O dualismo em Platão

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O DUALISMO EM PLATÃO

1ª EDIÇÃO

José Provetti Junior

ASSIS CHATEAUBRIAND/ PR JPJ Editor 2014

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O DUALISMO EM PLATÃO

JOSÉ PROVETTI JUNIOR Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela UNIOESTE, mestre em Cognição e Linguagem pela UENF, especialista em História, Arte e Cultura pela UEPG, especialista em Saúde para Professores dos Ensinos Fundamental e Médio pela UFPR, graduado e licenciado em Filosofia pela UERJ, graduando em Pedagogia pela UEM, professor de Filosofia e Sociologia do Instituto Federal do Paraná – IFPR, no campus de Assis Chateaubriand, atuando nos cursos Técnicos de Informática, Orientação Comunitária e Eletromecânica, professor e pesquisador voluntário do Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA - UERJ, pesquisador do Grupo de Estudos Karl R. Popper – UNIOESTE - Toledo, Coordenador Geral do Grupo de Pesquisa Filosofia, Ciência e Tecnologias do IFPR – Assis Chateaubriand, autor de artigos em periódicos nacionais, autor do livro “A alma na Hélade: a origem da subjetividade Ocidental” (2011).

1ª EDIÇÃO ASSIS CHATEAUBRIAND/ PR 2014

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JPJ Editor Coordenação editorial: Cláudia Dell'Agnolo Petry Edição de texto: José Provetti Junior Preparação do texto: José Provetti Junior Projeto gráfico: José Provetti Junior Capa: José Provetti Junior. Coordenação de produção gráfica: Lidiane Cardoso Remde Provetti Coordenação de revisão: José Provetti Junior Revisão: Kátia Cristiane Kobus Novaes Edição de arte: José Provetti Junior Assistência de produção: José Provetti Junior Coordenação de produção: José Provetti Junior

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação P969 Provetti Junior, José O dualismo em Platão / José Provetti Junior. – 1. ed. – Assis Chateaubriand: JPJ Editor, 2014. 114 p. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-912927-1-4 1. Filosofia. 2. Alma. 3. Corpo e mente. 4. História antiga. I. Título. CDD (22. ed.) 184 Bibliotecária: Cler Rosane Coldebella Muraro CRB 9/1430

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados JPJ Editor Av. dos Pioneiros, 225 – Jardim Europa Assis Chateaubriand/ PR – Brasil – CEP.: 85.935-000 Tel.: (44) 8813-1127 www.grupodepesquisafilosofiacienciaetecnologiasifpr.com/#!jpj-editor/c1qjf [email protected] 2014 Impresso em Assis Chateaubriand/ PR – Brasil.

Nº 0000 3

A Minha esposa Lidiane Cardoso Remde Provetti e ao nosso sétimo aniversário de casamento dedico essa obra.

Ao meu pai, José Provetti e minha mãe, Eliane Maia Rodrigues Provetti que nos anos que se passaram na elaboração desse trabalho deixaram de ver a luz de Hélios e passaram ao Hades.

A minha tia-avó, Adélia Menezes Maia Gallo por ter me dado o suporte necessário para aplicar-me à pesquisa e atingir os resultados necessários durante todo o processo. Também hoje se encontra no outro lado da vida.

A nossa filha Izadora Remde Provetti in memorian.

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A capacidade de imaginação da mente humana está tão estreitamente ligada às condições perceptíveis da experiência, que pelas próprias forças não consegue desviar-se delas um passo sequer. Somente a forte pressão da refinada experiência científica logra libertar o pensamento humano das suas convicções habituais da causalidade.” SCHLICK, M. A causalidade na Física atual.

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ÍNDICE INTRODUÇÃO .................................................................................................................

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I. PLATÃO E SUA FILOSOFIA .......................................................................................

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1.1. O contexto de Platão ....................................................................................................

3

1.2. A formação de Platão >.................................................................................................

5

1.3. A Academia ...................................................................................................................

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1.4. A concepção de natureza em Platão ..........................................................................

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1.5. Dialética e diálogo ........................................................................................................

9

1.6. As obras de Platão ........................................................................................................

10

1.7. Crítica do conhecimento sensível ..............................................................................

14

1.8. A doutrina das Ideias ...................................................................................................

15

1.9. A presença de Platão na História do pensamento ...................................................

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II. A ALMA E SUAS ESTRUTURAS EM PLATÃO ....................................................

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2.1. A alma ............................................................................................................................

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2.2. Atributos da alma .........................................................................................................

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2.3. “Morfologia” da alma ..................................................................................................

80

2.4. Funções da alma ...........................................................................................................

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2.5. “Fisiologia” da alma ....................................................................................................

83

2.6. Patologias da alma .......................................................................................................

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2.7. Afecções da alma ..........................................................................................................

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2.8. Alma e interioridade ...................................................................................................

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2.9. Alma e matéria inanimada .........................................................................................

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2.10. Controle da alma sobre si ......................................................................................... 102 III. CONCLUSÃO .............................................................................................................. 107 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 113

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I. INTRODUÇÃO O que objetivo desse livro é tentar compreender as relações psyché-sôma (almacorpo) em Platão. Essa motivação se fundamenta nas dificuldades engendradas pela Filosofia da Mente para estudar, refutar ou justificar a mencionada relação. Para aproximação do assunto intentou-se analisar o que Platão compreende por alma (psyché) e corpo (sôma), nas seguintes obras: “Timeu”, “Fédon”, “Fedro”, a “República”, “Apologia de Sócrates”, “Mênon”, “Banquete”, “Sofista” e “Político”. Embora seja uma pequena fração do conjunto das obras de Platão, acredita-se que essa amostragem seja suficiente para tentar alcançar o mencionado objetivo. A metodologia utilizada foi a histórico-crítica, tendo como documentação os supramencionados diálogos com vistas ao desenvolvimento de uma investigação sob a ótica da História da Filosofia. Como referência teórica, em ordem decrescente seguiram-se os seguintes autores: Reale (2004), que apresentou as reflexões da Escola de Tübingen-Milão a respeito das chamadas doutrinas não-escritas de Platão; Vernant (1990), que demonstra a metodologia para realizar uma análise sob a ótica da História Psicológica, das Ideias e das Mentalidades; Mondolfo (1970), que apresenta uma hipótese sobre a teoria do conhecimento que os pré-platônicos utilizavam, bem como a questão da subjetividade entre os antigos; Jaeger (1995), que desenvolve um acurado estudo sobre o processo de formação do homem grego e os valores implicados até a época de Platão; Detienne (1998), em especial, no que se refere à questão do uso da linguagem e como era a vivência dela à época; e Coulanges (1998), o historiador que traça um excelente retrato dos costumes e hábitos sociais do homem grego clássico. A hipótese que se defende é que não é possível a um grego da época de Platão conceber uma separação diametralmente oposta e radicalmente incomunicável entre o que a tradição filosófica convencionou chamar de Mundo Sensível e Mundo Inteligível, ou em outras palavras, aquilo que viria a fundamentar a distinção atual na Filosofia da Mente entre o mental e o físico. 7

No primeiro capítulo se procurou contextualizar Platão em sua época, apresentando os problemas epistemológicos com os quais se defrontava. Pretende-se também apresentar as fases dos escritos platônicos bem como a cronologia de suas obras. É intenção esquematizar alguns tópicos essenciais do pensamento platônico, tais como a teoria das Ideias e a noção de imortalidade. O capítulo II visa investigar a natureza da alma a partir dos escritos do filósofo ateniense. Para efeito desta pesquisa, procura-se dividir o estudo em subitens, com vistas a permitir que o exame da psyché, tal como concebida por Platão pudesse ser realizado a partir de diferentes perspectivas. Neste sentido, procura-se investigar a noção de alma a partir dos seguintes aspectos: as estruturas da alma, as funções da alma, a fisiologia da alma, as patologias da alma, as afecções da alma, alma e interioridade, alma e matéria inanimada, controle da alma sobre si. Finalmente, na conclusão procura-se demonstrar como a noção de alma para Platão define os problemas apresentados pelo dualismo mente-corpo, e tenta-se esclarecer alguns destes problemas à luz das novas pesquisas realizadas por estudiosos da obra platônica, notadamente a partir das novas interpretações da escola de Tübingen-Milão.

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I. PLATÃO E SUA FILOSOFIA

1. O CONTEXTO DE PLATÃO Referência econômico-cultural das sociedades helênicas do mundo antigo, Atenas congregava integrantes de diversas cidades-estados do mundo grego: comerciantes, banqueiros, artesãos e escravos, além de muitos bárbaros de variada procedência, proporcionando aos habitantes da área urbana uma enriquecedora vivência proveniente de várias culturas. No Pireu, amplo e bem construído porto fortificado de Atenas, ocorriam os intercâmbios comerciais e culturais mais intensos da região. Acontecimento único na Grécia continental no que respeita às demais cidade-estados que, durante toda a sua história, mantiveram a tradicional organização agrária. A vivência religiosa em Atenas dividia-se em três modos básicos, a saber: 1) a religião doméstica, fundada no patriarcado e na intensa relação entre mortos e vivos, com plena liberdade do patriarca em adorar seus antepassados; 2) a religião cívica, projeção da religião doméstica, tendo um dos deuses do panteão olímpico como patrono, tinha na acrópole, com a lareira comum, o centro de reunião de todas as famílias em torno da divindade protetora da cidade; e, em paralelo a estas, restritas a cidadãos do sexo masculino e de posse de seus direitos cívicos havia 3) os mistérios de Elêusis e dos Órficos, que se caracterizavam pela liberalidade de acesso a homens, mulheres, cidadãos, estrangeiros e escravos, indistintamente. Primava por ensinos restritos aos iniciados, escalonados por meio de provas iniciáticas, de profunda preocupação escatológica, e se diferenciava em relação às demais, devido às especificidades de seus ensinamentos e ao estilo de vida de seus membros. O ideal de sophrosyne, justa medida, justo meio, ingressou na mentalidade helênica de modo a traçar um novo parâmetro de comportamento social, fundando-se na simplicidade, austeridade e equilíbrio do cidadão em todas as particularidades de sua existência. Sua ideia central era o mandamento do nada em excesso. 9

O pensamento filosófico iniciado na jônia do século VII a. C. foi incorporado no dia a dia de Atenas como modo discursivo, após relativa resistência de seus cidadãos. Em breve, porém, granjeou o interesse dos atenienses e a filosofia, com o passar do tempo, virou um importante elemento de interesse prático, devido à necessidade de solucionar importantes questões sociais, políticas e pertinentes a diversos campos do conhecimento humano. A circulação das ideias decorrentes do pensamento filosófico apresentou um importante impulso com a reintrodução da escrita no contexto cultural helênico a partir do século V a. C., como atesta Havelock (1996), fazendo com que alguns cidadãos letrados tivessem acesso à argumentação filosófica por meio da circulação de pergaminhos - os livros da época, contendo as doutrinas de variados físicos, como eram conhecidos os filósofos pré-socráticos. A escrita, por sua vez, trouxe nova perspectiva para a reflexão filosófica relativamente às questões pertinentes à possibilidade do conhecimento e à linguagem. A argumentação racional, como novo paradigma discursivo em contraposição às limitações da linguagem poética e outros fenômenos vinculados aos hábitos decorrentes da escrita, é problematizada por uma cultura que por mais de quatrocentos anos foi totalmente oral. Na ágora (praça ou mercado) ocorriam discussões e questionamentos sobre a origem e a essência dos fenômenos do mundo natural, phýsis, que geravam interesse e preocupação entre os cidadãos. Tais discussões eram acompanhadas da desconfiança constante dos poetas e sacerdotes (representantes do antigo modo de se expressar, isto é, o oral), que viam nas inovações filosóficas perigosa ameaça a seus interesses e modos de subsistência. Os chamados mestres da verdade, os sofistas, eram professores de retórica, gramáticos, teólogos, poetas e alguns estadistas. Desenvolveram uma profunda crítica à tradição e aos critérios gnosiológicos admitidos até então. Geraram amplas e impactantes discussões entre seus contemporâneos em torno da educação, da formação das leis, do estado, da cultura. Afirmavam poder ensinar a arete (excelência), que se caracterizava pelo preparo do cidadão no exercício político diante da Assembleia do Povo, de modo a 10

conduzi-la com arte, segundo os interesses do grupo político ao qual o orador pertencia (JAEGER, 1995, p. 335-385). A família de Platão pertencia à aristocracia de Atenas e tinha como ancestral o ilustre legislador Sólon, sendo também parente do personagem de um de seus diálogos, Cármides, e sobrinho do político de formação sofístico-heraclitiana Crítias, um dos chamados trinta tiranos, grupo de aristocratas atenienses que por ocasião da derrota da cidade diante de Esparta, na primeira guerra do Peloponeso, participou do instituído governo e realizou uma série de perseguições políticas.

1.2. A FORMAÇÃO DE PLATÃO Como cidadão ateniense de aristocrática estirpe, Platão teve a melhor formação possível que um jovem de sua época poderia almejar. Em oposição à nossa atual concepção de formação educacional, a dos helênicos em geral, e dos atenienses, em específico, consistia na audição, memorização e recitação da poesia grega tradicional, isto é, Homero, Hesíodo, Píndaro. Por poesia deve-se compreender não apenas um conjunto de versos normalmente direcionados ao enlevo estético, fantástico ou crítico, mas como um modo de expressão fundado em uma métrica rigorosa e contendo musicalidades específicas, combinada a um comportamento gestual em que a palavra enunciada era acompanhada de um movimento corporal. Tal forma de pensar e de se expressar era a característica predominante ainda à época de Platão, em que a juventude e os cidadãos eram comumente educados a ponto de se poder dizer que Homero é reconhecidamente considerado o educador por excelência do homem grego (JAEGER, 1995, p. 61-84). Platão assim foi educado e pelo que é narrado pela historiografia, muito se destacou naquela prática expressiva poética, tanto quanto nas competições esportivas, chegando também a ser, por duas vezes, vencedor nos chamados “jogos ístmicos” (DURANT, 1996, p. 39). Ainda jovem, interessou-se por filosofia, em especial sob a influência de seu tio Crítias. Conheceu o pensamento de Heráclito e dos principais pensadores jônicos; 11

conheceu a filosofia de Anaxágoras, pensador que assessorou Péricles nas reformas impetradas na política ateniense anos antes, Parmênides, os sofistas Górgias, Protágoras e outros que circulavam e lecionavam em sua cidade. Com vinte anos, aproximadamente, conheceu Sócrates e dele privou dos ensinos com os demais cidadãos que apreciavam a arte filosófica do mestre durante oito anos (DURANT, 1996, p. 39 e PASTOR & ISMAEL QUILES, 1952, p. 11) até a condenação deste à morte, pela Assembleia do povo, sob a acusação de impiedade e corrupção dos jovens. Tal acontecimento marcou determinantemente Platão de modo a convencê-lo de que a democracia, como regime político, estava fadada ao insucesso e que uma aristocracia filosófica devia assumir o comando da polis. Vale ressaltar que Atenas tinha certa tradição reacionária às inovações trazidas pela filosofia, de tal modo que o próprio Anaxágoras acima referido, precisou fugir e abandonar seu discípulo, Péricles, para que não tivesse o mesmo destino de Sócrates e, posteriormente, Aristóteles assim também procedeu. Devido aos problemas ocorridos na tentativa de interceder por Sócrates, Platão foi aconselhado

a

deixar

Atenas

e

empreendeu

uma

longa

viajem

que

durou

aproximadamente doze anos. Visitou templos, seitas, sábios, a tudo observando e se instruindo. Começou indo ao Egito e à colônia grega no Norte da África chamada Cirene; conheceu a antiga e agrícola cultura do Nilo, sua vasta sabedoria em variados aspectos. Daí foi à Magna Grécia e travou conhecimento com membros da escola pitagórica, lá permanecendo por algum tempo estudando as doutrinas. (REZENDE, 1996, p. 44-45). Em seguida foi para Siracusa, maior cidade e potência político-militar da região centro mediterrânea à época, aliada e fornecedora de trigo a Esparta e suas aliadas e, consequentemente, inimiga de Atenas e seu império. Lá estabeleceu profunda simpatia e amizade com Díon, o cunhado do tirano da cidade, Dionísio, o Velho (REZENDE, 1996, p. 45). Tal amizade viria posteriormente possibilitar as duas tentativas fracassadas de Platão para implantar suas propostas político-filosóficas em Siracusa com o filho de Dionísio e sobrinho de Díon, Dionísio II. Alguns historiadores afirmam que Platão visitou a Judéia, vindo a conhecer a tradição dos profetas, chegando até as margens do Ganges, na Índia, onde teria aprendido 12

as artes meditativa e mística orientais. (DURANT, 1996, p. 40). Platão retornou a Atenas em 387 a. C. com quarenta anos e toda a bagagem cultural e antropológica adquirida em suas viagens.

1.3. A ACADEMIA De volta a Atenas, Platão adquiriu uma propriedade junto ao jardim dedicado ao herói Academo, de onde veio o nome dado à escola fundada pelo filósofo em 387 a. C. Caracterizou-se por ser um centro de pesquisas e ensino filosófico bem como uma espécie de escola preparatória de cidadãos para o exercício político, tal qual Platão havia aprendido na Magna Grécia, com os pitagóricos. Daí depreende-se que a filosofia não era um exercício de discussão teórica e afastada dos problemas do dia a dia da cidade, mas uma forma de pensar, de discussão de ideias, teorias explicativas da natureza, da sociedade e do homem com repercussões pragmáticas no exercício da cidadania ateniense, uma vez que no mínimo, cada cidadão em sua vida deveria exercer um cargo público por duas vezes; logo, necessariamente a vivência e a aplicação do que se aprendia na Academia era necessariamente aplicada no exercício da cidadania. Vide o exemplo de Alcebíades, Aristóteles e outros que influenciaram o pensamento sócio-político, filosófico, jurídico e administrativo da época. A Academia não se limitava ao ensino da filosofia platônica especificamente, mas buscava levar a efeito investigações de caráter racional, compreendido este como um modo específico de se expressar através da linguagem, com regras e métodos dialéticos (REZENDE, 1996, p. 45-46). Depois disso a Academia passou por novas orientações de acordo com a administração que assumia, porém sua tradição chegou até o período romano e a ascensão do cristianismo como religião oficial de Roma, quando as escolas filosóficas foram expulsas e proibidas de funcionarem em todo o Império.

1.4. A CONCEPÇÃO DE NATUREZA EM PLATÃO Uma das chaves interpretativas para se chegar ao entendimento do pensamento 13

de Platão é a compreensão de sua visão de natureza. Diferentemente da nossa época, que ainda vê o mundo social humano algo distinto e à parte do mundo natural, a despeito dos esforços de implantação de uma consciência ecológica holística, os gregos tinham uma percepção especial de natureza. Em grego, natureza é dita por meio do termo phýsis e significa “natureza ou maneira de ser de uma coisa” (ISIDRO PEREIRA, 1990, p. 621). Para a cultura helênica, a percepção que se tinha de phýsis era uma integração indiferenciada e interativa do que consideravam serem as “dimensões” da realidade, a saber, o mundo natural e sensível propriamente dito, envolvendo isso o que hoje se identificaria como os grupos dos minerais, dos animais e dos vegetais, compostos pelo conjunto proporcional de substâncias que acreditavam estruturar o preenchimento de suas formas naturais, a saber, água, fogo, terra, ar e éter; o mundo dos homens, que basicamente se dividia em gregos e bárbaros; os primeiros organizados em polies, os segundos em tribos e como escravos de seus governos; o mundo dos deuses olímpicos, compreendido como semi tangível e/ou inteligível, dependendo da época da história cultural helênica que se esteja focando e, finalmente, o mundo dos mortos, o Hades, região para onde iriam indistintamente as almas dos homens após a morte e lá manteriam uma existência semelhante a que tinham enquanto vivos, junto aos seus familiares. Platão, como grego ateniense do século IV a. C., não podia furtar-se ao ideário comum de seu povo e de sua cidade, uma das mais tradicionais no que respeita ao zelo religioso cívico e quanto às superstições atreladas a uma verdadeira arte divinatória e mágica, ainda existente à época e de ampla utilização. A visão que Platão tinha de natureza, partia do lugar comum de sua cultura, isto é, a concepção complementar, interativa e circular das dimensões naturais. No entanto, sua concepção se distingue da tradicional, por se fundamentar numa perspectiva filosófica decorrente da tentativa de explicação racional, que tinha como base as novidades linguísticas oriundas dos estudos gramaticais levados a efeito pelos sofistas e dos novos hábitos decorrentes do uso da escrita. Em seu livro intitulado “Fédon” (PLATÃO, s/d, p. 84), em um diálogo travado 14

com dois de seus discípulos, a saber, Símias e Cebes, faz com que Sócrates demonstre como chegou por meio de suas pesquisas filosóficas de juventude, a descobrir um novo modo de perceber a natureza. Nessa obra, Sócrates diz que desde a juventude travou conhecimento com as obras filosóficas jônias e, embebeu-se do pensamento de Heráclito e de Anaxágoras que assinalavam a possibilidade de explicação sobre a estrutura do mundo, no entanto, informa Sócrates na referida obra, nenhum deles foi capaz de lhe saciar o interesse, pois diziam que a carne e os ossos eram ampliados através da alimentação, fazendo-se, assim, o crescimento. O que fez com que Sócrates se desiludisse com a filosofia física. Através de um novo método que Sócrates descobriu desenveram-se investigações mais seguras que as possibilitadas pelos filósofos físicos. Tal método se diferenciava do utilizado por eles, na medida em que a busca da verdade natural fundava-se no que Platão chamou de “Ideia” e não em um princípio natural, uma das maneiras de manifestação da matéria, como era conhecida até então (terra, água, fogo, ar ou éter). Dessa maneira, a percepção que Platão defendia era basicamente a de uma bipolarização básica, a saber, o sensível e o inteligível, tendo o primeiro seu fundamento e razão de “ser” no segundo, de maneira complementar.

1.5. DIALÉTICA E DIÁLOGO Platão, no diálogo “Fédon”, defende a importância de manter o que é mais precioso relativamente aos conhecimentos filosóficos no modo oral do que no escrito, afirmando ainda que o filósofo verdadeiro se utiliza do escrito apenas como recurso mnemônico, se é um filósofo sério (REALE, 2004, p. 54-66). Sócrates desenvolveu uma técnica de investigação filosófica chamada maiêutica, através da qual por meio de perguntas e respostas, o filósofo levava seu interlocutor ao reconhecimento de que possuía opiniões e não conhecimentos verdadeiros (episteme) sobre o assunto tratado. Platão absorveu a técnica do mestre e foi o primeiro a instituir o diálogo como método de expressão filosófica. O objetivo do diálogo, tanto em Sócrates como em Platão, visa o “despertamento” 15

do interlocutor/leitor para a consciência de sua ignorância (REZENDE, 1996, p. 47). Para Sócrates, filho de parteira e de um escultor, e que se dizia “parteiro de almas”, chamava este processo de “maiêutica”. Era uma ação prevista para sequestrar o interlocutor à ignorância de sua pretensa sabedoria para uma experiência de conhecimento que era emocionalmente libertadora. Platão, na medida em que se apropriou da maiêutica como forma de acessar gradativamente a verdade por meio da dialética e assim acessar as Ideias, desenvolveu o diálogo como modo discursivo de envolver não apenas os frequentadores da Academia, mas seus concidadãos no processo pedagógico que planejou para depuração do Estado. O diálogo é a forma por excelência na qual a filosofia platônica é veiculada e, graças ao senso estético de Platão, mesmo vertidos nas mais variadas línguas, eles mantêm um impressionante misto de beleza e profundidade filosófica jamais comparável na história do pensamento ocidental.

1.6. AS OBRAS DE PLATÃO É o único autor da Antiguidade de que se possui a quase totalidade de suas obras. Durante todo o século XIX houve uma acirrada discussão entre especialistas para determinarem os critérios de autenticidade a serem aplicados às obras platônicas, pois se desconfiava que algumas fossem de seus discípulos ou de outros autores, de um período posterior ao de Platão. Para não estacar numa discussão que não é pertinente à proposta deste capítulo, porém, sem desdenhar da questão, não se pode deixar de informar algo a respeito. Decidiu-se apresentar a relação das obras atribuídas a Platão por épocas e por ordem cronológica, baseado na catalogação feita por Íñigo (1981, p. 51-52) e por Marcondes (1998, p. 54-55). Os chamados “diálogos da juventude” foram escritos entre os anos 393-389 a. C. e são: “Apologia de Sócrates”, “Íon”, “Críton”, “Protágoras”, “Laquês”, “Trasímaco”, “Lisis”, “Cármides” e “Eutífron”, “Hípias Menor”, “República” (livro I) e “Hípias Maior”. Os chamados “diálogos da época de transição” foram escritos entre os anos de 16

388-385 a. C. e são: “Górgias”, “Mênon”, “Eutidemo”, “Crátilo”, “Menéxeno”, “Banquete”, “Fédon” e “A República” (Sobre a Justiça). Os ditos “diálogos da maturidade” foram escritos entre os anos de 385-370 a. C. e são: “Banquete”, “Fédon”, “República” e “Fedro”. Finalmente, os chamados “diálogos da velhice”, escritos entre os anos de 369-347 a. C., são: “Teeteto”, “Parmênides”, “Sofista”, “Político”, “Filebo”, “Timeu”, “Crítias”, “Leis” e “Epínomis”, “Alcebíades I e II”, “Hiparco”, “Anterestai”, “Teages”, “Clítofon”, “Mino” e “O Filósofo”, considerados os últimos oito, de autenticidade discutível. A obra de Platão durante algum tempo foi interpretada como sendo um retrato fiel do pensamento de Sócrates, uma vez que este nada escreveu. Mas os pesquisadores, em especial no século XIX, logo concluíram que os que mais se aproximam do pensamento original de Sócrates são os chamados “diálogos da juventude”, que defendem, em geral, a memória de Sócrates, abordam temas morais e são considerados “aporéticos”, isto é, não são conclusivos (REZENDE, 1996, p. 47). Os diálogos de transição assim são denominados, pois versam sobre os mesmos temas dos da juventude, porém assinalam certa tomada de posição de Platão no que se refere aos fundamentos de sua filosofia. Nos diálogos da maturidade o pensamento de Platão já está em franco desenvolvimento e diferenciação do de Sócrates. É nestes que se apresenta a característica de certa “reformulação” de alguns aspectos da doutrina, dando a impressão, em alguns casos, de verdadeira ruptura e novo direcionamento, em especial no que diz respeito à autocrítica que Platão põe em relação à famosa teoria das Ideias. Fora os diálogos, Platão ainda deixou cartas trocadas com discípulos, em especial, com seus contatos em Siracusa (Sicília), onde tentou por duas vezes implantar sua proposta filosófica de governo. A respeito de que temas Platão escreve? Seus diálogos falam sobre problemas de sua época, mas que se interconectam profundamente aos hodiernos, uma vez que herdeiros diretos da tradição epistemológicapolítica grega, o Ocidente, com as adaptações oriundas das civilizações romana e cristã, 17

vê-se vinculado ao filósofo que investigava sobre a excelência, sobre os conceitos, questões éticas, sobre Sócrates e o pensamento deste, o amor, as relações familiares, questões políticas pertinentes aos regimes existentes em sua época, temas religiosos como a imortalidade da alma e outros. Num breve comentário, se referirá aqui às doutrinas não-escritas de Platão, referenciadas pela escola de história da filosofia de Tübingen-Milão, que é adotada como referencial teórico e um dos instrumentos metodológicos de aproximação ao tema, para contextualizar as relações psyché-sôma (REALE, 2004). A cultura grega à época de Platão ainda adotava a oralidade em detrimento da escrita como prática usual e poucos se dedicavam à aprendizagem desta, de maneira que seu ensino era relegado a particulares e não a um compromisso estatal, como é visto hoje. Platão não fugiu a seu contexto. A bem da verdade o filósofo expressou em vários pontos de sua obra escrita a sua opinião sobre a arte da escrita como desfavorável e como instrumento não digno de registrar o que considerava ser o mais importante em seus ensinos, como é visto, por exemplo, no “Fedro”: SÓCRATES: Quando chegaram à escrita, disse Thoth: “Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria”. Respondeu Tamuz: “Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da sua utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmitistes aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios”. SÓCRATES: O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Também as figuras pintadas tem a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos. Falam das coisas como se as conhecessem, mas quando alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre a mesma coisa. Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, não só entre os conhecedores mas também entre os que o não entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve. Quando é desprezado ou injustamente censurado, necessita do auxílio do pai, pois não é capaz de defender-

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se nem de se proteger por si. (s/ d, p. 178-179).

Por que então ele escreveu os diálogos? Pelo que consta na historiografia de seu pensamento e, em especial, na obra de Reale (2004), “Para Uma Nova Interpretação de Platão”, os diálogos eram obras destinadas à divulgação doutrinária externa, isto é, o que de fato não era tão relevante e especial, mas que servia como chamariz para que o público soubesse os elementos essenciais da filosofia platônica, trabalhando, por assim dizer, com o que era habitualmente sabido, haja vista a imensa quantidade de referências a elementos do cotidiano ateniense feita ao longo dos diálogos. Os ensinos não-escritos eram destinados apenas aos membros da Academia, considerados aptos, através de avaliação prévia de disposições filosóficas e era a parte mais importante do ensino platônico, pois correspondia ao que o mestre considerava ser o nexo explicativo de tudo o que sua divulgação externa ventilava, isto é, os diálogos em si. Durante muito tempo os ensinos não-escritos foram desqualificados e sumariamente ignorados pelos especialistas e apenas no século XX, em especial, através dos trabalhos de Krämer e Gaiser na Alemanha e, posteriormente, Reale na Itália, é trazida a questão para a discussão pública, fundamentada nas referências de Platão em seus diálogos, dos discípulos diretos da Academia, da tradição acadêmica posterior e dos doxógrafos da Antiguidade. Segundo Reale (2004), Krämer e Gaiser puderam apresentar com profundidade e desenvolver um novo paradigma interpretativo que desta maneira indicou saídas sólidas para as aporias que o paradigma interpretativo tradicional, fundado nos trabalhos de Schleiermacher, no século XIX, não conseguia esclarecer. Nesta medida, no que se refere às obras de Platão, deve-se considerar o conjunto dos diálogos, as cartas e os ensinos não-escritos coligidos junto às referência supracitadas a respeito do assunto, como importante ferramenta interpretativa e complementar à compreensão dos ensinos escritos.

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1.7. CRÍTICA DO CONHECIMENTO SENSÍVEL Pelo apresentado até o momento, dado que Platão fundamenta sua teoria do conhecimento nas Ideias existentes no chamado “mundo inteligível” vê-se, no autor, uma profunda crítica aos conhecimentos oriundos das sensações. Uma vez que o conhecimento sensível captado por meio dos órgãos do corpo é ilusório, tudo o que se pode conseguir através dos sentidos são imaginações fundadas em opiniões, nunca conhecimentos verdadeiros e racionais como é apresentado pelo autor em seu diálogo “Sofista”: ESTRANGEIRO: - Sabemos, além disso, que há, no discurso, o seguinte... TEETETO: - O quê? ESTRANGEIRO: - Afirmação e negação. TEETETO: - Sim, sabemos. ESTRANGEIRO: - Quando, pois, isto se dá na alma, em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra para designá-lo além de opinião? TEETETO: - Que outra palavra haveria? ESTRANGEIRO: - Quando, ao contrário, ela se apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio da sensação, este estado de espírito poderá ser corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda outra palavra? TEETETO: - Nenhuma outra. ESTRANGEIRO: - Desde que há, como vimos, discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado de espírito que designamos por imaginação, que é a combinação de sensação e opinião, é inevitável que pelo seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam, algumas vezes, falsas. (PLATÃO, s/d, p. 158).

