O ditador Videla em Porto Alegre: um episódio da resistência e solidariedade democrática em tempos de ditaduras

May 27, 2017 | Autor: Jorge Fernández | Categoria: Recent History, Southern Cone (Area Studies), Civil-military Dictatorship
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O ditador Videla em Porto Alegre: um episódio da resistência e solidariedade democrática em tempos de ditaduras* Jorge Christian Fernandez**

Resumo: Este artigo analisa a visita oficial do general Jorge Rafael Videla ao Brasil, realizada em agosto de 1980, focando especialmente o impacto e os reflexos sobre os argentinos residentes em Porto Alegre. O fato também serviu para polarizar politicamente a sociedade brasileira, sob a ditadura do Gal. João Figueiredo, mas em uma conjuntura pós-anistia, onde se retornava à atividade política em meio à mobilização pelo reestabelecimento da democracia. Foi um momento de tensão para a comunidade argentina: enquanto empresários e alguns residentes festejavam Videla, os argentinos da diáspora, exilados e imigrantes ilegais, temiam que, além do endurecimento das leis de imigração brasileiras, a presença do ditador significasse o aumento na atividade repressiva transnacional. Metodologicamente, a pluralidade de fontes é uma característica deste trabalho, que utiliza desde periódicos até entrevistas orais com emigrados políticos e econômicos argentinos que ainda estão vivendo no Brasil. Nas narrativas construídas a partir de suas memórias, ainda podemos perceber os traços e cicatrizes deixadas na subjetividade pelas vivências sob o terror de Estado implantado pelas ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. Palavras-chave: Jorge Rafael Videla. Ditadura argentina. Exílio argentino. Conexão repressiva.

Um, dois, três, quatro, cinco mil! Abaixo a ditadura na Argentina e no Brasil!1

O mês de agosto do ano de 1980 não havia começado bem para os argentinos no Brasil, pelo menos para aqueles em situação ilegal e que pretendiam se tornar residentes. O novo Estatuto dos Estrangeiros, que substituiu o Decreto nº 66.689, de 11 de junho de 1970, era muito mais rígido que seu antecessor e dificultava sobremaneira a tramitação da permanência, ameaçando os irregulares, especialmente os refugiados, com a temida devolução ao país de origem. Foi também no mês de agosto que veio à tona na grande imprensa a desaparição do padre Jorge Oscar Adur, sacerdote terceiro-mundista tornado “capelão-militar” da organização guerrilheira argentina Montoneros, que viajava para Porto Alegre em 26 de *

O presente artigo é uma adaptação de parte do capítulo 5 da tese de doutorado do autor: Anclaos en Brasil: a presença argentina no Rio Grande do Sul (1966-1989), defendida em 2011, no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob a orientação da Profa. Dra. Claudia Wasserman. ** Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em História, na área de Estudos Históricos Latino-Americanos, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto do Curso de História do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). (E-mail: [email protected]). 1 Bordão entoado pelos manifestantes no ato público em repúdio à presença do general Videla em Porto Alegre, 22/08/1980. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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27 junho de 1980 para se encontrar com as Madres de la Plaza de Mayo, as quais o esperavam na cidade para uma audiência com o Papa João Paulo II (onde denunciariam os crimes da ditadura argentina), um compromisso ao qual Adur nunca compareceu. Cogitou-se, na época, que ele fora sequestrado em Porto Alegre, revivendo no imaginário o ainda recente caso dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Dias, ocorrido em novembro de 1978, o que também deve ter aumentado a sensação de insegurança dos argentinos que se refugiavam no Rio Grande do Sul. Contudo, o pior parecia estar por vir. Desde o início de agosto, a imprensa passou a noticiar a premente visita do ditador argentino, general Jorge Rafael Videla, ao Brasil em retribuição à visita que o ditador brasileiro, general João Batista Figueiredo, lhe fizera em maio do mesmo ano. O roteiro oficial de Videla se iniciava em Brasília, no dia 19 de agosto, e incluía visitas a São Paulo, Rio de Janeiro e, por fim, Porto Alegre.

1 Um visitante controverso

Em um momento histórico, onde a sociedade brasileira vivia intensamente os ventos mais amenos trazidos pela anistia, pelo retorno do pluripartidarismo e da democracia formal, a chegada de um presidente militar argentino, mundialmente execrado pela opinião pública devido às atrocidades cometidas contra seus opositores, transmitia uma ideia de retrocesso político e provocou reações controversas no seio da sociedade brasileira. Como a imprensa festejava o fim da censura oficial, as opiniões contrárias à visão oficial governista puderam ser expostas de forma clara. Isso ocorria apesar do surto de bombas e incêndios em bancas de jornais, promovidas por setores de extrema direita, descontentes com a maior abertura gerada pelo regime de Figueiredo. Já desde antes da chegada de Videla, os setores políticos da oposição iniciaram uma campanha de repúdio ao incômodo visitante “ilustre”. No Congresso Nacional, o debate entre o situacionista Partido da Democracia Social (PDS) e o oposicionista Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) parecia girar em torno de uma questão protocolar: homenagear ou não o ditador argentino na casa. Mas não era somente isso, a questão encerrava um problema de índole ética e política. Para o PMDB, a negativa em comparecer à homenagem a Videla no Congresso significava “[...] uma homenagem ao povo irmão, em sua resistência heroica e cristã, para reconquistar sua normalidade constitucional e democrática” (Zero Hora, 19/08/1980, p. 12). Assim, diversos políticos opositores protestaram contra a visita de Videla, Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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28 considerada um anacronismo que “[...] trai abertamente a chamada abertura política do governo” (Zero Hora, 19/08/1980, p. 12), posicionamento afirmado pelo PMDB, mas também pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e pelo então incipiente Partido dos Trabalhadores (PT). Enquanto isso, os governistas se esquivavam de tal discussão. O deputado Nelson Marchezan declarou que, ao receber Videla, o Brasil “[...] não emitirá juízo sobre a forma como ele foi ao poder, pois este é um assunto de exclusiva interpretação dos irmãos argentinos” (Zero Hora, 19/08/1980, p. 12). De forma oblíqua, ao se negar a discutir sobre a origem ou os meios que levaram os militares ao poder na Argentina, os pedessistas eximiam-se também de debater a legitimidade democrática do próprio governo brasileiro, uma questão candente no cenário nacional do período. Todavia, além de evitar debates sobre a democracia, o governo brasileiro também passava por alto (e não inadvertidamente) a sensível questão das violações aos direitos humanos por parte da ditadura de Videla. O chanceler Saraiva Guerreiro havia declarado à imprensa que o Brasil não apoiaria a Argentina caso esta fosse condenada pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), até porque não haveria necessidade, já que: [...] o Brasil vota sempre contra as resoluções de condenação a países por violação aos direitos do homem [...], pois cada país responde por si próprio à Comissão [...]. Enfim, nós não temos por que apoiar uma vez que esse órgão é formado por indivíduos e não por países. Embora haja um brasileiro lá, o Dr. Dunshee de Abranches, nós não temos uma posição porque não somos membros [da Comissão]. (Zero Hora, 21/08/1980, p. Central).

