olhar os Guerreiros de Xi´an a partir dos diferentes modos de mostrá-los, bem como discutir a questão da produção de suas cópias no contexto do intercâmbio das culturas oriental e ocidental.

Os Guerreiros de Terracota de Xi´an As esculturas dos Guerreiros de Terracota em tamanho natural são peças tumulares feitas por ordem de Qin Shi Huang Di, que unificou a China e proclamouse o primeiro imperador da Era Qin em 221 a.C., tendo falecido em 210 a.C. Sua obsessão pela imortalidade e controle levou-o à construção desse complexo fúnebre para si, iniciado logo após sua ascensão ao trono e que demorou cerca de 40 anos para ser finalizado (ASIAN ART MUSEUM, 2013), segundo escritos do historiador Sima Qian (ca.145 - 95 a.C.). A região do túmulo, descoberta por acaso por lavradores locais em 1974 em Xi´an, capital da Província de Shaanxi, foi explorada apenas em parte, pois estende-se por mais de 90 km², mas calcula-se que já foram descobertas 1.900 peças de um total previsto de 8.000 (ASIAN ART MUSEUM,

2013). Em 1979 foi instituído no local o Museu do Exército de Terracota, o qual recebe cerca de 5 mil visitantes por ano (NUWER, 2013) que observam não apenas guerreiros, mas também acrobatas, dançarinos, músicos, carruagens e cavalos: O exército de terracota foi construído para proteger o Imperador na vida futura e supervisionar questões militares. Mas, recentes descobertas provaram que o Primeiro Imperador estava preocupado com sua administração civil após a morte. Em 1999, onze acrobatas e homens vigorosos foram encontrados perto no monte da tumba, os quais eram designados para entreter o Imperador na vida após a morte. Oficiais civis e escribas de terracota foram encontrados em Outubro de 2000, e, um ano mais tarde, um pássaro, um ganso em tamanho natural, cisnes e gruas de bronze (THE BRITISH MUSEUM, 2007, tradução nossa).

Os guerreiros são as figuras mais numerosas e possuem características tidas como individuais e realistas1. Há, no entanto, muitas teorias sobre o realismo das peças, e Ladslav Kesner chama a atenção para as desproporções e certos exageros em partes dos corpos, bem como para as posturas e gestos das figuras de acordo com a função de cada personagem (KESNER, 1995, p. 118). Quanto aos rostos,

Kesner (1995, p. 120, tradução nossa) afirma que "enquanto certas figuras mostram um notável grau de individualidade, a maioria dos rostos podem ser melhor descritos

como um conjunto de unidades expressivas e representativas pré-fabricadas", ou seja, as peças possuem "aparência de individualidade sem sua substância, realismo sem retrato" (KEIGHTLEY, 1991 apud KESNER, 1995, p. 120, tradução nossa). Além das diferenças fisionômicas, a diversidade entre as peças ocorre sobretudo pela variedade e detalhamento nas roupas, acessórios e penteados: Há exemplos impressionantes de realismo visual na arte chinesa antes do exército de terracota de Qin; mas não há precedente para esse massivo desenvolvimento de verossimilhança, especialmente evidente na produção de artigos de vestuário e peças de armadura e adornos. Cintos e ganchos, botas e sapatos, fechamento de colarinho, coques e tranças são intransigentemente reproduzidos de maneira plástica. (KESNER, 1995, p. 118, tradução nossa)

O sítio arqueológico de Xi´an é um grande campo de estudos e a cada período são anunciados novos achados, sejam na área da arqueologia, da conservação ou da história da arte, por exemplo. Há três pontos abertos de escavação do Exército de Terracota e, novas descobertas são feitas de tempos em tempos: "a primeira escavação formal do sítio durou seis anos, de 1978 a 1984 e produziu 1.087 figuras de argila. Uma segunda escavação em 1985 permaneceu por um ano mas foi logo interrompida por razões técnicas" (LIE, 2010, tradução nossa), embora Brook Larmer (2012, p. 115) também acrescente que "um operário roubou a cabeça de um guerreiro e foi executado ali mesmo". A última delas iniciou-se em 2009, e em 2012 foi anunciado o desenterramento de 310 peças, dentre as quais, "100 soldados de terracota e cavalos de guerra, dois conjuntos de carruagens, bem

