O dualismo entre a prática e a razão

June 30, 2017 | Autor: Ricardo Aloysio | Categoria: Bertrand Russell, Gottlob Frege, Filosofia da matemática, Georg Cantor, Aritmetica
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O DUALISMO ENTRE A PRÁTICA E A RAZÃO

DE RICARDO ALOYSIO CALDAS BORSATO

Rio de Janeiro, Brasil 2015

“Ow! It damn well hurts! Certainly it hurts. Well what's the trick then? The trick, W.Potter, is not minding that it hurts.”

A

”realidade brasileira” pode ser um conceito de tão difícil

análise que, na ausência da cautela necessária, haverá sequer uma linha sobre ele que valerá a pena ser lida. Ao enfrentá-lo, encaramos diversas dificuldades, que nos fazem duvidar até mesmo de sua significância, tendo em vista os conselhos de nossos colegas do Círculo de Viena. Contudo, tornando nossa análise mais positiva e fugindo de tentativas fúteis a definições, podemos analisar os termos que formam a extensão da classe-conceito “realidade brasileira”. I.e, se saíssemos a rua e perguntássemos ao senso comum “o que faz parte dessa 'realidade'?”, ganharíamos respostas do tipo: pobreza, carnaval, uma má classe política, etc., embora todos esses aspectos estejam presentes também noutros países, em maior ou menor grau. Se mudássemos um pouco a forma de nossa pergunta para “qual a sua 'realidade'?”, 2

ouviremos coisas como: trabalho, cuidar dos filhos, aturar uma esposa sanguessuga, etc. Mas nenhuma pessoa nos diria que sua realidade é a pobreza em si, ou o carnaval, embora todas essas atividades não possuam tanta diferença, pois todas consistem em ocasiões que participamos, direta ou indiretamente. Desta maneira, podemos chegar num consenso, mesmo impreciso: a realidade do indivíduo consiste em todos os eventos que participa de maneira involuntária, por ação de outros ou não. É claro, podemos pensar que o pobre não é logicamente forçado a trabalhar, o faz por necessidade; contudo, se não trabalhasse, a “realidade” da pobreza tornar-se-ia mais aparente, forçando-o de qualquer maneira a outras ações. I.e, mendigos sentem fome involuntariamente, e por não terem emprego, recorrem a única prática disponível no momento, viz, mendigar! Não é meu objetivo adentrar numa teoria de eventos, apenas esclarecer que lidamos com noções imprecisas, que podemos estipular como símbolos vazios, incompletos, que ganham significado de acordo com suas ocorrências em funções proposicionais. O mais sábio a se fazer é trabalhar com instâncias que, pelo senso comum, sabemos pertencerem ao conceito de “realidade brasileira”. Contudo, surge agora a questão: que instância tratar? Seria uma mais importante que a outra? Acredito que todas tem importância equivalente, mas por suportarem e regressarem à apenas uma. O opúsculo O que é o Brasil? de Roberto Damatta, aborda muitas delas, como comida, mulheres, etc., e me sinto na obrigação de não repetir um trabalho já feito. Não! Aqui falarei doutra realidade, que ouso averiguar como o cerne dos problemas das sociedades e

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doutras realidades, a realidade educacional. Contudo, para isto algumas explicações prévias são necessárias. O escopo original deste trabalho consistia em duas seções, a primeira meramente explicativa, em que apresento minhas motivações e opiniões que suportam as críticas da seção precedente; a segunda, que aparece aqui como a primeira, é de caráter puramente crítico dos conceitos que julgamos serem parte da cultura 1 matemática brasileira no geral, viz, aritmética, análise, etc. Vale notar que quando me refiro a educação, digo o ato de instrução por meio duma cultura estabelecida, não consistindo necessariamente no processo de educação escolar. No decorrer de minhas reflexões, quando o texto tomava sua forma, a primeira seção demonstrou-se mais prejudicial que auxiliar, o que resultou em seu completo abandono. Por isso, falarei brevemente do que tentei defender nessa parte descartada.