O discurso de caráter dúbio demonstrava o desinteresse do governo brasileiro sobre a questão dos direitos humanos. Na tentativa de manter uma posição diplomática equidistante, o que ocorria de fato era que tanto a “não condenação” quanto o “não apoio” declarado à Argentina se traduziam efetivamente em um covarde apoio velado à política repressiva naquele país. A questão que realmente importava ao governo brasileiro (e aos grupos empresariais que o circundavam) era estabelecer diversos protocolos de intercâmbio comercial com a Argentina que produzissem dividendos para os setores industriais e comerciais nacionais. Logo, para as elites, manifestações contrárias à visita de Videla teriam um efeito nocivo. Eis como o editor de política do jornal Zero Hora, imbuído de uma lógica mercantil e oportunista, justificou o não envolvimento na questão argentina “[...] especificamente no Rio Grande, um estado fronteiriço, nada somaria, pois estaria

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29 simplesmente avaliando um problema alheio, esquecendo da importância econômica para nós que a visita trará” (Zero Hora, 17/08/1980, p. 10). Nessa mesma lógica se inseria a colaboração para o almoço de recepção a Videla, no Palácio Piratini, por parte dos empresários gaúchos da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, evidentemente interessados na incipiente e promissora abertura do mercado argentino (Zero

Hora, 07/08/1980, p. 20). Mas desde o Rio Grande do Sul também se alçavam vozes de protesto contra a

presença do ditador. Em situação análoga aos acirrados debates que ocorriam no Congresso em Brasília, posicionamentos de cunho polarizado foram sendo assumidos pelos parlamentares da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, aprofundando a cisão entre governistas e oposicionistas. O então deputado José Fogaça, do PMDB, chegou a propor, na mesma data da sessão solene de boas-vindas oficial, uma “sessão de protesto” onde se expressaria o repúdio ao ditador, bem como se homenageariam as Madres de Plaza de Mayo (Zero Hora, 14/08/1980, p. 10). Contudo, pressões dos colegas o levaram a recuar, e o PMDB gaúcho acabou organizando a homenagem em outra data, minimizando-se desta forma o impacto político e simbólico do evento. Eis

como

os

diversos

setores

oposicionistas

decidiram

repudiar

contundentemente a situação, aproveitando o momento de incipiente abertura política para manifestar abertamente sua divergência. Em movimento análogo, ao se manifestarem contra Videla e a ditadura argentina, os grupos progressistas e democráticos brasileiros também o faziam contra Figueiredo e a sua ditadura. 2 Precauções frente a Videla

Entretanto, as organizações não governamentais vinculadas à proteção dos direitos humanos agiam com celeridade. Em São Paulo, onde se encontrava o maior contingente de emigrados argentinos, dez entidades, entre elas a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e as Igrejas Metodista e Presbiteriana, se propuseram a oferecer um socorro jurídico e jornalístico aos refugiados, no qual plantonistas os vigiariam de perto, para evitar possíveis prisões arbitrárias. Segundo o reverendo presbiteriano Jaime Wright,2 o pedido de socorro havia sido gerado desde o seio da própria comunidade exilada, que se sentia ameaçada pela nova lei de imigração. Wright 2

Jaime Wright, além de ser ativo militante dos direitos humanos, era irmão de um desaparecido político brasileiro, Paulo Wright. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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30 ainda justificou os plantões explicando que “[...] é um hábito comum nos países latinoamericanos, que, quando um presidente de um país visita o outro, se prendam os refugiados para evitar manifestações hostis ao visitante” (Zero Hora, 11/08/1980, p. 18). Contudo, o que Wright não podia dizer abertamente era que se temia que os possíveis presos fossem devolvidos à Argentina, de forma legal ou ilegal, o que poderia ocorrer no caso de manifestações de exilados, já que a legislação brasileira proíbe os estrangeiros de participarem de atividades políticas. Independentemente da forma escolhida, o resultado final para o repatriado por motivo político seria, na melhor das hipóteses, o cárcere, quando não o derradeiro roteiro: tortura, morte e desaparição. No Rio Grande do Sul, o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), a exemplo de São Paulo, também montou um plantão jurídico. O objetivo era evitar prisões arbitrárias de argentinos, especialmente em Porto Alegre, onde estes se concentravam. Nesses dias, uma equipe de advogados ligados ao MJDH foi mobilizada para intervir caso houvesse detenções ilegais, típicas do acionar repressivo das ditaduras (Zero Hora, 21/08/1980, p. 12). Já no Rio de Janeiro, a comunidade de exilados argentinos apressava-se em declarar que não estavam em preparação atos ou manifestações que visassem à “[...] alteração da ordem pública por ocasião da visita do general Videla ao Brasil” (Zero Hora, 12/08/1980, p. 16). Os refugiados no país estavam temerosos de criar um pretexto que servisse de estopim ao governo brasileiro. Ou seja, um evento isolado qualquer poderia se tornar um “motivo” para desencadear perseguições e repressão generalizada, o que poderia terminar em um maciço repatriamento e, o que é pior, amparado na lei. É necessário ressaltar que em países democráticos, como o México, Espanha ou Suécia, as atividades regulares dos exilados argentinos consistiam em denunciar publicamente os crimes perpetrados pela ditadura argentina, bem como realizar campanhas de solidariedade e eventos em apoio aos refugiados. Além disso, os expatriados puderam assumir plenamente suas identidades e se agruparem de acordo com afinidades políticas, profissionais, etc. Segundo Bernetti e Giardinelli, denúncia e solidariedade, além de tarefa dos exilados, se constituíram em elementos estruturadores e “[...] que determinaron el accionar político y social del exilio” (BERNETTI; GIARDINELLI, 2003, p. 53). Mas, no Brasil, a realidade era adversa. O país ainda era regido por uma ditadura, chefiada por militares ungidos no anticomunismo e amparada ideologicamente Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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31 nos preceitos da Segurança Nacional, apesar da maior abertura, se comparada com a Argentina. Como se não bastasse, era a ditadura mais longeva e ainda servira de paradigma para as outras ditaduras instaladas nos países vizinhos. Além disso, dada a precária situação legal da maioria dos argentinos em solo brasileiro, qualquer tipo de organização visível, ainda mais se tivesse caráter político, era impensada, sob pena de ser enquadrada como “ameaça à Segurança Nacional” em virtude da legislação. Portanto, eram raros os espaços relativamente seguros para exercer livremente as “tarefas” dos exilados referidos anteriormente, em especial a ação política de denúncia ao regime argentino. Qualquer ação ou manifestação deveria ser feita de modo sutil e indireto, de preferência desvinculando-a da comunidade exilada, para não despertar a atenção dos órgãos de repressão brasileiros, que vigiavam regularmente as comunidades de estrangeiros do Cone Sul, exilados ou não. Assim, não é de estranhar que, perante a visita de Videla, os exilados procurassem um salutar distanciamento estratégico, evitando (ou pelo menos aparentando evitar) qualquer comprometimento com as manifestações de repúdio, organizadas oficialmente por brasileiros e cuja face visível eram as ONGs e alguns grupos políticos brasileiros. A nota a seguir é um bom exemplo dessa postura extremamente precavida dos argentinos para não levantar nenhuma suspeita sobre o coletivo nem acirrar os ânimos: A colônia argentina repudia energicamente esta manobra [as manifestações contra Videla] negando qualquer participação em atos que venham a pôr em perigo a segurança do general Videla. Os refugiados agradecem, ainda, ao povo brasileiro pela solidariedade e o acolhimento a eles dispensado, diante de sua condição de exilados, manifestando o seu respeito às tradições e às leis do país. (Zero Hora, 12/08/1980, p. 16).