No entanto, faz-se necessário extremo cuidado metodológico para se evitar excessos interpretativos nesta crítica, visto que em outras obras Platão não só parte do sensível como elemento de iniciação a seu método gnosiológico, como reconhece em diversos pontos de sua obra, a importância da inter-relação harmônica entre o sensível e o inteligível.

1.8. A DOUTRINA DAS IDEIAS A doutrina das Ideias surge como elemento de diferenciação gnosiológica na Antiguidade, representando o deslocamento do centro de atenção das pesquisas físicas pré-socráticas, estabelecidas em torno de elementos materiais como a água, ar, fogo para a

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dimensão gnosiológica do inteligível, isto é, daquilo que diz respeito aos conteúdos da mente que são apreendidos pela inteligência. A percepção do inteligível como dimensão existencial e a intuição de Platão quanto à existência das Ideias, descrita no “Fédon” (PLATÃO, s/d, p. 84), representa uma aquisição gnosiológica qualitativa e representativa de uma nova percepção do real e seus critérios de verdade, através dos quais os helênicos saíram de uma estrutura gnosiológica ancestral, a saber, a conceptibilidade, e sob a influência da sofística e do atomismo (POPPER, 2002), que marcara definitivamente a história do pensamento ocidental, abandonaram paulatinamente o tradicional critério de conhecimento adotado por eles até então, e passaram ao novo, a saber, o princípio da cognoscibilidade. (MONDOLFO, 1970, p. 97-120). Quais são as características das Ideias em Platão? Inteligibilidade, isto é, as Ideias são objetos de conhecimento intelectual, apenas apreensíveis através da inteligência e, por conseguinte, não sensíveis; incorporeidade, no sentido de que carecem de definições espaciais rigidamente estabelecidas no delineamento de seu contorno morfológico; existência real, isto é, não estão submetidas às transformações do tempo e à multiplicidade de particularidades, sendo sempre idênticas a si mesmas. Finalmente, a unidade, isto é, as Ideias são os paradigmas sistêmicos de um conjunto de representações, por participação, na multiplicidade sensível (REALE, 2004, p. 122). Logo, por exemplo, todo cão existente sensivelmente na diversidade das raças e particularidade individuais tem sua essência, seu “ser” verdadeiro no mundo das Ideias, isto é, na Ideia de cão que garantiria e manteria o “ser” e realidade de todos os sujeitos sensíveis (não se utilizando aqui o termo “indivíduos” que melhor expressaria a ideia, por ser uma noção desconhecida à época). Assim todo o ente sensível nada mais seria do que uma cópia imperfeita, mutável e inconstante do mundo inteligível, destinada a degenerarse sob o influxo do tempo. 1.9. A PRESENÇA DE PLATÃO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO O alcance e profundidade do pensamento platônico no ocidente são

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extraordinários. Raros são os filósofos que se furtaram a se referirem a ele direta ou indiretamente. Vê-se sua influência atuar, desde a Antiguidade, a partir de seu mais famoso discípulo, Aristóteles. Os chamados médio-platônicos tentaram refutar as críticas de Aristóteles a Platão. Os neoplatônicos aprofundaram e desenvolveram a teoria das Ideias; a patrística e, posteriormente, a escolástica reafirmou aspectos de sua doutrina com as devidas adaptações ao pensamento cristão. Os racionalistas e empiristas, na Idade Moderna, procederam à identificação das Ideias de Platão aos conceitos de Sócrates. Kant se fundamentou na teoria das Ideias para criar sua maneira de se referir à razão e a função que exercia. Hegel se inspirou nas Ideias para formatar sua dialética da história. Os neokantianos da Escola de Marburgo criaram e desenvolveram um método estrutural do pensamento. Os positivistas reduziram fortemente a teoria das Ideias e procuraram extirpar do pensamento platônico suas características animistas (REALE, 2004, p. 117-118). A filosofia contemporânea desdobra-se em despotencializar a influência platônica em seus diversos aspectos e extensões, identificando-a como a origem do que chama de “praga metafísica” cultural e nascedouro do dualismo alma-corpo, que caracteriza diversos aspectos das relações que tem o homem para com o mundo, o conhecimento e outros aspectos da percepção de mundo contemporânea.

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II. A ALMA E SUAS ESTRUTURAS EM PLATÃO

2.1. A ALMA A proposta deste capítulo é compreender como Platão vivenciava o que chamava “alma” (psyché) e suas relações com o corpo. A alma é considerada por Platão um “ser”. Na obra “Sofista”, a alma é um ser que é real por trazer em si a capacidade de sofrer e causar ações sobre qualquer coisa ou de qualquer coisa, caracterizando-se especificamente como uma espécie de poder motor: (Sofista) ESTRANGEIRO: – A seguinte: o que naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir sobre não importa o que, ou para sofrer a ação, por menor que seja, do agente mais insignificante, e não por uma única vez, é ser real; pois afirmo, como definição capaz de definir os seres, que eles não são senão um poder. (PLATÃO, s/d, p. 139-140)

Ou seja, nesse fragmento de texto Platão assinala que a alma é um poder real capaz de ser afetado por qualquer tipo de estímulo, por menor que seja e que na medida em que é capaz de sofrer estímulos é capaz de agir sobre qualquer coisa enquanto poder inerente a sua natureza. Nesse sentido, a alma em Platão, se identifica a maneira pela qual a tradição homérica e pré-socrática a classifica, isto é, um poder motor que atua na natureza. A alma é conduzida pelos princípios do desejo inato do prazer e pela opinião que deseja o que é melhor: (Fedro) SÓCRATES: - Devemos, além disso, examinar o seguinte: em cada um de nós governam e conduzem, e nós os seguimos para onde nos levam: um é o desejo inato do prazer, outro a opinião que pretende obter o que é melhor. (PLATÃO, s/d, p. 142)

Ora, Platão adentra o universo anímico humano e lhe investiga o moto, indicando o “desejo inato do prazer” e a “opinião que pretende obter o que é melhor” enquanto agentes atuantes no direcionamento anímico. Sendo assim, a alma está naturalmente submetida às influências do desejo, que

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segundo o autor é inato e à opinião, isto é, uma visão privada do que seria tal ou qual coisa, sendo esta, segundo ele, sempre direcionada para o que viria a ser o melhor para a alma. Portanto, desejo de prazer ou poderia se dizer “de satisfação” e a opinião, enquanto poder de escolha pelo que viria a ser o melhor para a alma são os agentes motores de seu funcionamento elementar. A característica principal da alma é a imortalidade. Possuiria também a capacidade de mover-se sem sair de si e de mover as demais coisas com as quais venha a manter contato. (Fedro) SÓCRATES: - Partiremos do seguinte princípio: toda alma é imortal, porque aquilo que se move a si mesma é imortal. O que a si mesmo se move, nunca saindo de si, jamais acabará de mover-se, e é, para as demais coisas que se movem, fonte e início de movimento. Concluindo, pois, o princípio do movimento é o que a si mesmo se move. Não pode desaparecer nem formar-se, do contrário o universo, todas as gerações parariam e nunca mais poderiam ser movidos. (PLATÃO, s/d, p. 151)

Nesse passo percebe-se a vinculação de Platão a sua cultura, isto é, todo helênico acreditava na existência da alma enquanto um dos elementos da phýsis e enquanto tal, provida de poder de mover as coisas e a si mesmo sem deslocar-se de si, a alma era considerada pelos gregos a força motora natural essencial, em especial a alma humana, que por meio da metempsicose transmigraria em todas as dimensões existenciais do cosmo, em busca da ruptura dos ciclos das reencarnações (PROVETTI JR, 2011). Nesse particular também, a alma em Platão exerce importante tarefa, pois a questão do movimento é um problema que está em discussão na Antiguidade, em especial em pensadores como Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia e Demócrito de Abdera, conforme se vê em Popper (2002) chegando até o período contemporâneo nas plagas da física. O que Platão quer dizer então, quando se remete a alma enquanto em princípio do movimento? Para Heráclito, o movimento é a característica elementar da phýsis e enquanto tal, tudo nela seria elaborado de fogo, nesse sentido não compreendido como a

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chama que é decorrente da combustão de algum comburente, mas enquanto uma das manifestações simbólicas do que hoje se denomina “matéria”. O fogo enquanto símbolo material sugere que todas as coisas são um processo, isto é, são transitórios, em constante modificação, como alega o próprio Heráclito (1994, p. 187-221), estão em fluxo; sendo, portanto, a realidade uma eterna transformação. Para Parmênides de Eleia (1994, p. 249-274), o mundo que é produto das experiências e opiniões dos homens é um mundo ilusório, produto de sombra e luz (POPPER, 2002) decorrente da ilusão que os mortais se entregam com grande satisfação, acreditando ser real o que lhe advém dos sentidos e que apenas através do uso do logos (da razão) pode-se trilhar o Caminho da Verdade e furtar-se à Via das Opiniões, que em si são muito enganadoras, levando os homens a uma falsa compreensão da realidade. Quando Platão propõe que a alma é um ser existente, que em si é movida pelo desejo de prazer (ou satisfação) e pela opinião que pretende obter o que é o melhor e, ato contínuo, apresenta a alma enquanto elemento natural responsável pelo movimento de tudo o de per si não pode mover-se ele procede a uma grande síntese das principais teses sobre o movimento, e por conseguinte, o problema da mudança em voga em sua época. Perceba o leitor que a síntese levada a efeito por Platão não apenas dá conta do movimento sensível, inerente ao mundo a partir da alma, como funda-se nesta enquanto elemento-função da própria alma a movê-la tanto quanto ela é capaz e moveria, segundo Platão (s/ d, p. 151). Ora, o que significa que a alma move a si mesma? Quer dizer que em conformidade com a visão de kosmo e de phýsis helênica, a alma humana, que é essencialmente automotiva, por sua natureza, coerentemente à phýsis faz a natureza ser o que é, da maneira pela qual se dá, concordando pois, com as teses de Heráclito e de Parmênides no que se refere ao essencial, isto é, na superação da contradição teórica desses dois pensadores e apresentando Platão uma síntese que supera a dicotomia faz com que a alma enquanto princípio cósmico e por isso, físico, apresente-se enquanto semiotizadora signomotora do real.

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Platão afirma que há uma supremacia da alma dentre os demais entes no que respeita à sua participação no divino. E nesse sentido cabe uma menção enquanto nota antropológica inerente à cultura helênica. Para os gregos o cosmos e a phýsis são divinos, pois homens e deuses são deuses, isto é, o primeiro enquanto alma desencarnada (morto) é uma divindade epictônia (subterrânea), responsável por cuidar da família viva durante cinco gerações até a próxima reencarnação (VERNANT, 1993; PROVETTI JR, 2011; COULANGES, 1998), os homens e deuses teriam sido engendrados na mesma época, porém de matérias parcialmente distintas (SISSA & DETIENNE, 1990; PROVETTI JR, 2011; BARKER, 1993). Logo, dai se justifica que nas religiões gregas os homens não se ajoelhavam diante de seus deuses, pois em última análise, segundo as doutrinas dos mistérios e órficas, as almas que cumprissem o seu papel na vida e atingissem a arete (excelência) romperiam os ciclos das reencarnações sucessivas e se tornariam, no Hades, semelhantes aos deuses e, portanto, não mais nasceriam, vivendo na chamada “ilha dos bem-aventurados”. Nessa perspectiva de cosmos e phýsis, a alma, para Platão, possui uma Ideia no chamado “mundo das Ideias” e, nesta medida, apresenta as mesmas características que as Ideias, ou seja, são inteligíveis e incorpóreas. Dessa maneira, as almas e as Ideias não são “encerradas em limites determinados mais ou menos rígidos”, como nos informa Reale (2004, p. 167-180), a respeito da percepção que os antigos tinham do conceito “incorpóreo”. Além disso, Platão reforça a concepção de que a alma é um fenômeno natural, como se vê no “Fedro” (s/ d, p. 152): “SÓCRATES: - A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea.” E como tal, alma e Idéias são elementos naturais da phýsis platônica com

propriedades constitutivas semelhantes. A alma seria guiada pela inteligência, que em grego pode ser expressa com os termos noûs (), sýnesis ) e diánoia (como é visto em Fedro (PLATÃO, s/d, p. 153): “SÓCRATES: - A realidade sem forma, sem cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da alma.” Platão utiliza-se do segundo e do

terceiro termos em seus diálogos para expressar o que nós entendemos por alma-mente,

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sendo que, em geral, noûs é empregado para designar a parte superior da alma, responsável pelo governo e gestão do complexo trino da alma, isto é, pneyma (alma apetitiva), o thýmos (alma irascível) e o noûs, enquanto vinculada a um corpo sensível. A alma apresentaria carência de certo tipo de alimento para desenvolver-se, segundo Platão, e este seria obtido através de uma procissão que ocorreria no que o autor chama de céu da verdade, onde a alma seguiria um deus ao qual se afeiçoaria e se dedicaria à atividade de contemplação das Ideias. Vale ressaltar que a contemplação é uma ação ativa por parte da alma. Devido a sua própria estrutura, a alma não conseguiria contemplar o que Platão chama de Ser Absoluto, sendo necessariamente condenada a desconhecer e, por conseguinte, condenada à simples opinião e nunca acessaria a Verdade propriamente dita, conforme vemos no Fedro, (PLATÃO, s/d, p. 153) SÓCRATES: - Todas, após esforços inúteis, na impossibilidade de se elevarem até a contemplação do Ser Absoluto, caem e a sua queda as condena à simples Opinião.

Embora afligida pelo insucesso na contemplação do Ser Absoluto, a alma seria atraída fatalmente para o chamado céu da verdade devido à sua carência alimentar. Esse alimento, que seria o conhecimento verdadeiro das Ideias, geraria na alma o desenvolvimento e robustecimento de suas asas, que na simbologia platônica representariam a sabedoria e a inteligência conforme o ideal de sophrosyné, isto é, justa medida. Permitiria à alma o equilíbrio necessário para alçar um voo mais seguro na procissão junto aos deuses e, consequentemente, à libertação dos ciclos da palingenesia. Conforme o Fedro, a alma seria perfectível, isto é, após sua criação pelo deus através da contemplação das Ideias e das experiências como alma encarnada em um corpo humano, a alma se robusteceria, se desenvolveria, apropriando-se cada vez mais dos recursos que sua memória lhe proporcionaria e, mais e mais ambientada às realidades verdadeiras, utilizar-se-ia dela de maneira a garantir-lhe a fuga dos ciclos palingenésicos: (Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve se exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. [...] É somente fazendo bom uso dessas recordações que o homem se torna verdadeiramente perfeito, podendo receber em grau ótimo as consagrações dos Mistérios. (PLATÃO, s/d, p. 154)

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Para o autor a alma seria passível de vincular-se a um corpo de modo que justapondo-se a ele, à maneira de uma ostra à sua concha, vitalizá-lo-ia comunicando sua capacidade de movimento, conforme vemos no Fedro SÓCRATES: - Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha .

(PLATÃO, s/d, p. 155). A alma seria considerada como uma réplica miniaturizada do kosmos (universo compreendido como phýsis, isto é, o mundo dos homens, dos deuses, dos mortos e o mundo natural, compreendido este por animais, plantas e minerais). Para Platão e seus contemporâneos, de maneira geral, a perfeita integração e interação entre os elementos da natureza permitia o estabelecimento de analogias comportamentais entre seus elementos. A alma, por meio de sua vinculação aos corpos humanos, se utilizaria de uma linguagem. Para Platão (s/d, p. 175) (Fedro) SÓCRATES: - Visto que a força da eloquência consiste na capacidade de guiar almas, aquele que deseja tornar-se orador deve necessariamente saber quantas formas existem na alma.

Ora, pelo domínio das técnicas pertinentes aos fenômenos de linguagem que a língua grega proporcionava, a alma possuiria a propriedade de guiar outras almas tanto quanto a si mesma. O acesso da alma ao conhecimento estaria diretamente relacionado ao uso de sua memória, acumulada ao longo de suas experiências, seja no Hades seja no mundo dos vivos, além de manter patente a ela sua origem divina e seu destino que é a perfeição, a excelência, a arete (excelência no que quer que o indivíduo se dedique). Um aspecto importante para a pesquisa sobre a alma em Platão é que para ele, a alma seria construída por Deus de maneira a ser capaz de atingir perfeita simetria com os corpos como é visto no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 90): Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do corpo e o da Alma, harmonizou-os. Logo, a vinculação da alma ao corpo estaria

numa relação de pura simetria, não havendo possibilidade de antagonismos substanciais

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entre eles. Tal simetria se justificaria por sua composição interna, que Platão afirma ser semelhante à composição da Alma do Todo. O que é a Alma do Todo ou do Mundo e qual é seu papel na phýsis platônica? Que relação mantém coma a alma humana? A Alma do Todo foi a primeira criação do Deus 1 para que pudesse ordenar e dar beleza a tudo o que viesse a conter posteriormente, exercendo então, o papel hegemônico na natureza platônica em relação ao corpo, conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 86): a Alma, de que começamos a falar depois do corpo, Deus não formou seu mecanismo numa data mais recente que a do corpo. Compondo assim, não toleraria que o termo antigo fosse submetido ao mais novo. [...] Mas Deus formou a Alma antes do Corpo: mais antiga pela idade e pela virtude, para comandar, e o corpo para obedecer.

A constituição da Alma do Todo foi proporcionalmente engendrara pelo Deus, de modo a conter três substâncias elementares, a saber, uma indivisível, uma divisível e uma terceira que seria o produto das duas anteriores, como vemos no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 85-86): Eis que de que elementos e de que maneira: da substância indivisível, que se comporta sempre de maneira invariável, e da substância divisível, que está nos corpos, entre os dois, misturando-os, uma terceira espécie de substância intermediária, compreendendo a natureza do Mesmo e a do Outro. E assim formou-a entre o elemento indivisível dessas duas realidades e a substância divisível dos corpos. Depois tomou essas três substâncias e combinou-as em uma única forma, harmonizando à força com o Mesmo a substância do Outro, que se deixava a custo misturar. Misturou as duas primeiras com a terceira, e das três fez uma só.

Do que Platão nos apresenta, deduz-se que a Alma do Mundo é um composto Na edição que utilizei, a saber: PLATÃO (s/ d) . Timeu e Crítias ou a Atlântida . s/ ed. . São Paulo: Hemus. O autor se utiliza do termo “Deus” no sentido daquele que promove por meio de sua vontade a ação criadora que concerne à criação (confecção) da Alma e do Corpo do Mundo, enquanto usa o termo “deus(es)” para expressar aqueles que operam a criação (confecção) da alma e corpo humanos tendo como base as substâncias do Múltiplo e do misto harmônico de Uno e Múltiplo. Com base nos estudos desenvolvidos, não sei informar se esse Deus teria alguma relação com o Deus judaico, o que poderia reforçar a tese de Will Durant (1996, p. 40) quanto à possibilidade de Platão ter travado conhecimentos com a religião dos profetas enquanto viajou. O que posso afirmar é que o Deus que Platão se refere age como um demiurgo (ISIDRO PEREIRA, 1990, p. 126), isto é, aquele que faz um trabalho manual, que forma, que produz, cria, na manipulação das substâncias dos Primeiros Princípios e constituição do kosmos, além de produzir as substâncias elementares para que os deuses produzissem as almas e corpos humanos. 1

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substancial e interativo do que é divisível, do indivisível e de um terceiro elemento intermediário que ele não conceitua especificamente, mas afirma conter as propriedades das duas primeiras substâncias harmoniosamente misturadas e que para ele formam realidades naturais, como declara no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 91): A Alma é então formada da natureza do Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta da mistura dessas três realidades.

Em seguida à construção da Alma do Todo o Deus constrói o Corpo do Todo, que virá a constituir o kosmos, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 86): Mas a Alma, de que começamos a falar depois do corpo, Deus não formou seu mecanismo numa data mais recente que a do corpo

e nessa medida, a Alma do Mundo é instalada no centro deste Corpo e estendida através dele para além de seus limites de maneira a envolvê-lo completamente e constituída de movimento intrínseco, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 85): Quanto à Alma, tendo-a estabelecido no meio do corpo do Todo, estendeu-a através de todo o corpo, até mesmo além dele, envolvendo-o; círculo movimentado numa rotação.

Sendo a Alma esse misto substancial equilibrado, isto é, o Outro, o Mesmo e a terceira substância, infere-se que a Alma guarde elementos de contato entre as duas naturezas em questão, ou seja, a permanente (Mesmo) e a impermanente (Outro), intermediadas pela terceira substância. Nesta medida, é possível à Alma do Todo a interiorização de tudo o que é corporal, isto é, tudo o que é passível de ser identificado como coisas encerradas em limites determinados mais ou menos rígidos como nos informa Reale (2004, p. 167-180) a respeito de como os antigos compreendiam o conceito de corpóreo. Por conseguinte, quando isso ocorre, a Alma do Mundo é perfeitamente harmonizada ao Corpo do Todo como vemos no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 90-91): Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do Corpo e o da Alma, harmonizou-os.

Que razões levaram o Deus a acoplar a Alma ao Corpo? Pelo que narra Platão no Timeu (s/ d, p. 80): Tendo então refletido, percebeu que, do que é visível por sua natureza, nunca surgiria um Todo desprovido de inteligência que fosse mais belo que um Todo

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inteligente. E por outra, que o intelecto só pode nascer unido à Alma. Em virtude dessas reflexões, após ter colocado o Intelecto na Alma, a Alma no Corpo, formou o Cosmos, para dele executar uma obra que essencialmente fosse a mais bela e melhor. Assim pois, nos termos de um arrazoado provável, deve-se dizer que o Cosmos, que é verdadeiramente um ser vivo provido de Alma e Intelecto, é assim gerado pela ação da Providência de um Deus.

Considerando que a Alma do Mundo tem por finalidade o exposto acima, a composição de sua natureza substancial se justifica, uma vez que foi projetada para dar inteligência e beleza a um Todo que supomos material já que não havia corpos, e à Alma caberia a função de prover o Cosmos de inteligência e beleza. No entanto, ainda cabe o questionamento: como se processaria exatamente a concessão de inteligência e beleza da Alma do Todo ao Corpo na constituição do Cosmos? Platão esclarece no Timeu (s/ d, p. 8283) conforme segue: Ora, evidentemente, é necessário que o que nasce seja corporal, e, portanto, visível e tangível. Nenhum ser sensível poderia nascer como tal se estivesse provado de fogo; nem sem algum sólido, e não existe sólido sem terra. Daí vem que, Deus, começando a construção do Corpo do Cosmos, principiou para construí-lo tomando fogo e terra. Mas é impossível que dois termos formem sós uma composição completa sem um terceiro. Pois é preciso que no meio deles haja alguma ligação que os aproxime. Ora, de todas as ligações, a mais harmoniosa é a que dá a si mesma e aos termos que ela une a mais completa das uniões. E aquela é a progressão que naturalmente a realiza da maneira mais harmoniosa. Pois quando de três números ou áreas ou sólidos quaisquer, o do meio é tal que o primeiro é em relação a si mesmo, o que é em relação ao último, e inversamente, o que o último é em relação ao médio, o médio sê-lo-á quanto ao primeiro e do último, o último e o primeiro, o lugar médio; temos necessariamente que todos os termos tem a mesma função, que todos desempenham uns em relação aos outros o mesmo papel, e neste caso, todos formam uma unidade perfeita. Se então o Corpo do Todo devesse ter sido um plano sem espessura, uma só mediação bastaria para atribuir-se a unidade e dá-la aos termos que a acompanham. Mas, com efeito, convinha que esse corpo fosse sólido, e, para harmonizar os sólidos, uma só mediação nunca bastaria: é necessário sempre duas. Assim Deus colocou o ar e a água no meio, entre o fogo e a terra, e dispôs esses elementos uns relacionados aos outros, tanto quanto seria possível numa mesma relação, de tal modo que o fogo é para o ar, o ar foi para a água, e o que o ar é para a água, a água o foi para a terra. Por esses procedimentos e com a ajuda desses corpos assim definidos em número de quatro, foi engendrado o Corpo do Cosmos. Por sua proporção, e por essas condições, é tão completo que, reunindo num único todo, pôde nascer indissolúvel por qualquer outra potência que não a que o uniu. [...] E assim o compôs, antes para que o todo fosse tanto quanto possível uma Alma perfeita, formada de partes perfeitas e, para que fosse única, nada restando de que pudesse nascer outra alma da mesma essência, e, enfim, para que fosse isento de velhice e doença. Pois ele bem sabia que num corpo composto, as substâncias quentes e frias e, de maneira geral, todas as que possuem propriedades

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energéticas, quando rodeiam esse composto por fora e o fazem demasiadamente, o dissolvem, aí introduzindo as doenças e a velhice, fazendo-o assim perecer. Eis por que causas e segundo que lógica Deus conformou esse Todo único, com o auxílio absoluto de todos os Todos, tornando-o perfeito e inacessível à velhice e às doenças.

É muito interessante observar como Platão descreve no Timeu (s/ d, p. 91-92), a dinâmica cognitiva da Alma do Mundo em relação aos dados perceptivos e inteligíveis numa verdadeira teoria da relação Alma-Corpo e que vale a pena ser reproduzida textualmente para melhor apreciação do leitor: A Alma é então formada da natureza do Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta da mistura dessas três realidades, move-se por si só em círculo, girando sobre si mesma. E na medida que entra em contato com um objeto que possua uma substância divisível ou com um objeto cuja substância seja indivisível, ela proclama, movendo-se, por todo o seu ser próprio, a cuja substância ele é idêntico e da qual ele difere. Mas difere, e relativamente a que, sob que relação, de que maneira e em que circunstâncias ele se remete às coisas que devem ter em suas relações mútuas uma ou outra dessas determinações ou modalidades, bem como suas relações com coisas que se conservam sempre idênticas. Ora, quando um raciocínio veraz e imutável, relativo à natureza do Mesmo ou à do Outro, é acusado, sem ruído nem eco, dentro daquele que se move a si mesmo, esse raciocínio pode ser formulado em relação às coisas sensíveis. Então o círculo do Outro caminha diretamente e transmite à Alma inteira informações sobre o sensível, e podem assim se formar nela opiniões que são sólidas e verdadeiras. Inversamente, quando esse raciocínio se forma em relação ao que é objeto de lógica, assim que o círculo do Mesmo está animado de uma rotação favorável, e lhe revela aquele objeto, a intelecção e a ciência se produzem necessariamente. E aquilo em que nascem essas duas espécies de conhecimento, quem afirmasse ser algo que não a Alma, tudo poderia estar dizendo, menos a verdade.

Uma vez compreendido o que é a Alma do Todo, o Corpo do Mundo e o Cosmos, é importante procurar compreender a distinção entre a Alma do Mundo e a alma humana para continuarmos a investigação em torno das relações alma-corpo em Platão. Nesse sentido, vale recordar Platão, no Fedro (s/ d, p. 174): (Fedro) SÓCRATES: - E acreditas que seja possível conhecer a natureza da alma sem conhecer o universo? FEDRO: - Se dermos crédito a Hipócrates, que é um Asclepíades, nem sequer o corpo se pode conhecer sem tal método. SÓCRATES: - Pois ele tem razão, meu amigo!

Platão identifica a Alma do Todo com a alma humana, numa relação de 32

similitude, em escala diferenciada. Em que medida então são distintas as almas do Mundo e a humana? A alma humana se assemelharia à Alma do Mundo na medida em que é constituída por elementos semelhantes, porém, de maneira desproporcional, o que gera toda a diferença entre uma e outra. A alma seria constituída de substâncias com propriedades características das forças naturais que o autor chama de Outro, responsável pela indeterminação variável do grande-e-pequeno2 no real, também chamado de Díade do grande-e-pequeno, e de uma outra substância composta proporcionalmente, que o autor chama de misto do Mesmo3 (também chamado de Uno Universal, responsável pela força natural da de-terminação do real) e do Outro que proporciona à alma a capacidade de movimentar corpos, à semelhança da Alma do Todo. Logo, a alma humana para Platão é a combinação da substância do Outro adicionada ao misto substancial proporcionalmente engendrado do Outro e do Mesmo. Em outras palavras, o Outro representa a parte da natureza que equivale ao sensível e o Mesmo, o que representa o inteligível. Para Platão, em sua física, exposta no Timeu, o Outro significa a Dualidade. O Mesmo significa a Unidade. O terceiro elemento é a fusão proporcional dos dois elementos anteriores despotencializados, isto é, equilibradamente harmonizados e com suas propriedades reduzidas para gerar uma substância com características duplas e naturalmente intermediárias entre os dois princípios naturais, ou seja, uma substância que viria a garantir a comunicabilidade entre o Outro e o Mesmo e, por conseguinte, a capacidade de ceder movimento, própria à alma, como é visto abaixo: A alma é então formada pela natureza do Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta destas três realidades, move-se por si só em círculo. [...] disse essas palavras e, retornando à cratera na qual inicialmente havia misturado e fundido a Alma do Todo, aí verteu os resíduos das primeiras substâncias e as Os termos grande-e-pequeno, de-terminação, Díade e Uno Universal são utilizados por Giovanni Reale em sua obra Para Uma Nova Interpretação de Platão (2004, p. 157-166), capítulo sétimo “A ‘segunda navegação’ na etapa final: a teoria dos Princípios Supremos (Uno e Díade Indefinida) e a sua função estrutural”. Os utilizo por acreditar que descrevem da melhor maneira possível as forças cósmicas ordenadoras da phýsis platônica. 3 Como é observado nas citações do Timeu nas páginas 19-22, os termos Mesmo e Outro a meu ver correspondem ao Uno Universal e Díade respectivamente, pois são os elementos substancias de composição da Alma do Mundo e da ordenação de seu Corpo, sendo, por conseguinte, proporcionalmente presentes na alma e corpo humanos. 2

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misturou aproximadamente do mesmo modo. Todavia, não havia mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente a segunda e a terceira. Depois, tendo a tudo combinado, dividiu num número de almas igual ao dos astros. (PLATÃO, s/d, p. 91; 100-101).