A fonte de minhas argumentações deriva essencialmente de dois princípios, que não posso declarar serem mais que apenas minha opinião sobre o assunto. O primeiro é a ideia de que o comportamento é o resultado das interpretações dos dados adquiridos no mundo sensível 2, e que constitui característica fundamental de cada sociedade, que lhe atribui unicidade. Julgamos pessoas e nações pela maneira como se comportam em certas ocasiões, afirmando que certa atitude é “ruim” caso seja inadmissível em nosso sistema moral, e “boa” do contrário. Na verdade, podemos ser mais 1 2

Vale lembrar que utilizo “cultura” como sinônimo de “erudição”. Esta é a teoria de espaços públicos e privados de Russell. Cf. My Philosophical Development, pp.24-25.

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ousados e definir sociedade como o agregado de todos os indivíduos junto a todos os comportamentos que resultam da interpretação de dados do espaço privado. Por exemplo, a sociedade brasileira consiste, primeiramente, em todos os indivíduos nascidos no Brasil (casos de dupla nacionalidade não apresentam dificuldade lógica), junto ao agregado de todos os padrões de comportamento desses indivíduos em certas situações. Sem o aspecto do comportamento, não haveria maneira de distinguir dentre um brasileiro ou um alemão, pois biologicamente nosso organismo “comporta-se” de maneira equivalente. Se todos os brasileiros passassem a se comportar exatamente como britânicos, não teríamos dúvida de que todos seríamos ingleses. É claro, isto também apresenta dificuldades. Por exemplo, um espião alemão em Londres não é um britânico, se sabemos sua identidade, mas para outros sim. Isto baseia-se na ideia de que o britânico possui certa “legitimidade” em suas ações que o alemão não tem, o que não faz sentido. Não sabemos se uma mulher britânica, ao ser insultada, age de certa maneira por realmente sentir vontade de fazê-lo ou por ser algo que a sociedade espera que ela faça. Como o homem adora preocupar-se com a opinião alheia, mesmo não sentindo-se realmente ofendida, suas atitudes são direcionadas de forma a produzir certa reação determinada noutras pessoas. Isto acontece com a maioria da população, e não acredito que o espião seja menos legítimo por conta disso. Se formos mais à frente, entramos na tentativa de definir o “cidadão britânico”, o que consiste na lógica do estereotipo. Outra dificuldade é que não sabemos até que ponto o impulso biológico é legítimo ou não, pois a criação em certos

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sistemas morais e educacionais influencia a maneira como reagimos a estímulos diversos. Para combater esse ponto de vista, seríamos forçados a considerar que o nascimento numa certa localização geográfica implicaria certa cadeia pré-determinada de comportamentos, o que acredito nenhum homem sério manteria. Portanto, se comportamentos são resultados diretos da interpretação de dados, sua modificação pode ocorrer apenas com a reinterpretação desses dados, pela coleta de outros, e o processo que torna isso possível é denominado educação. Observe, como dito anteriormente, que me refiro a toda forma de instrução, sendo a educação escolar apenas uma delas 3. Um homem que aprendeu a teoria da relatividade e mecânica quântica não interpretará certos dados físicos da mesma maneira que um estudante de humanas, cujo conhecimento físico é restrito a mecânica clássica. O último está mais sujeito, por exemplo, a inclinações religiosas, se for do tipo de pessoa que analisa as “proposições do mundo”, e não sua construção histórica. Da mesma forma, um homem que segue as doutrinas de Nietzsche não irá reagir da mesma forma que um católico romano ao ver um cachorro sendo atropelado. É claro, não se sabe se a angústia que sentimos ao ver outro ser vivo sofrendo é derivada da psicologia ou do instinto, mas a ilustração do exemplo continua válida. Nada mais direi com relação a isso, mantendo minha posição de que tudo que disse não passa de truísmos. Por definição, educação é o que modifica o comportamento, para o bem ou para o mal. 3

Vale observar (algo que os educadores modernos dificilmente admitiriam) que o sistema educacional brasileiro é deficiente pois sempre optou pela educação ou não educação, mas nunca pela qualidade da educação. Uma aula de ética absolutista (i.e, ética baseada em valores absolutos como “bom”, “mau”, “justo”, etc.) é tão prejudicial ao pensamento moderno que é preferível não ter aula alguma.

