O drama do autor. A escassa influência de Marx no século XX.

June 8, 2017 | Autor: F. Dores Costa | Categoria: Political Philosophy, History of Ideas, Political Theory, Political Science
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Guião da exposição da comunicação A escassa influência de Karl Marx nos séculos XIX e XX. A tragédia do autor apresentada ao IIº Congresso Karl Marx – 24 de Outubro de 2013 Fernando Dores Costa O título proposto desagradará tanto aos “admiradores” como aos “inimigos” do autor. Não se trata de uma provocação destinada a chamar a atenção. Na verdade, todos terão dificuldade em aceitar esta afirmação. Naturalmente, o que aqui se debate não é a difusão do nome. A invocação do nome é, de um lado, a procura da proteção da autoridade do autor ou, de outro lado, a demonização de uma posição que se pretende neutralizar. A conexão entre o nome e a obra é algo de muito mais complexo. Trata-se obviamente de um enorme novelo de ligações. O nome não dá homogeneidade natural à obra e até no mesmo texto um conceito pode desviar-se de sentido. Proponho-me, com efeito, apontar alguns elementos que conduzem à verificação de que o que chamo de “núcleo racional” da obra de Marx ou, se se quiser, aquilo que o especifica como autor (não sendo certamente, como o próprio explicou, a “descoberta” das lutas de classes, um lugar comum dos que o antecederam, ou um patético determinismo “económico”, uma caricatura) teve uma limitada importância nos movimentos que dele se reclamaram ao longo dos séculos XIX e XX. Esse “núcleo distintivo” foi submerso por leituras que desviaram o uso do nome do autor da obra como fonte de autoridade para simplificações dessa obra, mais próprias a) para a divulgação e condensação de conteúdos; b) para a justificação como “bandeira” de ações partidárias, aborrecendo os adversários e sendo fonte de estatuto; c) nos casos mais dramáticos, para a constituição de uma “escolástica” nos regimes de economia militar do século XX; e) ou ainda, não menos dramático, para legitimar conflitos motivados por conflitos da mais variada índole [por ex, o dilacerante “FARC (marxista)” nos jornais]. Para a demonstração da submersão impõe-se a identificação do que acima chamei “núcleo racional da obra que o especifica como autor”. Com efeito, na Europa da década de 1840 há uma profusão de autores socialistas de variados tipos e propondo diversos programas. Esta profusão é um movimento de intelectuais e não pode ser explicado pela pressão, indireta e ainda menos direta, social e política, de uma nova classe de operários surgida com a industrialização. O que move estes homens é a indignação moral perante a polarização social que se percebe como cada vez mais evidente. Este movimento faz-se a par dos

que entendem esta mesma polarização como um risco. O tema das «duas nações» emerge também em círculos antissocialistas e conservadores. Foi neste contexto que surgiu o fantasma do comunismo a que se refere o Manifesto como “estória de papões”. Um exemplo do tipo de obra dessa geração que repudia as caraterísticas da sociedade dos anos de 1840 perante a promessa de universalidade de direitos é a de Moses Hess (1812-1875), homem que permaneceu no movimento socialista. A sua Holy History of Mankind (1837) filia-o na longínqua tradição de formulação de utopias que se fundamentam na periodização da história humana mas que pressupõem implicitamente uma razão sobre-humana que determinava tais variações da condição humana. As épocas ou fases de evolução da humanidade haviam-se tornado uma referência frequente em muitos escritos do século XVIII. A tradição utópica – simplificando-a – tem uma longa tradição na cultura europeia e corre paralelamente às correntes que as tomam como heréticas ao porem em causa a natureza humana como uma natureza decorrente do pecado original e, consequentemente, de uma decisão divina, como sucede no tomismo e no luteranismo. Na década de 1840, os jovens nascidos depois da convulsão napoleónica e da ordem contrarrevolucionária europeia, fazem renascer a utopia. Marx é mais um de entre eles? Porventura com mais qualidades? Por que razão este homem se vai dedicar à redação de uma obra com um plano imenso, de qual apenas escreverá uma pequena parte e de publicará em vida apenas um primeiro volume e sem qualquer relevância no público, sobre o capital? Ao mesmo tempo, numerosas questões que achamos cruciais no campo político e social não obtiveram tratamento sistemático, deixando aos seus supostos herdeiros um campo para múltiplas apropriações do nome pela via da boa interpretação. A dissociação da utopia não é uma novidade e foi feita pelo próprio (e depois por Engels). O problema está na perceção do que se opõe ao utópico. Num texto de 1880 que infortunadamente teve uma larga difusão, Engels marcou a tónica na abordagem seguinte desta oposição. O “socialismo científico” marca a difusão paralela à utópica do nome de Marx e com desenvolvimentos trágicos. A interpretação de Hegel é pobre e tributária dos anos 40. A representação da proposta de Hegel como idealismo centra a questão numa oposição idealismo-materialismo no interior da “dialética”. Formulava-se uma «lei» materialista da história e desse modo capitulava-se, simultaneamente, à pressão «cientista» da época em que escrevia e à reintrodução subtil da sobrenaturalidade na história. O núcleo racional, pelo contrário, encontra-se, por exemplo, nos Grundrisse, caderno VIII, 701 ss.: o capital está obrigado a reduzir cada vez mais o trabalho vivo no processo produtivo e a fazer aumentar o papel do trabalho morto acumulado. Isto aponta objetivamente para a possibilidade de uma libertação do estado de necessidade. A possibilidade de liberdade não decorre da afirmação da