Vale ressaltar que os conceitos de Outro e Mesmo se relacionam ao que Reale (2004, p. 156-166) nos informa quanto aos Princípios Supremos Últimos da phýsis platônica, a Díade e o Uno, sendo a primeira o princípio de variabilidade indefinida, isto é, do grande-epequeno, do indefinido ou infinito; e o segundo o princípio de-limitador e de-terminador do ilimitado, indeterminado, indefinido, igualizador do desigual, enfim, princípio de determinação formal que normatizariam as relações na phýsis. A alma se relacionaria com os corpos na proporção das afinidades de suas partes constitutivas, como expresso no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 91-92), no que se refere à cognição. Assim, conforme vivesse o homem no mundo dos vivos, sua alma poderia optar por levar uma vida dedicada aos prazeres sensíveis e desta maneira influiria sobre sua natureza de maneira a acentuar sua porção do Outro (Díade), e tornar-se-ia grosseira sua alma, impedindo-lhe de se alimentar convenientemente e, consequentemente, mantendo-a nos ciclos reencarnatórios. Se estivesse voltada para sua natureza divina, isto é, o Mesmo (Uno), fortaleceria a terceira substância que se aproxima dos prazeres de natureza divina, libertando-se assim, antecipadamente, das paixões vinculadas à vida encarnada, conforme Platão menciona no Fédon (s/d, p. 54): (Fédon) SÓCRATES: - E quem haveria de obter em sua maior pureza esse resultado, senão aquele que usasse no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses seres, unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem ao ouvido, e libertando-se do corpo inteiro, que perturba a alma e não deixa apreender a verdade quem, senão aquele que, utilizando-se do pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se lançasse à cata das realidades verdadeiras, também em si mesmas, por si mesmas e sem mistura?

Para Platão, a alma seria passível de conhecer a si mesma e de ter o conhecimento verdadeiro dos seres em si mesmos desde que acentuasse a sua natureza divina e através dela, por identidade substancial, o conhecimento verdadeiro se daria, conforme se vê

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abaixo: (Fédon) SÓCRATES: - Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele [o corpo] e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. (PLATÃO, s/d, p. 55)

Com base na declaração acima, Platão nos informa que a alma encarnada pode acessar o conhecimento verdadeiro sem interferência dos sentidos corporais. Isso se dá apenas na medida em que ela se afastar dos sentidos como fonte única do conhecimento e valorizar seu elemento constitutivo do Mesmo em detrimento do Outro, por identidade substancial e de propriedades entre a alma e as Ideias. Dessa maneira, não é necessário que o conhecimento se dê apenas por contemplação da Ideias, mas ocorrerá também, através de si mesma (alma), isto é, por intermédio da concentração e valorização do princípio de unidade que compõe a própria alma. Decorrente disso, é interessante notar que a alma humana, em certa medida, também possui uma ideia do chamado mundo das Ideias, fonte de onde decorrem por participação os múltiplos indivíduos existentes no mundo sensível. Através da consciência de sua natureza e de sua composição essencial a alma poderia voluntariamente buscar, através do acentuamento de sua parte divina, isto é, de sua porção essencial do Mesmo, identificar-se com os demais seres (Ideias). Platão define que a alma não sofreria necessariamente a ação da ascese do pensamento (processo segundo o qual o autor afirma que o pensamento progride de maneira escalonada, isto é, das coisas simples passa, por indução, às mais complexas, das sensíveis às abstratas), isto é, em alguma medida, a alma manteria a sua pureza substancial no sentido de não sofrer mudanças substanciais decorrentes do processo de ascese: (Fédon) SÓCRATES: - E assim esta viagem que hora me foi prescrita é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa dizer purificado. Mas a purificação não é de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada

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e por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam? (PLATÃO, s/d, p. 55-56)

Pelo que foi constatado a respeito da criação da Alma e do Corpo do Todo em relação ao Cosmos e o processo de criação da alma humana visto no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 80; 82-86; 90-92; 100-101) e Fedro (PLATÃO, s/ d, p. 174) e no Fédon (PLATÃO, s/ d, p. 55) sobre a possibilidade da alma ter acesso ao conhecimento através de si mesma, por meio da ascese do pensamento, enquanto encarnada no mundo sensível, os passos acima mencionados do Fédon corroboram a posição de Platão quanto à possibilidade da alma poder realizar relativa separação do corpo e assim alimentar-se de conhecimento verdadeiro. Obviamente a separação total e absoluta entre corpo e alma enquanto encarnada é impossível, pois, enquanto tal, a alma está vinculada ao corpo tal qual uma ostra à sua concha e, por similitude à Alma do Mundo, envolve e atravessa seu corpo de maneira a estar localizada em seu centro e por meio de todas as suas partes constitutivas. Logo, a ela seria impossível o apartar-se em definitivo, a não ser pelo fenômeno da morte. Uma vez que o pensamento é definido por Platão, no Sofista (s/ d, p. 158), como diálogo da alma consigo mesma, percebe-se claramente o estatuto que o pensamento possui para o filósofo, qual seja, o de um atributo da alma através do qual ela é capaz de isolar-se das sensações para atingir o conhecimento verdadeiro através da filosofia. Ora, se há esta diferença entre a alma e o pensamento, por conseguinte o noûs (inteligência, alma racional) seria em certo sentido, um atributo da alma tanto quanto o pensamento, logo, seria distinto dela em algum nível. Em que medida pode-se compreender tal distinção? Investigarei isso mais a fundo no item Atributos da Alma. Para Platão, a alma deve ter seus desejos pautados pela razão, porém, quando isso não ocorre, o que ele chama o prazer do bem é esmagado e a alma se dirige ao prazer que a beleza promete, guiada pelos desejos intemperantes. O ascendente que esse desejo exerce sobre a alma é irresistível e Platão o chama de Eros ou Amor, conforme é visto no Fedro (s/ d, p. 143): (Fedro) SÓCRATES: - Quando o desejo, que não é dirigido pela razão, 36

esmaga em nossa alma o prazer do bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza promete e quando se lança, com toda a força que os desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível, chama-se Eros ou Amor. No que se refere à alma encarnada, o foco de seu interesse determina a porção de sua natureza que será valorizada ao longo da vida e determinará assim, a melhor ou pior qualidade das Idéias captadas por contemplação ou por

autoconhecimento4 e,

consequentemente, segundo Platão assinala no Fedro (s/ d, p. 143), acima citado, a alma entrará numa espécie de inércia devido à opção levada a efeito pelo interesse intemperante, conduzindo-a então, ao desequilíbrio e a ações irracionais. Vale ressaltar que o problema da opção intemperante que Platão assinala em detrimento da racional é que a alma, por essa escolha, vincula-se à corporalidade do sensível e condiciona-se a manter-se no que ele chama ciclo das reencarnações pela pouca afinidade desenvolvida volitivamente para com o inteligível, que Platão chama de natureza divina da alma. Se a alma não fosse moldada através de uma educação conveniente, o elemento pior de sua natureza poderia dominá-la e causar-lhe-ia amplos transtornos. As características básicas dos referidos elementos anímicos seriam, segundo a alegoria do cocheiro e de seus cavalos: a) o melhor cavalo – amor à honestidade, sobriedade, pudor, amigo da opinião certa e dócil à palavra de comando do cocheiro; b) o pior cavalo – imprudente, soberbo, lascivo e obedeceria apenas com esforço; c) o cocheiro – é o que observa objetos amáveis e sofre com os desejos oriundos dos dois cavalos, como se vê no Fedro: (Fedro) SÓCRATES: [...] Representá-la numa imagem já é coisa que se possa fazer num discurso humano de menores proporções. A alma pode ser comparada com uma força natural e ativa que unisse um carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um cocheiro. (Fedro) SÓCRATES: O cavalo de melhor aspecto tem um corpo harmonioso e bonito; pescoço alto, focinho curvo; cor branca, olhos pretos; ama a honestidade e é dotado de sobriedade e pudor, amigo como é da opinião certa. Não deve ser batido e sim dirigido apenas pelo comando e pela palavra. O outro, o mau, é torto Por autoconhecimento não me refiro aqui ao processo de perscrutação interior que objetiva identificar possíveis falhas a serem repreendidas por mudanças de comportamento, mas o processo segundo o qual a alma em si, isto é, por meio de sua identidade substancial e qualitativa com as Ideias verdadeiras é capaz de vir a conhecê-las desde que consiga reduzir a influência dos sentidos oriundos do corpo sensível. 4

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e disforme; segue o caminho sem deliberação; com o pescoço baixo tem um focinho achatado e a sua cor é preta; seus olhos de coruja são estriados de sangue; é amigo da soberba e da lascívia; tem as orelhas cobertas de pelos. Obedece apenas, e com esforço, ao chicote e ao açoite. (PLATÃO, s/d, p. 151,152 e 158)

Pelo depreendido da análise comparativa dos textos Fedro (PLATÃO, s/ d, p. 151, 152 e 158), o da República (PLATÃO, s/ d, p. 162 e 163) e Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 105 e 149), percebi que a simbologia utilizada pelo filósofo no Fedro corresponderia a alguma espécie de matriz comportamental da alma em seu processo de relacionamento com o conhecimento, no caso, as Ideias verdadeiras a serem contempladas no chamado céu da verdade, enquanto alma desencarnada e, após a encarnação, através da contemplação ou autoconhecimento proporcionados pelo exercício filosófico. Ao que parece, conforme será visto adiante, essa matriz comportamental, compreendida pelo cavalo branco, pelo cavalo negro e pelo cocheiro, interagirá de maneira espelhada com as demais estruturas, em especial com a estrutura anímica descrita na República, a saber, o noûs, o thýmos e o pneyma, que compõem o conjunto da psyché, isto é, da alma encarnada. Outro ponto a ressaltar é a questão da procissão e de como ela se daria. Nela, cada alma seguiria o fluxo das revoluções no céu da verdade (inteligível), acompanhando um deus. Supomos que ela representaria o período de estada da alma no mundo inteligível, antes de encarnar pela primeira vez. Porém, o que pretendo investigar é o que determinaria a opção por este ou aquele deus a cada novo ciclo. Conforme se verifica no Fedro, Platão informa que as revoluções seriam diferentes para os deuses, almas e demônios5, visto que para os dois últimos, a jornada seria difícil devido à sua natureza, pois esta prejudicaria a atenção do cocheiro em relação à contemplação das Ideias; porém, cada um deles seguiria um deus, em grupo, por eleição pessoal como Platão apresenta no Fedro (s/ d, p. 152-153): Conforme ISIDRO PEREIRA (1990, p. 118), o termo demônio deriva do grego daimon (significando: deus(a), poder divino, destino, sorte e dentre outros sentidos, alma dum morto, sombra, gênio que acompanha um homem a uma cidade. Também, segundo Coulanges (1998, p. 7-28), o ancestral morto, enterrado sob a lareira doméstica, na casa grega, era cultuado como deus através do Lar, mantendo contato com os deus e olímpicos a respeito dos interesses dos parentes encarnados sendo cultuados até a quinta geração e consultados sobre todos os aspectos importantes da vida familiar e social. Em Vernant (1990, p. 27; 30-35; 66; 69; 80-81; 88; 9598; 103; 113; 119; 120; 126; 143 e nota 53; 144; 297; 345) em que o termo é apresentado em suas múltiplas acepções segundo os estudos realizados pelo helenista francês. 5

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(Fedro) SÓCRATES: A força da asa consiste em conduzir o que é pesado para as alturas onde habita a raça dos deuses. A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom. Por meio destas qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem, enquanto que todas as qualidades contrárias, como o que é feio, o que é mau a fazem diminuir e fenecer. Zeus, o grande condutor do céu, anda no seu carro alado a dar ordens e a cuidar de tudo. O exército dos deuses e dos demônios segue-o, distribuído em onze tribos. Hestia é a única entre os seres divinos que permanece em casa. Cada um dos outros onze deuses é o guia, conforme a ordem de sua tribo. Há muitos e agradáveis espetáculos e caminhos no céu, por onde a grande família dos deuses, fazendo cada um deles o que lhe está afeto e seguindo-os aqueles que os podem seguir. Quando se dirigem para o banquete que os espera, os carros sobem por um caminho escarpado até o ponto mais elevado da abóboda dos céus. Os carros dos deuses que são mantidos em equilíbrio, graças à docilidade dos corcéis, sobem sem dificuldade. Os outros com dificuldade porque o cavalo de má raça inclina e repuxa o carro para a terra. Há então grande trabalho para a alma. [...] (Fedro) SÓCRATES: A sorte das outras almas é, porém esta: Elas tudo fazem para seguir os deuses, erguem a cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar com a rotação. Mas perturbadas pelos corcéis do carro, apenas vislumbram as realidades. Ora levantam, ora baixam a cabeça, e, pela resistência dos cavalos, veem algumas coisas mas não veem outras. Outras há, porém, que nostálgicas seguem todas para cima, acompanhando a rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende passar adiante.

Pelo que constatei a partir do texto, a escolha por um ou outro deus estaria relacionada à capacidade de cada alma de observar (contemplar) o melhor possível as Ideias que as alimentariam, gerariam e robusteceriam suas asas e assim lhe possibilitariam um voo mais equilibrado. A felicidade que adviria desse conhecimento seria compatível com a capacidade adquirida pela alma por meio da contemplação. Sendo assim, a alma tem liberdade para escolher o deus ao qual acompanharia nas revoluções, mas se não conseguisse manter-se em formação até o banquete, pela fraqueza de suas asas, ela cairia e tal queda acarretaria sua primeira encarnação humana no mundo dos vivos. Do contrário, de voo em voo, a alma se fortaleceria e nunca conheceria o sofrimento da reencarnação como se vê no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 153-154): (Fedro) SÓCRATES: - É uma lei de Adrástea: toda a alma que segue a de um deus, contempla algumas das verdades; fica isenta de todos os males até nova viagem e se seu voo não se enfraquece ela ignorará eternamente o sofrimento. Mas, quando já não pode seguir os deuses, quando devido a um desvio funesto ela se enche de alimento impuro, de vício e de esquecimento, torna-se pesada e precipita-se sem asas ao solo.

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Acredito ser a lei de Adrastéa uma das questões mais importantes pertinentes à alma humana antes da encarnação. Através dela Platão nos informa que a alma, no processo de contemplação das Ideias, processo este no qual ela se alimenta de Ideias verdadeiras ou impuras, segundo seus interesses. Optando por Ideias verdadeiras, a alma alimentada convenientemente mantém o ritmo do voo na procissão divina, atrás do deus de sua preferência. Escolhendo Ideias impuras, a alma tem as asas da sabedoria e da inteligência minguadas pela nutrição de baixa qualidade e, pesadas, caem da procissão gerando uma nova encarnação. Segundo a declaração do filósofo, o que condicionaria a encarnação da alma seria o uso da liberdade de opção em se alimentar por Ideias não verdadeiras e, como consequência, o estado de felicidade da alma, participante dos festins divinos e longe de uma vida humana ou animal ou seu contrário, isto é, a vinculação da alma aos ciclos reencarnatórios e às suas misérias múltiplas e variáveis está na razão direta da quantidade e qualidade das Ideias contempladas. A encarnação surge como elemento não necessário, desde que a alma proceda à escolha pelas Ideias verdadeiras. É interessante notar que a qualidade/quantidade das Ideias verdadeiras condiciona o gênero da vida humana que a alma terá na encarnação, como é visto abaixo, no Fedro (s/ d, p. 154): (Fedro) SÓCRATES: - Uma lei estabelece que, no primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal; aquela que mais contemplou gerará um filósofo, um esteta ou um amante favorito das Musas; a alma de segundo grau irá formar um rei legislador, guerreiro ou dominador; a do terceiro grau forma um político, um economista, ou financista; a do quarto, um atleta incansável ou um médico; a do quinto seguirá a vida de um profeta ou adepto dos mistérios; a do sexto terá a existência de um poeta ou qualquer outro produtor de imitações; a do sétimo, a de um operário ou camponês; a do oitavo, a de um sofista ou demagogo; a do nono, a de um tirano. Quem em todas estas situações, praticou a justiça moral, terá melhor sorte. Quem não a praticou cai em situação inferior.

Diretamente relacionado a este processo estaria o do desenvolvimento das asas da alma que se nos apresentaria claramente como uma alegoria referente à aquisição da sabedoria e da inteligência que, equilibradas, permitiriam à alma seguir o deus de sua preferência nas revoluções de conhecimento das verdades eternas até não mais 40

reencarnarem (ou nunca encarnarem); e gozariam da felicidade obtida através deste conhecimento. A alma é passível de sofrer, como as crianças com o nascimento dos dentes, como é visto no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 156): (Fedro) SÓCRATES: - Esta, quando as asas começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma maneira como padecem as crianças que, ao receberem novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas. Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe crescerem as asas.

Ora, se a alma sofre e tem “prazer”, é que de alguma forma possuiria alguma espécie de sensibilidade que garante a comunicação interior-exterior, como é visto em Platão, no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 91-92). Como isso se daria, uma vez que a alma não possuiria nervos para padecer de tais estímulos por ser distinta do corpo? Remetendo-nos à composição substancial da alma por motivo de sua criação pelo Deus, explica-se quase que totalmente a dinâmica cognitiva da alma humana. A alma e o corpo humano foram construídos pelos deuses em semelhança com a Alma e o Corpo do Mundo, com a diferença que a alma humana não possui a mesma combinação substancial de Mesmo, Outro e da terceira substância, misto das duas anteriores, que compõe a Alma do Todo. Ao contrário, em sua composição, foram utilizadas apenas o Outro e a terceira substância. Logo, isso explicaria a questão da alma estar submetida ao envelhecimento, enquanto encarnada, pois na terceira substância, a metade desta que é composta da porção do Mesmo, o que não é suficiente para assegurar a imortalidade do organismo uma vez que uma porção e meia da alma humana seria composta de Outro, o que a submete à temporalidade enquanto em contato com o sensível. É importante recordar que o Outro e o Mesmo, em Platão, no Timeu, representam o complexo de forças fundamentais e universais, através das quais, o autor fundamenta sua visão da natureza. Elas agem como os elementos ordenadores do Cosmos, atuando de maneira simultânea e complementar, isto é, como o misto da permanência e devir, o que Platão chama de Primeiros Princípios, apresentados por Reale (2004, p. 156-166). Esses Princípios são os fundamentos últimos da natureza, concomitantemente

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imanentes e transcendentes no Cosmos, presentes por meio de suas características próprias, a saber: o Outro ou Díade Universal, representa a multiplicidade, tudo que é infinito, com aspecto não de-terminado 6. Logo, aquilo que se afasta do terminado, do fixo, do realizado. É o Princípio relativo a tudo o que é sensível por estar continuamente submetido ao devir, à mudança, à impermanência. O Mesmo ou o Uno Universal tem as características opostas às do Outro, isto é, possui a qualidade terminadora, permanente, eterna, imutável, idêntico a si mesmo. Uma vez que a alma humana foi construída com as acima mencionadas substâncias que lhe asseguram identificação de propriedades com os Princípios elementares da natureza platônica, em especial, a terceira substância que é produto da mistura do Outro e do Mesmo, Platão nos informa no Timeu (s/ d, p. 91-92) a respeito da cognição de impressões sensíveis e/ou inteligíveis que ocorrem justamente devido à afinidade substancial e de propriedades que a alma apresenta e mantém com a natureza das informações que lhe sensibilizem através do que Platão chama círculos do Outro ou, no caso da alma humana, da terceira substância. Uma vez que a alma e o corpo humano são análogos à Alma e ao Corpo do Cosmos, comportando-se quase que completamente em semelhança a eles, a alma humana em relação a seu corpo, enquanto encarnada, localizar-se-ia para Platão, no centro do corpo e atravessando-o em todas as suas partes, a ele justapondo-se como uma ostra à sua concha, chega a ir além dele de maneira a envolvê-lo. De tal declaração de Platão, infere-se forçosamente que a alma humana possui a forma do corpo que anima, uma vez que por princípio substancial e de propriedades, a alma não teria condições para delimitar em contornos fixos seus limites; ou seja, propriedade que apenas o corpo, vinculado ao Princípio do Outro, sob o influxo vitalizador e inteligível da alma e por ela mantido durante a encarnação, seria capaz de realizar. A alma humana, mesmo não encarnada não é um composto substancial amorfo porque, segundo Platão no Timeu (s/ d, p. 80) e na página 20 dessa dissertação, a alma foi criada com a finalidade específica de prover de inteligência e beleza ao que é visível, isto é, 6

Conforme Ferreira (1975, p. 423) de palavra latina que significa afastamento, extração.

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a tudo o que é composto apenas pelo Princípio do Outro. Na República (s/ d, p. 406-415), no mito de Er, as almas humanas são reconhecidas exatamente como eram em sua última vida terrena antes da escolha de um novo gênero de vida. No Fédon, Platão confirma esta descrição da alma humana no Hades, caracterizada tal qual foi em sua última vida, mesmo em se referindo à pessoas famosas, há muito mortas, corroborando assim a concepção de eidolon (duplo) que, segundo Isidro Pereira (1990, p. 167) significa fantasma, figura, retrato, e que Vernant (1990, p. 116, nota 38) descreve como sendo o duplo do homem, isto é, o espelho do corpo, uma cópia (ou modelo) com as mesmas feições e especificidades morfológicas do corpo recém morto. Em termos platônicos, poderíamos chamar esse eidolon de Ideia de homem, personalizada pela alma do sujeito em questão e produto de todas as suas experiências anteriores. Disso decorre, necessariamente, que a alma humana, enquanto desencarnada, por afinidade substancial e de qualidades para com a Alma do Mundo, possui um eidolon, uma imagem, uma figura através da qual é reconhecida pelas características próprias que lhe constituíram a última personalidade na existência terrena. Logo, é perfeitamente admissível que, em Platão, a alma humana desencarnada possua certa corporeidade. Inventariando o exposto, percebe-se que a alma humana é: 1 – uma miniatura da chamada Alma do Todo; 2 – Por identidade substancial e de propriedades, ela é capaz de se relacionar com o sensível e o inteligível e deles receber estímulos; 3 – é uma Ideia na medida em que no chamado mundo das Ideias existe uma Ideia de homem que caracteriza a alma humana como tal; 4 – tal como uma Ideia, a alma humana cede inteligibilidade e beleza ao sensível; 5 – pelo exposto nos itens 2, 3 e 4, a alma agrega em torno de sua substância ideal a terceira substância constitutiva de sua natureza, para constituir sua corporalidade; 6 – esse duplo é o corpo através do qual a alma humana participa da contemplação das Ideias e desenvolve as asas da sabedoria e da inteligência; 7 – é o corpo inteligível aquele que proporciona a possibilidade da alma ser metamorfoseada na nova personalidade que assumirá em sua futura encarnação, condicionando a vivência como homem, mulher, animal ou outro ser natural e, 8 – nesta medida, o eidolon, caracterizado através das propriedades de suas substâncias constitutivas (Outro/Mesmo e a porção do 43

Outro), modela o futuro corpo. Pelo que se conclui do inventário acima, enquanto encarnada, a alma humana se justapõe a seu corpo sensível através do corpo inteligível que por seu intermédio, recebem beleza, inteligibilidade. Enquanto desencarnada, a alma por intermédio de seu eidolon manteria também as mesmas capacidades cognitivas através da relativa corporeidade do duplo. Platão se refere à possibilidade que a alma teria de ser guiada por uma outra alma e ser capaz de guiar outras almas, por sua vez, através da eloquência do discurso, como é visto no Fedro (s/ d, p. 174): (Fedro) SÓCRATES: - Com a arte retórica se passa mais ou menos a mesma coisa que com a Medicina. FEDRO: - Como? SÓCRATES: - Deves pensar, naturalmente, que as duas artes se distinguem uma da outra pela natureza do seu objeto: uma se relaciona ao corpo, a outra com a alma. Tens de levar isso em conta se quiseres, não só pela prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrandolhe remédios e alimentos, e a outro infundir a convicção que desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos legítimos.

Ou seja, a arte de bem falar, a retórica, influiria nas decisões da alma e seria passível de ser utilizada para guiar outras almas. Na descrição da natureza anímica, Platão não deixou de prestigiar o papel da linguagem no relacionamento entre as almas. A linguagem exerceria importante papel nas relações da alma para com ela mesma e dela para com outra alma. Neste ponto de nossa investigação vale recordar o sofista Górgias de Leontinos (apud Romeyer-Dherbey, s/d, p. 45-48), contemporâneo de Platão e que influenciou amplamente a reflexão filosófico-moral e política em Atenas e que nos informa sobre a arte de curar através do discurso. Ora, o grego clássico era um homem que se afirmava como cidadão em sua sociedade através do discurso, isto é, a linguagem era o instrumento nivelador dos iguais que os colocava ès tò méson (no centro) da ágora (praça ou mercado público). Arrisco a dizer que a linguagem determinava-lhes a percepção do real (sensível e inteligível, à época indistintos). É neste sentido que a alma deveria ser objeto dos maiores cuidados quanto à sua 44

alimentação ideológica (compreendo ideológica como referente às Ideias e não no sentido de conjunto de ideias de determinada escola ou pensador), uma vez que ela se daria na e por meio da linguagem. A razão disto se justifica exatamente pela característica variável que a linguagem apresenta. Retornando à questão da composição da alma humana, fenômeno existencial natural, ela seria constituída do Múltiplo, adicionado a um composto proporcional de Uno e Múltiplo. Na simbologia platônica do Timeu (s/d, p. 85-86), e no âmbito da teoria dos Primeiros Princípios, apresentada por Reale (2004, p. 181-193) se depreende que a realidade última da phýsis era composta pelo Uno e pela Díade indeterminada, espécies de forças cósmicas

no

sentido

de

princípios

ordenadores

que

agiriam

simultânea

e

complementarmente sobre a totalidade da natureza. O primeiro seria o princípio de-terminador e de-limitador, ou seja, o Mesmo, base de tudo o que é inteligível; a segunda, isto é, a Díade indeterminada ou indefinida, seria a base de tudo o que é múltiplo (o Outro), compreendido como tudo o que é sensível. A phýsis platônica seria compreendida dos Primeiros Princípios (Uno e Díade) e o sensível, com suas multiplicidades. A questão da phýsis ou natureza é muito importante para compreender as relações corpo-alma para Platão. Conforme a tradição filosófica, Platão seria o responsável por estabelecer o dualismo através da divisão da natureza em dois mundos, a saber, o sensível e o inteligível. O primeiro, teria sua realidade e fundamentado no segundo, mais especificamente no que Platão chama de Ideias e, em especial, na Ideia de Bem, conforme se vê em Pessanha (1996, p. 50-51; 53), Durant (1996, p. 48-55), Marcondes (1998, p. 54-67), Japiassu & Marcondes (1991, p. 127) e Ismael Quiles (1952, p. 11-12). Para a tradição, representada em nossa pesquisa pelos autores supracitados, as Ideias, como se vê em Pessanha (1996, p. 50) seriam os modelos eternos das coisas sensíveis. Embora Platão as chama também de “ideias”, elas não existem na mente humana, como conceitos ou representações mentais: ao contrário, existem em si, nem nos objetos (de que são os modelos), nem nos sujeitos, (que conhecem esses objetos). [...] Cada coisa corpórea e mutável seria o que ela é (uma cadeira, por exemplo) porque participa da essência que lhe serve de modelo (a cadeira-em-si, a essência ou “ideia” da cadeira). [...] a essência

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da cadeira permanece sempre a mesma, fora do tempo e do espaço.

Ou seja, o chamado mundo das Ideias seria uma realidade à parte do sensível, embora seja sua matriz e possua uma realidade objetiva cedendo ser aos elementos individuais do mundo sensível através de participação metafísica. Dentre todas as Ideias, a do Bem seria aquela que agregaria a capacidade máxima de generalização visada através do exercício dialético, conforme é visto em Pessanha (1996, p. 53): usando o conhecimento dialético, o filósofo pode atingir as essências eternas. E, seguindo as articulações que ligam determinadas essências a determinadas essências, vai conquistando essências cada vez mais gerais. Até que, por fim, contempla aquele absoluto, uma super essência. Na República, Platão o denomina de Bem. Ele seria a fonte de toda a luz, fazendo com que os objetos possam ser conhecidos e que nós possamos conhecê-los. É como o Sol.

A distinção da realidade em mundo sensível e mundo inteligível, à parte do tempo-espaço, desenvolveu ao longo do tempo e das inúmeras interpretações das doutrinas platônicas, o que Rorty (1988, p. 25-62) chamou de vocabulário mentalista baseado em metáforas oculares gregas e, devido a estas, haveria se desenvolvido um entrave filosófico e linguístico nas tentativas contemporâneas de solucionar o problema das relações alma-corpo, como se vê em Teixeira (2000, p. 65-89); em especial, no que concerne às chamadas Teorias da Identidade, com graves embaraços às suas hipóteses e teorias explicativas. No entanto, no decorrer das pesquisas para o desenvolvimento dessa dissertação me deparei com a obra do filósofo italiano Giovanni Reale, Para Uma Nova Interpretação de Platão (2004), especialista em História da Filosofia e que segundo Lima Vaz (REALE, 2004, p. 14), na introdução ao mencionado livro, referencia outro trabalho de Reale, a saber, A História da Filosofia Antiga, afirmando que esta é o instrumento de trabalho mais completo posto à disposição do estudioso, tanto do ponto de vista da informação como da análise filosófica. Que diferencial

encontrei em Reale em relação às interpretações da tradição, para compreender da phýsis platônica em questão? A tese formulada no final dos anos cinquenta do século XX, pela chamada Escola de Tübingen, tinha como expoentes, então, os dois representantes mais significativos, os 46

filósofos H.-J. Krämer e K. Gaiser que defendiam a necessidade de se levar em consideração nos estudos desenvolvidos em torno de Platão e do platonismo, o que eles chamaram de doutrinas não-escritas. O que seria isso? As doutrinas não-escritas correspondem aos ensinos orais de Platão, ministrados na Academia. Como toda tradição oral, por carência de registros do autor, sempre foi desconsiderada pelos pesquisadores, em especial, os que adotaram o paradigma interpretativo de Schleiermacher, no século XIX, fundado na autenticidade exclusiva de um certo grupo de diálogos como referência e possibilidade de organização do chamado corpus platônico. No entanto, Krämer e Gaisere , conforme atesta Reale (2004, p. 54-80) retomaram as pesquisas em torno dos ensinos orais de Platão. Tendo como documentos historiográficos o que o autor chama de tradição indireta (Idem: 81-97), responsável pela conservação de indícios das doutrinas não-escritas no período Acadêmico, foi possível reconstruir o conteúdo dos ensinos orais, bem como acompanhar a evolução deles no seio do platonismo ao longo do tempo. Com o acesso ao conteúdo dos ensinos orais de Platão, Reale apresenta uma série de vantagens decorrentes da adoção do novo paradigma interpretativo, tais quais: uma nova visão sobre os escritos (diálogos), a solução das aporias7 teóricas das doutrinas do filósofo que o paradigma tradicional não consegue solucionar, o redimensionamento do filosofar como exercício de sabedoria empírica para Platão, compreensão das mutações, acomodações e falhas interpretativas introduzidas no corpus platônico e, o que mais chamou minha atenção na proposta das Escolas de Tübingen-Milão, a possibilidade de resolver os enigmas do platonismo, em especial, as relações entre corpo-alma. Para Reale (2004, p. 176) a concepção de phýsis platônica se dividia e se escalonava em ordem crescente, da seguinte maneira:

7

Conforme Isidro Pereira (1990, p. 74): dificuldade para passar; falta, privação; [...] dificuldade, apuro.