3 Entre homenagens e protestos

Enquanto o governo brasileiro preparava recepções oficiais e ensaiava solenidades pomposas para homenagear Videla, a sua presença em solo brasileiro foi marcada por manifestações contrárias nas cidades onde este passou. Já no seu primeiro discurso em território brasileiro, durante um banquete em Brasília, Videla gerou certo desconforto nos meios governamentais ao expor aberta e publicamente seu pensamento “cruzadista”. O general argentino propunha, sem meias palavras e com uma brutal franqueza, a união dos países da América Latina na luta contra os chamados “perigos do terrorismo subversivo”. Em trechos do seu discurso, Videla lamentava que: Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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[...] muitos países do Ocidente não compreenderam a gravidade dessa manifestação infame e, ingenuamente, ou por razões circunstanciais, evitaram a questão, apontando suas críticas às consequências não desejáveis e deploráveis da guerra que as declarou. (Zero Hora, 20/08/1980, p. Central).

Claro está que as flechas disparadas por Videla se dirigiam principalmente aos Estados Unidos e a países europeus ocidentais. Hipocritamente, estes países eram apontados pela ditadura argentina como sendo fomentadores de uma suposta campanha internacional de desprestígio, manipulada pelo movimento “subversivo-comunista internacional”. O que de fato ocorria era que nesses países eram bem conhecidas a política repressiva e as atrocidades perpetradas pela Junta militar argentina, os quais não se furtavam de condená-las em fóruns internacionais. Cabe relembrar as pressões exercidas pela administração de Jimmy Carter e da OEA sobre o governo argentino frente às denúncias de violações aos direitos humanos e que resultaram no envio, por parte de Washington, da secretária de Direitos Humanos do Departamento de Estado norte-americano, Patricia Derrian, em 1977, e de uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA para a Argentina, em 1979. Tanto Derrian quanto a CIDH da OEA, em 1980, haviam confirmado as denúncias dos crimes cometidos pelo regime de Videla, o que agravou o isolamento da Argentina no plano político internacional. Além disso, o governo americano já havia declarado um embargo de armas e, posteriormente, se aplicariam também sanções econômicas ao regime argentino, tais como a suspensão de créditos, caso continuassem as sistemáticas violações aos direitos humanos (GARCIA LUPO, 2006, p. 12). Com vistas a superar esse isolamento por parte do hemisfério ocidental (incompreensível para a lógica primária e maniqueísta dos militares argentinos), a ditadura argentina se lançou a uma aproximação maior com seus vizinhos do subcontinente. Com essa manobra: Videla buscaría, en los meses siguientes, en sucesivas visitas al Paraguay, Brasil, Uruguay y Perú, formar algo así como un frente de defensa de la autodeterminación de los pueblos y del espíritu latinoamericanista. Principios que, aunque no se contaban entre las preferencias de la política externa argentina de ese entonces, de momento parecieron útiles para darle una cobertura internacional al régimen. (NOVARO; PALERMO, 2003, p. 282).

Como é possível observar, nesse contexto, a visita de Videla ao Brasil se revestia de uma importância especial: a busca de um aliado com peso político e econômico no continente. Todavia, segundo Novaro e Palermo (2003, p. 282), embora o regime argentino tenha conseguido certa “solidariedade regional”, esta não se configurou em Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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33 atitudes concretas e nem teve a importância necessária para superar as perdas com as sanções internacionais. Logo, essa “solidariedade” dos países vizinhos não atingiu os patamares desejados pelos militares argentinos. De fato, uma das principais reclamações de Videla em seu discurso era que a sua proposta de uma “[...] coesão indestrutível dos países que compartilham ideias semelhantes contra os perigos do terrorismo subversivo [...]” (Zero Hora, 20/08/1980, p. Central) não se extinguisse em uma mera adesão retórica. Logo, a Argentina também pretendia um envolvimento maior do Brasil nas tarefas repressivas conjuntas. Cauteloso e versando prosaicamente sobre a amizade entre Brasil e Argentina, o general Figueiredo respondeu tentando desviar o foco dos incômodos temas “subversão” ou “terrorismo”3 e apresentou no seu discurso uma imagem idílica de um Brasil quase progressista e democrático: O que pleiteamos são canais largos e abertos e o diálogo construtivo, inspirado na preservação da paz e tendo por objeto a segurança internacional. Em vez de pretensões de hegemonias anacrônicas, sustentamos o princípio da igualdade soberana dos Estados. Respeitamos a autodeterminação dos povos. Repelimos a ameaça ou o uso da força nas relações internacionais e qualquer forma de intervenção de uns Estados nos assuntos internos e externos de outros. (Zero Hora, 20/08/1980, p. Central).

Além de criticar as veleidades hegemônicas do país vizinho, Figueiredo também aproveitava para, indiretamente, condenar a recente intervenção da Argentina no golpe da Bolívia.4 O que se evidenciava (embora não claramente nesse momento) era que ambas as ditaduras viviam entre si uma temporalidade diferente. Essa defasagem do timing histórico levava a que ambos os países tivessem objetivos políticos muito diferentes: enquanto a ditadura argentina ainda estava envolvida na eliminação física dos opositores e sequer pensava em eleições, a desgastada ditadura brasileira já se