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Aceitando os argumentos propostos, podemos concluir que a cultura de certa sociedade consiste no produto intelectual de pequena quantidade de seus membros4. Historicamente falando, temos boas razões para acreditar nisso. A civilização grega, por exemplo, que alcançou níveis de excelência na matemática apenas sonhados pelas sociedades modernas, embora numerosa, tinha apenas uma pequena classe de filósofos responsáveis por toda produção intelectual que conhecemos pelos historiadores (sem levar em conta o material perdido). Qualquer um que olhe o sumário de A História da Filosofia Ocidental ficará petrificado ao perceber que, de bilhões e mais bilhões de pessoas que popularam o planeta Terra no decorrer de sua história, menos de cem moldaram o “pensamento ocidental” como hoje o conhecemos. É claro, todos os pensadores do mundo não estão restritos a pequena lista daquele livro, e os grandes pensadores da ciência são bem numerosos. Contudo, em comparação a população total, seriam como Santa Cruz comparada a todo Brasil. Enfim, consideremos um exemplo prático. Suponha que o leitor deseje aprimorar seu conhecimento em ética, por interesse particular ou qualquer outro motivo. Antes da popularização da internet, procurar-se-ia uma livraria, ou um professor que lhe recomendasse certa bibliografia, que também compraria numa livraria. Entretanto, o conteúdo das prateleiras seriam réplicas do pensamento ético vigente no país, por dois 4 Uma visão semelhante é adotada por Carpeaux em As Cinzas do Purgatório no artigo sobre universidades. Ele diz “Das universidades depende a vida espiritual das nações. O fim das universidades seria um fim definitivo.” 7

motivos: (a) Sem procura não há oferta. De nada adiantaria importar as obras de G.E.Moore e dos positivistas se todos os estudantes de filosofia (que consiste, geralmente, no público-alvo dos textos de ética) prende-se a metafísicas ultrapassadas como as de Kant e Espinoza. Com o advento da internet, que nos proporciona a incrível habilidade de alcançar bibliotecas a milhares de quilômetros em apenas alguns cliques, houve uma melhora, mas não uma grande mudança. A pressão da propaganda nacionalista (que consiste na valorização exacerbada da cultura regional, por mais fútil e inexistente que seja) cega os estudantes para onde “residem as verdadeiras colmeias do conhecimento”, parafraseando Nietzsche. Esse tipo de pensamento causa uma desvalorização no que diz respeito a importância doutras línguas, pois pensa-se que tudo de útil e necessário ao saber está traduzido para o português (uma completa mentira). Isto ocasiona um círculo vicioso, que, quando infectado por más literaturas, como as de Kant e Hegel, torna sua extração extremamente difícil, se não impossível. No caso da internet, ela não nos ajuda pois o estudante comum geralmente tem acesso ao que foi produzido apenas por outros estudantes como ele. Artigos da Wikipédia, blogs de discussão, etc. são nada mais que uma reprodução digital do que encontraríamos nas prateleiras de livrarias alguns anos atrás. E, como dito, a estúpida desvalorização de outras culturas causa a ignorância linguística, impossibilitando que o estudante voluntariamente saia do ciclo. Sinto profunda pena por todos que almejam uma carreira na matemática pura mas não possuem domínio do inglês: ficarão de fora de todos os melhores autores,