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Plano do mundo físico Objetos da musicologia Plano dos entes matemáticos

Objetos da astronomia pura Objetos da Estereometria Objetos da geometria plana Objetos da matemática. Ideias gerais

Plano das Ideias

Ideias particulares Ideias generalíssimas ou Meta-Ideias Números e Figuras Ideais

Plano dos Princípios

“Uno” e “Dualidade indeterminada”

Dadas as explicações acima, retorno à questão em pauta em nossa investigação, qual seja, qual era a concepção que Platão tinha da phýsis e em que medida os estudos de Reale trazem um diferencial ao problema assinalado pela tradição filosófica, qual seja, o dualismo platônico entre sensível e inteligível devido as Ideias serem consideradas como existentes fora do tempo-espaço, gerando os mencionados entraves filosóficos citados anteriormente. A despeito da discussão sobre a validade, permanência ou adaptação do antigo paradigma interpretativo (schleiermachiano) ao novo, defendido pelas Escolas de Tübingen-Milão, decidi adotar o último devido às inumeráveis vantagens interpretativas que viabiliza. Segundo Reale (2004, p. 120), a teoria das Idéias é um dos sustentáculos da visão de mundo platônica. No entanto, afirma (Ibidem): a teoria das Ideias corresponde à primeira etapa da “segunda navegação”, [contida no Fédon], enquanto a teoria dos Princípios constitui a etapa final e definitiva. As Ideias são alcançadas mediante os postulados que Platão introduz para superar a posição dos físicos; todavia, não se pode fazer uma defesa adequada da teoria das Ideias permanecendo no âmbito da própria teoria das Ideias (ou seja, examinando apenas as consequências que dela derivam). É necessário subir a postulados mais elevados, até alcançar o postulado adequado (que é, justamente, o postulado dos “Princípios primeiros e supremos”).

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A necessidade à qual Reale se refere ele justifica (Ibidem) afirmando que os Princípios redimensionam a interpretação e solucionam as aporias mencionadas anteriormente. Nessa medida, o que seriam as Ideias para as Escolas de Tübingen-Milão? São elementos constitutivos da phýsis platônica com características de inteligibilidade, incorporeidade (Idem, p. 123), o que as contrapõe necessariamente ao sensível. Até este ponto, a tradição filosófica e o novo paradigma concordam relativamente ao que significam as Ideias. Elas são, segundo Platão apud Reale (Idem, p. 126): o verdadeiro ser, ser em si, ser estável e eterno, ser que se põe num plano totalmente diferente do sensível. (Negrito do autor).

É interessante observar que Reale (Idem, p. 128) assinala, no que se refere à distinção dos dois níveis de existência feita por Platão, que as Ideias e, consequentemente, o inteligível como um todo, é supra-físico. O que significa isso? Segundo Ferreira (1975, p. 1350; 1348), supra é um prefixo latino, sinônimo de outro prefixo da mesma língua, chamado super, que por sua vez significa: excesso, aumento, posição acima, em cima ou por cima . Logo, supra-físico corresponderia à noção de algo que está acima do físico ou numa posição acima. O que não necessariamente supõe uma não comunicação entre os dois níveis de existência. O problema da tradição é compreender como tal interação ocorre, de modo que as Ideias, com suas características sejam próprias, capazes de ser os arquétipos dos múltiplos existentes na dimensão física. Outra característica das Ideias é que elas são imutáveis em si e por si isto é, são imutáveis e unas, não existem mais de uma e apenas uma Ideia para cada espécie existente no sensível. Reale (2004, p. 130) afirma que devido a essa classificação feita por Platão, a tradição filosófica a contar de Aristóteles tendeu a tomar a Ideia em sentido hipostático, como se ela revelasse claramente que a Ideia não é mais que a ontologização do conceito ou a entificação do abstrato, ou seja, a hipostatização do universal. (Grifo do autor). Com isso,

Reale (Idem, p. 133) complementa que a imutabilidade das Ideias é a característica que garante a estabilidade das Ideias como arquétipos da dimensão física, pois: “o que muda não pode, ela mesma, mudar, caso contrário não seria a 'verdadeira causa', ou seja, não 49

seria a razão última”. (Grifo do autor) As Ideias guardam outra particularidade que Reale (Idem, p. 136) apresenta, qual seja, a unidade, e nos informa como segue: Cada Ideia é uma “unidade” e, como tal, explica as coisas sensíveis que dela participam, constituindo desse modo uma multiplicidade uni-ficada. E, justamente por isso, o verdadeiro conhecimento consiste em saber uni-ficar a multiplicidade numa visão sinótica, que reúna a multiplicidade sensível na unidade da Idéia da qual depende. (Grifo do autor)

Em outras palavras, essa característica das Ideias é a que proporciona a possibilidade de sintetização do múltiplo através da Ideia e assim encerra a exposição sobre elas. Sobre o dualismo da realidade platônica, Reale (Idem, p. 139) afirma que os pesquisadores em geral, fundados nas críticas de Aristóteles insistem fortemente nesse “dualismo”, sustentando que a “separação” das Ideias das realidades sensíveis, ou seja, a sua “transcendência”, compromete a sua função de “causas” e assinala (Idem, p. 139-140) que em

realidade: as Ideias tem tanto de “imanência” quanto de “transcendência”; fato que muito frequentemente é descuidado ou silenciado. Para Platão, a transcendência das Ideias é justamente a razão de ser (ou seja, o fundamento) da sua imanência. As Ideias não poderiam ser a causa do sensível (isto é, a “causa verdadeira”) se não transcendessem o próprio sensível; e, justamente, transcendendo-o ontologicamente podem ser o fundamento da sua estrutura ontológica imanente. [...] a transcendência das Ideias é, justamente, o que qualifica a função que elas cumprem de “causa verdadeira”. Confundir esses dois aspectos, ou nivelá-los de algum modo sobre o mesmo plano, significa esquecer inteiramente a “segunda navegação” e os seus resultados. (Grifo do autor)

Nesse sentido, observa-se a primeira distinção entre a tradição filosófica e a do novo

paradigma

interpretativo,

qual

seja,

não



oposição

radical

e

total

incompatibilidade entre o estatuto imanente-transcendente das Ideias em Platão, pois para que elas sejam o fundamento e causa do sensível, necessário se faz que as Ideias tenham uma característica simultaneamente dual como demonstrou Reale (Idem, p. 143): Platão manteve uma firme e constante convicção sobre a existência de dois diferentes planos do ser e sobre essa convicção centrou sua mensagem filosófica. Mas o erro de muitos intérpretes consiste justamente no seguinte: em ter confundido tal distinção de planos e a proclamação da diferença estrutural de sua

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natureza com a absurda e indevida “separação”, em certo sentido considerando que as Ideias fossem “supercoisas” fisicamente e não metafisicamente separadas das coisas, como se elas não fossem mais do que o sensível mistificado e, como tal, contraposto ao sensível. Platão, com as Ideias, descobriu o mundo do inteligível como a dimensão incorpórea e metaempírica do ser. E esse mundo inteligível incorpóreo transcende o sensível, não no sentido de uma absurda “separação”, e sim no sentido da causa metaempírica (ou seja, da “causa verdadeira”; e portanto a verdadeira razão de ser do sensível. Em conclusão, o dualismo de Platão não é senão o dualismo de quem admite a existência de uma causa supra-sensível como razão de ser do próprio sensível, convencido de que o sensível, por causa da sua autocontrariedade, não pode possuir uma razão de ser total de si mesmo. Portanto, o “dualismo” metafísico de Platão não tem absolutamente nada a ver com o ridículo dualismo que põe o sensível como subsistente e, depois, contrapõe essa subsistência ao próprio sensível. (Grifo do autor)

Para melhor compreensão do que Reale expõe acima, analisarei brevemente o significado das palavras metafísico e metaempírico, dado a relevância das indicações feitas. A palavra grega meta, segundo Ferreira (1975, p. 923) significa: mudança, posteridade, além, transcendência e reflexão crítica sobre. Para Isidro Pereira (1990, p. 365), a palavra tem as

seguintes acepções: no meio, entre; com ideia de lugar, por detrás, a seguir; com a ideia de tempo, a seguir, detrás de outro, seguindo-a.

Por físico, conceitua Ferreira (1975, p. 634): relativo à física; referente às leis da Natureza; corpóreo, material, natural. Para Isidro Pereira (1990, p. 621): concernente à natureza ou ao estudo da mesma; estudo da natureza; natural; proporcionado pela natureza, conforme a natureza. Para Japiassu &

Marcondes (1993, p. 104): designa a realidade material, concreta, objeto de nossos sentidos, em contraste com a realidade psíquica, subjetiva, interior, bem como a realidade espiritual ou abstrata.

Para Japiassu & Marcondes (Idem, p. 165) metafísica(o) significa: Na tradição clássica e escolástica é a parte mais central da filosofia, a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. A metafísica define-se como filosofia primeira, como ponto de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas determinações particulares; incluindo ainda a doutrina do Ser Divino ou do Ser Supremo.

Ora, no que se refere ao termo metafísica(o) percebe-se três posições claras a saber, 51

1) a do uso cotidiano representada pela conceituação de Ferreira; 2) a grega, representada pela conceituação de Isidro Pereira e 3) a técnico-contemporânea de Japiassu & Marcondes. Uma vez que o termo metafísica(o) foi cunhado por Andrônico de Rodes, em torno do ano 50 a. C. conforme indicam Japiassu & Marcondes (Ibidem) para identificar o conjunto das obras de Aristóteles que se seguiam à Física e, por conseguinte, um conceito criado posteriormente ao autor e sobretudo, dado o caráter contemporâneo que o termo assumiu, preferirei analisá-lo sob o aspecto da composição da palavra em grego, acreditando assim atingir algum entendimento sobre ela. Logo, considerando o sentido de meta como no meio, entre; com ideia de lugar, por detrás e físico, no sentido de concernente à natureza; conforme a natureza. Compreendo, assim, por metafísico, aquilo que concerne à natureza

ou por outra, aquilo que permeia (estar entre) a natureza, baseando nas informações que Reale nos concedeu até o momento em nossa pesquisa. Por empiria, Japiassu & Marcondes (1993, p. 79), conceituam: Experiência sensível bruta, antes de toda e qualquer elaboração. Para Isidro Pereira (1990, p. 184): experiência, prática.

Logo, por metaempírico compreendo aquilo que permeia a experiência/ prática. Baseado na compreensão dos conceitos estudados, já é possível compreender que a posição de Reale (2004, p. 143) sobre o caráter dual, metaempírico e metafísico das Ideias é verdadeiramente bombástica comparada à tradição filosófica! Ela assinala a possibilidade de dissolução da tradicional concepção filosófica ratificada ao longo da História do Pensamento Ocidental, a respeito do “dualismo” criado por Platão e denunciado por seu discípulo Aristóteles. Fundado na pertinência das observações feitas, para efeito de realização desta pesquisa, assumi a compreensão da phýsis platônica sob o prisma das Escolas de Tübingen-Milão. Assim procedo, uma vez que pela adoção do novo paradigma inauguram-se novas possibilidades interpretativas quanto aos problemas oriundas da relação mente-corpo, assinalados por Rorty e Teixeira. A tradição filosófica assinala que através da dialética, de Ideia em Ideia a alma ascende até chegar à Ideia de Bem, representada pela simbologia do mito da caverna, na 52

República (PLATÃO, s/ d, p. 267-272) e segundo Pessanha (1996, p. 50). A Ideia de Bem como a superessência ordenadora do Cosmos, para Reale (2004, p. 145) não é suficiente para solucionar a questão da multiplicidade, pois Platão assinala a existência de conexão e de exclusão que implicam a existência de nexos estruturais entre as Ideias. Por conseguinte, umas Ideias

se excluem e outras têm como condicionantes de sua existência outras Ideias. Com isso, para Reale (Idem, p. 146): Essas relações de exclusão não se limitam aos contrários em si (como por exemplo par e ímpar), mas se estendem a tudo o que é conexo a cada contrário com relação ao outro, e vice-versa (o três é contrário ao par e ao que é conexo com o par, e viceversa): e isso vale tanto para as Ideias tanto para as coisas que dela participam.

De acordo com esse raciocínio, Reale (Idem, p. 149-150) informa que Platão percebeu a existência de duplas de Idéias coligadas como gênero e espécie. Nessa medida, a dialética teria dois modos de ação, a saber, a generalização para que se atinja o que Reale (Idem, p. 151) chama de visão sinótica da Ideia em questão e na distinção e divisão, no encalço das articulações rumo à Ideia geral, demonstrando a existência de uma hierarquização das Ideias das mais específicas às mais gerais. Nesse sentido, Reale demonstra a existência de um problema na concepção tradicional da teoria das Ideias que se caracteriza justamente na explicação da relação necessária entre o uno e os muitos. Para introdução da solução proposta pelo novo paradigma interpretativo, Reale (Idem, p. 157) sugere que se parta da compreensão do que ele chama ser o modo de pensar dos gregos. Para o autor, esse modo de pensar consiste na convicção segundo a qual explicar significa unificar. (Grifo do autor) Isto é, Platão e seus

contemporâneos, bem como os filósofos anteriores a eles, buscavam a causa última de explicação necessária da multiplicidade do mundo e, nesse sentido, assim se expressa Reale (Ibidem): tentavam explicar a multiplicidade dos fenômenos relativos ao cosmo justamente reduzindo-a à unidade de um princípio, ou de alguns princípios, unitariamente concebidos, e alcançava a expressão extrema (e, justamente por isso, muito instrutiva) nas doutrinas dos eleatas, que dissolviam a totalidade do ser, desembocando num verdadeiro monismo radical. (Grifo do autor)

Platão não fugiu ao espírito de sua época e a teoria das Ideias, mesmo realizando 53

certa redução do múltiplo, ainda guardava certa pluralidade, como assinala Reale (Idem, p. 158): Tenha-se presente que Platão admite Ideias não só para as coisas que chamamos realidades substancias (homens, animais, vegetais etc.), mas também para todas as qualidades e para todos os aspectos das coisas sinoticamente reagrupáveis (belo, grande, duplo, e assim por diante), de modo que o pluralismo do mundo das Ideias ( ou seja, o pluralismo das realidades inteligíveis) se mostra digno de bastante consideração, como já Aristóteles, em passagem citada, conceituava. (Grifo do autor)

Para Reale (Idem, p. 159), a teoria das Ideias não se constitui a instância última da realidade: O esquema de raciocínio que sustentava a duplicidade de níveis de fundação metafísica é o seguinte. Como a esfera do múltiplo sensível depende da esfera das Ideias, assim, analogicamente, a esfera da multiplicidade das Ideias depende de uma ulterior esfera de realidade, da qual derivam as próprias Ideias, e esta é a esfera suprema e primeira em sentido absoluto. (Grifo do autor)

Ato contínuo, Reale informa que a mencionada esfera última seria a dos Princípios Primeiros. A dúvida que resta a respeito deles é: por que Platão admitiu dois Princípios e não um apenas? Segundo Reale (2004, p. 162-164) nos informa: A novidade de Platão, não no nível e ontologia das Ideias (dado que nesse plano ele explica ainda o múltiplo sensível com o outro múltiplo, o inteligível das Ideias), mas no nível de protologia, está, justamente, na tentativa de “justificação” radical última da multiplicidade em geral em função dos Princípios do Uno e da Díade indefinida, segundo um esquema metafísica bipolar. Portanto, o problema do qual partimos resolve-se deste modo: a pluralidade, a diferença e a gradação dos entes nascem da ação do Uno, que determina o Princípio oposto da Díade, que é multiplicidade indeterminada. Os dois Princípios são, portanto, igualmente originários. O Uno não teria eficácia produtiva sem a Díade, embora seja hierarquicamente superior à Díade. (Grifo do autor)

Vale ressaltar que esses Princípios não seriam encarados como dois exatamente, mas como uma espécie de síntese, uma vez que eles seriam nulos isoladamente, conforme declara Reale (Idem, p. 165): A ação do Uno sobre a Díade é uma espécie de de-limitação, de-terminação e de-

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finição do ilimitado, do indeterminado, do indefinido, ou, como parece que o próprio Platão já dizia, de igualização do desigual. Os entes que derivam da atividade do uno sobre a Díade são, portanto, uma espécie de síntese que se manifesta como unidade-na-multiplicidade, que é uma de-finição e de-terminação do indefinido e indeterminado. (Grifo do autor)

Logo, pelo que se depreende do exposto, a natureza platônica, sinteticamente falando, seria dividida entre sensível e inteligível. Analiticamente, no âmbito do inteligível, existiriam as Ideias e os Primeiros Princípios. No entanto, Reale (Idem, p. 167180) informa, que haveria duas outras dimensões naturais, a saber, Números Ideais e Números matemáticos com a função específica de serem intermediárias às interações dos Princípios para com as Ideias e destas para com o sensível. Antes de tudo, Reale (Idem, p. 167; 168) esclarece que os chamados Números ideais não são o que conhecemos como matemáticos, mas são o que ele chama de metafísicos, isto é: Os números ideais são, portanto, as essências dos Números matemáticos e, enquanto tais, são “inoperáveis”, ou seja, não podem ser submetidos a operações aritméticas. Eles têm um status metafísico, deferente dos números matemáticos, justamente porque não representam simplesmente números, mas constituem a essência dos números. [...] Os Números ideais constituem, portanto, supremos modelos ideais. Eles representam de forma originária, isto é, paradigmática, aquela estrutura sintética de unidade-na-multiplicidade que caracteriza todos os diferentes planos do real e todos os entes em todos os níveis. A essência do Número ideal consiste numa determinação e delimitação específica produzida pelo uno sobre a Díade, que é uma multiplicidade indeterminada e ilimitada de grande-e-pequeno.

Reale adverte que os Números ideais não se identificam totalmente com as Ideias, mas possuem relações de estreita conexão. Para melhor compreender as relações entre Números ideais e as Ideias, Reale (Idem, p. 170-171) chama a atenção para um importante detalhe entre os gregos antigos: Toeplitz demonstrou que para os gregos o número é sempre pensado não tanto como número inteiro, ou seja, como uma espécie de grandeza compacta, mas como uma relação articulada de grandezas e de frações de grandezas, de logoi, de analoghoi. Se é assim, o logos grego mostra-se essencialmente ligado com a dimensão numérica e significa, portanto, fundamentalmente, “relação”. Consequentemente, para os gregos é totalmente natural traduzir as “relações” em “números”, e indicar com os números as relações, justamente por causa dessa conexão subsistente entre número e relação. Cada Ideia se situa numa posição precisa no mundo inteligível, de acordo com a

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sua maior ou menor universalidade e de acordo com a forma mais ou menos complexa das relações que estabelece com as outras Ideias (que estão acima ou abaixo dela). Essa trama de relações, portanto, pode ser reconstruída e determinada pela dialética, e, pelas razões explicadas, pode ser expressa “numericamente” (dado, justamente, que o número exprime uma relação).

Tal explicação torna inteligível as referências pitagóricas sobre a identificação do princípio último constitutivo da natureza ser chamado de número. Lembrando que Platão manteve contato com a Escola pitagórica na Magna Grécia e que aquelas doutrinas muito influenciaram nosso filósofo, vemos que Reale (Ibidem) completa a compreensão dessa dimensão da phýsis platônica citando Gaiser: A redução que das coisas concretas e perceptíveis pelos sentidos sobe até os números não é um processo de abstração, mas um adensamento do conteúdo de ser da realidade. As relações numéricas são o permanente imutável, e por essa razão são, para Platão, o verdadeiro ser que permanece em qualquer diferença ou mudança de qualquer coisa individual. Assim, na sinfonia dos primeiros números está originariamente contido todo o mundo.

Reale (2004, p. 173) explica a dimensão do que chama entes matemáticos, que se localizariam entre os entes ideais e entes os sensíveis: são imóveis e eternos, justamente como as Ideias (e os Números ideais), e, de outro lado, existem muitos da mesma espécie. Têm, portanto, ao mesmo tempo, um caráter fundamental das Ideias e um caráter que é típico das coisas sensíveis, e por isso são, justamente, “intermediários” inclusive entre as realidades inteligíveis e as realidades sensíveis, como veremos no Filebo e, sobretudo, no Timeu.

Com estas características duais, os entes matemáticos e os Números ideais compõem assim, as dimensões intermediárias entre as instâncias referenciais máximas da natureza platônica, quais sejam o sensível, as Ideias e a dos Princípios primeiros. Nos pré-platônicos a questão da explicação última da realidade física ficou caracterizada por duas posições que Reale apresenta como a posição dos unicistas, definida pela doutrina eleata da unicidade do ser e a posição contrária, a dos pluralistas, fundada no pensamento de Empédocles, Anaxágoras e Demócrito. Estes últimos assumiram o múltiplo como base última da natureza. Para Reale (2004, p. 162-163), Platão inovou a questão não com a teoria das Ideias, mas no nível protológico, com a tentativa de “justificação” radical e última da multiplicidade em geral em função dos Princípios do 56

Uno e da Díade indefinida segundo um esquema metafísico bipolar (Grifo do autor). Sendo assim, o ser da natureza foi compreendido por Platão como uma metáfora bipolar com características duais, opostas por complementaridade. Coloco em questão, assim, a existência do dualismo platônico, uma vez que através do novo paradigma interpretativo a existência de um dualismo radicalmente irreconciliável entre o sensível e o inteligível é posto como improvável sob dois aspectos básicos, a saber: 1 – o cultural, pois o grego comum contemporâneo de Platão apresenta uma percepção diferenciada da nossa no que se refere à natureza e, quanto ao número, facilmente identificável nos escritos pré-socráticos e em poetas como Homero, Hesíodo e nos trágicos. Nesse enfoque ainda, acrescento que Platão inovou a concepção tradicional grega de phýsis por ter nomeado o que era compreendido por Hades ou Além como mundo inteligível através da metáfora da segunda navegação apresentada no Fédon, por meio da qual, em conjunção com a descrição do mito de Er, na República, instituiu uma nova geografia da natureza. 2 – Nesse outro aspecto, o que põe em suspenso a visão filosófica tradicional sobre o dualismo em Platão, é aquele que desloca o centro de gravidade do fundamento último da natureza, das Ideias para os Princípios primeiros, dissolvendo as aporias geradas pela teoria das Ideias e alcançando o objetivo visado à época, isto é, identificar a realidade última produtora e mantenedora da natureza. Uma vez que os Princípios Primeiros ordenam os graus da realidade natural através da consequência de sua síntese (Uno e Díade), a questão do dualismo entre sensível e inteligível transforma-se de algo antes antagônico e irreconciliável, para uma visão sinótica complementar e interativa por oposição, tal qual se vê em Reale (2004, p. 139-140): as realidades empíricas são sensíveis, ao passo que as Ideias são inteligíveis; as realidades físicas são mescladas com o não-ser, enquanto as Ideias são ser em sentido puro e total; as realidades são corpóreas, enquanto as Ideias são incorpóreas; as realidades sensíveis são corruptíveis, enquanto as Ideias são realidades estáveis e eternas; as coisas sensíveis são relativas, ao passo que as Ideias são absolutas; as coisas sensíveis são múltiplas, ao passo que as Ideias são unidade. Com efeito, muitos estudiosos, repetindo ou desenvolvendo de várias maneiras as críticas movidas por Aristóteles [...], insistem fortemente nesse “dualismo”, sustentando que a “separação” das Ideias das realidades sensíveis, ou seja, a sua “transcendência”, compromete a sua função de “causas”. Mas, na realidade, trata-se de puro preconceito teórico, a ser rigorosamente

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evitado, se se deseja compreender Platão. Observe-se inicialmente que as Ideias têm tanto de “imanência” quanto de “transcendência”; fato que muito freqüentemente é descuidado ou silenciado. Para Platão, a transcendência das Ideias é justamente a razão de ser (ou seja, o fundamento) da sua imanência. As Ideias não poderiam ser a causa do sensível (isto é, a “causa verdadeira”) se não transcendessem o próprio sensível; e, justamente, transcendendo-o ontologicamente podem ser o fundamento da sua estrutura ontológica imanente. Em resumo, a transcendência das Ideias é, justamente, o que qualifica a função que elas cumprem de “causa verdadeira”. Confundir esses dois aspectos, ou nivelá-los de algum modo sobre o mesmo plano, significa esquecer inteiramente a “segunda navegação” e os seus resultados. (Grifo do autor)

O ato notável da abordagem realizada por Reale é a conjunção da teoria dos Princípios Primeiros com as colocações feita por Platão no Timeu no que se refere à identificação do Mesmo com o Uno e o Outro com a Díade. Tal conjunção torna compreensível a afirmação de Platão no Fedro (s/ d, p. 174), quanto à possibilidade de compreender a natureza da alma humana conhecendo-se a natureza do universo, Princípios este muito difundido entre os médicos da escola de medicina hipocrática. Observa-se que a alma teria sido feita pelo Deus de maneira que tudo o que é corporal tivesse a possibilidade de ser estendido para seu interior e, desta maneira, a alma teria a capacidade de ajustar-se aos corpos, como vemos no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 90-91; 100-101): Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do Corpo e o da Alma, harmonizou-os (p. 90) A Alma é então formada da natureza do Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta destas três realidades, move-se por si só em círculo. (p. 91) Disse essas palavras e, retornando à cratera na qual inicialmente havia misturado e fundido a Alma do Todo, aí verteu os resíduos das primeiras substâncias e as misturou aproximadamente do mesmo modo. Todavia, não havia mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente a segunda e a terceira. Depois, tendo a tudo combinado, dividiu num número de almas igual ao dos astros. (p. 100-102).

Estaríamos diante de uma menção de Platão à noção de eidolon () grego? Eidolon(u) era uma palavra grega que significava fantasma, simulacro/imagem, figura, retrato/imaginação e segundo vemos em Isidro Pereira (1990, p. 167) e Vernant (1990, p. 116 na nota 38), de seu texto Mito e Pensamento entre os Gregos. Os eidolai eram utilizados 58

pela religião grega para substituir, nos funerais, os cadáveres das pessoas que os parentes sabiam estar mortas, mas que não foram encontradas ou de pessoas que haviam desaparecido e, passado algum tempo, eram dadas como mortas. Algumas famílias, em especial as esposas, inconsoladas, mandavam talhar em madeira ou em pedra, em tamanho natural, um eidolon de seu cônjuge para através dele, suprir sua ausência física no funeral e até mesmo em casa, conforme o caso. Tal prática funerária e cultual se baseava na crença de que todo homem possuía uma alma que, após a morte, apresentava-se no Hades com as mesmas características de quando viva e, no caso da ausência do cadáver, não sendo possível sepultá-los, sua alma ficaria privada do culto dos ancestrais e, carentes de descanso, não poderiam ter uma existência condigna com a sua posição no mundo dos mortos. Ficaria assim, a alma, presa entre os mundos dos vivos e dos mortos, carente de alimento, vestuário, armas, presentes e preces pelo fato de estar insepulta. Ora, dessa crença infere-se que havia certa similitude, se assim podemos nos expressar, entre o corpo sensível (corpo tal qual o entendemos) e o corpo inteligível8, ou eidolon (através do qual a alma se faria conhecer na figura de sua pessoa), de tal modo que a alma manteria certas necessidades típicas do vivente e atuaria na phýsis como um deus epictônio9 ( subterrâneo), influindo nas decisões dos chefes de genos (famílias) nas polies (cidadeEsta inferência se sustenta não apenas com os argumentos antropológicos e historiográficos a respeito das crenças arcaicas e clássicas que Coulanges citado nesse parágrafo demonstram, mas também nos documentos historiográficos de Platão, isto é, no Timeu (s/ d, p. 85), República (s/ d, p. 406-415) e no Fédon, como um todo e na argumentação desenvolvida nas páginas 31-38 dessa dissertação, nas quais sugiro que o leitor se remeta para compreender o tema da representação da corporeidade inteligível da alma em Platão com base na tradição religiosa helênica. 9 Deus subterrâneo. O morto, ao ser sepultado na Grécia, por seus familiares, era venerado por eles, através do culto doméstico, religião primordial entre os povos indo-europeus, ramo ao qual os helenos estavam ligados ancestralmente. Tal culto recebeu representação com o ingresso da deusa Hestia (lareira doméstica), no panteão olímpico quando os Micênicos ascenderam. O Lar se localizava no centro das casas e inicialmente os mortos eram enterrados embaixo dela. Posteriormente, o túmulo foi localizado no exterior da casa. Era responsabilidade das mulheres a manutenção do fogo do Lar que simbolizava a vitalidade existencial do genos. O sacerdote deste culto era o patriarca da família que oficiava livremente estabelecendo seus mistérios, cânticos e dias sacros. O Lar era considerado o “umbigo” de vinculação do homem à terra e simultaneamente, o portal dimensional através do qual os ancestrais e os vivos mantinham amplo e profundo contato. Nada de era decidido sem consulta prévia ao Lar, desde a ignação de um novo membro do genos (filho ou escravo), mulheres, por casamento, até as decisões econômico-militares. Este costume foi generalizado com a revolução do século VII a.C. com a criação das polis, onde existia a hestia koiné o Lar comum a todos os cidadãos na Acrópole e passou a Roma até a inserção gradual do cristianismo. 8

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estado), conforme atesta Coulanges (1998, p. 7-28) ser a crença comum relacionada aos cultos da hestia (Lar, lareira doméstica) e dos mortos. Com o objetivo de facilitar o entendimento através de uma nomenclatura que expresse da melhor maneira possível o que compreendi dos textos de Platão com base no novo paradigma interpretativo das Escolas de Tübingen-Milão, doravante chamarei corpo inteligível ao eidolon, duplo, enquanto a alma se encontra no Hades ou mundo inteligível; e corpo sensível, àquele através do qual a alma encarnada se faz presente e perceptível aos sentidos. Vale recordar que por corpóreo os antigos entendiam tudo o que era compreendido e restrito em limites específicos, rígidos, como atesta Reale (2004, p. 126): é bom recordar o seguinte. “Corpo” (), em grego, originariamente (por exemplo, em Homero) significava “cadáver”. Sucessivamente, a área semântica do termo incluiu o corpo inanimado em geral. Enfim, a área semântica do termo incluiu também objetos inanimados, os quais tem em comum com o corpo duas propriedades: a perceptibilidade (a visibilidade), por um lado, e o ser encerrado em limites determinados mais ou menos rígidos, por outro. É justamente a esta acepção do termo “corpo” que se liga a acepção mais madura do termo “incorpóreo” no âmbito do pensamento pré-socrático: “incorpóreo” significa o que não é palpável, nem visível, o que é privado de materialidade, de limitações e de confins, portanto, in-finito. Platão inova radicalmente esse significado: o incorpóreo, para ele, transcende não só as características dos corpos físicos, mas a própria fonte material dos corpos físicos; transcende o próprio uno-todo-infinito em sentido melissiano e vem a coincidir com a causa não-física das coisas físicas. O incorpóreo torna-se uma forma inteligível e, portanto, ser de-terminado que age como causa determinante, ou seja, a causa verdadeira do real. (Grifos do autor)

Nessa medida, a corporeidade inteligível da alma humana será compreendida através da analogia do corpo inteligível para com o corpo sensível, sendo em realidade, para Platão, o primeiro a razão de ser do segundo. Além disso, considerando que na constituição íntima substancial e de propriedades da alma humana, a terceira substância, resultante do produto do Mesmo e do Outro tem a capacidade de intercomunicação (interação) simultânea, entre tudo o que é inteligível e sensível; o que, em decorrência das propriedades oriundas da porção do Outro sob o influxo catalisador do Mesmo, a terceira substância seria aquela que proporcionaria a vinculação da alma ao estado de relativa corporeidade por encerrá-la, mesmo que em menor escala, a certa limitação fixa em 60

contornos mais ou menos fixos. Por conseguinte, enquanto no Hades a alma humana é reconhecida com as características que lhe foram próprias em sua última existência encarnada, através das delimitações estabelecidas por seu corpo inteligível de maneira a caracterizá-la como a alma de Aquiles, ou de Heitor, por exemplo, capaz de serem reconhecidas por outras almas que de suas companhias privaram no mundo dos vivos. Uma vez que a ação racional da alma teria início por ocasião de sua vinculação ao corpo, conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 91; 105; 149): e, pelo efeito de todas essas afeições, a alma, quando de seu nascimento, quando acaba de ser encadeada a um corpo mortal, é de início e primitivamente irracional. (p. 105). Estes [os filhos do Deus], imitando seu autor, e tendo recebido dele o princípio imortal da alma, envolveram esse princípio com o corpo mortal que o acompanha; deram-lhe por veículo todo o corpo. Depois, conformaram nele uma outra espécie de alma, a espécie mortal. Esta comporta em si as paixões temíveis e inevitáveis. De início o prazer, este poderoso atrativo para o mal, depois as dores. Causa de que abandonemos o bem, e depois ainda o medo e a pusilanimidade, conselheiros estúpidos, o desejo surdo aos conselhos, e enfim a esperança, fácil de se decepcionar. Misturaram tudo isso à sensação irracional e ao amor pronto a tudo arriscar. E destarte compuseram pelos procedimentos necessários a alma mortal. Mas receando ainda macular o princípio divino, e na medida em que esta mácula não era absolutamente inevitável, separaram da alma imortal o princípio mortal e o alojaram numa outra parte do corpo. Para tanto, dispuseram um como que istmo ou limite entre a cabeça e o peito e colocaram entre eles o pescoço, a fim de separá-los. É no tronco, onde se chamou tórax, que instalaram a espécie mortal da alma. E como desta alma uma porção era por natureza melhor e a outra pior, dividiram ainda em dois alojamentos a cavidade do tórax; separaram-no como se separa o apartamento das mulheres e o dos homens e dispuseram entre eles o diafragma como repartição. A alma que participa da coragem e do ardor guerreiro, aquela que deseja a vitória, alojaram mais perto da cabeça, entre o diafragma e o pescoço. Isto, para que pudesse escutar a razão e, de acordo com ela, conter pela força a raça dos desejos quando esta último, rebelde às ordens e às prescrições que a razão lhe envia do alto da cidadela, recusa submeter-se de bom grado. (p. 149). E na medida que entra em contato com um objeto que possua uma substância divisível ou com um objeto cuja substância seja indivisível, ela proclama, movendo-se por todo o seu ser próprio, a cuja substância ele é idêntico e da qual ele difere. Mas difere, e relativamente a que, sob que relação, de que maneira e em que circunstâncias ele se remete às coisas que devem ter em suas relações mútuas uma outra dessas determinações ou modalidades, bem como suas relações com as coisas que se conservam sempre idênticas. Ora, quando um raciocínio veraz e imutável, relativo à natureza do Mesmo ou à do Outro, é acusado, sem ruído nem eco, dentro daquele que se move a si mesmo, esse raciocínio pode ser formulado em relação às coisas sensíveis. (p. 91).