3

Pode-se imaginar o efeito causado por esses “inoportunos” pedidos de adesão de Videla à luta antisubversiva continental em um contexto no qual o governo Figueiredo pretendia, cada vez mais, desvincular sua imagem das violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil durante todo o período militar. Além disso, o terrorismo que o Brasil enfrentava não provinha de setores revolucionários da esquerda, mas era, sim, oriundo dos próprios quartéis, da extrema direita descontente com o processo de redemocratização. 4 Em 17 de julho de 1980, o general Luiz Garcia Mesa derrubou a presidente constitucional da Bolívia, Lidia Gueiler. O golpe foi dado com importante apoio material e logístico do governo militar argentino, o qual, segundo Rogelio Garcia Lupo (2006, p 12), pretendia “[...] crear en Bolivia una colonia militar argentina destinada a evitar que Brasil se apropiara de los recursos minerales bolivianos [...]”. Um pretexto geopolítico para justificar a empreitada anticomunista dos novos “cruzados” do Ocidente, os militares argentinos. Estes últimos formaram um contingente de 100 a 200 homens, encarregado de instruir os militares bolivianos, em técnicas de tortura, eliminação de opositores, ocultação de cadáveres, etc. O golpe boliviano, ademais, traria outros benefícios. Sob a égide do general Mesa, o tráfico de drogas atingiria proporções nunca antes vistas e seus lucros também atraíram os argentinos, que se envolveram intensamente nestas atividades ilícitas (além das violações aos direitos humanos) pelo menos até 1982, ano que abandonaram o país em função da pressão dos EUA. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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34 encaminhava, mesmo que lentamente e com alguns graves retrocessos (obstáculos fruto das pressões dos setores duros), para a normalização do processo político institucional. Contudo, apesar desse descompasso do momento político vivido entre ambos os países, é preciso relembrar que o Brasil estava colaborando diretamente com a repressão argentina, especificamente na repressão à organização Montoneros. Constantemente, setores oposicionistas denunciavam publicamente a conexão repressiva bilateral, e tais declarações serviram tanto para deixar o governo brasileiro em uma posição comprometedora quanto para colocar em estado de alerta os refugiados argentinos que se encontravam no Brasil. É fato que a presença do general argentino, e seu visceral discurso antissubversivo, gerou pânico entre milhares de argentinos que residiam irregularmente no país, mesmo que antes disso já corressem o risco de serem deportados. Temia-se que, junto com Videla, viessem “comandos” para promover sequestros, ou então que alguns exilados se manifestariam contra o ditador, dando o pretexto que justificaria uma onda generalizada de prisões e a posterior repatriação para a Argentina. E tais temores não eram infundados: eles eram constantemente corroborados pelas ações dos aparatos repressivos interconexos. Em 21 de agosto, no Rio de Janeiro, manifestantes concentrados em frente ao Consulado argentino foram violentamente dispersados pela polícia, quando intentavam entregar documentos denunciando as desaparições e outros crimes cometidos pela ditadura argentina e que incluíam, na sua lista, a desaparição de cidadãos brasileiros naquele país. Os documentos eram assinados pelo Comitê de Solidariedade dos Povos da América Latina, pelo Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), além de alguns sindicatos e membros da então denominada “imprensa alternativa”. Um ato público contra Videla havia sido idealizado pela Convergência Socialista (CS), no entanto, este foi suspenso devido ao temor da repressão. Em substituição, um comício-relâmpago foi preparado na Cinelândia. Alheio a essa mobilização popular, o general argentino visitava o Palácio Guanabara, protegido por um complexo esquema de segurança. Segundo um repórter, ao chegar ao Palácio, o ditador “[...] foi saudado por um ‘viva a Argentina’ gritado por – no máximo – três pessoas” (Zero Hora, 22/08/1980, p. Central). Evidentemente, a popularidade de Videla não estava em alta. No dia seguinte, Videla chegou a São Paulo, cidade cujos muros haviam amanhecido com slogans do tipo “Fora Videla”, ou “Videla Assassino”. Em paralelo às atividades protocolares promovidas pelo governador Paulo Maluf, centenas de manifestantes se congregaram no Largo de São Francisco, pleno centro da capital Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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35 paulista, para realizar um grande ato de repúdio à presença do ditador argentino no Brasil. Diversas organizações tais como a CBA, a União Estadual de Estudantes (UEE), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Movimento de Mulheres e a CS participaram do evento (Zero Hora, 22/08/1980, p. Central). Junto a eles estavam os familiares de mortos e desaparecidos políticos, que saíram em uma passeata pelo centro, carregando consigo os cartazes onde relembravam seus entes queridos e reclamavam por sua ausência. Entre esses familiares, um grupo em particular dirigia seu protesto contra Videla: eram os parentes dos brasileiros desaparecidos na Argentina. De luto e com lenços brancos na cabeça, as “mães” brasileiras emulavam as já célebres mães argentinas da Plaza de Mayo (COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2009, p. 700). Todavia, muito além dos simbolismos, o que unia “mães” e “madres” era o mesmo sentimento de dor, de perda e de desamparo frente à violência onipotente do poder estatal. Mas também as unia um forte sentimento de solidariedade, que lhes fornecia o tão necessário suporte e as fortaleciam na sua luta por saber a verdade, por fazer justiça, na ânsia infinita de dar um basta à impunidade. Certamente sem prestar demasiada importância, ou se comover por mobilizações dessa índole, o ditador argentino encaminhava-se para a última visita oficial da sua estadia no Brasil: a “mui valorosa e leal” cidade de Porto Alegre.

4 A chegada de Videla

Já em 19 de agosto de 1980, dia da chegada de Videla ao Brasil e quatro dias antes da sua visita à capital gaúcha, Porto Alegre também amanheceu grafitada com o bordão tornado símbolo do repúdio popular às ditaduras, o Fora Videla! (Zero Hora, 19/08/1980, p. 12). Similar ao ocorrido nas outras capitais brasileiras, estas frases apócrifas foram as primeiras manifestações dos setores progressistas da sociedade gaúcha que despejavam sua indignação contra a indesejável presença do chefe da Junta militar argentina no país. Outras manifestações, mais contundentes, viriam logo a seguir. A seção gaúcha do Comitê Brasileiro de Solidariedade aos Povos LatinoAmericanos conclamou um ato público de protesto contra Videla, para ser realizado na manhã da sexta-feira, 22 de agosto. O ponto de encontro dos manifestantes era na frente da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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36 Avenida João Pessoa, no centro da capital. No dia seguinte, Videla, acompanhado por autoridades federais e lideranças gaúchas, “reinauguraria” a quase abandonada Praça Argentina, reformada às pressas para a solene ocasião e localizada bem em frente do Campus Central da UFRGS. Se por si só a visita de Videla ao Brasil já se constituía em uma ofensa à retomada da democracia, podemos mensurar o acinte que significava sua presença concreta em um território inserido na “zona de influência” dos estudantes, como a Praça Argentina. Segundo explicou Ivanir Bortot, “[...] As lutas pela democracia no Rio Grande do Sul sempre tiveram uma forte relação com a América Latina [...] então, a presença de Videla, para nós (estudantes), era uma grande provocação” (BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 237). A sexta-feira em Porto Alegre amanhecera como um típico dia do inverno gaúcho: frio e úmido. E, apesar da persistente chuva fina que cobria as ruas da metrópole, a manifestação programada continuava de pé. Atuando de forma simultânea e em consonância com o ato de protesto, grupos de estudantes montaram na “esquina democrática”, centro da cidade, uma barraca improvisada onde vendiam e distribuíam jornais e panfletos alternativos, cujo eixo se centrava, obviamente, em condenar veementemente a presença de Videla. Logo após a conclusão do ato público, assistido por centenas de estudantes e alguns transeuntes, os estudantes pretendiam realizar uma passeata até a sede do Consulado argentino, então situado a apenas poucas quadras dali, na rua Annes Dias. No entanto, um forte aparato organizado pela polícia os impediu de levar a termo a manifestação planejada. Barrados, os estudantes tentaram resistir à expulsão, gritando os costumeiros slogans contra a ditadura. Foi o suficiente para que a Brigada Militar (BM)5 empregasse amplamente o seu poder coercitivo contra o protesto estudantil. Os jovens foram agredidos pelos cassetetes da polícia em frente ao prédio da Faculdade de Direito, quando pretendiam se agrupar na Praça Argentina. Esse seria o primeiro de quatro enfrentamentos desiguais entre contingentes de soldados fortemente armados da Tropa de Choque da BM contra um grupo numericamente inferior de estudantes desarmados. Perseguidos, os alunos recuaram até a Casa do Estudante, situada na avenida João Pessoa, sempre com a tropa em seu encalço. Assim um daqueles estudantes, Jorge Garcia, relembrou o evento:

5

Denominação da Polícia Militar do Rio Grande do Sul.