como algumas armas, tambores e um escudo" (MORE..., 2012, tradução nossa), sendo que esses últimos nunca haviam sido encontrados antes em nenhum dos pontos de escavação. Recentemente, o britânico Lukas Nickel, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, publicou o artigo "O primeiro Imperador e a escultura na China" (2013) pontuando o aparecimento súbito da escultura representando seres humanos em tamanho natural na China, sem precedente similar, a partir do interesse do Imperador Qin Shi Huang Di por essa manifestação artística, a qual "pode ter sido resultado do contato com o mundo contemporâneo

Helenístico [século III a.C.]" (NICKEL, 2013, p. 413, tradução nossa), uma vez que naquele século havia influência grega na Ásia Central, em especial, na Índia: Durante a vida do Primeiro Imperador, o reino Greco-Bactriano de Diodoto abrangeu toda a Ásia Central, do Jaxartes ao Indus, incluindo o Vale de Fergana, e a cultura Helenística (e a escultura Helenística) floresceram não apenas na distante Europa, mas dentro do alcance do crescente império chinês. (NICKEL, 2013, p. 413, tradução nossa)

Nickel (2013, p. 442, tradução nossa) menciona ainda que "as esculturas encontradas na tumba do Primeiro Imperador da China permanecem isoladas na história da arte chinesa", devido ao seu caráter particular. Outra descoberta foi a respeito do colorido que as figuras de terracota tinham originalmente. Em algumas peças é possível verificar vestígios de cor, mas o contato com o ar rapidamente desprendeu os pigmentos da argila. No entanto, recentemente foram encontrados soldados bem preservados: Uma escavação que durou três anos no mais famoso sítio de Xian, o fosso 1, produziu mais de uma centena de soldados, alguns com feições pintadas, incluindo cabelo preto, faces rosadas e olhos castanhos ou negros. Os mais bem preservados foram achados no fundo do fosso, onde uma camada de lama, criada por inundações, funcionou como uma espécie de tratamento cosmético, que se estendeu por mais de 2 mil anos. (LARMER, 2012, p. 115)

Esse fato modifica a imagem comum que se tem do conjunto em cor de terra

e permite criar imaginativamente uma nova visão do grupo em cores. Um grande exército colorido feito para ser enterrado, uma ostentação escondida dos olhos humanos.

Display dos Guerreiros: da necrópole ao museu A primeira questão a respeito do grande mausoléu de Xi´an é justamente que ele foi feito para não ser visto. E assim permaneceu por mais de dois mil anos, desde seu completo enterramento até o início de sua descoberta em 1974, quando, então, tem-se revelado para o mundo como um impressionante sítio arqueológico e campo de pesquisa.

Quem visita o local de um ponto de vista panorâmico tem oportunidade de vislumbrar a extensão territorial e a grande quantidade de peças, ou seja, obtém

uma imagem de um conjunto que emerge de dentro da terra. Essa visão privilegiada só pode ser experienciada pessoalmente por aqueles vão até o Mausoléu do Primeiro Imperador Qin, inscrito como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 1987 (UNESCO, 19922014). No entanto, na década de 1980 começou-se a organizar exposições em

museus ocidentais com pequenos grupos de Guerreiros de Terracota, sejam sozinhos ou em conjunto com outras peças dentro de diversos contextos da cultura chinesa, ampliando o acesso do público às peças. O primeiro lugar a mostrar essas peças fora da China foi a Art Gallery of New South Wales na cidade de Sydney, Austrália, em 1983 (TERRACOTA..., 2010). A Europa recebeu-os pela primeira vez por meio de uma exposição na Suécia em 1984, que voltou a mostra-los em 2010, no Museu da Ásia Oriental, em Estocolmo, em comemoração ao 60º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas entre China e Suécia (FANG, 2010). Finalmente, eles chegaram à América em 1985 numa mostra realizada no Instituto de Artes de Minneapolis, Estados Unidos (MINNEAPOLIS INSTITUTE OF ARTS, [2012]). Vinte anos após a primeira exposição do Exército de Terracota fora de seu local original, eles chegaram ao Brasil. Entre 21 de fevereiro e 8 de junho de 2003, o Pavilhão Lucas Nogueira Garcez (Oca) no Parque Ibirapuera, São Paulo, recebia centenas de peças oriundas de 18 museus de Shaanxi e do Museu do Palácio