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restritos a literaturas medíocres destinadas aos preguiçosos e desinteressados. Mesmo que um estudante se desvie das correntes de pensamento vigentes, preferindo Ludwig von Mises a Karl Marx, ele estará sem sorte, pois boa parte das ementas dos cursos de humanas baseiam-se nas obras marxistas; e, na correria e agitação de nosso século, não há tempo de estudar ambos 5. Enfim, o mundo digital brasileiro, em termos de literatura, funciona como a livraria: reproduz apenas o que já está legitimado, nunca procurando o novo 6. (b) Suponha que uma editora deseje fazer uma coleção de filosofia para o público geral, começando com textos de ética. Para isso, consultará professores eméritos, que por sua vez já foram os estudantes que consideramos acima. Como no Brasil há uma forte tendência as ciências humanas, que sempre sofreram grande influência da metafísica, é muito improvável que algum professor recomende qualquer texto de filosofia moderna (positivista ou analítica) para as prateleiras. Talvez recomende, pela natureza da coleção, textos como Ética Nicômaco, ou até mesmo Genealogia da Moral, se gostar de ultrapassar limites. Contudo, seus favoritos sempre serão Hegel, Kant e Espinoza, pois cresceu aprendendo que eles fizeram grandes contribuições para suas respectivas áreas, quando na verdade serviram apenas para torná-las mais obscuras e confusas7, representando nada mais que um estágio no 5 6

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Quando digo estudar me refiro ao verdadeiro ato de penetrar na vida e pensamentos do autor, e não apenas ler alguns trechos da Wikipédia e capítulos avulsos de seus livros mais populares. O artigo da Wikipédia brasileira sobre G.E.Moore, o pai da ética moderna, é tão pequeno que mareja os olhos de quem possui o mínimo de respeito pela filosofia analítica. Enquanto o de Espinoza.. Bem, não preciso dizer não é? Para a construção lógica das ciências humanas e culturais, Cf. The Logical Structure of the World, de Carnap (especialmente as referências em pp. 23-24) e The Scientific Conception of the World: The Vienna Circle, §§ 3.5, de Carnap, Neurath e Hahn.

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desenvolvimento do pensamento humano. Kant caminhou em direção a filosofia da mente; Espinoza ao behaviorismo social religioso; e Hegel, tentando

todas as direções, chegou a lugar algum. O mesmo vale para

qualquer ramo intelectual, principalmente nos obscurecidos, em que a filosofia encontra-se escondida sobre tecnicalidades e línguas estrangeiras, como a matemática. Portanto, na instrução do homem comum que confia esse processo a erudição de seu país, ele educa-se com o que a classe intelectual julga adequado, e isso não quer dizer necessariamente o mais correto8.

Reside aqui meus motivos, e todos os pontos chaves de minha (antiga) primeira seção. A veracidade dessas opiniões, como disse, beira a especulação, e pretendo adotar uma atitude prática para com elas. Independente do que acho, ao olhar para o que se diz ser a cultura intelectual matemática vemos algo, e é esse algo que mostrarei9.

8 9

Não estou dizendo que, por ser uma erudição reproduzida por poucos, deve estar errada. Contudo, no Brasil há mais valorização do utilitarismo que na verdade pela verdade. Os problemas apresentados a seguir não são necessariamente uma característica puramente brasileira. Más literaturas, principalmente em matemática, existem em todos os países. Contudo, a questão não é em que países se produzem as más literaturas, mas onde se produzem as boas. Os livros didáticos de matemática, como sabemos, são uma completa ofensa a qualquer estudante, e as poucas exceções que conheço, como os dois volumes de álgebra elementar de G. Chrystal, e é claro os livros introdutórios dos grandes nomes, como D.Morgan e Peano, não foram escritos por brasileiros.

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Mal sei por onde começar. Talvez por entender um pouco mais sobre o assunto acredite que se encontre no pior estado, mas não exagero quando digo que a erudição matemática brasileira (se é que essa existe) está na lama. Falarei apenas da aritmética, pois entenderemos o cálculo como uma de suas partes10. Contudo, falarei desse ramo principalmente por ser considerado uma disciplina elementar, cujo domínio é indispensável para o matemático profissional.

1.