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37 [...] um grupo de manifestantes, acuados, sem alternativas, adentrou o Restaurante Universitário, quebrando os vidros do saguão com os próprios corpos, perseguidos pelos brigadianos, que não cansavam de baixar o cassetete nas suas costas, cabeças, braços. (apud BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 238).

Logo em seguida, iniciou-se uma estranha batalha. Desde as sacadas do prédio, outros alunos revidaram a absurda violência policial com os meios de que dispunham. Em resistência tão brava quanto pitoresca, os estudantes atiravam os únicos “projéteis” que possuíam à mão: “água, bergamotas, sacos de gelo, ovos e laranjas nos policiais”, segundo noticiado no jornal Zero Hora (23/08/1980, p. 21). A resistência estudantil acirrou a repressão policial que passou à ofensiva total, ocupando militarmente não somente o prédio na sua totalidade (apesar do mesmo ser território federal e, em tese, vedado à força policial da “província”), mas também cercando o quarteirão para dispersar os jovens renitentes, o que provocou grande tumulto no trânsito da região central da cidade. Para a Brigada, tornara-se uma “questão de honra” retomar o controle da Casa do Estudante e o território circundante e, principalmente, subjugar os jovens rebeldes a qualquer custo. Já para os estudantes, a “pretensão” de exercer seu livre direito de expressão em um país que dizia já caminhar para a democracia teve um elevado custo: quatro colegas seriamente feridos pela polícia contra um policial ferido. Os policiais usaram de tal violência na operação que muitos estudantes tiveram medo de ser chacinados em meio à confusão desatada pela própria Brigada dentro do Restaurante Universitário (RU) (BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 237-243). Outro grande temor que pairava entre os estudantes era o de ser preso. De fato, três estudantes foram presos nas imediações da Praça Raul Pilla e temia-se pelos seus destinos. Como constou na reportagem de Zero Hora, aos gritos contra Videla e Figueiredo, somou-se uma nova exigência nascida dessa circunstância especial: “Soltem nossos presos!” (Zero Hora, 24/08/1980, p. 36). Como se vê, o binômio “prisão e tortura” como elemento dissuasivo continuava associado à cultura política do nosso país, apesar da distensão promovida pelo regime militar desde meados da década de 1970. Como assinalou Moreira Alves (1984, p. 170), [...] mesmo [...] quando a tortura não era mais amplamente usada contra os presos políticos (embora continuasse uma realidade para a população trabalhadora e os presos comuns) seu poder de intimidação ainda estava manifestamente presente.

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38 A brutal ação policial teve repercussão imediata e foi repudiada pela sociedade em geral. Na Assembleia Legislativa, os partidos de oposição criticaram tanto o tolhimento da livre manifestação estudantil quanto a ilegalidade e a desmesura da repressão. A violência aplicada contra os estudantes foi considerada um anacronismo contraditório com o contexto de redemocratização, e tanto o PMDB quanto o PDT não pouparam críticas à polícia militar e ao governo estadual. Evidentemente, tal resposta a uma manifestação democrática e pacífica mais uma vez colocava em relevo os limites tensos entre o vazio discurso da pretensa redemocratização pregada pelo governo e a realidade concreta do regime ditatorial brasileiro. Tanto os principais grêmios estudantis secundaristas no município como os alunos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) declararam sua solidariedade com os estudantes da UFRGS e reforçaram a posição de repúdio pela presença de Videla na capital. Na própria UFRGS, as atividades normais de aula foram sendo suspensas à medida que a revoltante notícia da repressão sofrida pelos colegas se espalhava pelos campi. Na parte da tarde, uma tumultuada e concorrida assembleia geral convocada pelo DCE da UFRGS chancelou a paralisação: os estudantes haviam se declarado em greve e em estado de “vigília” até que o presidente Videla abandonasse o país. Pouco depois, a Associação dos Professores da UFRGS (ADUFRGS) decidiu também aderir à vigília, sediada no RU do Campus Central. A paralisação já atingira diversos cursos da Universidade. Um “comando de ocupação” organizou a infraestrutura da vigília e as tarefas a serem desenvolvidas coletivamente. Desde um palco montado de improviso, ora cenário, ora tribuna, militantes que faziam discursos contra as ditaduras intercalavam-se com apresentações musicais e apresentações teatrais. Grupos políticos articulavam-se e planejavam ações para a jornada seguinte: No dia 23, quando Videla e Figueiredo estariam reinaugurando a Praça Argentina, os estudantes pretendiam construir uma barricada de sacos e caixas de cerveja, enquanto um grupo estaria protestando diante do Consulado argentino [...] quando a comitiva estivesse se aproximando, os manifestantes abririam as faixas de protesto. (BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 244).

Além disso, tencionavam mudar simbolicamente o nome da Praça para “Praça das Locas de Mayo”, projeto que foi inclusive levado para a Câmara Municipal. Assim, o RU transformara-se em uma autêntica comuna, revolucionária e democrática. Aquele território público (mesmo que sentido como próprio) e que havia sido conspurcado pela repressão policial, voltava a ser um espaço onde os alunos podiam se manifestar mais

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39 livremente, já que o livre acesso às ruas (o espaço público por excelência) ainda estava, de fato, vedado. Mesmo assim, os alunos pretendiam seguir adiante e desafiar, dentro de suas possibilidades, a ditadura. Mas o regime também estava decidido a impedir qualquer tipo de protesto. Desde antes da alvorada, contingentes policiais já ocupavam previamente a Praça Argentina para dissuadir qualquer intento por parte dos estudantes reunidos no RU de “tomar” a Praça e realizar a troca de nome. Com o passar da manhã, outros pelotões da Brigada se posicionaram estrategicamente nos arredores da Praça Argentina. O clima era tenso entre ambas as partes e temia-se um novo confronto como o de sexta-feira. Até um helicóptero armado chegou a sobrevoar a área. Em meio a isso, um acidente com quatro cavalarianos que caíram dos cavalos ao resvalar no cimento da praça instantaneamente levou os estudantes e o povo reunido no local das vaias às gargalhadas. Apesar de cômico, o tolo incidente poderia ter desatado um conflito, já que o comandante da operação, irritado com o deboche popular, ordenou aumentar os efetivos na praça (Zero Hora, 24/08/1980, p. 36). Mais tarde, enquanto Videla e Figueiredo usufruíam do almoço oferecido pelos empresários no Palácio Piratini, os estudantes iniciavam o ato da troca simbólica de nome da praça no pátio da Faculdade de Economia. Ao contrário do comportamento apresentado no dia anterior, a Brigada limitou-se a acompanhar, a certa distância, toda a movimentação estudantil. Além das pressões sociais pelo efeito dos abusos policiais do dia anterior, a não repressão ao ato também foi fruto de uma negociação entre os deputados oposicionistas José Fogaça, Antenor Ferrari e lideranças estudantis do DCE da UFRGS, como Luiz Marques, com o comandante do 9° Batalhão da BM no local, coronel Tampa, que se comprometeu a não intervir (Zero Hora, 24/08/1980, p. 36). Ao mesmo tempo, circulava de modo extraoficial a informação de que a cerimônia da praça seria cancelada. Uma vez confirmado o cancelamento da solenidade às primeiras horas da tarde, os estudantes explodiram em júbilo. A desistência das autoridades pelo evento da reinauguração foi sentida, por parte dos estudantes, como uma derrota de Videla e Figueiredo. Assim recordou o peculiar momento um daqueles estudantes, “Ricardo”: O Videla tremeu! Aquele foi um momento lindo. Todos começaram a gritar, a pular de alegria, a cantar, de mãos dadas no meio da Praça Argentina. Aquele território era definitivamente nosso. Escrevíamos ali uma bela página de História em homenagem ao povo argentino, sufocado sob o tacão de uma sangrenta ditadura. (apud BORTOT; GUIMARAENS, 2008, p. 245).

