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May 28, 2017 | Autor: Fátima Sá | Categoria: Social Movements
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"O dom da teoria": Eric Hobsbawm e os movimentos sociais

Eric Hobsbawm será lembrado no futuro por muitas e boas razões e por muitas e boas obras. Das sínteses brilhantes das "Eras", aos estudos sobre o nacionalismo, aos que se albergam sob o título de " A invenção da tradição" e a tantas outras publicações, sem as quais não é possível pensar a historiografia do século XX, obras memoráveis não faltam à sua extensa bibliografia. Mas não sei se será tão recordado pelos estudos iniciais que dedicou a uma série de humildes rebeldes dos séculos XVIII, XIX e XX, quase todos analfabetos, num extenso leque que vai dos bandidos a que chamou "sociais", às seitas milenaristas italianas do século XIX ou às camadas ínfimas do povo de Nápoles, anti-revolucionárias e anti-jacobinas que cantavam:" o que toma pão e vinho deve ser um jacobino" ou que dividiam o universo social entre os que andavam de carruagem e os que se deslocavam a pé.
Estes humildes protagonistas do passado que a História, enquanto narrativa e análise, tinha até aí olimpicamente ignorado foram elevados pela primeira vez pela sua mão à categoria e à dignidade de sujeitos históricos em livros como Rebeldes Primitivos e Bandidos, datados respectivamente 1959 e de 1969 , e isto apesar de Hobsbawm ter considerado os movimentos que protagonizaram como "formas arcaicas de movimentos sociais". Mas, mesmo se o termo "arcaico" nos levanta hoje algumas dúvidas, é bom lembrar que Hobsbawm não o usou nem pejorativamente nem mesmo numa perspectiva claramente teleológica de acordo com a qual tais movimentos só poderiam ser intelígiveis enquanto precursores de movimentos sociais mais perfeitos e "modernos" como o movimento operário . Na verdade, a rebeldia dos "rebeldes primitivos" de Hobsbawm não é nunca representada como uma manifestação equívoca ou "aberrante" de protesto social, mas apenas como expressão de realidades sociais e culturais distintas das do universo industrial em que se desenvolveria o movimento operário, intelígiveis nos seus próprios termos e não à luz de movimentos sociais mais "avançados". A grande viragem que o livro representa nos modos de ver e considerar os movimentos socais pré-industriais não é anulada nem mesmo pelo erro de perspectiva que decorre da inclusão do anarquismo andaluz posterior à década de 70 do século XIX no contexto desses movimentos.
Ao debruçar-se sobre as lutas operárias do mundo industrial, Hobsbawm trará à superfície e reconsiderará também, procurando fazê-lo mais uma vez nos termos em que os seus actores lhe conferiram significado, movimentos como o "luddismo" que, num célebre artigo chamado " Os destruidores de máquinas", integra no protesto operário . Para sustentar essa integração escreve: « Talvez seja hora de reconsiderar o problema da quebra de máquinas no começo da história industrial da Inglaterra. Muitos, mesmo historiadores especializados, ainda sustentam inúmeros equívocos acerca desta forma de luta da classe operária em seus príncipios. Assim, um excelente trabalho publicado em 1950 pôde ainda descrever o "luddismo" simplesmente como uma jacquerie industrial sem propósitos e frenética (…)". Mais adiante escreveria: "as opiniões conscientes da maioria dos estudiosos podem ser resumidas como se segue : o triunfo da mecanização era inevitável, podemos compreender e simpatizar com a longa acção de retaguarda que todos, excetuando uma minoria de trabalhadores favorecidos, empreenderam contra o novo sistema, mas devemos aceitar a sua ausência de propósitos e a sua inevitável derrota (…)". A conclusão seria a de não haver nenhuma desculpa para ignorar a força destes primeiros movimentos que, para Hobsbawm, exprimiam sobretudo uma forma de pressão dos trabalhadores sobre os donos das fábricas, uma "negociação colectiva através da arruaça" como a classificou . Uma "negociação colectiva através da arruaça" ou seja um objectivo deliberado e racional, do mesmo tipo dos que eram visados nos movimentos rurais que, com Georges Rudé, estudou em Captain Swing onde a destruição de máquinas e de propriedades também tinham sido praticadas.
As interpretaçãoes do "luddismo" de Hobsbawm podem considerar-se hoje discutíveis e datadas, o seu olhar sobre o "banditismo social" idealizado, mas não há dúvida de que aquilo que esses estudos representaram, em termos de revolução da perspectiva sobre os movimentos colectivos e o protesto popular, não só não envelheceu como impregnou a historiografia dos movimentos sociais até aos nossos dias e, provavelmente, continuará a alimentá-la muito para além deles. A valorização da experiência e do contexto dos actores em detrimento da teleologia histórica, a consideração do significado que esses mesmos actores atribuiam às sua acções em prejuízo daquelas que lhe eram atribuídas "pelos apologistas económicos da classe média do século XIX de que se devia ensinar aos operários a não baterem contra a verdade económica , por mais intragável que fosse (…)" são uma constante nas propostas de Hobsbawm de análise dos movimentos sociais. Pode pôr-se em paralelo a sua rejeição das interpretações segundo as quais "nos primeiros tempos o movimento operário não sabia o que estava a fazer, mas simplesmente reagia cegamente e às apalpadelas à pressão da miséria , como os animais no laboratório reagem às correntes elétricas", com as de E. P. Thompson quando criticou a visão "espasmódica" da acção colectiva.