Imperial da Cidade Proibida, entre as quais treze esculturas de terracota (onze guerreiros e dois cavalos) para a mostra "Os Guerreiros de Xi´an e os tesouros da Cidade Proibida"2 vista por 817.782 pessoas, que fizeram dela a exposição mais visitada do país3. Esse evento foi fruto de acordos políticos de cooperação bilateral, assinados em 2001, entre Brasil e China, que iniciaram suas relações diplomáticas em 1974. Nesse contexto de exposições museológicas, a espacialidade muda a visualidade das peças. Evidentemente perde-se a visão do conjunto do local original, mas, por outro lado, as peças são observadas em sua individualidade, com uma proximidade que permite a apreensão dos detalhes, impossíveis de serem notados

com tanta acuidade à distância no sítio arqueológico.

A museografia das exposições é variável, mas um fator primordial é a proteção das frágeis esculturas, o que leva os conservadores, muitas vezes, a colocarem-nas sob cúpulas de vidro individuais, como foi feito na exposição em São Paulo. Em outros locais, como na Itália, em 2010, os guerreiros, sem cúpulas, foram agrupados sobre uma plataforma baixa na Curia Julia, Fórum Romano, próximos a antiguidades locais, na mostra "Os dois impérios: a águia e o dragão", a qual celebrava duas grandes potências do passado: Roma e China (BALLESTRAZZI, 2010). Apesar de mais restritiva à primeira vista, as cúpulas permitem uma maior aproximação e uma vista de 180º das peças, enquanto a base limita a visualização de certas partes das esculturas, apesar de não existir nenhum anteparo visual entre os olhos e a obra. Os tipos de guerreiros selecionados dependem da curadoria de cada mostra, mas, em geral o que se observa é que as escolhas sugerem certa variedade, enfatizando as diferenças entre eles e trazendo à tona o tema da individualidade e do realismo, já abordados no item anterior.

A questão da reconstrução como ato de preservação no Oriente A China é uma civilização não-ocidental milenar, "a mais antiga das culturas ainda vivas" (SULLIVAN, 1971, p. 10), onde arte e vida se misturam.

Uma característica essencialmente oriental é a preservação da cultura material mediante a produção de cópias, ato reverente de manter sua aparência, seu material e seu modo de produção. Prática comum na China, no Japão e em outros povos, a reconstrução remete a uma visão cíclica do tempo e da preservação dos costumes, da alimentação e do sistema social por séculos: As dinastias ascendem e caem, são substituídas por novas, mas como a Cidade Proibida emergindo de seu último incêndio, permanecem fundamentalmente as mesmas: cada novo grupo governante mantém o "mandato do céu". Na Era Imperial, os chineses contavam os anos pelas dinastias, de modo que o tempo recomeçava a cada uma que se renovava (STILLE, 2005, p. 73).

No entanto, a produção de cópias é impensável no Ocidente, especialmente

no campo da conservação e restauro de obras de arte, e até mesmo considerada como fraude. E essa é uma questão na qual se insere, diretamente, o Exército de Terracota:

Quando Michele Cordaro, diretor do Instituto Central de Conservação Italiano, foi visitar o famoso exército de guerreiros de terracota em Lintong, nos arredores de X´ian, ficou em estado de choque com o que aconteceu: seus colegas chineses o levaram diretamente do antigo sítio arqueológico para uma fábrica que estava produzindo réplicas modernas dos soldados do túmulo do imperador (STILLE, 2005, p.71).