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Dado o acima exposto, constata-se que a alma não foi criada com a ação racional, ao contrário, esta é atribuída à alma apenas após sua vinculação a um corpo mortal. A partir deste momento, Platão informa que os deuses realizam a mencionada ligação da alma a um corpo e nele conformam um outro tipo de alma mortal. A alma mortal contém o princípio das sensações e da chamada alma imortal, separaram a mortal e as localizaram em partes diferentes do corpo sensível, quais sejam: na cabeça, instalaram a alma imortal e no tórax, a mortal. Na alma mortal os deuses realizaram nova partição e a localizaram no diafragma. Que nomes específicos dá Platão a essas três almas? A que Platão chama de alma imortal, por sua localização na cabeça, chama de alma racional (noûs). A alma que ele chama de mortal e que foi dividida em duas seções, o filósofo chama de impetuosa (thýmos) a que ficou localizada no tórax e de apetitiva (pneyma), a que foi posta no diafragma. Pelo que se depreende dos textos, em especial no Timeu, Fedro, Fédon e na República, essa configuração trino-anímica existe apenas enquanto a alma se encontra encarnada. Após a morte do corpo sensível, no inteligível, apenas o noûs acompanha a alma até a necessidade de nova existência sensível. A alma mortal, pelo que se constata, é dispersa com a morte. Como visto anteriormente, a alma humana seria feita com as sobras de substâncias da formação da chamada Alma do Mundo e manteria certa semelhança a esta, porém, por falta da substância do Mesmo seria constituída então, pelo Outro e o misto do Mesmo com o Outro; logo, seria feita por duas substâncias ou princípios substanciais. Sendo feita estruturalmente desta maneira, seria necessariamente um misto substancial, mas não um indivíduo caracterizado por uma consciência, responsável por seus atos e que se reconheceria como sujeito do conhecimento, ativa ou passivamente, como se vê no Timeu (PLATÃO, s/ d, p. 80): E por outra, que o intelecto só pode nascer unido à Alma. Em virtude dessas reflexões, após ter colocado o Intelecto na Alma, a Alma no Corpo, formou o Cosmos, para dele executar uma obra que essencialmente fosse a mais bela e melhor. Assim pois, nos termos de um arrazoado provável, deve-se dizer que o Cosmos, que é verdadeiramente um ser vivo provido de Alma e Intelecto, é assim

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gerado pela ação da Providência de um Deus.

Tal condição (ou algo dessa condição, considerando-se que os gregos não disponham de percepção de sua individualidade e subjetividade 10), ocorreria somente a partir do momento em que o intelecto, compreendido como o princípio de ordenação do cosmos e, por extensão, a faculdade do pensamento humano, enquanto esta reflete a ordem cósmica , conforme

conceituam Japiassu & Marcondes (1993: 134) em relação à concepção clássica grega do termo, é submetida ao exercício e esforço da contemplação no mundo inteligível, objetivando o aperfeiçoamento de sua capacidade intelectiva e o acesso à sabedoria para alcançar o que Platão chama de unidade racional dentre as sensações, como se vê no Fedro (s/ d, p. 154): (Fedro) SÓCRATES: - Uma lei estabelece que, no primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal; [...] A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve exercer segundo aquilo que se chama Ideia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas suas evoluções.

Pelo que Platão afirma, o intelecto foi colocado pelo Deus, na Alma do Todo para que pudesse a Alma atingir o que o Deus objetivava. Ato contínuo, projetando essa operação para a alma humana construída pelos deuses, o intelecto aparece como um atributo concedido às almas para que se relacionem inteligivelmente com os objetos de conhecimento sensíveis e inteligíveis conforme o caso. Em outra passagem do Timeu vemos a confirmação de que apenas a alma é capaz de possuir um intelecto e de exercer suas potencialidades, uma vez que Platão (s/ d, p. 109) indica que os elementos físicos fogo, água, terra e ar, por sua natureza constituída pelo Outro não são capazes de possuíla, como vemos a seguir: “[...] Pois de todos os seres o único ao qual cabe possuir a inteligência é a alma, deve-se-o proclamar, e é invisível, ao passo que o fogo e a água e a terra e o ar, todos os corpos, são naturezas visíveis”. Para aprofundamento sobre a questão da subjetividade e concepção de indivíduo na Grécia Arcaica e Clássica remeto o leitor a Mondolfo (1970, p. 10-120). 10

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Seria uma referência de Platão de algo semelhante a uma descrição minuciosa de uma substância (a alma humana) que em dado momento de sua criação recebe o intelecto como instrumento de ordenação do cosmo com a faculdade de pensar nele acoplado? Se assim é em Platão, estaríamos diante de algo como uma substância pensante, como mais tarde enunciaria Descartes? Considerando o que Platão sugere no Timeu (s/ d, p. 105): [...] e, pelo efeito de todas essas afeições, a alma, quando de seu nascimento, quando acaba de ser encadeada a um corpo mortal, é de início e primitivamente irracional. Percebe-se que a presença do intelecto, em sua função

ordenadora do Cosmos, na alma, não é garantia da existência e do uso da racionalidade. Ora, pelo que se depreende do que Platão diz em outro passo do Timeu (s/ d, p. 181), verificando-se à alma racional e localizando-a no corpo, a razão tal como o intelecto, parece ser um dos atributos da alma, conforme se vê abaixo: [...] A respeito da espécie de alma que é a principal em nós [ noûs], deve-se fazer a seguinte observação. Deus dela nos fez presente, como de um gênio divino. É o princípio o qual dissemos que habita a parte mais elevada de nosso corpo. Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente que esta alma nos eleva acima da terra, em razão de sua afinidade com o céu. [...]

O que se confirma, a meu ver, por outra referência de Platão, feita na República (s/ d, p. 169), na qual o autor diferencia o que chama de princípio racional do princípio desejante, isto é, o noûs do binário thýmos-pneyma, conforme se vê abaixo: (A República) SÓCRATES: - Então nos é lícito admitir que se trata de duas coisas diferentes uma da outra, chamando àquilo com que o homem raciocina o princípio racional da alma, e àquilo com que deseja, sente fome ou sede e é perturbada pelos demais apetites, o irracional ou apetitivo, afeiçoado a toda sorte de prazeres e excessos.

Em outra obra, o Sofista, Platão (s/ d, p. 140) especifica a distinção entre os princípios racional e apetitivo assinalando seus objetos próprios de atuação, conforme segue: (Sofista) ESTRANGEIRO: - E é pelo corpo, por meio da sensação, que estamos em relação com o devenir; mas pela alma, por meio do pensamento, é que estamos em comunhão com o ser verdadeiro, o qual dizeis vós, é sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o devenir varia a cada instante.

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Assinala Platão que o pensamento, outro elemento atribuído à alma humana, é como que uma espécie de intermediário entre o intelecto e as informações fornecidas pelo inteligível e/ou sensível. No entanto, no Mênon (PLATÃO, s/ d, p. 63), o autor informa que a razão exerce na alma o papel de juiz e critério necessário para que a alma atinja a felicidade, tendo como delimitador ao seu não uso a infelicidade consequente de se conduzir conforme a opinião, como se vê nas palavras de Sócrates: Mênon: SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário.

Não sei exatamente aferir se Platão em sua época e em seu modo helênico de pensar e experienciar o mundo concebeu a possibilidade de inferir a existência de algo como uma substância pensante que tinha o pensamento, a inteligência (noûs, decorrente do intelecto nela implantado pelos deuses) e a razão como instrumentos, verdadeiros atributos acoplados à alma humana em sua substancialidade constitutiva, descrita no Timeu, contudo é fato que a descrição platônica sugere algo do gênero. Sem maiores desdobramentos histórico-antropológicos que nos fariam dispersar da temática ensejada na dissertação, vale a pena recordar que a Grécia Clássica é produto de uma série de transformações sociais, políticas e culturais que tiveram seu início aproximado, em torno do século VIII a. C. com a criação da polis (cidade-estado), a reintrodução da escrita através da incorporação do alfabeto siríaco-fenício com todas as conseqüências que decorrem das mudanças mentais e sociais oriundas da passagem de uma tradição oral para a tradição escrita, com todas as implicações e adaptações tecnológicas necessárias a tal transposição aproximadamente na virada do século IV para o III a. C.. O estudo dos efeitos da reintrodução da escrita na sociedade grega é extenso e não cabe em nossa atual pesquisa, o que nos faz sugerir ao leitor interessado, que consulte helenistas como Detienne (1998, p. 48-84; 85-119; 1988), Havelock (1996, p. 11-44; 87-118; 187-218; 233-272; 327-356), Vernant (1998; 1990), Jaeger (1995, p. 190-229; 230-249; 335-440; 65

763-989) e Mondolfo (1970, p. 10-120) e Reale (2004). Nesses se percebe que a linguagem racional, compreendida como um modo específico de representar e estruturar o mundo em detrimento do que era usual socialmente, e efetivamente presente até a época de Platão, isto é, a linguagem oral de fundo mítico e caráter eficiente, representada pelos poetas. Da palavra-diálogo, um dos modos discursivos entre os helênicos no período anterior ao da reintrodução da escrita entre os séculos IX a. C. (HORTA, 1970, p. 49) e VIII a. C. (DETIENNE, 1998, p. 59-60), emergiu a noção de logos como discurso caracterizado pela eficiência comunicativa e liberalidade normativa antes de sua codificação por Aristóteles. Ora, o discurso racional para Platão seria expressão da alma que teria seu fundamento justamente em sua parte que comanda, governa, intelige e se alimenta. A consciência seria gerada pelo uso da razão e dos demais atributos da alma e, nesta medida, a consciência seria a verdadeira realidade insubstancial da alma que através dos tempos, exercitada na contemplação das realidades verdadeiras e do Ser Absoluto, desenvolveria a felicidade como fruto da harmonia da parte divina que haveria na alma. É algo a ser refletido e pesquisado em outro trabalho. Declara Platão que a alma habitaria o Hades, enquanto desencarnada, procedente do mundo dos vivos e, contrariamente, habitaria o mundo dos vivos, procedente do Hades, como é informado no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 60): (Fédon) SÓCRATES: - Há, pois, acordo entre nós ainda neste ponto: os vivos não provém menos dos mortos, que os mortos dos vivos, ora, assim sendo, haveria aí, parece, uma prova suficiente de que as almas dos mortos estão necessariamente em alguma parte, e que é de lá que voltam para a vida.

Vale lembrar que o número de almas para Platão seria limitado à razão diretamente proporcional ao número de astros da phýsis, e, desta maneira, os mundos dos mortos e dos vivos se autoalimentariam, patenteando-se assim, o princípio da palingenesia como elemento essencial de retroalimentação da vida nos seus dois planos existenciais interagiriam e complementar-se-iam equilibradamente. É necessário atentarmos para o fato de que o Hades seria uma espécie de duplo do

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mundo dos vivos (ou talvez, quem sabe o contrário?), e que as ações, escolhas e omissões das almas encarnadas se refletiriam causalmente no seu estado futuro, após a morte do corpo sensível. Desta maneira, diferentemente da tradição homérica, que atribuía às almas uma inconsciência de si e seu redor, as almas em Platão são diretamente responsáveis por seus atos e necessariamente, por sua felicidade ou infelicidade futuras, como é visto no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 70): (Fédon) SÓCRATES: - E é perfeitamente claro, para cada um dos outros casos, que o destino das almas corresponderá às semelhanças com o seu comportamento na vida? CEBES: - Bem claro; e como não haveria de ser assim? SÓCRATES: - Os mais felizes [...] serão aqueles cujas as almas hão de ter um destino e lugar mais agradáveis, serão aqueles que sempre exerceram essa virtude social e cívica que nós chamamos de temperança e de justiça e às quais eles se formaram pela força do hábito e do exercício, sem o auxílio da Filosofia e da reflexão?

Temos que considerar o que Platão declara quanto ao que chama vício da alma, que segundo ele, não seria voluntário, mas uma má disposição da educação ou do corpo sensível como vemos em Timeu (PLATÃO, s/d, p. 176): Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é.

Para Platão, citando Ésquilo em A República, a alma assemelhar-se-ia a um campo a ser semeado: [...] cultivando em sua mente o solo fecundo em que germinam os prudentes desígnios. (PLATÃO, s/d, p. 57). Ora, se é um campo a ser semeado, alguém arroteará a terra, adubará, lançará as sementes de alguma maneira e zelará até a colheita. Conforme visto acima, as almas influenciariam e seriam influenciadas umas pelas outras e nesta medida seriam, simultaneamente, terra e lavrador constantemente. Daí a necessidade do máximo cuidado para com a formação educacional da alma, que à época de Platão ainda era predominante e fundamentalmente baseada na oralidade, com crescentes acessos à escrita, para que não ficasse abandonada a qualquer preguiçoso que a corrompesse por maus

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exemplos e palavras. Sendo a alma também comparada à polis por Platão, que era dividida em três classes, quais sejam, os comerciantes, trabalhadores braçais e artesãos, os guerreiros e os guardiões, a alma seria explicada como sendo formada por três partes, quais sejam, aquela que aprende ou raciocina (noûs), a que se encoleriza ou age por impulso (thýmos) e a apetitiva ou vegetativa (pneyma) como se vê na República (PLATÃO. s/d, p. 162-163): (A República) SÓCRATES: - Eis, ó varão admirável! Que se nos depara neste momento um pequeno problema acerca da natureza da alma: se ela possui em si esses três princípios ou não. Não nos será forçoso reconhecer – comecei – que em cada um de nós existem os mesmos princípios e modos de ser que na cidade? Pois de onde lhe viriam eles senão de nós mesmos? Considera a índole colérica e arrebatada: seria ridículo pensar que nas cidades a que ela é atribuída, como as da Trácia, da Cítia e em geral das regiões setentrionais, essa qualidade não lhe venha dos indivíduos. E o mesmo se pode dizer do amor ao saber, que é característica especial de nossas regiões, e da avareza, que costuma ser assacada aos naturais da Fenícia e do Egito.

Tal qual a polis, essas partes da alma se responsabilizariam, enquanto e somente enquanto encarnada, por áreas e funções correspondentes aos corpos físico e inteligível, quais sejam: a racional, localizar-se-ia na cabeça (Platão foi o primeiro a sugerir que o cérebro era a sede da alma racional indo contra a tradição médica helênica não hipocrática, que a localizava no fígado). Sua função seria a de gerir parcimoniosamente, sob o ideal de sophrosyné, as demais partes da alma, manter a saúde dos corpos e do conjunto anímico (pneyma e thýmos), nutrindo-as e exercitando-se como um todo; se chama alma noética ou simplesmente noûs como vemos em Timeu (PLATÃO, s/d, p. 181): A respeito da espécie de alma que é a principal em nós, deve-se fazer a seguinte observação. Deus dela nos fez presente, como de um gênio divino. É o princípio o qual dissemos que habita a parte mais elevada de nosso corpo. Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente que esta alma nos eleva acima da terra, em razão de sua afinidade com o céu.

A seguinte seria a que se encoleriza ou tem características de impetuosidade, impulsividade e que se localizaria no tórax, mais especificamente, no coração. Sua função seria a de auxiliar o noûs a administrar as duas outras partes, defendendo-a contra assaltos e distúrbios internos. Equivaleria na cidade-estado à função do exército de cidadãos. 68

Platão a chama de thýmos. Ela não mostra características de auto suficiência como o noûs, em vista de ser propensa à hybris (desmedida), como vemos em A República: SÓCRATES: exprimindo-se assim, é evidente que ele pensa em duas coisas distintas, uma a increpar a outra: o princípio que raciocina sobre o bem e o mal contra o que se encoleriza sem raciocinar. (PLATÃO, s/d, p. 171).

A terceira parte da alma seria a apetitiva ou vegetativa, que se localizaria no complexo sistêmico corporal sensível situado no baixo ventre, como se vê na República e no Timeu respectivamente: (A República) SÓCRATES: - Então nos é lícito admitir que se trata de duas coisas diferentes uma da outra, chamando àquilo com que o homem raciocina o princípio racional da alma, e àquilo com que deseja, sente fome ou sede e é perturbada pelos demais apetites, o irracional ou apetitivo, afeiçoado a toda sorte de prazeres e excessos. (PLATÃO, s/d, p. 169). A parte da alma que tem o apetite do comer e do beber, e de tudo o que o corpo tem necessidade natural, os deuses alojaram na região que se estende depois do diafragma, e que é limitada pelo umbigo. Em todo esse espaço organizaram uma como que manjedoura para a nutrição do corpo. E lá ligaram esta parte da alma, como uma besta que deve ser bem alimentada, para a preservação da espécie humana. É então a fim de que, saciando-se sempre perto de sua manjedoura, situada o mais longe possível da parte que delibera, e causando-lhe o mínimo possível de transtorno. (PLATÃO, s/d, p. 151).

A função da pneyma seria a de produzir energia, substâncias e riquezas às demais partes da alma. Corresponderia às classes produtivas que não se dedicavam à guerra nem à gestão. A energia que produzisse seria importante para a manutenção do corpo sensível e devido a isso e à semelhança com o conceito primitivo de pneyma (sopro vital, vento, espírito, alento), que envolveria a noção de vitalidade, identificamo-lo com o do princípio apetitivo da alma. É importante assinalar que alma apetitiva seria considerada por Platão como alma mortal, isto é, a parte do complexo anímico que se dissolveria no ambiente após escapar, pelo ferimento do corpo sensível ou pelas narinas e boca, por ocasião de morte natural, no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 149): Depois, conformaram nele uma outra espécie de alma, a espécie mortal. Esta comporta em si as paixões temíveis e inevitáveis. De início o prazer, este poderoso atrativo para o mal, depois as dores, causa de que abandonemos o bem, e depois ainda o medo e pulsilanimidade, conselheiros estúpidos, o desejo surdo aos conselhos, e enfim a esperança, fácil de se decepcionar.

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É uma informação capital na medida em que se apresentaria como elemento semi-sensível e semi-inteligível simultaneamente, e elo possível entre o corpo inteligível e o corpo sensível. Platão não é o primeiro a se referir à existência da pneyma como sopro vital na Antiguidade helênica. Outros pensadores pré-socráticos já a conheciam e, conforme se percebe, em analisando os textos desses filósofos fisicistas em Kirk, Raven e Schofield (1994, p. 73-98, 145-166, 198-221, 223-248, 293-338 e 339-368),quando se referem aos filósofos como Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Heráclito de Éfeso, Pitágoras e Filolau de Crotona e Empédocles de Agrigento, que já o mencionavam em suas teorias. Além dessa estrutura trina, isto é, alma noética, impetuosa e apetitiva, vê-se que em Platão, a alma apresentaria ainda variantes comportamentais elementares à semelhança dos governos das cidades-estados helênicas. Tal comportamento seria definido sobre a base psicológica estabelecida pela procissão no céu da verdade, ao seguir a alma um dos deuses do panteão olímpico: Que parece haver tantas formas de alma quantas são as formas distintas de governo. (PLATÃO, s/d, p. 178).

Estas disposições comportamentais, a saber, monárquica, aristocrática, oligárquica, democrática e tirânica seriam contingentes e francamente dependentes de dois fatores essenciais: o primeiro, a vontade da alma em aderir a eles ou não; o segundo, da formação recebida pelos pais e da sociedade onde a alma encarnaria por meio da educação, como visto no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 176): “Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é”. Estas características da alma seriam contingentes e como tais, mutáveis. Porém, determinariam sua maneira de encarar a sua própria natureza, sua posição humana na sociedade e o tipo de comércio que viria a estabelecer com a sabedoria, riquezas e prazeres do corpo. Isto por causa da influência profunda que a cultura exerceria na forma de ser e de se relacionar com a sociedade e com a phýsis. Afinal, a Grécia Clássica não era uma massa cultural uniforme, mas sim composta por etnias aparentadas, em diferentes níveis de desenvolvimento cultural, embora aparentados pela língua. 70

Devido a sua natureza, a alma é objeto de prazeres que lhe são próprios e que estão vinculados ao modo pelo qual a alma os utilizará, enquanto encarnada, como se vê na República de Platão (s/ d, p. 229): Aquele cujos desejos o conduzem para o saber sob todas as suas formas se entregará inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo verdadeiro e não fingido.

Como último traço a assinalar sobre a alma, nos referimos ao que Platão indica na República: [...] O que eu queria fazer notar era isto: que em todos nós, ainda nos mais morigerados, existe uma espécie de desejo temível, selvagem e contrário a toda a lei, é essa a que se manifesta nos sonhos. [...]

(PLATÃO, s/d, p. 346). Platão está se referindo à existência de desejos terríveis, selvagens e contrários a toda lei e que eclodiriam, implodindo as formas da alma relacionar-se consigo mesma e com as outras na sociedade políade. É de conhecimento de todos, os trabalhos de Michel Foucault em sua trilogia História de Sexualidade, a saber, no volume I, Vontade de Saber (1998), no volume II, O Uso dos Prazeres (1998) e no volume III, O Cuidado de Si (1985, p. 13-14), em especial, nesta última, o autor descreve como os antigos lançavam mão da oniromancia (arte de interpretação dos sonhos), em seu dia a dia, bem como a consulta à hestia, antes de tomarem decisões que consideravam relevantes, confirmando Coulanges (1998, p. 7-28) em relação ao culto dos ancestrais. Era uma prática muito comum e regulamentada através de tratados e que contava com profissionais especializados nesta arte. Neste sentido, observa-se que Platão não deixa de lado essa importante prática social em suas observações sobre a alma e suas relações sociais, uma vez que ela manteria contato com outras almas encarnadas. O íntimo contato com seus ancestrais através da héstia e a resposta dos deuses olímpicos ou epiktônios seria essencial para a manutenção e a prosperidade do genos (família). No entanto, tal prática, como atesta Foucault, não era exclusiva dos chefes de família. Homens, mulheres, crianças, escravos e velhos, sonhavam e, nesta medida, seriam, também, porta-vozes possíveis dos deuses, individual e coletivamente. O fato é que Platão patenteia tal prática observando que em muitos momentos ela também se apresenta como manifestadora dos desejos mais ou menos harmoniosos de 71

quem sonha. Em certo sentido, poderia expressar o desequilíbrio desta alma, dando mostras de sedição íntima em sua estrutura trina, isto é, alguma revolta da pneyma ou thýmos ou simplesmente o descaso para com a função primordial do noûs, que parece ser a opção mais razoável. Neste sentido, observa-se que os sonhos e sua interpretação são como uma espécie de termômetro que possibilitaria aos antigos avaliar as condições da alma no que tange não só à sua formação, como quanto aos cuidados que dispensaria a si na busca de melhor manifestar as qualidades cívicas previstas na polis.

2.2 ATRIBUTOS DA ALMA O pensamento é o primeiro dos atributos da alma ao qual Platão se refere da coletânea de textos que estudamos. Ele é apresentado como o meio de comunhão entre a alma e o Ser verdadeiro: (Sofista) ESTRANGEIRO: - E é pelo corpo, por meio da sensação, que estamos em relação com o devenir; mas pela alma, por meio do pensamento, é que estamos em comunhão com o ser verdadeiro, o qual dizeis vós, é sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o devenir varia a cada instante. (PLATÃO, s/d, p. 140).

Através do discurso, a alma seria capaz de negar ou afirmar algo e, desta maneira, exerceria o juízo que, através do pensamento, Platão chama de opinião e essa, quando se apresenta por intermédio da sensação, ele chama de imaginação, como vemos no Sofista (PLATÃO, s/d, p. 158): (Sofista) ESTRANGEIRO: - Sabemos, além disso, que há, no discurso, o seguinte... TEETETO: - O quê? ESTRANGEIRO: - Afirmação e negação. TEETETO: - Sim, sabemos. ESTRANGEIRO: - Quando, pois, isto se dá na alma, em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra para designá-lo além de opinião? TEETETO: - Que outra palavra haveria? ESTRANGEIRO: - Quando, ao contrário, ela se apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio da sensação, este estado de espírito poderá ser corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda outra palavra? TEETETO: - Nenhuma outra.

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ESTRANGEIRO: - Desde que há, como vimos, discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado de espírito que designamos por imaginação, que é a combinação de sensação e opinião, é inevitável que pelo seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam, algumas vezes, falsas.

O pensamento é apresentado como diálogo da alma com ela mesma e, desta maneira, observa-se o atributo da linguagem como canal de extensão e, em certo sentido, de determinação do real através do juízo, do valor e de realidade atribuídos aos seres pelas almas no processo do conhecimento em sua relação com o mundo. É diálogo consigo na medida em que se dá através do discurso interno e Platão assim o designa como pensamento por apresentar-se como um dos fenômenos comunicacionais da linguagem na alma. Neste sentido, a linguagem é, em certa medida, canal de extensão da interioridade da alma, uma vez que pode vir a ser expresso verbal ou graficamente e, nesta medida, garantir o contato intersubjetivo, bem como a transmissão do conhecimento entre as almas. Ainda segundo Platão, a imaginação seria a combinação da sensação (corporal sensível) e da opinião que, segundo o autor, seria a conclusão do pensamento. A opinião teria a característica de nem sempre ser verdadeira, devido a seu ponto de contato com a sensação, visto que, segundo o autor, a imaginação seria um misto de opinião e sensação na medida em que ele considera este como conhecimento não confiável e passível de equívocos, ela pode ser algumas vezes verdadeira e outras não. Um dos principais atributos da alma percebido ao longo da pesquisa foi o da liberdade. Não exatamente como compreendemos hoje, eivada de individualismo, mas como autonomia deliberativa sobre determinadas questões. Vemos, por exemplo, a liberdade da alma de se deslocar na abóbada celeste por ocasião da procissão de contemplação da verdade. Além de poderem escolher o deus que seguirão, teriam a liberdade de se deixarem levar ou não pelo turbilhão da procissão, de lutarem contra sua natureza de maneira a contemplarem melhor as Ideias ou simplesmente de passarem, conforme a necessidade, por tal evento. Poderia optar por buscar ou não os alimentos que 73

lhe conviriam, isto é, os saudáveis e, consequentemente, possuiriam a possibilidade de desenvolverem ou não suas asas e com isso, seriam ou não felizes, como se vê no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 153): (Fedro) SÓCRTAES: - O mesmo se dá com todas as almas que procuram receber o alimento que lhe convém. Quando a alma, depois da evolução pela qual passa, chega a conhecer as essências, esse conhecimento das verdades puras a mergulha na maior das felicidades.[...] A sorte das outras almas é, porém esta: Elas tudo fazem para seguir os deuses, erguem a cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar com a rotação. Mas, perturbadas pelos corcéis do carro, apenas vislumbram as realidades. [...] Outras há, porém, que nostálgicas seguem todas para cima, acompanhando a rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende passar adiante.

