O Dom Quixote Brasileiro

July 8, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, História da Arqueologia, Paulo Duarte
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Universidade Estadual de Campinas – 7 a 21 de abril de 2003

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A saga de Paulo Duarte, combativo e combatido, nas 60 mil peças de seu acervo na Unicamp

O Dom Quixote brasileiro Foto:Reprodução

Foto:Neldo Cantanti

LUIZ SUGIMOTO [email protected]



ois motivos únicos me levaram a dispor dessa biblioteca: o desejo ardente de não vêla dispersada em caso de minha morte e uma razão de premência e necessidade: as misérias deste nosso Brasil e a minha própria miséria (parafraseando Maurice Sele) que me obrigam a procurar recursos para uma vida de apreensões materiais que se torna cada dia mais difícil e insuportável, que só poderia ser amenizada com a venda desse praticamente único patrimônio que possuo. (...) Eis pois porque me dirijo a V.Exa., propondo a venda da biblioteca por um preço mínimo de Cr$ 500.000,00 (quinhentos mil cruzeiros novos) desde que a avaliação da biblioteca alcance esta quantia – pagos integralmente ou em duas ou três prestações a combinar, caso V.Exa. se interesse pela proposta que ora faço . Sou quase um psicopata que A carta do jornalista e advogado amedronta o mundo são e os Paulo Duarte, dirigida ao reitor da homens de bom senso, as Unicamp Zeferino Vaz, é datada de famílias cristãs me têm de ponta 20 fevereiro de 1970. Nela o intee a gente honesta tem-me ódio lectual dá mais detalhes sobre sua imenso. proposta, destacando títulos de um acervo formado em 50 anos de Como a réplica trago sempre estudos e buscas, com aquisições pronta, o doesto vive sobre mim no Brasil, Estados Unidos, Inglatersuspenso e a sociedade não ra, França, Itália e em outros pólos perdoa a afronta de dizer tudo culturais. Um leque de áreas do coquanto dela penso. nhecimento: Bibliografia, História do Brasil (Brasiliana), Literatura Com o meu característico portuguesa, francesa e italiana, Etdescoco, sou sempre amigo nografia e Pré-História, Sociologia, incômodo que bota tudo a História Natural, Filologia, revisperder porque transige pouco. tas e publicações periódicas. “Dada a variedade de livros raPor isso analisando a minha rota ros, poderá ser o primeiro núcleo julgam-me todos um completo capaz de facilitar quaisquer estulouco, quando não passo de um dos sobre nosso país e outros que vulgar idiota... possam interessar a uma universidade organizada”, argumentava na carta o jornalista, sabedor O advogado e jornalista Paulo Duarte e a caveira formada por suas iniciais (destaque): trajetória tumultuada de que Zeferino Vaz pretendia imtemperamento ardente”. criminal. Na França, foi discípulo plantar um centro de estudos braCONTATOS “Paulo Duarte nunca foi figura ude Paul Rivet, criador do Museu de sileiros na recém-fundada Unil’Homme e culpado pela obsessão de camp. A compra foi concretizada nânime e cordata. Muito pelo conCedae Duarte em viabilizar o Instituto de em poucos meses, ao preço pedi- trário. Desentendeu-se com inúmeCentro de Documentação ras pessoas e fez inimigos. Talvez esta Pré-História. Sustentou amizades do por Paulo Duarte, como vereCultural Alexandre Eulálio tenha sido a razão para que entre a nata da literatura, como Mámos em texto à parte. [email protected] cerca de trinta pessoas, dentre rio de Andrade, Érico Veríssimo e Um carimbo, em que as iniSiarq Redação as quais Florestan Fernandes, Monteiro Lobato. ciais P e D formam a figura Arquivo Central do Sistema de Arquivos Hélio Bicudo, José Mindlin, Lude uma caveira, chamaria a era [email protected] Vieira de Carvalho MesquiA mágoa – Apesar de presente atenção de especialistas em trincheira iz BC ta e Alípio Corrêa Neto, comem momentos marcantes da vida documentação que viriam a política e cultural, Paulo Duarte manusear o acervo entregue e palanque parecessem ao seu enterro no Biblioteca Central, Coleções Especiais dia 24 de março de 1984”, escresempre apareceu em segundo plaà Universidade. Como a [email protected] ve a pesquisadora na concluno, como primo pobre desta elite. marca do Zorro ou do FanBiblioteca do IFCH são da tese, depois de narrar os fatos Carregou grande mágoa pela otasma dos gibis, fazendo uma [email protected] resumidos em seguida. missão de seu nome entre os funsociação barata. Ou a marca do Marli Guimarães Hayashi dadores da Universidade de São “Dom Quixote brasileiro”, na [email protected] Exílios – Paulistano nascido em Paulo, embora, ao que tudo indica, ciação preferida por Marli Guimatenha participado das decisões rães Hayashi, para o título da tese 17 de novembro de 1899, Paulo Alfeu Junqueira Monteiro Duarte ticruciais para a criação da instituide doutorado que defendeu na USP nha 20 anos ao iniciar a carreira em janeiro de 2002. Entre vindas e Desgastada a relação com os do- ção, tanto quanto Armando Salles jornalística, como revisor em O nos de O Estado, Paulo Duarte deixou Oliveira e Júlio de Mesquita Filho. idas, a pesquisadora gastou seis meses vasculhando o arquivo pes- Estado de S. Paulo. Foi repórter res- o jornal e criou em 1950 a revista Mesmo sua última realização, o soal do intelectual no Cedae (Cen- ponsável pelas notícias do gover- Anhembi, que em meio ao sensa- Instituto de Pré-História, fundado tro de Documentação Cultural Ale- no e chegou a editor-chefe no final cionalismo vigente na época, abriu em 1962 depois de uma década de dos anos 40. A amizade com a famí- espaço para intelectuais brasileiros lutas, acabaria absorvida por ouxandre Eulálio). “Em meu mestrado sobre Adhe- lia Mesquita – proprietária do jor- e estrangeiros e suas pesquisas aca- tra unidade da USP. A vivência como professor da mar de Barros, de quem Paulo Du- nal – permitiu que ele participas- dêmicas. Até 1962, quando acabou arte foi inimigo histórico, já tinha se de importantes episódios da vi- fechada por razões econômicas, a universidade foi igualmente turecorrido à Unicamp para pesqui- da política e cultural paulista. publicação também virou trin- multuada, diante de suas críticas Duarte fez da redação trincheisar os dossiês do jornalista contra cheira em embates com Adhemar à situação interna e em período especialmente difícil imposto pela o governador. Pude perceber não ra e palanque. Atuou no movimen- de Barros e Getúlio Vargas, ao mesto constitucionalista e, detido nuditadura. Duarte aparece como a apenas a riqueza do acervo, mas mo tempo em que o jornalista alitambém que o desafeto era tão in- ma fuga pela mata, ficou exilado por mentava incompreendida amiza- “figura mais incômoda de toda a um ano; ajudou a articular oposição de com Jânio Quadros. Universidade” em Livro Negro da teressante quanto o personagem. USP: o controle ideológico da UniversiApesar das controvérsias, seria ao Partido Republicano Paulista, Por mais de uma vez Paulo Duarte Duarte o autor do slogan ‘rouba, engajando-se com industriais e- prometeu abandonar a política e se dade de São Paulo, publicado pela asmas faz’, atribuído a Adhemar”, mergentes no Partido Democráti- dedicar à cultura, seu verdadeiro sociação dos docentes em 1978. É ainda Marli Hayashi quem afirma: relembra a historiadora. No tra- co; foi consultor jurídico do prefeigosto. O interesse em antropologia “Semelhante a Dom Quixote, Paulo balho de doutorado, Marli Hay- to de São Paulo; elegeu-se deputa- foi despertado, ainda no colégio, Duarte passou ‘a vida brincando de ashi reconstrói a trajetória de um do estadual pelo Partido Consti- pelo diretor do Museu do Ipiranga homem polêmico, que ao ser apo- tucionalista com a plataforma do Hermann von Hering. Cursaria me- sonhar sonhos impossíveis’, como o sentado compulsoriamente na socialismo “sadio”; depois de onze dicina, não fossem a falta de recur- Departamento de Cultura, o Instituprisões no espaço de um ano, acabou sos e o emprego no jornal, e, se fre- to de Criminologia, o Museu do HoUSP pelo AI-5, em 1969, consolidamem Americano, a revista Anhembi ra a fama de “humanista e anti- expulso pelo Estado Novo em 1938, qüentou a São Francisco a contratecnocrático, progressista patrio- ficando exilado pela segunda vez, gosto, é porque esperava conhecer e o Instituto de Pré-História, todos ta e antitotalitário, polemista de até 1945, a maior parte na França. a medicina legal através do direito bruscamente interrompidos”.