Os Guerreiros de Xi´an são peças frágeis e de grande valor econômico e a China tem limitado a quantidade deles que saem do país, fato destacado nas reportagens sobre as exposições das peças em diferentes países ao redor do mundo. Em 2012, por exemplo, ao divulgar a abertura da exposição "Tesouros Chineses" no Museu do Palácio de Topkapi, em Istambul, Turquia, o Jornal Daily News afirmou que "de acordo com a lei chinesa, é proibido levar mais de cinco soldados de terracota para fora do país" (CHINESE..., 2012, tradução nossa). No ano seguinte, o Museu de Arte Asiática de São Francisco, EUA, anunciou a exposição "Guerreiros de Terracota da China: o legado do primeiro Imperador", apresentando "dez figuras de terracota em tamanho natural - o número máximo permitido fora da China numa única exposição" (ASIAN ART MUSEUM, 2013, tradução nossa). Anos antes, em 2007, o Museu Britânico, em cooperação com alguns museus norte-americanos, organizou uma exposição itinerante de dois anos intitulada "O primeiro imperador: o exército de terracota", a respeito da qual um artigo na Revista do Instituto Smithsonian, em Washington DC, anunciava a participação do maior número de Guerreiros de Terracota fora da China, admitindo a presença de réplicas de peças de bronze: Além de mostrar descobertas recentes, as exposições apresentam a maior coleção de peças de terracota já mostrada fora da China. A estatuária inclui nove soldados dispostos em formação de batalha (oficiais armados, soldados de infantaria, em posição de pé e arqueiros ajoelhados), bem como um cavalo de terracota. Outro destaque é um par de carruagens de bronze, cheias de detalhes, de três metros de comprimento, cada uma, puxadas por quatro cavalos de bronze. (Demasiado frágeis para serem transportadas, as carruagens são representadas por réplicas). (LUBOW, 2009, tradução nossa)

Quando a exposição foi para o High Museum, em Atlanta, o museu norte-

americano também divulgou que era "a maior coleção de figuras que deixou a China" (BALL, 2008, tradução nossa). No entanto, o episódio mais controverso ocorreu na Alemanha, em 2007, quando o Museu de Etnologia de Hamburgo recebeu a exposição "Poder da Morte", organizada pelo Centro de Artes e Cultura Chinesas (CCAC), com oito Guerreiros de

Terracota, dois cavalos e sessenta peças menores. A questão polêmica foi a divulgação de que os guerreiros eram cópias. O diretor do Museu de Hamburgo disse não saber que as peças não eram originais e que a CCAC havia mostrado um certificado de autenticidade das peças. Dois anos antes, a mostra havia acontecido na cidade de Leipzig com a clara divulgação de que os guerreiros não tinham dois mil anos. Autoridades da cidade de Xi´an confirmaram que, na época, a única permissão dada para empréstimo de peças originais para exposição em locais distantes foi para o Museu Britânico, na mostra, já mencionada, que ocorria no mesmo ano. O caso foi considerado um crime no mundo da arte (CONNOLLY, 2007). Quanto à exposição no Brasil, com curadoria de Cristiana Barreto e Luís Donisete Benze Grupioni, e inaugurada em 20 de fevereiro de 2003 com a presença do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, não houve menção à existência de cópias e o número total de peças divulgado variou conforme a fonte. Na edição eletrônica da Revista Época (OLIVEIRA, 2003) falou-se em mais de 350 peças, enquanto Edemar Cid Ferreira, Presidente da BrasilConnects, entidade organizadora da exposição no Brasil, escreveu em seu site que vieram 260, e que a lei chinesa só permitia a saída de 140 obras (FERREIRA, 2011). De qualquer forma, a presença de treze peças do exército de terracota, sendo onze guerreiros e dois cavalos, ultrapassa qualquer limite de quantidade de obras originais a deixar a China, conforme mencionado anteriormente em outras exposições.