O sentido desta imagem, parece-me, seria de que a alma no Hades ou no mundo inteligível, teria certa dinâmica existencial focada no conhecimento (sua alimentação própria) e este, por sua vez, se daria de maneira imediata, isto é, direta, sem intermediação dos sentidos corporais físicos, desde que ela fosse capaz de gerenciar suas tendências interiores. O problema é que tal qual mencionamos acima, a respeito da escolha que elas viessem a fazer por este ou aquele deus que a guiaria nas chamadas revoluções divinas, parece-me que a alma viria a se incorporar das qualidades e defeitos inerentes ao deus que optasse como patrono; uma vez que cada um deles seria responsável por determinadas situações e fenômenos naturais humanos ou não e, em verdade, esta escolha poderia ter a ver com a capacidade de apreensão e compreensão das verdades eternas (Ideias) e sua aplicação enquanto encarnadas. No aproximarem-se de sua essência existencial, isto é, de sua parte divina com a qual se identificaria; fruto desta identificação, ela se libertaria mais e mais da possibilidade de reencarnação por ter robustecidas suas asas, isto é, sua capacidade intelectiva e a maneira pela qual se utilizaria do fruto de suas intelecções na vida prática, isto é em seu dia a a dia no inteligível ou no sensível. Outro atributo da alma seria o da memória que lhe permite recordar-se das 74

verdades eternas que contemplou antes da vida humana, bem como de sua educação e sabedoria após a morte do corpo sensível. Vale ressaltar que numa sociedade oral, em processo de reintrodução da escrita como a grega clássica, a memória e suas técnicas mnemônicas eram de extrema valia. Mesmo após a época de Platão, a oralidade era muito valorizada e isto porque havia uma diferença fundamental entre a nossa forma de encarar a memória e suas propriedades e a deles. Platão entendia que as coisas mais importantes e sérias não deveriam ser postas por escrito, uma vez que não seria interessante que pessoas desqualificadas tivessem acesso a informações privilegiadas. Embora Platão houvesse escrito muitos diálogos e seus livros sejam os mais completos que temos de seu período, a realidade é que ele confiava mais na memória que na escrita, o que declara em vários pontos de sua obra. A memória era encarada entre os gregos como uma divindade e regente de um grupo de deusas chamadas Musai (Musas) e estas, por sua vez, eram responsáveis, cada uma, por determinado aspecto do que chamaríamos hoje de conhecimento e, através de sua evocação, os poetas manifestavam, sob os auspícios de Mnemosyne (Memória), o conhecimento do passado, nunca os do futuro. Desta maneira, a visão clássica de memória se distingue de nossa atual visão funcional e cumulativa, pois se baseava primordialmente em técnicas mnemônicas visando a evocação e experienciação grupal, por meio da palavra-eficiente poética e dos poetas, os oficiantes das Musai. Era esta, assim, a forma de preservação do passado e das experiências que os ancestrais haviam preservado entre os helênicos. Neste sentido, para Platão a memória aparece como um dos atributos da alma. A ausência dela seria considerada como um mal anímico grave e correspondente a colocar o homem em pé de igualdade com os animais, uma vez que estes não teriam contato com as Idéias no mundo inteligível antes da nascerem em nova existência, como se vê em Fedro (PLATÃO, s/d, p. 154-155): (Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve ser segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das

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Verdades Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas evoluções. [...] Como já disse, a alma humana, dada a sua própria natureza, contemplou o Ser verdadeiro. De outro modo nunca poderia entrar num corpo humano. Mas estas lembranças desta contemplação não se acordam em todas as almas com a mesma facilidade.

A perfectibilidade seria outro atributo conexo à memória, pois seria através do acúmulo de conhecimentos verdadeiros e de vivências sob o signo da Justiça e do Bem, em uma vida o mais filosófica possível, que a alma se desvincularia de suas imperfeições e identificar-se-ia com sua natureza divina. No entanto, vemos o quanto esse atributo é conexo à liberdade, visto a alma dispor de liberdade para reduzir o poder de sua vontade ante o objeto desejado. Parece-me que a alma seria tragicamente livre em Platão e afirmo isso, uma vez que ela seria livre para aderir ou não ao movimento necessário e irrevogável das revoluções divinas, no céu da verdade e uma vez que ela precisaria da alimentação junto às Ideias verdadeiras. No entanto, neste movimento coercitivo por natureza, a alma poderia esforçar-se por contemplar o máximo possível, seguindo o deus de sua escolha ou simplesmente deixar-se-ia levar, o que quase sempre acabaria na necessidade de reencarnar, uma vez que perderia as fracas asas que desenvolvera. Desta feita, parece-nos que a alma em Platão teria a liberdade como atributo de adesão aos movimentos contingentes da Necessidade que a conduziriam fatalmente ao progresso e a acumular conhecimentos verdadeiros, por contemplação ou experienciação, enquanto encarnada. Como se viu acima, a alma teria o atributo da liberdade de escolha sobre os alimentos que sorveria. Desta maneira, vemos que no e através do discurso/linguagem, a alma poderia habilmente curar-se ou envenenar-se, conforme atesta Platão no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 174): (Fedro) SÓCRATES: - Tens de levar isso em conta se quiseres, não só pela prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe remédios e alimentos, e a outra infundir a convicção que desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos.

Num sentido oposto ao atribuído à memória, a alma possuiria outro atributo que 76

lhe afetaria por ocasião da reencarnação, qual seja, o esquecimento, como se vê no Mênon (PLATÃO, s/d, p. 61): (Mênon) SÓCRATES: - Portanto, se sempre e em todos os tempos se encontra em sua alma a verdade das coisas, não se segue daí que a alma é imortal? Se assim é, caro Mênon, enche-te de coragem e procura sem receio, sem descanso o que atualmente não sabes, isto é, aquilo que perdemos a lembrança e esforcemo-nos para o descobrir e de nos lembrarmos novamente dessas coisas.

São aparentemente paradoxais esses atributos. Ora, se a virtude da memória manteria viva a origem, o destino e o conhecimento que a alma adquiriu no Hades ou na Terra, porque ao reencarnar precisa beber do rio do esquecimento, como se observa no Mênon? (Mênon) SÓCRATES: - A alma, é pois, imortal; renasceu repetidas vezes na existência e contemplou todas as coisas existentes tanto na terra como no Hades e por isso não há nada que ela não conheça! Não é de espantar que ela seja capaz de evocar à memória a lembrança de objetos que viu anteriormente, e que se relacionam tanto com a virtude como com as outras coisas existentes. Toda a natureza, com efeito, é uma só, é um todo orgânico, e o espírito já viu todas as coisas; logo, nada impede que ao nos lembrarmos de uma coisa, o que nós, homens, chamamos de “saber”, todas as outras coisas acorram imediata e maquinalmente à nossa consciência. A nós compete unicamente nos esforçarmos e procurar sempre, sem descanso. Pois, sempre, toda investigação e ciência são apenas simples recordação. (PLATÃO, s/d, p. 55).

Platão não expõe explicitamente sobre este tema, porém é depreendido no Fedro e A República. No primeiro, ele se refere à procissão divina e à ocasião em que a alma encarnaria pela primeira vez por não conseguir acompanhar o ritmo das revoluções. Resumidamente a alma não teria ainda experiências como ser humano e, nesta medida, não carregaria máculas de suas ações. Após a primeira encarnação e segundo suas escolhas de vida, precisaria pagar no Hades os males que cometeu ou receber as recompensas por seus atos meritórios, na ilha dos bem-aventurados. Depois, poderia retornar a uma nova existência através do fenômeno da metempsicose11. Metempsicose é uma doutrina reencarnacionista indo-europeia que acredita na possibilidade do retorno da alma humana em corpos animais para que estas paguem pelos erros cometidos em outras existências. Há variações entre as versões indiana, egípcia e grega, embora profundamente aparentadas. Além de Platão, outro representante grego desta concepção é Pitágoras de Samos e, ao que parece, era um conceito relativamente popular à época. 11

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Quando Platão, no Fedro, explica a procissão divina, menciona a lei de Adrastéia, que diz que nenhuma alma que não houvesse contemplado as Ideias poderia encarnar em corpo de homem. Em seguida afirma que após a primeira vida humana, uma vez pago os débitos dos erros e recebido as recompensas da vida justa, a alma poderia escolher renascer como homem ou animal conforme seu desejo. Ora, se ela tivesse procedido a escolhas equívocas que a levariam à intoxicação de seu eidolon ou produzido dano a outrem que a fizesse envergonhar-se de seu passado, como encararia a si mesma diante da reprovação da sociedade, uma vez que para eles (helênicos) o indivíduo só tinha consciência de si através do olhar do outro? Se o homem grego tinha noção de si mesmo através do conceito que gozava perante seus iguais, como poderia se adaptar, uma vez que a sociedade sabia o que fez ou deixou de fazer? E como esta o encararia se nesta alma identificasse alguém que fora nocivo a algum membro ou ao grupo? Desta maneira, o esquecimento provisório se faria necessário como atributo viabilizador da renovação da alma na figura de outra personalidade e suas novas oportunidades existenciais, acredito. Outro atributo de fundamental importância para a alma seria a razão, conforme se vê em Mênon: SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário. (PLATÃO, s/d, p. 63). Ela seria um atributo diretamente vinculado à alma e à sua

disposição, conforme a vontade. Aqui me refiro à razão como capacidade discursiva, isto é, uma determinada linguagem através da qual a alma optaria por se expressar. A inteligência, o noûs, seria outro dos atributos da alma, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 109): Ora, tudo isso faz parte das causas adjuvantes de que Deus se serve como auxiliares para realizar na medida do possível a ideia ótima. No entanto, todos estimam não serem causas acessórias, mas as principais de tudo. Sim, são elas que fazem os corpos resfriar-se ou se aquecer, contrair-se, dilatar-se e símiles coisas. Mas é impossível que tais coisas tenham em algo o pensar e a razão. Pois de todos os seres o único ao qual cabe possuir a inteligência é a alma, deve-se-o proclamar, e é invisível, ao passo que o fogo e a água e a terra e o ar, todos os corpos, são naturezas visíveis.

O noûs parece ser distinto da razão, pois como vimos anteriormente quanto à alma 78

em seus elementos constituintes, o noûs seria a parte que deveria governar por ser capaz de expressar a razão como linguagem de comunicação, isto é, como maneira de expressarse sob determinadas regras, com determinados objetivos e que hoje, graças a Aristóteles, temos esse conhecimento normatizado através da Lógica Formal. Como modo de vida da alma, em detrimento das duas outras partes referidas pelo autor, enquanto encarnada, quais sejam, a impetuosa e a apetitiva e, após a morte, na ausência da apetitiva, permaneceria a mesma hegemonia do noûs sobre o thýmos. Neste sentido, pelo que depreendi dos textos durante a pesquisa, parece-me que a razão, tanto quanto a inteligência, constituir-se-iam como atributos da alma, em especial, o noûs, como modo de discurso, a partir do século VII a. C., com a reintrodução tecnológica da escrita e a passagem gradual da palavra-gesto oral à palavra-diálogo passível de ser grafada. Após a encarnação, a alma se veria necessariamente agrilhoada ao gênero de existência que escolheu, às circunstâncias necessárias deste gênero de vida como se vê em A República (PLATÃO, s/d, p. 407-415) e tornar-se-ia privada do direito de fuga à vida, sob pena de punições no Hades e de acentuamento de suas dificuldades pessoais geradas pelo ato em si, como é visto em Fédon (PLATÃO, s/d, p. 51): (Fédon) SÓCRATES: - É provável também que isto te pareça maravilhoso e que te espantes ao saber que, para todos os homens, há uma absoluta necessidade de viver, necessidade invariável mesmo para aqueles para os quais a morte seria preferível à vida. SÓCRATES: - Poder-se-ia, com efeito [...], encontrar nisso, pelo menos considerado sob essa forma, qualquer coisa de irracional. Todavia não é assim, e, muito provavelmente, aí não falta razão. A esse respeito há, mesmo, uma fórmula que usam os adeptos dos Mistérios: “É uma espécie de prisão o lugar onde nós, os homens, vivemos, e é dever não libertar ninguém nem permitir que alguém seja levado dali.” Formula essa, sem dúvida, que me parece tão grandiosa quão pouco transparente! Mas não é menos exato, Cebes, que aí se encontra justamente expresso, creio, o seguinte: os deuses são aqueles sob cuja guarda estamos e nós, homens, somos uma parte da propriedade dos deuses.

Quanto ao pensamento, no entanto, ele é apresentado como um órgão da percepção racional da alma, logo, aquele seria um outro atributo vinculado à razão, como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 54-55): (Fédon) SÓCRATES: - Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?

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SÓCRATES: - Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos sedentos: a sabedoria.

Um dos mais interessantes atributos da alma seria a possibilidade dela conhecer a verdade dos seres em si mesmos por meio de si. Vale ressaltar neste particular que para Platão, durante a vida, o acesso ao conhecimento verdadeiro seria impossível, o que se conseguiria apenas após a morte do corpo sensível uma vez que ocorreria um contato direto com as Ideias. É uma característica da alma que participa da procissão divina mencionada no Fedro ter que encarnar e experienciar diversas vidas humanas e animais, conforme sua vontade, para ter acesso ao conhecimento verdadeiro dos seres. O problema de alcançar os conhecimentos verdadeiros em vida seria devido à enorme influência do corpo sensível, com suas exigências, às quais impediriam a alma de concentrar-se sobre qualquer objeto de estudo. No entanto, o conhecimento verdadeiro estaria lá na interioridade da alma, à espera de ser convenientemente explorada por alguém preparado para isso. Um outro atributo que Platão assinala e que seria essencial na alma é que ela teria a capacidade ordenadora e causal de todas as coisas. Em que sentido se pode compreender essa posição de Platão e em que parte de sua aparecem referências sobre esse atributo? A obra de Platão que introduz esse tema é o Fédon (s/ d, p. 82-90) onde o autor apresenta sua experiência de juventude a respeito das pesquisas filosóficas que empreendeu a partir de alguns físicos pré-socráticos. No decorrer da exposição de Sócrates, Platão (Idem, p. 82-83) comenta sua aproximação às doutrinas do filósofo Anaxágoras, conforme segue: Ora, certo dia ouvi alguém que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o espírito como causa universal. Se é assim, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo o que foi feito da melhor forma. Desse modo, se alguém desejar conhecer a causa e da origem e morte das coisas, deve, antes de mais nada, procurar indagar qual é a melhor maneira pela qual ela existe.

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Pensando desta forma, exultei acreditando haver encontrado em Anaxágoras o explicador da causa, inteligível para mim, de tudo o que existe. [...] Nunca supus que depois dele haver dito que o Espírito os havia ordenado, ele pudesse dar-me outra causa além dessa e que é a que serve a cada uma em particular assim como ao conjunto.

Ao longo da narrativa, Platão informa que com o decorrer de seus estudos sobre o pensamento de Anaxágoras, decepcionou-se, pois como informa no Fédon (s/ d, p. 83-84): À medida que avançava e ia estudando mais e mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água e em muitas outras coisas absurdas! Parecia-me que ele se portava como um homem que dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os ossos são sólidos e separados uns dos outros por articulações, e os tendões contraem e distendem os membros, e os músculos circundam os ossos com as carnes e a pele a tudo envolve! Dar nome de causas a tais coisas seria ridículo. [...] Ardentemente desejaria eu encontrar alguém que me ensinasse o que é tal causa! Não me foi possível, porém, adquirir esse conhecimento então, pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de pessoa alguma. Mas quererias, estimado Cebes, que descrevesse a segunda excursão que realizei em busca dessa causalidade? [Grifo nosso].

Ora, o que Platão assinala aqui é que diante da possibilidade de ter encontrado na doutrina do Espírito de Anaxágoras a causa ordenadora do universo, Platão teve esperanças de conhecer e compreender as conexões necessárias e últimas de todo o existente. Contudo, diante dos desdobramentos de suas pesquisas, constatou-se que o caminho assinalado por Anaxágoras não foi levado adiante e como causa última do real foram apresentadas, à maneira dos pensadores pré-socráticos, os tradicionais elementos acima mencionados, como os causadores de tudo o mais. Nesta medida, parece, tudo havia retornado ao ponto de partida. Reale (2004, p. 116-156; 157-166) apresenta a referência de Platão sobre a segunda excursão, que chama de segunda navegação, como a indicação do caminho que levou o filósofo à descoberta do inteligível como a fonte geradora e mantenedora da realidade sensível, tendo como instâncias paradigmáticas, as Ideias e como fonte última de ordenação do Cosmos, os Princípios Primeiros do Uno e da Díade Universais.

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O mais importante para a compreensão do atributo ordenador e causal da alma adotado por Platão com base em seus estudos de Anaxágoras é analisar em que medida se deu a apropriação do conceito de Espírito (Inteligência). Esta apropriação foi realizada por nosso autor para assegurar o acesso da investigação sobre a causa última de tudo, passando do que Reale chama primeira navegação correspondendo às pesquisas dos préplatônicos; e a segunda navegação, empreendida por Platão com as teorias das Ideias e dos Princípios primeiros para que seja possível aquilatar em que sentido Platão adota o termo Inteligência/ Espírito assinalado acima. Qual o termo que Anaxágoras utilizou no texto que Platão teve acesso? No fragmento 12, de Simplício na Phys. 164, 24 e 156, 13 apud Kirk, Raven e Schofield (1994, p. 382-383) é possível apreciarmos o texto em português da doutrina de Anaxágoras ao qual Platão se refere acima: Todas as outras coisas tem uma porção de tudo, mas o Espírito é infinito e autônomo, e não se mistura com o que quer que seja, mas existe sozinho, de per si. Pois, se não existisse de per si, mas se misturasse com qualquer coisa, teria um quinhão de todas as coisas, se com alguma se misturasse; porquanto em cada coisa há uma porção de tudo, conforme já antes afirmei; e as coisas, que com ele se misturaram, opor-lhe-iam um obstáculo, de tal forma que não teria poder sobre coisa alguma, do mesmo modo que agora tem, existindo de per si. É que o Espírito é a mais sutil e a mais pura de todas as coisas e possui um conhecimento total de tudo e o maior poder. É o Espírito que dirige o que tem vida, quer seja maior ou menor. Foi o Espírito que também teve poder sobre toda a revolução, de tal modo que foi ele que, no início, lhe deu o impulso. Primeiramente, começou a mover-se a partir de uma pequena área, mas agora move-se sobre uma mais vasta e sobre uma ainda mais vasta se há-de mover. E é o Espírito que tem conhecimento de todas as coisas que se misturam e se separam e dividem. E tudo o que estava para ser – o que era e o que agora é e o que há –de ser – a tudo o Espírito pôs em ordem, bem como a esta revolução que agora executam os astros, o Sol e a Lua, o ar e o aither, que estão separados. E foi esta revolução a causa de se haverem separado. E o espesso do úmido. Mas muitas são as partes de muitas coisas, e nenhuma coisa se separa ou distingue de outra por completo, exceto o Espírito. O Espírito é todo igual, quer se trate das maiores ou das menores quantidades dele, ao passo que nenhuma outra coisa é igual a qualquer outra, mas cada simples corpo é e era mais claramente aquilo de que possuía maior quantidade.

Embora em todo o corpo do texto acima, o tradutor tenha se utilizado do termo Espírito para designar Inteligência, no original, em grego, constam três palavras para designar a mesma ideia, quais sejam: noûs, gnômen e psychén. A primeira significa faculdade

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de pensar, inteligência; sabedoria, reflexão; pensamento, [...] alma, coração [...] ; a segunda, juízo, talento, inteligência; a terceira, mais abrangente, significa sopro da vida, alento; alma; vida; ser vivo; pessoa; [...] alma humana; entendimento, conhecimento, prudência , conforme se vê em Isidro Pereira (1990,

p. 391; 115; 628). Das três, a que aparece mais vezes é noûs e, por conseguinte, adotarei a compreensão do conceito que indica: faculdade de pensar, inteligência e pensamento; uma vez que mais se adéqua ao uso que Platão dá em seus textos, em especial, no que se refere ao que ele chama de alma racional, quando a alma humana é ligada a um corpo mortal. Ora, segundo Reale (2004, p. 106): Anaxágoras tinha razão ao afirmar que a Inteligência é causa de tudo, mas não conseguiu dar a tal afirmação um fundamento adequado e uma consistência necessária, porque o método de investigação dos naturalistas seguido por ele não o podia permitir. Afirmar que a Inteligência ordena e causa todas as coisas significa que ela dispõe todas as coisas da melhor maneira possível. Isso significa que a “Inteligência” e o “Bem” são estruturalmente conexos, e que não se pode falar da primeira sem falar do segundo. Portanto, pôr a Inteligência como causa implica eo ipso pôr o melhor (o Bem) como condição da geração, da corrupção e do ser das coisas. Mas Platão se mostra ainda mais explícito nas suas alusões; de fato, ele explica que quem adota essa perspectiva deve conhecer; além do “perfeito” e do “ótimo”, também o “pior”, porque a ciência do Melhor e do Pior á a mesma. E isso vale, em geral, para todos os fenômenos. Trata-se de uma forte alusão à polaridade dos Princípios primeiros (Grifos do autor)

Com o exposto acima, percebe-se claramente que o noûs que Platão (s/ d, p. 82-83) se remete para designar a alma racional está fortemente fundado na concepção de Inteligência-Espírito de Anaxágoras e que são mantidas suas propriedades ordenadoras e causais, enquanto alma encarnada e desencarnada: (Fédon) SÓCRATES: - Ora, certo dia ouvi alguém que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o espírito como causa universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo, se alguém desejar conhecer a causa da origem e morte das coisas, deve, antes de mais nada, procurar indagar qual é a melhor maneira pela qual ela existe. E pareceu-me ainda que a única coisa que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e mais perfeito, porque desde que ela tenha isso, ela necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto que são objetos da mesma ciência.

Outro importante atributo da alma seria sua capacidade de transmitir ao corpo 83

sensível as características de seu ser, isto é, os corpos seriam instrumentos maleáveis e moldáveis conforme a educação recebida através das virtudes anímicas, como se vê na República (PLATÃO, s/d, p. 118): Também aqui é necessário que a educação comece desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira. [...] não creio que o corpo bem constituído possa melhorar a alma com suas excelências corporais, mas pelo contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível.

Fruto de suas opções nutritivas, a alma desabrocharia e germinaria em si o saber que carrega latente. Este é um de seus mais poderosos atributos visto poder não apenas modelá-la à felicidade, mas retirá-la do ciclo das reencarnações e torna-la passível de privar da companhia dos deuses. Conforme é visto na República, Indubitavelmente o saber é uma faculdade, e a mais poderosa de todas elas. (PLATÃO, s/d, p. 220).

A capacidade que poderia chamar de manipulação plástica do pensamento que a alma possuiria, conforme nos informa Platão em A República, seria outro atributo e com ele a alma seria capaz de moldá-lo mais do que a cera e qualquer outro material: Exiges poderes extraordinários de artista – disse ele. –, no entanto, como o pensamento é ainda mais moldável do que a cera e outros materiais do mesmo gênero considera plasmada a imagem. (PLATÃO, s/d, p. 372) Essa

capacidade permitiria à alma atuar por meio de sua vontade através do pensamento que se apresentaria como uma espécie de torno sob a ação da vontade, ou simplesmente da linguagem em ação, que para o grego clássico era altamente plástica, isto é, constituía-se como algo observável pelo noûs e que guardava certa objetividade e concretitude.

2.3 “MORFOLOGIA” DA ALMA Platão apresenta a alma nas descrições que faz, tendo como base, a forma humanóide. O povo grego da época de Platão representava e vivenciava a experiência da presença de seus mortos em seu dia a dia através do culto doméstico e do Lar (lareira doméstica ou hestia), conforme é demonstrado por Burkert (1993, p. 269-380; 525-572), Coulanges (1998, p. 7-28), Vernant (1990, p. 151-192). Através dos trabalhos dos autores acima citados, facilmente compreende-se a 84

concepção e vivência sócio-religiosa do conceito de duplo ou eidolon. A forma humanoide, segundo Platão, seria uma das opções possíveis para a alma em uma nova encarnação. O critério de escolha relacionar-se-ia aos interesses momentâneos da alma por ocasião do cômputo geral de sua existência. Contudo, caso escolhesse outra forma que não a humanóide, e Platão mostra como opção apenas a forma animal, esta teria que arcar com as limitações próprias à forma escolhida e ao seu gênero de vida próprio. Como vimos anteriormente no Fedro, a respeito da alimentação de Ideias verdadeiras, a alma precisa realizar, para desenvolver as asas da sabedoria e da inteligência e, manter-se sem a necessidade de encarnação em um corpo mortal. Contudo, caso reencarne, ao longo de sua vida, precisa viver de tal maneira que seja possível afastar o máximo possível as interferências das sensações corporais sensíveis por meio dos exercícios filosófico, ginástico e musical, com o objetivo de dar continuidade à referida alimentação de Ideias. Nos dois casos acima mencionados, a alma busca ajustar seu ritmo, harmonizando-se em termos estético e funcional, isto é, em termos de identificação para com a essência divina das Ideias verdadeiras, essência esta que a alma participa por identidade de substância e de propriedades em sua constituição íntima e funcional, pois na medida em que estabelece o equilíbrio de suas asas, contempla mais e mais Ideias e assim se furta aos ciclos reencarnatórios. A busca do referido equilíbrio de ritmo é uma necessidade tanto para a alma encarnada como para a desencarnada, pois conforme a feição de desequilíbrio que nela se instale, a dinâmica intelectiva das Ideias sofre alterações. Nesse sentido, no caso do corpo sensível, a harmonização entre noûs, thýmos e pneyma é essencial, do contrário, a alma é capaz de gerar alguma patologia ou o que Platão chama de fealdade moral ou morfológica, o mesmo processo se aplicando em sentido inverso, isto é, rumo à saúde e beleza. 2.4 FUNÇÕES DA ALMA Em termos de sociedade grega clássica, uma das funções mais importantes das

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almas humanas era a de ser intermediária nas relações entre homens e deuses, enquanto desencarnada, conforme se vê nas indicações feitas por Coulanges (1998, p. 7-28) no seu livro A Cidade Antiga. As almas dos familiares mortos atuariam junto aos parentes vivos através da intermediação dos interesses do grupo junto aos olímpicos. O contato dos parentes vivos e mortos se dava através dos ritos do culto doméstico, por meio dos quais os vivos solicitavam constantes orientações aos mortos quanto aos seus afazeres diários, quando necessário, unindo, assim, todas as estruturas da phýsis num todo orgânico, como Platão menciona no Banquete (PLATÃO, s/ d, p. 108): É o liame que une o Todo a si mesmo. Graças a ele é que existe a divinização, e também a arte dos sacerdotes relativa aos sacrifícios, às consagrações, às fórmulas sagradas, a todas as profecias, encantações, à magia em geral. Toda a comunicação que se estabelece entre os deuses e os homens, estejam estes acordados ou dormindo, é sempre feita por intermédio dos gênios12.

No mundo sensível ou no mundo inteligível, a principal atividade da alma, por natureza, é a de dirigir, deliberar e tudo o mais do gênero. A percepção é tratada por Platão como vinculada à relação da alma com o corpo, na medida em que unidos, o que ele chama de comunidade corporal, em sendo afetada por algo (dor e/ou prazer), submeter-se-ia à alma, como é visto na República (PLATÃO, s/d, p. 198): E também a que mais se pareça a um só indivíduo? Quando, por exemplo, um de nós fere o dedo, toda a comunidade corporal, atraída para a alma como um centro e formando um só reino debaixo de sua suserania, sofre simultaneamente e em sua totalidade ao sofrer uma de suas partes; e por isso dizemos que o homem sente dor no dedo. E a mesma expressão se emprega quando qualquer outra parte do corpo tem uma sensação de dor ao sofrer ou de prazer ao acabar-se o seu sofrimento.

Depreende-se que a função principal da alma seria imprimir movimento ao que a ela se vincula, em especial, a seu corpo sensível, enquanto encarnada. Por meio desta ação, a alma alteraria a phýsis a partir de seu próprio corpo sensível. Observa-se, assim, que

Conforme Isidro Teixeira (1990, p. 888), em grego, gênio é sinônimo de daimon já apresentado anteriormente. 12

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deliberar, dirigir e aperfeiçoar o mundo a partir de si mesma, por meio de ações conscientes cada vez mais racionais, levá-la-ia à identificação essencial de sua natureza ao Ser Absoluto. Esta seria a principal função da alma enquanto geratriz ordenadora da phýsis.

2.5 “FISIOLOGIA” DA ALMA A alma possuiria um sistema de alimentação similar ao do corpo sensível. Porém, a alimentação da alma propriamente dita, conforme Platão assinala, apresentar-se-ia de maneira diferenciada da que é utilizada pelo corpo sensível, pois a alma não se nutriria de alimentos sensíveis. A alma nutrir-se-ia do que é Belo, Sábio e Bom; enfim, de Idéias principalmente e não de gêneros sensíveis. E baseada em seu atributo de liberdade, a alma poderia vir a intoxicar-se através da alimentação do que é mau e feio e, principalmente, pela ignorância, como se vê no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 152): (Fedro) Expliquemos agora de que modo as almas perdem as asas. A força da asa consiste em conduzir o que é pesado para as alturas onde habita a raça dos deuses. A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom. Por meio destas qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem, enquanto que todas as qualidades contrárias, como o que é feio, o que é mau a fazem diminuir e fenecer.

A alma disporia de intuição natural para identificar seu alimento e, para tanto, se disporia a assumir determinadas características que chamo psicológicas, isto é, por ocasião dos banquetes divinos, a alma escolheria um deus para seguir-lhe ao longo da subida para o chamado céu da verdade onde se encontrariam as Ideias como apresentado no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 157): (Fedro) SÓCRATES: - E assim sucede a respeito de cada deus. Cada um adora o deus de quem foi companheiro. Imita-o como pode enquanto não pervertido, e enquanto aqui vive, depois do primeiro nascimento. Deste modo, todos imitam o seu deus nas relações amorosas e nas outras. Cada um escolhe o seu amor de acordo com o respectivo caráter e passam a adorá-lo como seu deus, elevam-lhe uma estátua no seu coração, enfeitam-no e celebram os seus mistérios.

Ela saberia intuitivamente que carece de determinado alimento e, por isso, seria 87

coagida pela necessidade a proceder a tais revoluções, mas necessitaria ser orientada por uma das divindades olímpicas, responsáveis pela condução das almas ao banquete das Ideias

verdadeiras.

Conforme

mencionei

acima,

a

alimentação

se

daria

no

Hades/inteligível, por contemplação de Ideias verdadeiras. Platão não explicita este processo, porém, pelo que se depreende da pesquisa até o momento, a visão era considerada o sentido mais privilegiado entre os gregos, de modo que toda a sua estrutura gnosiológica se fundava na visão, ou melhor, na metáfora ocular no que se refere à alma, fosse de maneira empírica ou na do noûs, o que sustentaria a postura de Platão em informar que a nutrição da alma se daria através da contemplação. Uma dieta especial permitiria o desenvolvimento da inteligência e da sabedoria, o que a conduziria à felicidade. A alimentação saudável, isto é, a contemplação das Ideias verdadeiras, garante o desenvolvimento da inteligência (noûs), e, segundo Platão, assegura a encarnação humana, conforme declara ele no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 154): (Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é que a inteligência do homem deve se exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas suas evoluções.

Não é apenas no Hades que a alma se alimenta adequadamente. Enquanto encarnada, desde que tenha suficientemente contemplado as Ideias no céu da verdade antes de encarnar e tenha bebido pouco da água do rio Lethes (Esquecimento), a alma pode alimentar-se, enquanto em contato com o corpo sensível. Tal alimentação seria muito difícil devido a alma ser afetada pela concupiscência do corpo sensível por motivo de sua composição essencial, que conteria afinidade com o que é Múltiplo e o misto Múltiplo/Mesmo. Por isso, enquanto encarnada, as sensações que atingiriam o corpo poderiam, em certa medida, contribuir para a sua alimentação ou intoxicação conforme priorizasse a alma se conduzir racionalmente, como é visto em Fedro (PLATÃO, s/d, p. 155156): (Fedro) SÓCRATES: - Quando contempla o seu amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre: modificam-se-lhe os traços do rosto, o suor aparece em

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sua fronte e um calor não conhecido corre pelas suas veias. Logo que recebe, através dos olhos, a emanação da beleza, sente esse doce calor que alimenta as asas da alma. Esse calor funde o que impedia a expansão da vitalidade, aquilo que, sob a ação do endurecimento, impedia a germinação. O afluxo do alimento produz uma espécie de intumescência, um ímpeto de crescimento no caule das asas. Esse ímpeto vai se espalhar por toda a alma.