“virtude”, de uma hipotética renúncia voluntária ou forçada às “paixões”, mas da afirmação de um tempo da individualidade pela via da socialização da riqueza social acumulada. O egoísmo, paixão movida pela preocupação de suplantar as manifestações do estado de necessidade, infinda duplicação do medo da morte, próxima ou não, estado de plena subordinação à objetualidade (o termo designando a condição oposta à subjetividade como fonte autónoma de ação) oposto da individualidade, resultado da capacidade de disposição de si. Somos tentados a encontrar aqui a presença subtil e sofisticada da inspiração dialética: a consagração do egoísmo sob a forma burguesa e capitalista e a sua subversão do processo de produção permitiriam objetivamente a superação de todo o estado marcado pelos egoísmos que transformam os homens em meros “objetos” dos estados de necessidade. Mas não se trata de um qualquer retorno à imaginada “harmonia” da “comunidade”, ao governo da “virtude” dos Antigos, de qualquer Idade de Ouro perdida, nem sequer da operação proposta por Rousseau de conseguir fazer os homens obedecer julgando estar a obedecer a si mesmos. Não se tratava do triunfo da utopia. Ia-se ao encontro de um anseio de justiça e de harmonia que se manifestara desde há muito nos sonhos humanos. Mas a utopia enquanto literatura estava longe de revelar uma única dimensão: era a sociedade plenamente policiada (no sentido primeiro e mais amplo deste termo), ou seja, onde a autoridade era a autoridade perfeita (a do “Espírito Santo”), ou seja, a autoridade completamente oculta porque presente apenas nas “almas”. Consequentemente, a utopia não tem uma dimensão única, “libertadora dos comuns”. A procura do autogoverno de si acompanha este movimento – a possibilidade de usufruir o tempo de vida (como ser natural) e não de ser tomado por ele. A ambiguidade existe na utopia. Mas este núcleo racional era o oposto das propostas utópicas pois não se fundava sobre um misterioso triunfo da “virtude”, mas sobre a possibilidade material da libertação do estado de necessidade. Mas o nome do autor foi sucessivamente apropriado por perspetivas várias: 1. utópica e redentora, centrada na salvação; 2. positivista e evolucionista; 3. neo-jacobina, centrada na “revolução política”; 4. escolástica-estalinista, de índole militarista e “obscurantista”. A definição do referido núcleo racional opõe-se à versão que hoje (fora do campo escolástico) parece ter-se tornado dominante. Terá tido alguma visibilidade no recente livro Grandeza de Marx de Sousa Dias. A definição aqui proposta não está em consonância com a inspiração de Badiou ou Zizek. O autor desta comunicação chama a si a recordação das leituras (não necessariamente em todos os

aspetos e em todos os tempos) como as de Shlomo Avineri, Maximilien Rubel, André Gorz, L. Kolakowski, Hal Draper, M. Johnstone, R. Milliband (sem ser exaustivo). Este exercício é sobre a tragédia do autor. O “autor” não é usado – na imensa maioria dos casos – como a delimitação de um corpo doutrinal (cuja coerência não é certamente inevitável), mas como um nome ao qual se atribuem as mais variadas posições, conforme a vontade do intérprete e o efeito procurado. Inclusivamente, ao nome pertencem as posições que alguns afirmaram que logicamente teria ou que outros lhe atribuíram. Fernando Dores Costa Para blog – 21.05.2014

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