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Aos poucos, o clima de confronto foi se dissolvendo à medida que as tropas da Brigada começaram a ser lentamente desmobilizadas. Assim, os estudantes finalmente puderam ocupar a praça e festejar, realizando a desejada homenagem às Madres da Plaza de Mayo. Na vizinhança, o povo aplaudia os estudantes e, ao lado da faixa desfraldada com o nome “Praça das Locas de Mayo”, outra faixa se destacava. Era também enorme, mas bem menos poética, sendo muito explícita e objetiva na sua mensagem imperativa: “Videla – Figueiredo. Fora.”

5 Os argentinos de Porto Alegre e Videla

Como foi possível observar anteriormente, a visita de Videla em terras brasileiras caracterizou-se por ser um evento polêmico e que provocou sentimentos diametralmente opostos em diversos setores da sociedade. A presença do generalditador (com tudo o que ele simbolizava) acirrou a polarização política, problematizando ainda mais a já complexa situação do contexto social e político brasileiro. A cordialidade com a qual Videla foi recebido pelo governo e pelas elites políticas e econômicas destoou do opróbrio manifestado por parte da população. Mas não somente isso, a patente vinculação entre ambos os ditadores permitiu que uma parte da população brasileira estabelecesse diversas analogias, marcando diferenças, mas, sobretudo, apontando para as semelhanças entre os regimes militares dos dois países. Ou seja, singularidades aparte, tanto o Brasil quanto a Argentina eram “cúmplices” dos mesmos crimes: quebra da ordem constitucional, sistemática violação dos direitos humanos, terror de Estado, dentre outros. Nesse sentido, podemos afirmar que a presença de Videla serviu para definir posições, identidades e simpatias dentro da malha social brasileira. Entretanto, uma questão permanece: o que esta presença suscitou nos argentinos que se encontravam em Porto Alegre? Assim, mediante os diversos depoimentos colhidos pelo autor para a realização deste trabalho, intentou-se desenhar um panorama do que representou, naquele contexto, a visita do militar Jorge Rafael Videla para alguns dos argentinos que estavam na capital gaúcha. De um modo geral, foi perguntado aos entrevistados o seguinte: 1) Você se lembra da visita de Videla a Porto Alegre? 2) O que você se lembra? Caso o depoente assumisse a existência de alguma lembrança, se perguntou ainda: 3) O que você sentiu naquele momento? Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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41 As respostas foram diversas. Algumas pessoas declararam desconhecer completamente o assunto, outras disseram não se lembrar de nada ou ter uma vaga lembrança, minimizando o evento. Já outros asseveraram que podem ter tido um esquecimento assemelhado à negação e foram “despertados” para o fato a partir do questionamento feito pelo autor. Em contrapartida, outros entrevistados possuíam uma lembrança clara do momento vivido como um período de ameaça, medo e tensão. Então podemos dizer que a visita de Videla, além das já citadas reações provocadas entre alguns brasileiros, também gerou um impacto negativo em parte da comunidade argentina repercutindo de forma diversa e desigual em cada indivíduo desse coletivo. Vale ressaltar que os efeitos negativos provocados pela presença desse personagem se deram tanto entre exilados políticos quanto emigrados econômicos. Embora a preponderância destes efeitos seja esperada quase que “naturalmente” nos exilados “puros”, devemos lembrar que muitos emigrados possuíam também uma postura política contrária à ditadura e, às vezes, até uma militância pregressa, mesmo que esta não se constituísse no principal motor da migração. Portanto, a simples dicotomia “exilado-imigrante”, mais uma vez, não deve ser univocamente utilizada para analisar este caso, pois notamos que nele há uma interface com outros elementos-chave. Um deles é a regularização do estrangeiro (em um momento crítico em que essa lei estava sendo debatida), ou seja, o status legal ou ilegal que a pessoa possuía frente ao governo brasileiro. Por outro lado, não se pode esquecer que a percepção individual de um evento público (a visita de Videla) também sofre variações em função do influxo de um amplo leque de questões particulares (família, trabalho, etc.). Evidentemente que cada pessoa também viveu circunstancialmente este acontecimento a partir do prisma singular do seu “momento” de vida. Também deve ser destacado que, grosso modo, quase todos os argentinos que vieram após o Golpe de 24 de março de 1976, já traziam consigo gravadas de alguma forma (ou no mínimo interiorizadas subjetivamente) as marcas da “cultura do medo”, impostas pela instrumentalização das práticas coercitivas implantadas pelo terror de Estado argentino. Além disso, no caso específico daqueles que emigraram exclusivamente por motivos políticos, deve ser levada em conta a peculiaridade do exílio no Brasil em contraste com o exílio em outros países, onde havia regimes democráticos. Era uma situação paradoxal de um exílio vivido dentro de outra ditadura, o que também impediu que se pudesse efetuar, em curto prazo, uma superação eficaz destes mecanismos do medo “contrabandeados” da origem. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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42 Assim, poderíamos dizer que os exilados políticos estariam ou poderiam sentirse mais ameaçados, ainda mais quando a ameaça era relacionada com a conhecida colaboração repressiva entre as ditaduras, por sinal, colocada em evidência pública a partir do desmascaramento pela imprensa de uma ação ilegal conjunta entre a ditadura brasileira e uruguaia justamente em Porto Alegre: a operação Zapato Roto, que culminou com o sequestro dos uruguaios. Portanto, depois disso, quem garantia que a visita de Videla não encobriria uma análoga operação de “caça” aos dissidentes? Ser um exilado estrangeiro no Brasil exigia algumas precauções. Procurava-se não chamar a atenção sobre a sua condição e silenciar os motivos que os levaram a residir no Brasil, para assim poder passar despercebidos, por questões de segurança pessoal. Todavia, mesmo que a partir do caso dos uruguaios tenha se evidenciado a coordenação internacional, a percepção do alcance e, principalmente, da escolha dos “alvos” pela máquina repressiva argentina atuando aqui no Brasil, era diferente entre os indivíduos e variava de acordo com sua situação particular. Ou seja, já se sabia que as forças repressivas podiam atuar sem travas institucionais, mas a questão era discernir quais eram os parâmetros utilizados pela repressão para definir suas vítimas; quem poderia ser atingido? Esta incerteza carregava uma sensação permanente de insegurança, incompatível com certo grau de previsibilidade que pressupõe uma vida dentro de padrões considerados como “normais” para nossa formação social. Dentro dessas variações possíveis, alguns se sentiram diretamente ameaçados, mas outros nem tanto. Também estavam aqueles que, independente da motivação para a migração, se encontravam no Brasil em situação de permanência irregular. Representavam a grande maioria dos imigrantes, muitos deles eram pessoas cuja condição social e econômica era precária e suas possibilidades de regularização cada vez mais estavam sendo tolhidas pela nova lei dos estrangeiros de Figueiredo. Estes corriam sério risco de deportação, independentemente da presença de Videla. Contudo, é evidente que a sua chegada potencializou a sensação prévia de insegurança dessas pessoas. Vejamos a seguir quatro casos diferentes, quatro reações individuais distintas, mas em que se percebe (mesmo que em níveis desiguais) a atmosfera de temor e desconfiança. Três casos são de exilados e um de uma imigrante: Juan, um ativo militante montonero; Ricardo, um exilado sem militância orgânica; Andrea, que, em 1980, já se tornara uma ex-militante; e Mariana, uma imigrante que posteriormente se tornou militante em terra brasileira. Os sublinhados são nossos. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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1) Juan residia em Porto Alegre desde meados de 1977. Exercia atividades comerciais desde então e havia regularizado legalmente sua permanência no Brasil após um breve período de clandestinidade. Contudo, durante boa parte do seu exílio, manteve uma discreta, porém ativa, militância junto aos Montoneros. Ele deixou bem claro no seu depoimento o clima de medo, desconfiança e as precauções tomadas por ele e alguns de seus companheiros de militância durante o período da visita do general Videla ao Estado: [...] ¡Yo vivía con la pistola debajo de almohada! Creo que en la época cada uno lo vivió en su personal, cuidarse su vida. Como ya no dependíamos de cuidar compañeros, no había una organización, había que cuidar de lo de uno.6