Conclusão Desde que foram despertados de seu sono milenar os Guerreiros de Xi´an atraem grande atenção. As exposições museológicas tornaram o acesso do público a essas peças mais amplo, pois ocorrem em diversas partes do mundo. No entanto, a experiência visual no sítio arqueológico tem um impacto que nenhuma exposição reproduz, pois é possível contemplá-lo em visão superior como conjunto que se estende à distância, o que permite dimensionar sua amplidão. As mostras temporárias apresentam poucas peças, as quais são dispostas em vitrines ou plataformas que as deixam praticamente no mesmo nível visual do visitante, permitindo a apreciação de seus detalhes e enfatizando sua dimensão humana. Desta forma, a produção das peças de maneira individual e distinta é muito melhor

contemplada não em seu local original, mas no ambiente construído pelas mostras, ou seja, se no sítio tem-se a percepção do poder do Imperador, na exposição, contempla-se o trabalho humano do artesão. No que se refere à produção de cópias das peças, seriamente executadas com habilidade pelos chineses, a obsessão do Ocidente pela autenticidade da matéria de seu patrimônio histórico e artístico torna a questão bastante polêmica. Devido às restrições da lei chinesa quanto à exportação temporária das obras e pela própria fragilidade delas, algumas das exposições devem ter apresentado réplicas, sem que o visitante soubesse ou mesmo pudesse notar a diferença. Esse fato levanta a questão da possibilidade de fruição da obra e da apreensão de suas características, o que não é um debate exclusivo dos Guerreiros de Xi´an, mas está presente também em obras manipuláveis ocidentais contemporâneas, como nos Bichos, de Lygia Clark, por exemplo. No entanto, a exposição das réplicas respeita o contexto cultural tipicamente oriental de produção de cópias, o que "tem sido tradicionalmente parte importante do treinamento artístico na China - encarado como uma espécie de reverência, em vez de falta de originalidade"4 (STILLE, 2005, p. 74),

e que tem seu valor para estudo, afinal, o copista foi quem melhor observou a peça. Além disso, como notou Michele Cordaro, entre o original e a cópia, ambos feitos pelos chineses, "ninguém consegue distingui-los" (STILLE, 2005, p. 70). As constantes descobertas que surgem com o contínuo trabalho de escavação em Xi´an e os temas levantados com o estudo do local e das peças, como

os

que

foram

aqui

abordados,

mesmo

que

polêmicos,

produzem

conhecimento em várias áreas da atividade humana, fazem do Exército de Terracota um assunto constante na mídia, e, com isso, garantem que se cumpra o último desejo do Imperador Qin Shi Huang Di: sua imortalidade.

Nota 1 Os soldados foram representados em diferentes patentes e graduações de acordo com a roupa e adornos nas cabeças. 2

De fato, o título unificado refere-se a duas exposições concomitantes: "5 Mil Anos de Civilização: Relíquias de Shaanxi e os Guerreiros de Xi´an" e "Tesouros da Cidade Proibida: Símbolos da Autoridade Imperial". A redução do título tornou mais prática a divulgação do evento e foi adotado no Guia de Visitação da exposição, mas, nos catálogos (um para cada mostra) foram mantidos os títulos oficiais, os quais denotam os dois grandes núcleos da exposição: Shaanxi e Pequim.

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A exposição sobre a China na Oca teve o maior público em um único edifício, pois a "Mostra do Redescobrimento" (2000) teve um público total de 2,1 milhões de pessoas, mas abrangeu três edifícios dentro do Parque Ibirapuera e durou 6 meses (MOSTRA..., jun. 2003). 4 No mesmo texto, Alexander Stille cita o pesquisador Ken DeWoskin, professor de estudos chineses da Universidade de Michigan, o qual explica as duas palavras que a língua chinesa tem para cópia: Fang Zhipin e Fu Zhipin. A primeira "é o termo mais aproximado do que chamamos de reprodução - uma réplica que se pode comprar em lojas de museus -, já Fu Zhipin é uma cópia de alta qualidade, algo de valor que pode ser estudado ou colocado em um museu" (STILLE, 2005, p. 74).

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Ana Paula dos Santos Salvat Bacharel em Artes Plásticas pela USP (1996) com Especialização em Organização de Arquivos pela UNICAMP (1999) e Mestrado em Artes pela UNESP (2003), está ampliando sua formação cursando a graduação em História da Arte pela UNIFESP. Tem experiência em documentação e conservação de obras de arte e montagem de exposições, tendo trabalhado em museus de São Paulo por mais de treze anos.

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