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Retrato Realista



Revista Anhembi: efervescência cultural

Arquivo particular veio como ‘brinde’ Menos de um mês após receber a carta de Paulo Duarte, o reitor Zeferino Vaz solicitou uma avaliação do valor intelectual da biblioteca do jornalista, convidando para esse trabalho Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda, da USP; José de Barros Martins, diretor da Editora Martins; e Rubens Borba de Moraes, da UnB, então considerado o maior conhecedor de livros sobre o Brasil. A comissão visitou Duarte para conferir sua lista de raridades: livros de Jean de Lery (1585), Rocha Pita e Brito Freire (1675), Ulsius (1628), Gandavo, Antonil, La Condine (1788), e da maior parte dos viajantes como Nieuoff (1682), Martius, príncipe Maxiliano, Spiz e Martius, S. Hilaire, Grevaux, Maria Graham e Kester. Perto de 70 títulos e documentos estão na Coleção de Obras Raras da Biblioteca Central. O Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) solicitou para sua biblioteca quase 3.500 títulos de áreas afins. A comissão avaliou o acervo em Cr$ 500.725,00 e a compra foi fechada em agosto de 1970, mediante duas parcelas totalizando 500 mil redondos. Dois meses antes, em reconhecimento ao interesse da Unicamp, Paulo Duarte havia se comprometido a entregar, como doação, outra grande quantidade de volumes e coleções, além de 17 estantes de aço com seu arquivo particular. Neire do Rossio Martins ficou encarregada, em 1985, de transferir o arquivo de Paulo Duarte para a então recém-criada Divisão de Documentação da Unicamp, atual Siarq (Arquivo Central do Sistema de Arquivos) que hoje coordena. O acervo estava com o empresário e bibliófilo José Mindlin, que só então soube do compromisso assumido pelo jornalista. Mindlin liberou para a Unicamp aproximadamente 60 mil itens, entre manuscritos, correspondências, fotos, quadros, gravuras e outros objetos pessoais, transferidos em 1994 do Siarq para o Cedae. Nesta remessa vieram nove livros de Memórias, incompletas, visto que Duarte planejara um total de quinze volumes. O arquivo traz ainda inúmeros dossiês, que refletem a efervescência cultural e política do Brasil num período que vai do século 19 ao começo dos anos 1980. Numa estante, jazem três capacetes de combatentes da Revolução de 32.

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