Este caso em particular revela ainda o desdobramento de um momento muito peculiar da história do grupo Montoneros, o da denominada “contraofensiva”, realizada pela organização guerrilheira em duas etapas, entre 1979 e 1980. A visita de Videla ao Brasil coincidiu com o já visível fracasso dessa derradeira investida político-militar e uma visível desagregação da estrutura que o Montoneros possuía no Brasil, em função de um debate sobre a legitimidade e a validade da “contraofensiva”, o que aprofundou as dissidências preexistentes entre a militância que vivia no Brasil e a “Condução Nacional” dos Montoneros na Europa e no México, a exemplo do que já vinha acontecendo em outras partes do planeta onde existiam núcleos de Montoneros. As divergências conduziram à ruptura de parte da militância com a Condução, o que também aconteceu no núcleo do Rio Grande do Sul, fato que explicaria a postura individualista assumida pelo depoente, desiludido com os rumos tomados pela sua organização. A desestruturação da organização teve como resultado a desarticulação grupal e atomização do outrora sujeito coletivo em indivíduos avulsos. Percebe-se então que o medo real se alia à sensação de desamparo e isolamento em virtude da desvinculação da relação com o projeto coletivo ao qual se sentira parte durante tantos anos. Uma fratura de identidade, na acepção de Marcelo Viñar (1993), que, no caso deste depoente, foi parcialmente atenuada a posteriori com a realização de uma

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Entrevista de J. P. realizada em Porto Alegre no dia 09 de agosto de 2008.

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44 significativa tatuagem com o emblema dos Montoneros, reafirmação indelével de um pertencimento em crise.7

2) Ricardo, um refugiado político, também relatou viver momentos de tensão durante a visita do ditador. Ele ainda era um recém-chegado ao Brasil e, ao contrário do caso anterior, estava ainda como turista. Havia vindo logo depois de sofrer ameaças de morte e ter sido espancado e torturado em Buenos Aires, após um breve retorno do Uruguai, onde havia sido seu primeiro refúgio em 1976. Acreditando que o pior da repressão já havia passado, ele voltara à Argentina em virtude de problemas familiares. Em junho de 1980 teve de sair definitivamente de seu país e foi para Porto Alegre, onde já possuía amigos, também perseguidos políticos. Em agosto desse ano, Ricardo, sua família e um amigo que o visitava ocupavam temporariamente um apartamento alugado mobiliado no centro de Porto Alegre, nas ruas Bento Martins e Sete de Setembro, ironicamente, em uma região bem próxima à sede do Comando do então III Exército, ao Comando da Brigada Militar e também do Palácio Piratini, onde Videla seria recepcionado pelas autoridades. Durante a presença de Videla na capital gaúcha, Ricardo sentiu medo: Vivíamos en el cuarto piso, teníamos dos ventanas: en una estaba yo y en la otra mi mujer y mi hija menor. Y yo le hablaba de una ventana a ella, en español, como te podés imaginar, en “argentino”, ¿no? […] Y de pronto empezamos a ver que iban apareciendo tipos… no una docena de tipos, tres o cuatro tipos, con la vista puesta en la ventana nuestra… ¡Pensando si no estábamos ahí para hacer un atentado contra Videla! […] No nos molestaron para nada porque vieron que no hubo nada¡Mira vos, hasta eso nos pasó!8

Neste depoimento sequer se torna claro se as pessoas que o observavam o inquiriram realmente, mas talvez seja aí que se percebe justamente que o medo e a desconfiança também adquiriam uma dimensão extraordinária, quase paranoica em função das experiências traumáticas já vividas. Afinal de contas, ele não soube explicar quem eram essas pessoas que o observaram, essas pessoas que “pensaram” que eles poderiam fazer um atentado, mas que sequer os incomodaram porque “viram” que não havia “nada”. Assim, se objetivamente houve naquele momento algum perigo real é difícil saber. Contudo, o importante é que a percepção subjetiva desse acontecimento o 7

Para Tesone, citado por Kordon e Edelman (2007, p. 133-134), as tatuagens “nos remiten al tema del cuerpo como portador de significaciones identitárias y apuntalador de la vida psíquica”. Quando ocorre uma falência ou perda das representações psíquicas, uma tatuagem, entendida como representação gráfica na pele, pode se revestir de uma função parcialmente substitutiva dessa carência ou ausência da representação psíquica e do objeto interno. 8 Entrevista de R. A. realizada em Porto Alegre no dia 17 de março de 2008. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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45 transformou em um medo absolutamente real para Ricardo e assim é que ele foi vivido e lembrado.