O processo de desenvolvimento das asas da alma geraria sofrimento, no sentido de angústias como o desenvolvimento de dentes causa desconfortos às crianças. O processo poderia estagnar ou regredir, conforme a vontade da alma de se alimentar com Idéias verdadeiras, bem como por suas tendências, enquanto encarnada, conforme nos informa Platão no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 156): (Fedro) SÓCRATES: - Esta, quando as asas começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma maneira como padecem as crianças que, ao receberem novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas. Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe crescerem as asas. Quando contempla a beleza de um belo objeto e daí provém corpúsculos que dele saem e se separam, de onde se deriva a vaga de desejo, a alma encontra então o alívio para as dores e a alegria. Mas, quando está separada do amado, fenece. E as aberturas pelas quais saem as asas, também murcham e, fechando-se, impedem a germinação da asa, que presa no interior juntamente com a vaga do desejo palpitando nas artérias, faz pressão em cada saída sem abrir caminho.

A vontade da alma poderia ser obnubilada, isto é, despotencializada deliberada e voluntariamente, desde que abdicasse ao pudor e à razão, isto é, segundo seu livre arbítrio, a alma simplesmente poderia não querer contemplar as Ideias verdadeiras, e, neste caso, pelo que descreve Platão, ela se deixaria levar pela rotação da procissão e se alimentaria das ideias de fealdade e de ignorância, o que a tornaria pesada por afinidade com o sensível e a precipitaria numa nova encarnação, como se vê ainda no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 159): (Fedro) SÓCRATES: - Se a melhor parte da alma é, pois, a vitoriosa e os conduz a uma vida bem ordenada e filosófica, eles passam o resto da existência felizes e em concórdia, governando-se honestamente, escravizando a parte da alma que é viciosa e libertando a outra que é virtuosa. E ao morrer recebem asas e ficam leves porque venceram um dos três combates verdadeiramente olímpicos, o maior bem que a sabedoria humana ou a loucura divina podem proporcionar a um homem. Mas se se dedicam a uma vida em comum sem filosofia, e contudo honesta, pode suceder que os dois corcéis rebeldes os dominem num momento de embriaguez ou de desordem, os corcéis indomáveis dos dois amantes, apoderando-se de suas almas pela surpresa, os conduzirão ao mesmo fim.

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Enquanto encarnada, a alimentação se daria através de atos e discursos que, habilmente aplicados, poderiam proporcionar à alma a felicidade. Daí se infere a importância que os helênicos davam à questão da palavra e à maneira pela qual tratavam a sua plasticidade captada pelo noûs, de forma que o falante, em agindo, escrevendo ou discursando era capaz de atuar sobre seus ouvintes e/ou observadores, de maneira a gerar neles toda uma série de sensações-emoções-reflexões que contribuíam para a alimentação de suas almas e, consequentemente, para a libertação dos ciclos da reencarnação. Ao mesmo tempo, e no sentido oposto, os efeitos poderiam ser desastrosos, o que nos faz lembrar as palavras de Górgias de Leontinos ao enunciar as propriedades que o logos apresentava em sua psicagogia13, ou ainda em Heráclito de Éfeso (KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 193), quanto à incompreensão dos homens relativamente aos discursos verdadeiros (logos), o que é corroborado por Platão no que se refere à proximidade das artes médica e retórica, no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 174): (Fedro) SÓCRATES: - Deves pensar, naturalmente, que as duas artes se distinguem uma da outra pela natureza do seu objeto: uma se relaciona ao corpo, a outra com a alma. Tens de levar isso em conta se quiseres, não só pela prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe remédios e alimentos, e a outro infundir convicção que desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos legítimos.

Neste sentido, as almas possuiriam disposição natural para guiarem ou serem guiadas pela eloqüência do discurso e seriam propensas à felicidade quando tudo submetessem à razão, como se vê no Fedro e no Mênon: (Fedro) SÓCRATES: - Visto que a força da eloquência consiste na capacidade de guiar as almas, aquele que deseja tornar-se orador deve necessariamente saber quantas formas existem na alma. [...] (PLATÃO, s/d, p. 175) (Mênon) SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário. (Idem, p. 63)

Enquanto encarnada, as potencialidades da alma se encontrariam adormecidas Arte desenvolvida por Górgias baseada na capacidade persuasiva do discurso de atuar sobre o ânimo do ouvinte de maneira a mostrar-lhe o outro lado das coisas e situações e fundamentava-se na noção de pharmakon (remédio,veneno e cosmético). 13

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parcialmente. Neste estado, é como se a alma fosse um morto, no sentido de semelhança a um cadáver. Quando está desencarnada, suas potencialidades aflorariam e a alma agiria à semelhança de um ser vivo, isto é, em posse de todos os recursos acumulados através dos tempos e experiências. Esta imagem diz respeito ao estado de ignorância da alma quanto à sua própria origem e natureza divina, pois desencarnada não teria mais o esquecimento gerado pelo acanhamento das percepções sensíveis que os órgãos causariam à alma enquanto encarnada. Tal colocação de Platão possivelmente foi parafraseada de Heráclito que assim se posiciona quanto ao assunto: De noite, o homem acende uma luz para si próprio, ao extinguir-se-lhe a visão; em vida, está em contato com o que é morto, quando dorme, e com o que dorme, quando acordado

(KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 213). A menos que, enquanto encarnada, a alma praticasse a filosofia, que era encarada por Platão como um dos recursos possíveis para a alma interessada em se libertar dos ciclos reencarnatórios, como que um preparativo de exaltação da parcela divina da alma que em vida nutre-se convenientemente, e prepara-se para viver na companhia dos deuses na Ilha dos Bem Aventurados. A alma pode adoecer suas principais patologias seriam: a) demência (loucura e ignorância); b) prazeres e dores excessivos (sendo que este é considerada a mais grave segundo Platão, e c) sensualidade imoderada, como se vê no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 175): Assim se produzem as doenças do corpo. As da alma, que sobrevêm por consequência de disposições do corpo, tem os seguintes caracteres. Deve-se admitir que a doença própria da alma é a demência. Mas há duas espécies de demência: uma é a loucura, outra é a ignorância. Por conseguinte, toda afecção que comporta um ou outro destes distúrbios, deve ser chamada doença, e deve-se admitir que os prazeres e as dores excessivas são, para a alma, as mais graves das doenças pois, feliz em extremo, ou sofrendo pelo efeito da dor, a paixão contrária, o homem, quando se apressa inoportunamente a atingir um objeto ou fugir de outro, é incapaz de ver bem ou de escutar bem seja lá o que for: torna-se desesperado e impróprio para o raciocínio. Ora, aquele no qual a semente á abundante e corre aos borbotões pela medula assemelha-se a uma árvore por demais carregada de frutos. Experimenta, a respeito de tudo, dores intensas e grandes prazeres, em seus desejos e nos produtos que daí nascem. Assim enlouquece, durante a maior parte de sua vida, pelo excesso de seus prazeres e de suas dores; tem a alma enferma e apaixonada pela ação do corpo.

A alma disporia de um órgão de percepção racional que seria o pensamento. As

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sensações físicas a impediriam de alcançar a verdade e de ter acesso ao real verdadeiro. Isto acontece porque o corpo sensível tenderia naturalmente a voltar a atenção da alma para o mundo sensível e a conturbar seu acesso ao mundo inteligível. Portanto, prejudicaria a alma por nutri-la do alimento inteligível de boa qualidade e a fornecer-lhe acesso mais facilitado ao de baixa qualidade, encontrando dificuldades em distinguir o que é verdadeiro da simples opinião como se vê no (Fédon): SÓCRATES: - Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser? (PLATÃO,

s/d, p. 54) O sistema anímico poderia vir a obscurecer-se devido à influência de características corporais sensíveis, se estas predominassem durante a vida como encarnada, segundo Platão no Fedro (s/ d, p. 69), conforme se vê abaixo: (Fédon) SÓCRATES: - Segundo me parece, pode-se também supor o contrário: que esteja poluída, e não purificada, a alma que se separa do corpo; do corpo, cuja existência ela compartilhava; no corpo, que ela cuidava e amava, e que a trazia tão bem enfeitiçada por seus desejos e prazeres, que ela só considerava real o que é corpóreo, o que se pode tocar, ver, beber, comer e o que serve para o amor; ao passo que se habituou a odiar, e encarar com receio e a evitar tudo quanto aos nossos olhos é tenebroso e invisível, inteligível, pelo contrário, pela Filosofia e só por ela aprendido! Se tal é o estado, crês que essa alma possa, ao destacar-se do corpo, existir em si mesma, por si mesma e sem mistura? [...] Sim, mas isso tem peso, meu caro; não o duvidemos: é denso, terroso, visível! E uma vez que é este o conteúdo da alma, por ele é que ela se torna pesado, atraída e arrastada para as coisas visíveis, devido ao medo que lhe inspira o que é invisível e o que chamamos de país do Hades; essa alma se prende aos monumentos funerários e às sepulturas, ao redor dos quais rondam como espectros sombrios. Essas almas, por terem sido libertadas, em estado de impureza, mas, ao contrário, de participação com o visível, são assim elas também visíveis!

Dentre os atos que obscureceriam a alma durante a vida, o principal está relacionado com a morte voluntária, como é visto no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 91): (Fédon) SÓCRATES: - Desta maneira, pois, a alma ordenada e sábia acompanha obedientemente ao guia, pois bem conhece a situação. Mas a alma que se agarra avidamente ao corpo, coisa que antes expliquei, permanece por muito tempo ainda adejando ao redor do cadáver e dos monumentos funerários, oferece resistência e sofre, e só se deixa levar pelo gênio sob violência e exigindo grandes esforços. Mas quando essa alma, afinal, chega ao lugar em que já se encontram as outras almas, cada uma destas imediatamente se afasta e a evita, pois sabem que ela praticou uma das negras ações seguintes: ou matou injustamente alguém, ou

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praticou qualquer crime desse gênero, ou qualquer obra que seja própria dessa espécie de almas. Por isso ninguém deseja ter a sua amizade e ser seu companheiro, nem servir-lhe de guia. Assim, essa alma erra desnorteada daqui para lá, em ignorância absoluta, durante certo tempo, e em virtude de uma necessidade fatal é levada a uma residência que lhe é conveniente.

Assim, devido às angústias derivadas dos hábitos sensuais adquiridos em vida, a alma, no Hades, se veria profundamente perturbada. Platão nos dá indicações sobre outros modos de alimentação anímica através das quais a ingestão de Idéias se dá, auxiliando a alma a desenvolver-se enquanto encarnada, rumo à saberia e à inteligência. Esses alimentos para a alma, segundo Platão na República (s/ d, p. 114-115) seriam: imagens, atitudes e palavras como se observa abaixo: Por conseguinte, não teremos de vigiar apenas os poetas, obrigando-os a expressar a imagem do bem em suas obras ou não divulga-las entre nós; será preciso fiscalizar igualmente os demais artistas e impedir que exibam as formas do vício, da intemperança, da vileza ou da indecência na escultura, na edificação e nas outras artes criadoras. E aos que não se conformarem a essa regra será proibido exercer sua arte em nossa cidade, para que não venha a corromper o gosto dos cidadãos.

Pela intelecção, a alma é capaz de conhecer as coisas através do noûs, que é uma faculdade que pode ser utilizada tanto para o bem, quanto para o mal. O noûs, quando utilizado para apreender bons alimentos (ensinamentos), se purifica, aumentando indefinidamente sua capacidade de apreensão e penetrabilidade. Do contrário, tornar-se-ia cego e incapaz de auxiliar a alma encarnada a discernir as Idéias verdadeiras das opiniões verossímeis, como é visto na República (PLATÃO, s/d, p. 285286): Mas reconheço plenamente a dificuldade de aceitar que a alma de cada homem possui um órgão que esses ensinamentos purificam e reavivam quando está corrompido e cegado pelas demais ocupações e que, por ser o único capaz de contemplar a verdade, é mais precioso do que dez mil olhos.

2.6 PATOLOGIAS DA ALMA Nesta seção, relacionarei algumas das enfermidades da alma que Platão menciona nos textos estudados, procurando compreender sua sintomatologia. Basicamente existem três enfermidades que afetariam a alma, a saber: 1 – 93

demência, gerada pela loucura e/ou pela ignorância; 2 – excesso de prazeres e dores, considerados por Platão os mais graves por impedir que a alma veja e escute bem qualquer coisa e, finalmente, 3 – a sensualidade imoderada: A alma poderia tornar-se viciada por exposição a uma má educação que lhe geraria comportamentos e concepções de mundo que a intoxicariam e a corromperiam. A ignorância seria para Platão a pior das doenças anímicas, pois a alma se intoxicaria com nutrientes nocivos à sua natureza e, aos poucos, tornar-se-ia demente como se nota no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 176): Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é.

É necessário recapitular que a patologia da alma acima mencionada, a incapacidade de dominar a voluptuosidade (Ibidem), se relaciona diretamente à pouca contemplação de

Ideias verdadeiras por parte da alma. Quando em contato com o corpo sensível, caso este tenha maior ascendência sobre sua percepção de realidade, isto é, caso seja maior a propensão da alma para as sensações, uma vez que a alma seria pouco dada ao inteligível, seu noûs seria pouco desenvolvido por inanição de Ideias verdadeiras. A alma encarnada que privilegia a natureza sensível em detrimento de seu contrário, e descuida da busca da harmonia rítmica que precisa estabelecer nas relações do sistema trino-anímico, cai fatalmente em desarmonia, comprometendo a interface entre os sistemas sensível e inteligível de seus corpos, tornando-os anacrônicos e geradores de danos recíprocos conforme a duração da hybris (desmedida). Isso fica bem claro no Timeu (s/ d, p. 178): Inversamente, quando um corpo maior e mais forte que a alma se encontra unido a uma inteligência pequena e débil, como há, naturalmente, no homem, duas espécies de desejos, um que vem do corpo, o da nutrição, o outro que vem do que há de mais divino em nós, o desejo de intelecção, os movimentos da parte mais forte o acarretam; engrandecem seu domínio próprio, e o da alma, tornam estúpido, difícil de instruir e pronto para o esquecimento, e produzem a pior das doenças, a ignorância.

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Segundo a vontade da alma de viver conforme sua natureza ou condizente para com a natureza do corpo sensível, pode ser gerada uma ilusão unilateral da existência, isto é, a alma tende a tornar exclusiva uma das dimensões de realidade como parâmetro de existência total. Adotando a dimensão inteligível ou a sensível como única existente, a alma passaria a julgar e lidar com as coisas conforme tal perspectiva, desprezando a outra como Platão nos informa no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 178): “Contra essas duas doenças só há um remédio: não mover nunca a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, a fim de que , defendendo-se uma contra a outra, essas duas partes guardem seu equilíbrio e sua saúde”. Outra patologia decorrente da ignorância seria o cometer atos injustos contra outrem, pois conduziria a alma ao ostracismo no Hades, o que acarretaria perturbações e remorsos por meio dos quais a alma que se sente culpada passa pelo processo de marginalização no Além, pelo horror que causa às demais almas, por ausência de afinidade entre elas. A intoxicação da alma se daria, especificamente, pela ação da linguagem que, ao modelar na inteligência (noûs) os ideatos, estes a impressionariam/emocionariam de maneira a corromper-lhe os hábitos já adquiridos pela educação e a encaminharia às atitudes degradantes, que lhe gerariam distorções de vistas, dificultando-lhe o juízo sobre o que é conveniente e gerariam sua perturbação no Hades, como visto no Fédon e na República respectivamente: (Fédon) SÓCRATES: - Mas quando essa alma, afinal, chega ao lugar em que já se encontram as outras almas, cada uma destas imediatamente se afasta e a evita, pois sabem que ela praticou qualquer crime desse gênero, ou qualquer obra que seja própria dessa espécie de almas. Por isso ninguém deseja sua amizade e ser seu companheiro, nem servir-lhe de guia. (PLATÃO, s/d: 91) (República) Não diremos pois, Adimanto, que as almas melhor dotadas se tornam particularmente más quando recebem má educação? Porventura os grandes crimes e a maldade refinada britam de alguma inferioridade e não da plenitude de uma natureza corrompida pela educação que recebeu? As almas fracas nunca serão capazes de grandes ações, quer no bem, quer no mal. (PLATÃO, s/d, p. 238)

Outro elemento patológico na existência sensível para a alma é a prática de atos 95

injustos. Através do exercício de qualquer injustiça, instala-se na alma a desarmonia entre o sistema trino-anímico (noûs, thýmos e pneyma). Tal ocorrência instala na alma a covardia, a ignorância e todos os demais prejuízos que destes decorrem.

2.7 AFECÇÕES DA ALMA A alma receberia do corpo sensível a influência de amores, paixões, temores, imaginações, guerras, dissensões e batalhas que lhe chagariam por intermédio dos sentidos, como Platão menciona no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 54-55): (Fédon) SÓCRATES: - “Sim, é muito possível que exista mesmo uma espécie de trilha que nos conduz de modo reto, quando o raciocínio nos acompanha na busca. E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossas desejos! [...] Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam às necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças, e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda a sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissensões, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a causa original de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazêmo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos!

No processo de purificação da alma, oferecido pelos chamados Mistérios que Platão menciona apenas o pensamento seria afetado pelo corpo, mas não a alma em sua natureza, como sugere no Fédon: E assim esta viagem, esta que ora me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa dizer purificado. (Idem, p. 55-56).

O pensamento vicioso obscurece a alma e a mantém ligada ao mundo dos vivos, de maneira a ser possível, inclusive, tornar-se visível aos encarnados em determinadas circunstâncias. As perturbações geradas por ele poderiam persistir após a morte do corpo sensível, constrangendo-a a sofrer estados desagradáveis no que perdurariam no Hades. A linguagem manifesta por meio do discurso é um canal de comunicação entre a alma e o corpo sensível, na phýsis. É uma via de mão dupla que afeta a alma e, por 96

conseguinte, a phýsis, devido à função ideoplástico-modeladora-representativa que a linguagem produz na comunicação por cessão de sentido/valor às coisas, e que possui aplicação benéfica ou maléfica sobre a alma, conforme o uso da linguagem que a alma se dedique no cotidiano. Os estados íntimos da alma influenciariam decisivamente o corpo sensível, garantindo-lhe saúde ou enfermidade, conforme sua capacidade de adequação ao ritmo e à harmonia entre suas partes, isto é, a alma apetitiva, a impetuosa e a racional. O uso da Música e da Ginástica, combinados a uma vida filosófica, garantem à alma a felicidade, como sugere Platão na República: E, como dizíamos, a influência combinada da Música e da Ginástica porá a ambos de acordo, vigorizando e nutrindo a razão com boas palavras e ensinamentos, enquanto modera e civiliza a cólera por meio da harmonia e do ritmo? (PLATÃO, s/d, p. 172). Com o tempo e o

fortalecimento de suas asas (sabedoria e inteligência), a alma preteriria os prazeres corporais sensíveis daqueles se utilizando apenas na medida do necessário, como é visto na República (PLATÃO, s/d, p. 229): “Aqueles cujos desejos o conduzem para o saber sob todas as suas formas se entregará inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo verdadeiro e não fingido”. Neste sentido, a vida filosófica é capaz de conduzi-la ao ser existente e invisível através do estudo, da educação, como Platão (s/d, p. 238) menciona na República: Não diremos pois, Adimanto, que as almas melhor dotadas se tornam particularmente más quando recebem má educação?

2.8 ALMA E INTERIORIDADE A alma em Platão apresenta estruturas relativamente autônomas entre si, porém integradas, sendo as chamadas almas apetitiva, impetuosa e racional. Considerando as estruturas acima mencionadas, constata-se que o conceito platônico de saúde anímica está diretamente vinculado à noção de ritmo e harmonia, alcançada pela alma que se dedica à educação musical, como se vê na República (PLATÃO, s/d, p. 115-116):

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SÓCRATES: - E a educação musical não será mais poderosa que qualquer outra, (…) porque o ritmo e a harmonia se introduzem no mais recôndito da alma e ali se aferram tenazmente, infundindo a graça na pessoa corretamente educada, porém não nas outras? E não será a pessoa que recebe a devida educação sob esse aspecto a mais sagaz em perceber falhas e omissões na arte e na natureza, e aquela a quem mais desagradarão tais deformidades? Por outro lado, não saberá louvar o que há de bom, recebê-lo com deleite e, acolhendo-o em sua alma, nutrir-se dele e fazer-se um homem de bem, ao mesmo tempo que repele e detesta o feio desde criança, mesmo antes de poder raciocinar? E assim, quando chegar a razão, a pessoa educada dessa forma a reconhecerá e acolherá com a maior alegria, como a uma velha amiga. Não é verdade? Então, como sustento, nem nós nem nossos guardiães, a quem temos de educar, poderemos chegar a ser músicos enquanto não reconhecermos, onde quer que apareçam, as formas essenciais da temperança, da coragem, da generosidade, da magnanimidade e das outras virtudes suas irmãs, bem como das qualidades ou de suas imagens naqueles que as possuem, sem jamais desprezá-las tanto nas coisas pequenas como nas grandes, mas persuadidos de que o conhecimento de umas e outras é objeto da mesma arte e disciplina?

Ora, qual é a sentido da palavra ritmo? Em grego, rhythmós (‘ - ritmo), significando movimento regulado e compassado, ritmo, cadência, medida, harmonia de um período e simetria (ISIDRO PEREIRA, 1990, p. 511). Em sua multiplicidade fenomênica, a alma apresentar-se-ia como um complexo orgânico de estruturas de natureza mista. Orgânico, pois os gregos não tinham noção de mecanismo, o que ocorreria apenas após o século XVII; e também pela concepção que eles tinham de phýsis, em que tudo fazia parte do Todo. A estrutura anímica é parte da phýsis e esta é responsável por uma série de atividades diretas e indiretas da alma, as quais assegurariam seu papel existencial. Desta maneira, como se constitui a noção de realidade para Platão, através de que e em que medida essa noção se atualizaria na alma humana? Platão apresenta uma versão da noção de phýsis, que se constituiria em cinco dimensões interativas e totalmente complementares, a saber: o sensível que teria características de tangibilidade, corporeidade e visibilidade, mobilidade, temporalidade, a dos entes matemáticos que, segundo Reale, tem a característica fundamental de ser uma dimensão intermediária entre o sensível e o inteligível devido a seus elementos apresentarem qualidades duais das dimensões que mediatizam, isto é, são imóveis e eternos, justamente como as

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Ideias (e os Números Ideais), e, de outro lado, existem muitos da mesma espécie (REALE, 2004, p.

173). Na sequência viria a dimensão das realidades inteligíveis ou Ideias, intangíveis, invisíveis, incorpóreas, imóveis, eternas, mas perceptíveis por meio do noûs (inteligência), a dimensão dos Números Ideais que: são a essência dos números matemáticos e enquanto tais são inoperáveis, ou seja não podem ser submetidos a operações aritméticas. Eles tem um estatuto metafísico, diferente dos números matemáticos, justamente porque não representam simplesmente números, mas constituem a essência dos números (REALE, 2004, p. 167). (Grifo do autor)

E, finalmente, com o status de realidade ordenadora última viria a dimensão dos Primeiros Princípios, caracterizados pela Díade e pelo Uno universais que, segundo Reale (2004, p. 176-178), são as forças cósmicas ordenadoras por complementaridade simétrica e simultânea, de todas as demais dimensões mencionadas anteriormente. Desta maneira, tendo o real como pano de fundo e nele radicalmente inserida, a alma platônica constitui-se como o elemento natural ordenador do mundo, agindo e interagindo recursivamente ad infinitum, por meio do fenômeno da linguagem (aqui compreendido no sentido amplo e irrestrito, isto é, todo e qualquer sistema de signos exprimíveis pelo humano) e como tal, como doadora de sentido a si e aos demais elementos naturais. A concepção comum de ritmo está vinculada a movimento ou ruído que se repete no tempo a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos, ou seja, está relacionada a som, a frequência. Para os helênicos, rhythmós é um movimento regulado e compassado, uma espécie de cadência, medida, harmonia de um período, simetria. Como se verificou acima, a interioridade sistêmica da alma se caracterizaria pela proporção e simetria de seus elementos funcionais. A tentativa de qualquer outra das duas partes (thýmos e pneyma), em tomar o controle do complexo ao noûs acarretaria necessariamente em desequilíbrio, desmedida, em hýbris. O fato é que a alma se mantém num movimento de auto investigação, sendo auscultada, avaliada, de maneira a manter-se no ritmo, isto é, na constante proeminência 99

do noûs sobre o thýmos e o pneyma. Além disso, o desenvolvimento natural da sabedoria e da inteligência afloraria nela o desejo pelo que é melhor e neste sentido, buscaria sua depuração através da eurritmia. Euritmia, em grego, significa movimento rítmico, harmonia, cadência, graça, dignidade, conforme se observa em Isidro Pereira (1990, p. 244). Neste sentido, percebe-se que este conceito infere algo a mais que o ritmo apenas, isto é, a euritmia sugere um movimento consciente, pleno de intencionalidade, objetivando a precisão do movimento natural que é determinado pelo ritmo. Não basta à alma o ritmo. É necessário um equilíbrio autoconsciente conquistado por meio de sua alimentação, que se daria através da contemplação das Ideias verdadeiras, discursos e exemplos. O que estaria em questão no problema da interioridade da alma em Platão? É a questão da dinâmica administrativa da alma em sua autogestão. Platão nos apresenta uma complexa série de cuidados para com a alma que vão do conhecimento íntimo de suas emoções até sua participação na vida pública. Os problemas do ritmo, da euritmia e da arritmia da alma revelam um emaranhado de questões que nos levam em direção aos processos de autoconhecimento, com vistas a exercer o controle sobre os pensamentos e as emoções, a partir da ação consciente, orientada pela educação. É por isso que na partição trina da alma o noûs seria o único em condições de governar. As demais partes, por suas características de desmedida e parcialidade, estariam sujeitas às ondulações e movimentos dos impulsos, desejos e ímpetos. Em poucas palavras, seriam determináveis e não determinantes. O noûs, a partir do momento em que seria instalado na alma14, seria determinante e como tal, seria passível de exercer e ordenar o campo da interioridade anímica e, em consequência disso, exteriorizaria essa harmonia calculada, tanto quanto possível, ao real. É preciso ter em mente que para Platão a primeira encarnação da alma como humano só é possível após a primeira contemplação das Ideias verdadeiras por ocasião da procissão divina no céu da verdade e, nessa medida, o noûs não é propriamente dito a alma, mas um órgão da alma através do qual ela tem acesso ao inteligível através da linguagem racional, conforme vemos em Fedro e no Timeu. 14

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2.9 ALMA E MATÉRIA INANIMADA Acredito ser importante verificar neste momento da pesquisa o que viria a ser compreendido por matéria e em que medida a alma se relacionaria com ela. A primeira referência ao assunto é encontrada no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 152): (Fedro) SÓCRATES: - A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea.

O que diferenciaria então, os seres sensíveis dos inteligíveis, uma vez que ambos, guardadas as devidas proporções assinaladas anteriormente, são em certa medida corpóreos? Platão indica que a matéria assemelha-se a certo revestimento externo que envolve e demarca os limites da alma, como observado no Fedro (s/ d, p. 155): SÓCRATES: - Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha. Dessa maneira, a psyché (alma compreendida em sua totalidade, isto é,

noûs, thýmos e pneyma) em relação à matéria estaria na posição de forma ou modelo que receberia o revestimento para delinear-lhe os contornos que a encerrariam num determinado formato. A psyché serve-se de um tipo de corpo, eidolon, que seria revestido de matéria sensível por ocasião da encarnação. Na ausência anímica, o corpo sensível nada mais seria que matéria inanimada destinado a dissolver-se por ausência de seu modelo: Ora, havia duas revoluções divinas. Imitando a figura do Todo, a qual é esférica, os deuses introduziram essas revoluções num corpo esférico. É o que agora chamamos de cabeça, que é a parte mais divina e que comanda todas aquelas que estão em nós. À cabeça os deuses uniram, submeteram e deram como servidor o corpo inteiro. E proveram que a cabeça pudesse participar de tudo que tivesse movimento. Então, a fim de que, circulando sobre a terra, a qual apresenta saliências e depressões de toda espécie, a cabeça não se embaraçasse em franquear aqueles e desviar das outras, deram a ela o corpo como veículo, a fim de que se movesse com mais facilidade. Daí vem o corpo ser alongado e ter gerado quatro membros longos e flexíveis, construídos por Deus para utilizá-lo. [...] Preciso era então que a parte anterior do corpo humano tivesse caracteres distintos e dissemelhantes da parte posterior. Por isso, em primeiro lugar, sobre a pele da cabeça os deuses dispuseram daquele lado o rosto, e sobre este repartiram os instrumentos que servem a todas as previsões da Alma. [...] Dentre todos esses instrumentos, conformaram primeiramente os olhos, portadores de luz, e implantaram-nos no rosto, aproximadamente pela seguinte razão. Esta espécie de fogo, que não é capaz de

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queimar mas apenas de fornecer suave iluminação, adequaram-no por sua arte a um corpo apropriado. Para este efeito, fizeram de modo que o fogo puro que reside dentro de nós, e que é irmão do fogo exterior, se escoasse através dos olhos de maneira sutil e contínua. Porém espessaram todo o olho, especialmente seu meio, de modo que não deixasse escapar nada do restante fogo mais grosseiro mas deixasse apenas filtrar um fogo perfeitamente puro. Assim que a luz do dia envolver essa corrente da visão o semelhante encontra o semelhante, funde-se com ele num todo e forma-se, segundo o eixo do olhar, um só corpo homogêneo. Onde quer que se apoie o fogo que jorra do interior dos olhos, encontra e choca-se com o que provém dos objetos exteriores. Forma-se assim um conjunto que tem propriedades uniformes em todas as suas partes graças à sua semelhança. Timeu (PLATÃO, s/d, p. 106-107).

Na descrição do processo de funcionamento do aparelho visual sensível, Platão afirma que este fogo do interior da psyché seria irmão do fogo comum, isto é, seria identificado como uma variante de um dos elementos da phýsis, a saber, água, éter, terra, fogo e ar e que deste se distinguiria por não queimar como ele, mas apenas projetar suave iluminação sobre o objeto de observação, possibilitando sua visualização sensível. O que vem a ser o corpo para Platão? A primeira referência aparece no Fedro (PLATÃO, s/d, p. 151), que nos apresenta dois tipos de corpos, a saber: (Fedro) SÓCRATES: - O corpo movido de dentro é animado, pois que o movimento é a natureza da alma. Platão se refere aqui a corpos que possuem intrinsecamente a

capacidade de auto locomoção decorrente de sua própria natureza e, nessa medida, ela afirma que estes são animados. Uma outra questão a ser observada é a da semelhança do corpo humano aos demais corpos naturais. Sem a psyché, o corpo humano é um corpo desprovido de movimento como outro qualquer. Sua animação procederia da alma, mas em especial, de certa parcela do complexo trino anímico que seria a pneyma. Tal posição se justificaria pela afirmação de Platão no Mênon (PLATÃO, s/d, p. 55), que diz que a alma humana seria imortal, mas que foge da vida, no sentido de deixar o corpo privado de sua presença e, consequentemente, de sua vitalidade, movimento e agregação material própria ao humano: (Mênon) SÓCRATES: - Dizem que a alma do homem é imortal e que ora foge da vida, o que é falecer, e ora reaparece, entrando numa nova existência.