Na aritmética, começamos com a doutrina do número, e em que

parte devemos localizá-la na história. Essa etapa é fundamental para qualquer exposição logicamente consistente dentro de seu próprio escopo. Por exemplo, na matemática moderna “número” é um conceito ambíguo, indefinido, cujas instâncias são números cardinais e números ordinais. Números cardinais, por sua vez, também são ambíguos, pois um número cardinal deve ser a cardinalidade alguma coisa, e essa coisa é uma classe. I.e, o número cardinal duma classe (como por exemplo a classe de todos os funcionários de certa empresa) é a classe de todas as classes similares a essa. Números ordinais são um pouco mais complicados, estando relacionados a teoria das séries e 10 Isto é possível graças aos trabalhos de Weierstrass, junto aos de Cantor e Russell, que proporcionaram a completa eliminação dos conceitos de magnitude e quantidade da análise moderna. Cf. Which arithmetization for which logicism? de S.Gandon, e The Principles of Mathematics, Cap. III, de Russell.

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similaridade entre relações. Enfim, a questão é que todo esse aparato (que vale lembrar é um produto da matemática moderna, e dela apenas) é completamente independente das noções de “magnitude” e “quantidade”, que eram pressupostas na matemática clássica. O rompimento dessas noções trouxe graves consequências, estando a teoria das frações e medições (measurement) em níveis consideráveis de dificuldade por conta desta eliminação11. Se voltarmos, em contrapartida, para matemática clássica, o que é de se esperar ao ensinar aritmética pela primeira vez a qualquer um, caímos imediatamente nos trabalhos dos gregos antigos, e é justamente isto que a erudição matemática brasileira não conseguiu assimilar. Com isto quero dizer o

seguinte:

ao

trabalhar

com

certas

concepções,

principalmente

as

matemáticas, devemos entender adequadamente sua genealogia, pois nela há todo um aparato justificativo que perde-se na transferência das informações. Tome como exemplo a divisão. Os gregos, ao estipular a teoria dos números, viram a necessidade de assimilar certo nome para certa classe de relações entre os entes numéricos, e outro nome para outra classe. Alguns supõem que essas relações surgiram para fins práticos, e foram aperfeiçoadas no decorrer do tempo; mas isso é algo que nunca saberemos. Desdo momento em que não deixamos clara a diferença entre uma divisão e uma fração, perdemos um aparato conceitual fundamental, criado cautelosamente pela civilização grega para lidar com todos os tipos de problemas. I.e, damos um tiro em nossos próprios pés. Portanto, deixemos claro que divisão não é o mesmo que fração. 11 Cf. The Principles of Mathematics, Cap. XIX, de Russell e Principia Mathematica, Vol.3, Part VI*303, de Russell e Whitehead.

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Tendo esta diferença, olhemos para a divisão. No Brasil, e também noutros países, a teoria das divisões é completamente mal interpretada; isto ocorre por considerar o monad do sistema numérico como divisível. Deixe-me explicar. Como dito anteriormente, a aritmética grega (que é simplesmente a nossa aritmética moderna finita com um sistema notacional diferente e expressa como casos particulares de funções proposicionais) surgiu da abstração de dados do mundo empírico; sabemos, ao contar quantas canetas há num estojo, que o conceito “caneta” é adotado como “um”, e o “número de canetas” como uma pluralidade de “uns”. Contudo, suponha que nos perguntemos quantas tampas de canetas há nesse estojo; agora, consideramos a “tampa” como “um”. I.e, a aritmética como concebida pelos gregos, e como foi concebida por todo autor antes de Frege, Cantor e Russell, é baseada inteiramente no processo de contagem por intermédios duma unidade, e ensiná-la removendo essa suposição é fragilizar o sistema de maneira irreversível. Portanto, começamos pela unidade, o irredutível, de acordo com o processo de contagem efetuado, e seguimos por uma progressão, em que cada membro é uma multitude de unitários. Tudo isso é perfeitamente expresso por Euclides12:

1. A unidade é tudo aquilo de acordo com o qual cada uma das coisas existentes é chamada de “um”. 2. E um número é uma multitude composta de unidades.

12

Livro VII, pp.1, The Elements, versão inglesa por Sir Thomas L. Heath.

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e Domninus de Larissa13

1. O monad é aquilo que, virtude de cada uma cadas coisas que existem, é chamado “um”. 2. Um número é uma coleção de monads. Todo o reino dos números é uma progressão do monad, por uma diferença de um, ao infinito. Há o monad, o duad, então o triad e o tetrad, etc. 3. Alguns números são capazes de serem divididos em duas partes iguais, tais como 4 e 6.