3) Mariana chegou para morar no Brasil em abril de 1980. Interessante é destacar que Mariana, embora simpatizante da esquerda, não tinha militância política orgânica na Argentina. Mas, como muitos, ela sentia-se temerosa e asfixiada com o clima repressivo vivido no seu país. Em janeiro daquele ano, ela havia vindo ao Brasil apenas para passar as férias com a família em Florianópolis. Decidiu imigrar para o Brasil poucos meses depois de conhecer, em Porto Alegre, um brasileiro, militante do PDT, com quem noivou. Ela e seu noivo se dirigiam para casar em Buenos Aires quando foram presos pela Gendarmeria argentina, sob suspeita de serem “subversivos”, na província de Entre Rios. Após alguns dias de investigações (e comprovada sua “inocência”), foram soltos e seguiram viagem, para poder concretizar o casamento em Buenos Aires e voltar logo para o Brasil. Contudo, a curta experiência carcerária, embora tenha tido um desfecho positivo, deixou suas marcas, marcas que estavam ainda muito recentes quando da vinda de Videla. Eis as lembranças de Mariana: [...] Nesse ínterim [sic] acredito que ocorre o sequestro dos uruguaios, da Lílian Celiberti e do Universindo Díaz. Então era um estado de pavor que eu vivia, porque eu estava ilegal, eu podia ser deportada a qualquer momento e eu não tinha como voltar para a Argentina. Não tinha documentos, não tinha nada. Aí me lembro uma época, quando foi inaugurada aquela praça que tem lá perto da UFRGS, a Praça Argentina, que veio o Videla, foi um esquema terrível de segurança, me tiravam de um apartamento, me levavam para outro. Como o Videla ia vir com um esquema de segurança, todo mundo ficou muito prevenido de que eu podia ser sequestrada por essa gente. E não era um troço irreal, já tinha acontecido, com a Lílian e com o Universindo. Então, o estado de pavor que tu vivias era muito grande.9

O medo de Mariana também não era nada irreal. Como ilegal, ela estava permanentemente sujeita à deportação. Mas, apesar de não ser militante no seu país, ela ficara receosa de voltar à Argentina, onde tivera uma pequena mostra de como agia a ditadura a partir de sua experiência recente na prisão. Além disso, Mariana sabia já muito bem do alcance dos braços da repressão do Cone Sul, representado na repetida alusão ao caso dos uruguaios. É importante destacar também que o sequestro de Universindo Diaz e Lilian Celiberti (e seus dois filhos menores de idade) já havia ocorrido há quase dois anos, em novembro de 1978, quando Mariana nem sonhava em morar no Brasil. A sua lembrança é uma típica lembrança herdada, como diz Michel 9

Entrevista de M. A. realizada em Porto Alegre no dia 11 de setembro de 2007.

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46 Pollak (1992). O “engano” da depoente nas datas não é fortuito: apenas nos reforça a ideia do profundo impacto psicológico e da permanência deste evento no imaginário da comunidade de estrangeiros platinos residentes no Brasil e, especialmente, no Rio Grande do Sul.

4) Andrea estava no Brasil desde novembro de 1978. Até o Golpe de 1976, militara como quadro político no Partido Revolucionario de los Trabajadores (PRT). Quando da visita de Videla, encontrava-se já em situação legal de permanência e condição profissional estável no país, trabalhando como professora universitária. Todavia, diferentemente de Juan, a sua militância política havia cessado por completo desde que pisara em território brasileiro, aliás, uma exigência dos seus superiores para garantir seu cargo na universidade. Logo, a presença de Videla no Brasil foi vivenciada por ela desde outra ótica: Me acuerdo de la visita porque fue firmado un convenio de que se iban a respetar los años de jubilación, por ejemplo, del brasilero que trabajase en la Argentina… que nunca fue reglamentado, ¿no? […] Registré ese hecho.10

Mesmo ligada ao meio acadêmico, Andrea se lembra muito pouco das manifestações contra Videla em Porto Alegre, fruto de intensa mobilização estudantil, obra dos corpos discentes da UFRGS e da PUCRS, e que contaram com a solidariedade de parte do corpo docente, após a violenta repressão desencadeada pela Brigada Militar contra os estudantes. Ela respondeu o seguinte: “Mira, tengo una idea muy confusa de… yo no lo vi, digamos, no participé, no estuve… me parece que solo vi la fotografía en el diario”. Por essa época, as preocupações da entrevistada estavam já muito distantes da questão política, como se pode observar. A dimensão política perdera importância e o foco das suas atividades havia se deslocado primordialmente para o plano pessoal e profissional, que se reflete claramente nesta lembrança confusa e distante, significativamente repleta de negações. Provavelmente como uma forma de autoproteção, ela optou por não ver, nem participar, nem estar por perto.

Considerações finais

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Entrevista de A. T. realizada em Porto Alegre no dia 01 de abril de 2008.

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47 Apesar de todos os temores sentidos, de modo quase palpável, a terrível perseguição tal como era esperada (ou imaginada) não ocorreu, para alívio dos exilados, perseguidos, militantes e ilegais em geral. Não há registro de nenhum sequestrado ou sequer preso em função da curta, porém tumultuada, estadia de Videla no Rio Grande do Sul, com exceção, talvez, dos três estudantes detidos nos protestos na Praça Raul Pilla, posteriormente liberados. Especialmente cautelosos durante esse período, os argentinos de Porto Alegre abstiveram-se de se manifestar publicamente; não havia espaço para tal, pois, como já fora visto, era vedado aos estrangeiros. Todavia, um solitário e anônimo argentino ousou expor seus sentimentos nas páginas de um jornal porto-alegrense, onde destilou, com típica ironia portenha, sua “análise” sobre a nefasta presença do ditador Videla: Quiero comunicarles que nosotros, argentinos que estamos viviendo en esta linda tierra gaúcha, no estamos escribiendo “fora Videla”. Son, podemos asegurar, brasileños que tienen miedo que Videla se quede por acá. (Zero Hora, 23/08/80, p. 2).

Recebido em novembro de 2014. Aprovado em dezembro de 2014.

The dictator Videla in Porto Alegre: an episode of resistance and democratic solidarity in times of dictatorships Abstract: This paper examines the official visit of General Jorge Rafael Videla to Brazil, in August 1980, especially focusing on the impact and effects on the Argentine living in Porto Alegre. The fact also served to politically polarize the Brazilian society under the dictatorship of Gen João Figueiredo, but in the postamnesty context when we were resuming our political activity and mobilizing ourselves for the reestablishment of democracy. It was a tense moment for the Argentine community: while some business owners and residents celebrated Videla, the Argentine diaspora, exiled and illegal immigrants feared that, besides the hardening of the Brazilian immigration laws, the presence of the dictator meant to increase the transnational repressive activity. Methodologically, the plurality of sources is a feature of this work, which uses from periodicals to oral interviews with Argentine political and economic emigré who are still living in Brazil. In the narratives constructed from their memories, we can still see the traces and scars left by their experiences under the State Terror deployed by the National Security dictatorships in the Southern Cone. Keywords: Jorge Rafael Videla. Argentine dictatorship. Argentine exile. repressive connection.

Referências A. T. A visita de Videla a Porto Alegre. Porto Alegre, 01 abr. 2008. Entrevista concedida a Jorge Christian Fernandez. Acervo Movimento Justiça e Direitos Humanos – Porto Alegre. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em:

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