Observa-se também no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 176), que a doença da alma, que 102

Platão chama de vício, ele atribuiu, em parte, a uma má formação do corpo sensível: Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é. Todo homem, de fato, tem o vício como inimigo, e o vício ocorre-lhe, apesar de tudo.

Nota-se assim, que o corpo em si independe da alma enquanto existente, na medida em que o considerarmos como uma massa de matéria amorfa, isto é, carente da modelagem proporcionada pela alma como Ideia de homem. Mas o homem só se constitui enquanto homem estando a psyché ligada a um corpo sensível. A configuração deste, em Platão, parece não ser controlada ou determinada conscientemente pela psyché, no momento da reencarnação. No entanto, há referências de que a alma pode aperfeiçoar um corpo até certo limite, por meio de suas excelências (aretai) e de seu caráter vital, conforme vemos no diálogo A República (PLATÃO, s/d, p. 118): Também aqui é necessário que a educação comece desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira. Vou dar-te a minha opinião sobre o assunto, mas gostaria de saber se é confirmada pela tua. Não creio que o corpo bem constituído possa melhorar a alma com suas excelências corporais, mas, pelo contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível.

No Fédon, o corpo é mostrado como cárcere e túmulo da alma. Esta atitude de Platão visava delimitar a posição do corpo como instrumento de progresso e simultaneamente, instrumento de punição para a alma que não conseguiu manter-se em contemplação; e também para aquelas que foram viciosas e malévolas em outras vidas. Por isso, o suicídio é encarado como uma afronta aos deuses, que criaram tanto a alma humana como o corpo, conforme se vê em Fédon (PLATÃO, s/d ,p. 50-51): CEBES: - diz-nos pois, Sócrates, por que motivo se pode certamente negar que seja permitido o suicídio? SÓCRATES: - A esse respeito há, mesmo, uma fórmula que usam os adeptos dos Mistérios: “É uma espécie de prisão o lugar onde nós, homens, vivemos, e é dever não libertar ninguém nem permitir que alguém seja levado dali”.

Sendo um aparelho de aperfeiçoamento e punição, simultaneamente, o corpo

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sensível deve ser utilizado por uma alma de maneira que ele não atrapalhe no processo de conhecimento das Ideias verdadeiras, como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 53): (Fédon) SÓCRATES: - E quanto aos demais cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal homem? Julgas, por exemplo, que ele se interessará em possuir uma vestimenta ou uma sandália de boa qualidade, ou que não se importará com essas coisas se a força maior duma necessidade não o obrigar a utilizá-las?

Isto porque na situação acima descrita, a alma que desse mais atenção às necessidades do corpo sensível do que às de sua própria natureza, veria seu noûs obliterado e correria o risco de “intoxicação”, sendo impedida de alcançar a verdade e a felicidade como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d, p. 54-55): (Fédon) SÓCRATES: - Assim pois, companheiro [...] se há verdade no que acabamos de dizer, que imensa esperança não existe para aquele que se encontra nesta altura de minha rota! Lá no além, se tal deve acontecer em algum lugar, ele irá possuir com abundância tudo aquilo que exigiu de nós a realização de um imenso esforço, em nossa vida passada. E assim esta viagem, esta viagem que ora me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa dizer purificado.

Segundo Platão, o corpo sensível por si mesmo geraria na alma alguns obscurecimentos oriundos de sua natureza, enquanto ligado à psyché, tais quais, divagações, irracionalidades, terrores, amores tirânicos e outros males conforme vemos em Fédon (PLATÃO, s/d, p. 69): (Fédon) SÓCRATES: - Ora, se tal é o seu estado, é para o que se lhe assemelha que ela se dirige, para o que é invisível, para o que é divino, imortal e sábio; é para o lugar onde sua chegada importa para ela na posse da felicidade, onde divagação, irracionalidade, terrores, amores tirânicos e todos os outros males da condição humana cessam de lhe estar ligado, como se diz dos que receberam a iniciação, ela passa na companhia dos deuses o resto do tempo!

O pacto com o corpo sensível seria sempre um risco de sucesso ou insucesso para a alma, conforme sejam conduzidas por ela, suas relações com ele. Esta influência seria tão grave e importante que, caso seja negligenciada pela psyché, poderia gerar-lhe um dos piores males que Platão menciona que seria a crença de que o objeto da emoção seria mais real e verdadeiro, por ser sensível, do que as realidades inteligíveis, como se observa no

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Fédon (PLATÃO, s/d, p. 71): (Fédon) SÓCRATES: - É que em toda alma humana, forçosamente, a intensidade do prazer ou do sofrimento, a propósito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de que o objeto dessa emoção é tudo o que há de mais verdadeiro, embora tal não aconteça. Esse é o efeito de todas as coisas visíveis, não é? CEBES: - Efetivamente. SÓCRATES: - e não é em tais afetos que no mais alto grau a alma fica sujeita às cadeias do corpo? CEBES: - De que modo, dize? SÓCRATES: - Assim: todo prazer e todo o sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo assim com que ela se torne material e passe a julgar da verdade das coisas conforme as indicações do corpo. E pelo fato de conformar a alma ao corpo em seus juízos e comprazer-se nos mesmos objetos, necessariamente deve produzir-se em ambos, segundo penso, uma conformidade de tendências assim como também uma conformidade de hábitos; e sua condição é tal que, em conseqüência, ela jamais atinge o Hades em estado de pureza, mas sempre contaminada pelo corpo, onde em certa forma se planta e deita raízes. E por força disso fica desprovida de todo direito a participar da existência do que é divino e, portanto, puro e único em sua forma.

Conforme se vê no diálogo Fédon (PLATÃO, s/d, p. 74-75), o corpo seria uma roupagem extremamente necessária à libertação da alma de seus equívocos passados e, como habilitador de uma melhor percepção que o noûs pode alcançar; pois quanto mais acurada for a percepção noética, novas e mais elevadas formas de expressão, percepção e realidade seriam desenvolvidas pela psyché como se vê abaixo: (Fédon) SÓCRATES: - “Contudo, segundo penso, as coisas não se passam assim, Símias; e, portanto, deves tu também prestar atenção ao que vou dizer, pois no que respeita à argumentação precedente, todos podem facilmente perceber de sua ingenuidade. E vou provar isso: se é verdade que o desaparecimento de nosso tecelão, após haver usado uma multidão de tais vestuários e de haver tecido outros tantos, ocorre depois deles todos, mas antes daquele que foi sua última vestimenta, aí não se encontra menor motivo para afirmar que o homem seja inferior às suas vestes e mais frágil do que elas! Pois bem: essa mesma imagem, se não me engano é aplicável à alma em sua relação com o corpo. Quem fizer uso dela dirá (acertadamente, no meu entender) que a alma é coisa durável, e o corpo, por seu lado, é coisa frágil e de menor duração. Quem assim fizer, poderá acrescentar que, cada alma usa diversos corpos, principalmente se ela vive muitos anos, pois sendo o corpo, como é possível supor, uma torrente que se esvai enquanto o homem vive, a alma incessantemente renova o seu vestuário perecível. Mas, assim mesmo, é necessário que a alma, no dia em que for destruída, se revista com a última vestimenta que teceu e que seja esta a única anteriormente à qual tenha lugar esta destruição. Uma vez aniquilada a alma, o corpo patenteia desde logo a sua fragilidade essencial e, caindo em podridão, não tardaria a desaparecer

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definitivamente. Por conseguinte, não estamos ainda em condições de aceitar o argumento de que tratamos, e, assim, confiar em que mesmo depois de nossa morte nossa alma continue a existir em algum lugar

Neste sentido, segundo Platão, a velhice seria compreendida como um período de paz e liberdade para a alma encarnada, pois as paixões seriam enfraquecidas e a pneyma (alma apetitiva ou alento vital) e o thýmos (alma impetuosa), vistos como tiranos seriam apaziguados dando finalmente ao noûs maior autonomia conforme vemos em República (PLATÃO, s/d, p. 12): E ele respondeu: “Sossega, homem! Com a maior satisfação me livrei dele, como quem se livra de um déspota furioso e selvagem.” Essas palavras me tem vindo muitas vezes à lembrança e ainda hoje me parecem tão boas como quando as ouvi pronunciar. Pois é certo que a velhice traz consigo uma grande paz e liberdade; quando se embota o acicate das paixões, sucede exatamente o que dizia Sófocles: libertamo-nos não apenas de um tirano, mas de muitos.

No entanto, na razão diretamente inversa da liberdade e paz que receberia a alma através do enfraquecimento corporal, este lhe geraria outros temores pertinentes ao estado post mortem: as preocupações com as conseqüências das suas ações ao longo da vida, uma espécie de revisão para tentar atenuar os possíveis problemas que terá na vida futura, conforme vemos na República (PLATÃO, s/d, p. 13): “CÉFALO: - Por que há de saber, Sócrates, que quando um homem se julga próximo da morte, entram-lhe no espírito temores e preocupações que nunca experimentou antes.”

2.10 CONTROLE DA ALMA SOBRE SI Esta seção se fundamenta nas precedentes e visa explicitar a forma pela qual a alma exerceria poder sobre si e as consequências deste sobre ela e suas relações com o meio e às demais almas. Como já fora visto na República, a alma em Platão seria comparada a uma polis, tendo o governo a encargo do noûs, a defesa e patrulhamento interno sob responsabilidade do thýmos e a produção de energia e manutenção em relação com o corpo sensível em atividade reguladora produtiva através do pneyma. O noûs exerceria o papel mais importante, na medida em que determinaria o que 106

poderia atingir a alma em termos ideais. Nesta medida, observamos que seu papel não só se estenderia à administração interna, como também à externa e, principalmente, à atuação consciente neste processo. Platão nos informa que a alma, pode ser enérgica, bestial ou suave no controle seletivo das Ideias que absorve, pois sabe que necessariamente sofreria os efeitos de suas escolhas. Neste sentido, fica clara a importância deste controle ser exercido pelo noûs, uma vez que apenas ele seria capaz de avaliar com equilíbrio os efeitos positivos ou negativos das escolhas da alma. No Sofista (PLATÃO, s/d, p. 139) vê-se que a posse e a presença de cada uma das Ideias transformaria a alma dando-lhe uma determinada característica própria, por exemplo, se a Ideia de justiça é ingerida, a alma assumiria as propriedades de uma alma regida pela justiça e assim por diante como se vê a seguir: (Sofista) “ESTRANGEIRO: - Ora, não é na posse e na presença da justiça que as almas assim se tornam justas; e na posse dos contrários que se tornam o contrário?”

As características deste controle, isto é, da intensidade e rigor com o qual seria feito o acompanhamento por parte do noûs, encontra-se a base originária da personalidade na já mencionada configuração psicológica da alma que seguiria um dos deuses na revolução divina da contemplação, conforme vemos em Fedro (PLATÃO, s/d, p. 153): “(Fedro) SÓCRATES: - A realidade sem forma, sem cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da alma. E é na Ideia Eterna que reside a ciência perfeita, aquela que abarca toda a verdade.” É neste sentido que o complexo cognitivo anímico melhor exerceria sua função, fundamentando seu agir e pensar com razões necessárias e razoáveis através do qual realizaria a estruturação de sua percepção tempo-espacial objetivando atingir a alimentação ideológica adequada ao desenvolvimento das asas da sabedoria e da inteligência para a alma. Para tanto, ela seria impulsionada por sua identidade substancial para com as Ideias que a fariam intuir ou reconhecer nos objetos sensíveis o Belo, o Bom e o Justo sempre se harmonizando com essas Ideias verdadeiras. Outro aspecto importante sobre a seletividade anímica, é a questão da sabedoria 107

adquirida através da ciência. A alma só seria sábia se ela soubesse selecionar para si o melhor entre as Ideias, pois se tornaria capaz de governar-se. Pelo que se depreende do exposto, existiriam Ideias nas quais a alma absorveria suas propriedades como parâmetros de comportamento, como por exemplo, a temperança, a justiça, a coragem, a memória, a generosidade e outras. Desde que a ingestão destas estivesse submetida à razão, conforme vemos em “Mênon” (PLATÃO, s/d, p. 63), a alma seria feliz, conforme segue: “(Mênon) SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário.” O término da participação da alma nos ciclos reencarnatórios estaria diretamente relacionada a como ela exerceria o controle sobre si em relação ao corpo sensível, pois as dores e prazeres seriam detectados pela alma através da ação da pneyma, sua parte mortal e intermediária entre os corpos sensível e inteligível. A alma vegetativa, conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/d, p. 155), não conteria opinião, raciocínio nem intelecção, mas teria sensações agradáveis e dolorosas, além de desejos: Depois, implantou neste suporte as diferentes espécies de almas. E todas as espécies de figuras que cada espécie de ser deveria receber em seguida, distinguiu-as na própria medula imediatamente, e desde esta divisão inicial. E a espécie de medula que devia, como uma gleba, receber em si mesma a semente divina, conformou-a inteiramente esférica, e chamou a esta parte da medula encéfalo, porque após o acabamento de cada ser vivo, o recipiente que devia recebê-la seria a cabeça. Em contraparte, a porção que deveria receber o resto da alma, sua parte mortal, dividiu-a em figura a um tempo alongada e roliça, e a todas essas porções deu o nome de medula, e como que âncoras atirou os liames de toda a alma, e formou em torno da medula todo o corpo, após haver previamente condensado, em torno da medula, um revestimento ósseo.

A alma, assim, mostrar-se-ia sempre passiva e sofreria tudo que atinge o homem. É nesta medida que a alma seria afetada pelo corpo sensível e que segundo a opção dela quanto à forma que conduziria sua vida, a pneyma poderia ou não turvar a ação do noûs. Para Platão, no “Timeu”, o vício que é para ele ignorância e, consequentemente, uma doença da alma, não seria um ato intencionalmente voluntário, mas sim uma má disposição do corpo sensível ou fruto de uma má educação constituindo-se assim, como

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um dos maiores inimigos do homem: Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente, faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É por efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é. (PLATÃO, s/d, p. 176)

É importante recordar que o controle que a alma exerce sobre si seria uma questão de saúde, pois segundo o que viesse a acolher em seu seio, teria consequências inevitáveis. O papel do noûs seria semelhante ao do médico que seria responsável pela ciência do amor nos corpos, conforme se vê em Banquete (PLATÃO, s/d, p. 92): (Banquete) ERIXÍMACO: - A Medicina, com efeito, para em poucas palavras, é a ciência do amor nos corpos relativamente a sua relação e evacuação, e aquele que nesses movimentos consegue estremar o bom do mau amor, esse é um bom médico. Aquele que suscita o aparecimento de amor onde não havia amor, e onde não obstante era necessário, e elimina um amor existente, quando pernicioso, esse inegavelmente, merece o título de excelente médico. Toda a sabedoria do médico consiste em saber provocar o nascimento da amizade entre os maiores inimigos recíprocos existentes no corpo do homem, e fazer estabelecer-se um amor mútuo entre eles. Por maiores inimigos quero entender os maiores contrários que no corpo habitam: o frio e o quente, o amargo e o doce, o seco e o molhado, e assim por diante. Foi precisamente por haver alcançado esse ideal, por haver conseguido estabelecer amor e concórdia entre esses contrários, que Asclépio, nosso antepassado, fundou a nossa arte, segundo nos contam os poetas e no que eu creio firmemente. É absurdo manifesto pretender que a harmonia consista em coisas diferentes; e por isso devemos pensar que Heráclito quis dizer que a harmonia resulta de coisas que antes eram contrárias, como o agudo e o grave, e que depois, pela habilidade da arte musical, se uniram. Pois a harmonia não provém do que ainda é contrário, não provêm do que ainda é agudo e do que ainda é grave; harmonia é concordância, é sinfonia, e a concordância, certa uniformidade. Esta não pode advir de elementos opostos que permaneçam opostos, pois coisas diferentes e contrárias jamais concordam entre si; e a harmonia, por sua vez, resulta de elementos opostos entre os quais se estabelece acordo.

Isto seria passível de ocorrer quando a alma fosse iludida por sua incapacidade em distinguir os simulacros das Ideias verdadeiras pela má utilização do seu noûs. Daí viria a necessidade da alma, através do noûs, de interagir com o complexo cognitivo anímico e, por meio do corpo sensível, com o ambiente externo, tentando reduzir ao máximo as influências das sensações para poder discernir entre o falso e o verdadeiro. 109

Conforme se vê no Fedro, um homem governado pelo desejo seria escravo e procuraria sempre no objeto de seu desejo extrair o máximo de prazer, o que se caracterizaria

como

uma

das

enfermidades

da

alma:

“(Fedro)

SÓCRATES:

-

Necessariamente, um homem governado pelo desejo e escravo da volúpia procurará no seu amado o máximo de prazer.” (PLATÃO, s/d, p. 143). É neste sentido que se deve compreender a ação libertadora da razão, que proporcionaria ao homem a intervenção conscientemente objetiva da alma, tornando-a assim, capaz de interromper o fluxo indeterminado dos desejos intemperantes que, segundo Platão, costumaria sitiar a alma interna e externamente. Ao possuir o controle consciente e racional do processo existencial, a alma seria capaz de furtar-se à animalidade das reações instintivas próprias à natureza animal do corpo sensível e, assim, aprender a não retribuir uma injustiça com outra. Logo, o “cuidar de si”, em se referindo à alma conduziria a uma vida ótima e virtuosíssima (no sentido de areté). Na medida em que a racionalidade fosse atuando sobre o corpo sensível, a almas e harmonizaria passando do ritmo à eurritmia15. O controle seletivo exercido pelo complexo cognitivo anímico iria se aperfeiçoando e reduzindo as possibilidades de assalto por parte dos excessos sensíveis, que agiriam sobre a economia da alma. De maneira equilibrada, o complexo trino-anímico da psyché se desenvolveria segundo sua especialização, garantindo a ordem e o equilíbrio gerais. Assim sendo, dificilmente as chamadas por Platão doenças da alma vindas do corpo, isto é, a demência, o excesso de prazeres e dores e a sensualidade imoderada teriam guarida na alma vigilante. Isto porque o centro de gravidade de seu pensamento estaria focado no que verdadeiramente interessa à alma, isto é, o nutrir-se de Ideias verdadeiras, bons exemplos e imagens, virtudes e filosofia.

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É preciso ter bem claro que para Platão a percepção e a intelecção perfeitas seriam um meio termo regulado pela noção de Música.A harmonia Musical deveria refletir-se na saúde psicológica da pessoa como na saúde pública, no que se refere à cidade-estado, agindo assim por reflexo do interior para o exterior, conforme se vê em “Timeu: [...] esta harmonia “musical” deve não só refletir-se na saúde psíquica da pessoa, como na “saúde” da própria República, sendo a sua noção de “ordem pública”. (PLATÃO, s/d, p. 87).

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III. CONCLUSÃO Para compreender o objeto de estudo desta dissertação vimos que a concepção de natureza (phýsis), em Platão, corresponde à de sua cultura, isto é, uma natureza encarada como um organismo vivo no qual o ser humano não é algo à parte do todo mas, ao contrário, a phýsis que Platão chama de Cosmos é a união do que o filósofo denomina Alma e Corpo do Todo (ou do Mundo) e contém o que os gregos chamavam de mundo dos homens, dos mortos, dos deuses e o que chamaríamos hoje de mundo natural, composto pelos reinos mineral, vegetal e animal. A natureza é compreendida em dois grandes blocos: o sensível, contendo tudo o que é objeto de percepção sensorial e o inteligível, contendo tudo o que é objeto de percepção intelectiva. O inteligível comporta ainda subdivisões da realidade, a saber: o plano dos entes matemáticos; o plano das Ideias, que engloba as Ideias gerais, as Ideias particulares, as Ideias generalíssimas ou meta-Ideias e números-figuras Ideais e, finalmente, o plano dos Princípios, contendo o Uno (ou o Mesmo) e a Díade (ou o Outro). O mundo sensível tem no inteligível sua fundamentação e razão de ser, pois enquanto o primeiro está submetido às variações de geração e corrupção, o segundo é eterno, imutável, estável, harmonioso e perfeito capaz assim de garantir a existência do real como um todo. A Alma e o Corpo do Cosmos foram construídos por um Deus, ser este que não foi possível identificar nas obras de Platão estudadas nesta dissertação. Esta formação se deu a partir de substâncias que o autor identificou com os Princípios de sua phýsis, a saber: Uno (Mesmo) e Díade (Outro). Esses Princípios são opostos, complementares e são o sustentáculo último do real. A Alma foi construída com porções dessas substâncias mais uma terceira que é a fusão proporcional dos Princípios do Uno e da Díade. O objetivo da construção da Alma do Todo foi que ela viesse a conceder beleza e inteligibilidade à matéria informe de maneira a ordená-la e nessa medida a Alma do Mundo foi modelada de maneira a ser perfeitamente simétrica com o Corpo e capaz de ter estendido em si tudo o que é corporal. Em seguida, o Deus constrói o Corpo do Todo e 111

instala a Alma no centro do Corpo estendendo-a através dele até seus limites para englobá-lo. Dadas as características próprias aos Princípios e à terceira substância, o Corpo do Todo é indissolúvel e não submetido às variações do tempo. Deus não constrói a alma humana. Ele passa essa tarefa ao que Platão identifica como deuses olímpicos que compuseram a alma e o corpo humano. À semelhança do processo de criação da Alma e do Corpo do Cosmos os deuses manipularam as substâncias dos Princípios, porém com a diferença de que não havia mais a substância pura do Mesmo. Sobrou-lhes apenas a substância do Outro e o misto do Mesmo com o Outro. A construção da alma e do corpo humano assim se procedeu em semelhança com a da Alma e o Corpo do Todo, deste diferenciando-se na medida em que devido à ausência da substância pura do Mesmo, submeteu o corpo humano a uma porção maior do Outro e, por conseguinte, mais próximo às mudanças e corrupções do devir, o corpo humano é mortal. Devido às semelhanças substanciais e de propriedades entre a Alma do Todo e a alma humana, Platão admite uma identificação entre uma e outra com base no princípio de que é possível conhecer a alma humana na medida em que se esforce para conhecer o Cosmos, logo, conhecendo-se a Alma do Mundo, conhece-se a alma humana e suas características. Daí decorre que, em menor escala, tudo o que for aplicado à Alma do Mundo haverá de existir na alma humana e vice-versa. Nesta medida, a alma humana é um misto substancial do Princípio do Outro com a terceira substância, fusão do Outro e do Mesmo. Seu objetivo é conceder beleza e inteligibilidade à matéria de maneira a ordená-la. É simétrica ao corpo, se estende através dele e o envolve de maneira circular. Por semelhança, deduz-se que tenha sido instalada pelos deuses no centro do corpo. A alma é um poder natural, uma força capaz de produzir movimento a partir de si e de conceder-lhe aos corpos. É capaz de se acoplar a corpos. A alma possui precedência e ascendência sobre o corpo de maneira que ele lhe é subordinado por natureza. A alma é conduzida pelo desejo inato do prazer e pela opinião que deseja o melhor; é imortal por participar do que Platão chama de divino, possui uma Ideia no 112

chamado plano das Ideias e devido a isso possui a característica de ser simultaneamente inteligível e incorpórea, no sentido de não ser encerrada em limites mais ou menos rígidos. Ela é passível de sofrer a encarnação caso não se alimente convenientemente, tem no fenômeno da linguagem, na eloquência em especial, um modo próprio para comunicação para guiar almas e ser conduzida por outras almas. A alma humana move-se em círculos e o número delas é proporcional ao número de astros do Cosmos, logo, segundo a percepção grega e platônica, as almas humanas têm um número fixo, pois ainda não existia a noção de infinito aplicada à Astronomia. A alma é capaz de conhecer os objetos do sensível e, em especial do inteligível em si e por si, devido à sua natureza substancial e de propriedades estarem relacionadas à composição íntima do sensível e do inteligível. Em decorrência desses contatos com os dois planos da natureza, sendo passível de sofrer dores e ter prazeres. Habita o Hades ou o mundo inteligível enquanto não encarna ou por ocasião da morte do corpo. A alma tem a liberdade de optar pelo modo através do qual melhor se alimentará através da contemplação das Ideias, escolhendo um deus do panteão olímpico como paradigma

comportamental

que

implicará

necessariamente

no

modo

como

cognitivamente se comportará. Sob o efeito de seus atributos, a alma é considerada como o elemento de ordenação causal de tudo que a cerca no Cosmos. A alma possui vontade e esta pode ser potencializada através da utilização da razão no processo de conhecimento. A alma é, pois diretamente responsável por seus atos e escolhas, recebendo em consequência, a felicidade ou infelicidade delas decorrentes. O pensamento é um dos atributos da alma. Enquanto atributo, ele não a afeta substancialmente, mas apenas em termos de equilibração de suas partes substanciais em relação com os planos sensível e inteligível. A ascese do pensamento se dá através da contemplação e do acesso ao conhecimento verdadeiro que progride de maneira escalonada por indução. Por meio do pensamento, a alma é capaz de separar-se ou aproximar-se mais ou menos do sensível ou do inteligível por adensamento de uma ou outra parte de sua natureza. O pensamento é considerado como diálogo da alma consigo. É um intermediário entre o intelecto e os 113

estímulos sensoriais. É um elemento de comunhão entre a alma e o Ser Verdadeiro, pois é capaz de percebê-lo, bem como ao que é permanente. Permite o contato intersubjetivo e a possibilidade de transmissão de conhecimento. O pensamento é um órgão de percepção racional, estando vinculado, assim, à razão. Serve à alma como uma espécie de torno anímico, modelando na e pela linguagem os conteúdos a serem ordenados causalmente no Cosmos. O pensamento é capaz de causar sensações, emoções e reflexões na alma, representando os estímulos sensíveis e inteligíveis através da linguagem. Essas representações (signos) são estruturadas em imagens, atitudes e palavras. O pensamento pode se tornar viciado e nessa medida torna-se capaz de gerar um adensamento da alma com base no reforço da substância do Outro, vinculando a alma ao devir sensível. O discurso é o meio através do qual a alma emite juízos sobre tudo através do pensamento. Quando o juízo se dá na alma através do pensamento, o autor o chama de opinião, quando se dá através da sensação, Platão o chama de imaginação. A imaginação é a combinação da sensação e da opinião. Esta é a conclusão do pensamento em dado juízo. Por ser vinculada à sensação, a opinião pode ser verdadeira ou falsa. A inteligência é outro dos atributos da alma para que ela se relacione com o sensível e o inteligível. Foi instalada na Alma do Todo pelo Deus e por semelhança, foi instalada na alma humana pelos deuses. Pelo depreendido na pesquisa, a alma humana é o único ser no Cosmos capaz de exercer a inteligência. A presença dela não garante o uso da razão, pois a razão é uma linguagem que foi criada na Grécia pré-socrática e paulatinamente inserida no contexto social de Platão. A inteligência é distinta da razão, pois a primeira governa a alma devido à sua capacidade de expressar a razão como linguagem; permanece após a morte e exerce o papel ordenador e causal de tudo. Proporciona acesso aos Princípios ordenadores e causais de tudo através do pensamento. A inteligência é considerada infinita, autônoma, não se mistura com nada no sensível, existe de per si, e é a mais sutil e a mais pura de todas as coisas. Possui um conhecimento total de tudo, é o maior poder existente, é o que dirige o que tem vida. É responsável por seu auto movimento e o das demais coisas existentes em contato com ela. 114

Conhece todo o sensível, conhece o passado, o presente e o futuro; é toda igual e dispõe todas as coisas da melhor maneira possível. A inteligência é estruturalmente conexa à Ideia de Bem, no sentido do melhor como condição da geração, da corrupção e do ser das coisas. A inteligência (noûs) é o guia da alma, e como tal, é um dos atributos que os deuses lhe concedem no momento de sua construção. A alma tem necessidade de alimentação com base nas Ideias e as atinge por contemplação, que tem como finalidade auferir sabedoria para alcançar a felicidade e para furtar-se aos ciclos da reencarnação. A alma possui na memória o atributo necessário para se aperfeiçoar através da contemplação de Ideias. Com a memória a alma acumula, elabora e aperfeiçoa as experiências acumuladas em suas vivências no mundo inteligível e no mundo sensível. Dado sua natureza substancial e de propriedades a alma humana mantém contato com tudo o que é próprio ao Outro e ao Mesmo através da substância mista Outro-Mesmo que a constitui intrinsecamente, o que vem a ser a base e possibilidade de sua dinâmica cognitiva. A razão é outro atributo da alma e deve orientar o desejo para gerar o que Platão chama de prazer do bem. A ação racional da alma se inicia apenas pela ocasião da alma ser vinculada a um corpo pela primeira vez. Ela exerce o papel de juiz e critério necessário para que a alma atinja a felicidade. A razão é também diretamente vinculada à alma e direcionada por sua vontade. É uma capacidade discursiva: auxilia a alma a apreender parcialmente a realidade de um ser através do conhecimento filosófico. A alma, em Platão, é esse ser vivente em contato com o corpo através da reencarnação, modelando a matéria por participação, gerando vida e movimento por suas características substanciais e de propriedades, além de atuar como elemento ordenador e causal da realidade através da linguagem, exercendo o papel de verdadeira doadora de valor e sentido a tudo em todas as relações que a alma mantém, enquanto encarnada ou desencarnada, cumprindo seu papel de proporcionar à matéria beleza e inteligência.

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FOLHA DE APONTAMENTOS PARA DISCUTIR COM O AUTOR

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O DUALISMO EM PLATÃO tenta compreender as relações psyché-sôma (alma-corpo). Essa motivação se fundamenta nas dificuldades engendradas pela Filosofia da Mente para estudar, refutar ou justificar a mencionada relação. Para aproximação do assunto intentou-se analisar o que Platão compreende por alma (psyché) e corpo (sôma), nas seguintes obras: “Timeu”, “Fédon”, “Fedro”, a “República”, “Apologia de Sócrates”, “Mênon”, “Banquete”, “Sofista” e “Político”. Embora seja uma pequena fração do conjunto das obras de Platão, acreditase que essa amostragem seja suficiente para tentar alcançar o mencionado objetivo. A hipótese que se defende é que não é possível a um grego da época de Platão conceber uma separação diametralmente oposta e radicalmente incomunicável entre o que a tradição filosófica convencionou chamar de Mundo Sensível e Mundo Inteligível, ou em outras palavras, aquilo que viria a fundamentar a distinção atual na Filosofia da Mente entre o mental e o físico. ______________________________________________________________________________________ JPJ EDITOR

INFORMAÇÕES COMERCIAIS Pedidos devem ser encaminhados pelo endereço eletrônico: [email protected] Telefone: (44) 8813-1127 ______________________________________________________________________________________

É DISSO QUE TRATA esta obra: da análise crítica de uma amostragem das obras de Platão a respeito dos conceitos de alma e corpo, suas relações, imbricações e consequências, sob o enfoque a História Psicológica, das Ideias e das Mentalidades envolta no problema contemporâneo do campo da Filosofia da Mente que tenta explicar o que é a mente humana e suas interações com o corpo.

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