Outros não são capazes de tal divisão, tais

como 3, 5, 7 e 9. Nenhum desses números é capaz de divisão em partes iguais, pois o monad é, por sua mera natureza, indivisível.

A terceira proposição do manual de Domninus exibe um grau de profundidade e bela simplicidade que nunca presenciei em nenhum outro autor. Peano chega perto, mas não o suficiente.

2.

Acredito que isto é mais que o suficiente para sabermos que não

podemos dividir o unitário, em nosso processo de contagem, por nenhum número maior que ele mesmo; i.e, 1÷2 nada mais é que “má gramática”, algo indeterminado. Romper com essa ideia, consiste em ensinar uma matemática cujo processo de contagem é feito de maneira indeterminada, talvez impossível. Devemos parar em algum momento. Quando dividimos uma maçã em duas partes, o monad de nosso processo de contagem não é a maçã, mas o 13 Seção 1, pp.1, The Manual of Domninus, versão inglesa por Peter Brown.

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átomo. O mesmo vale para o sistema monetário. Quando dividimos um real em duas partes, de cinquenta centavos cada uma, fazemos uma analogia a 1÷2=0,5, o que é um erro, pois o monad do sistema monetário é o centavo e não o real. Assim como não dividimos o centavo em outras partes, não podemos dividir 1 em outras partes. Essa teoria da divisão, que estipula a multiplicidade do monad, que chamarei de pluralismo aritmético, gera outras dificuldades, de natureza técnica, as quais não adentrarei. Mas cabe ao leitor entender que a principal razão para a impossibilidade de 1÷2 é por tornar inviável o processo de contagem14. Este é o primeiro ponto defectivo na erudição matemática brasileira, que surpreendentemente está presente em boa parte dos países mais antigos, e relacionado a algo que acredito ser demasiado simples para que um erro vergonhoso como o pluralismo na teoria das divisões fosse possível. Nenhum autor sério, como Peano, Cantor ou Whitehead o comete. Alguns podem argumentar que o aparato conceitual e suas interpretações mudam, e que não podemos nos basear diretamente em textos como o de Euclides para o ensino da aritmética básica. Embora seja uma posição admirável, no caso da matemática está errada. O estudo de autores como Euclides e Domninus é importante pois a matemática moderna é inteiramente baseada em seus trabalhos, consistindo apenas em reformulações nos conceitos básicos, mas mantendo suas relações15. I.e, como dito, hoje temos “número cardinal” e “número ordinal”, cuja definição formal era 14 Na matemática moderna, “contar certa classe de objetos” consiste em estabelecer uma relação entre essa classe e a progressão dos números cardinais finitos. Para isso, a progressão deve ter um início, e esse início é o monad do processo de contagem específico. 15 Para mais sobre o processo de clarificação conceitual, Cf. O Futuro da Filosofia, de M. Schlick.

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desconhecida pelos gregos, mas ainda não podemos dividir o número cardinal 1 em duas partes. Caso o leitor não esteja convencido, recomendo que utilize a definição de multiplicação apresentada por A.N.Whitehead em On Cardinal Numbers, para definir a divisão entre cardinais finitos e analisar o caso de 1÷2. Após ler a terceira proposição de Domninus, fiz este procedimento, e a existência dum número cardinal finito k tal que 1÷2=k levaria a contradições lógicas irremediáveis16. Portanto, a doutrina grega permanece, e números “quebrados”17 não existem nem nunca existirão. Como disse, esse é um ponto tão elementar que sinto vergonha em precisar mencioná-lo. Contudo, o mais surpreendente é que todos os matemáticos a que comuniquei esse problema o tratou com apatia preocupante: parece que não se importaram em terem sido enganados por todos os seus professores. Tudo isso, e acredito que o leitor concordaria, é extremamente perturbante. Quando tento explicar a teoria das divisões monádicas (i.e, a teoria das divisões em que o monad é irredutível) para um estudante de humanas, não demoro mais que dois minutos para ganhar olhares de epifania e prazer; para alguém de exatas, preciso discutir no mínimo dez minutos, sob olhares emburrados e sugestões do tipo “Isso não serve para nada, idiota!” ou “Tenho um doutorado, cale-se!”. Quando não podem mais argumentar contra a lógica do monadismo, que relacionada a