É certo que no domínio dos estudos sobre o movimento operário é muitas vezes inevitável contrapor as análises de Hobsbawm às de E. P. Thompson, que o próprio Hobsbawm criticou em artigos como O fazer-se da classe operária 1870-1914, sem nunca negar o brilhantismo do autor do The making of english working class e a importância da obra. Não só Hobsbawm permanece, como ele próprio afirma, "um marxista tradicional o suficiente para enfatizar ", por exemplo, a propósito da aristocracia operária, "a sua determinação pela base económica" como adopta, por vezes, metodologias quantitativistas para o estudo das lutas operárias que o aproximam mais de Labrousse e da história económica e social francesa do que do grupo chamado dos "marxistas britânicos " a que está tão intimamente ligado. É o que acontece em vários dos estudos publicados em Labouring Men como "Economic flutuations and some social movements" ou "Trends in the britisch labour movement since 1850". No entanto, será o mesmo Hobsabawm que publicará, anos mais tarde, em Worlds of Labour um artigo fundamental sobre a "Transformação dos rituais do operariado" em que explora a iconografia e a simbólica do movimento operário, da bandeira vermelha ao 1º de Maio ou, um outro, intitulado "Homem e mulher : imagens da esquerda" também explorando a iconografia, desta vez masculina e feminina, dos movimentos revolucionários do fim do século XIX e do início do século XX. Este último texto é apresentado como uma resposta às críticas que "acusavam os historiadores do sexo masculino, mesmo marxistas, de ignorarem grosseiramente a metade feminina da raça humana".
Pode pensar-se que a "viragem cultural" da historiografia dos anos 80 do século XX não terá sido alheia a estes novos temas . É o próprio Hobsbawm que o deixa perceber no início do texto sobre os rituais operários datado de 1982 quando escreve " O ritual , presentemente, é um assunto em voga entre os historiadores", mas convém não esquecer que, muito antes dessa famosa "viragem", ele tinha já escrito, no ultimo capítulo dos Rebeldes Primitivos um texto fundamental sobre o ritual nos movimentos sociais.
Apesar do sucesso das "Eras" , em particular da Era dos Extremos e , posteriormente,de Tempos interessantes , sua continuação auto-biográfica, Hobsbawm não abandonou nunca os seus humildes rebeldes. No ano 2000 publicou uma nova versão de Bandits enriquecida pela discussão dos contributos dos muitos continuadores e críticos de vários países e continentes que, ao longo de 30 anos, tomaram a sua obra como referência assim como o conceito por ele cunhado de "banditismo social". No prefácio desta nova versão não esconde o seu orgulho por ter sido "the fouding father of an entire brench of history" e revê, com o seu habitual e extraordinário domínio da bibliografia mundial , os temas e problemas nela levantados acrescentando novos capítulos e temáticas à obra como acontece, por exemplo, no apêndice sobre as mulheres e o banditismo.
Sem nunca ter escrito uma obra sobre o movimento operário tão definitiva e marcante como os seus interesses historiográficos e políticos podiam fazer esperar , Hobsbawm revolucionou a História dos movimentos sociais talvez mais através da História dos rebeldes anónimos com quem anteriormente muito pouca gente ( a não ser a polícia, como escreve no íncio do capítulo " O Bandido Social" de Rebeldes Primitivos) se tinha preocupado do que com a do moderno operariado. No entanto, quer numa quer noutra vertente permaneceu fiel ao seu propósito de "restituir aos homens do passado e principalmente os pobres do passado , o dom da teoria".

Fátima Sá e Melo Ferreira
CEHC – Instituto Universitário de Lisboa
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"The machine breakers", Labouring Men. Studies in the History of Labour, Weidenfeld and Nicolson, 1964, republicado em Pessoas Extraordinárias. Resistência , Rebelião e Jazz, Paz e Terra , 1999, pp 15-16
Idem, p. 16
"O debate sobre a aristocracia operária", Mundos do Trabalho. Novos estudos sobre história operária, Paz e Terra, 1987 (1ª ed. Inglesa 1984), p. 306.
"Homem e Mulher : imagens da esquerda", Idem, p.123
"A transformação dos rituais do operariado", Idem, p. 99
Bandits, Weidenfeld and Nicolson, 2000, p. X
A história britãnica e os annales . um comentário , sobre história,, companhia das letras, 1998 8 1º ed inglesa, 1997, p.200



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