16 Podemos pensar que a necessidade duma solução para 1÷2=k introduz uma nova classe numérica, a das frações, ou números “quebrados”. Contudo, isto é um erro, pois como veremos frações não podem surgir de operações entre cardinais. E também pela falsidade do princípio da extensão (i.e, de que toda equação deve ter uma solução para que possa ser tratada na maior generalidade possível). 17 “2,5” nada mais é que um nome para a fração 25/10, ou seu equivalente 5/2, nada tendo haver com números “quebrados”.

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aritmética é uma das mais belas e simples, recorrem a desculpa da “não utilidade” de nada disso para justificar sua ignorância. Isso me faz pensar. Se realmente se preocupassem com aplicabilidades, não se interessariam por matemática, uma disciplina cheia de abstrações e concepções completamente inúteis para o cotidiano. A verdade é que não são filósofos: não interessam-se pela verdade, i.e, na clarificação do aparato conceitual de sua disciplina. Preferem trabalhar com noções obscuras, baseadas em olhômetros e adivinhações, pois isso proporciona-lhes unicidade dentre a maioria. Alguém que compreenda as mudanças e clarificações filosóficas da física e matemática moderna (compreendendo, por exemplo, a eliminação do conceito de força ou a construção lógica de cardinais finitos) será apenas mais um na multidão de intelectuais como os que compõem o Círculo de Viena (e seus discípulos), mas alguém que resolva equações diferenciais de cabeça (mesmo que não tenha uma ideia clara do que elas sejam, ou de como aplicam-se ao mundo exterior, e muito menos da relação entre a matemática pura e a construção lógica do mundo), destaca-se, ganhando admiração de tolos, enquanto o verdadeiro matemático permanece na obscuridade, desconhecido. Portanto, utilizam o argumento da não aplicabilidade, baseado numa interpretação errada do que é a matemática pura, e o que significa ser um matemático puro. Confundem o termo “matemático puro” com “computador”, e honram-se ao fazê-lo. É claro, também baseia-se na legitimação exacerbada da instituição; mas isso apenas acontece por desinteresse, não ocorrendo com aqueles que buscam a verdade. I.e, acredito que se tivessem aprendido a doutrina do monadismo, em oposição

17

a do pluralismo, e os papéis fossem invertidos, ainda ganharia as mesmas caras feias se dissesse que 1 é divisível por 2.

3.

Agora podemos adentrar na teoria das frações. Embora a

consideremos uma parte da aritmética, ela é de aspecto mais geral, e não se relaciona unicamente com a teoria dos números, mas com magnitudes em geral. Ou seja, ainda do ponto de vista da matemática clássica, continuamos nas mãos dos gregos: toda teoria das frações puras é derivada do quinto livro de Euclides. É claro, o gênio de sua época não cometeu o erro também muito elementar de assimilar uma razão (ou fração) com um número, sendo o primeiro de aspecto mais geral, ocorrendo como uma relação entre duas magnitudes, enquanto o segundo é puramente um número cardinal. Existem ao menos duas possíveis interpretações para esse conceito. A primeira, adotada nos textos mais elementares e que acredito ser a mais correta, trata o termo “fração”, ou “razão”, como uma relação entre as divisibilidades de magnitudes. I.e, ½ é a relação “metade de”, que estabelece-se entre duas magnitudes quando uma é metade da outra. Esta visão é mais ou menos sugerida por Russell18, mas é deixada de lado nos Principia por uma teoria das frações mais geral. A segunda, atribuída a Peano 19, consiste em interpretar um número racional como a operação de multiplicar e dividir. Portanto, ½ seria escrito como (×1)(/2) em seu simbolismo. Contudo, independente do aspecto técnico escolhido, uma fração precisa ser uma fração 18 Cf. The principles of mathematics, Cap. XVIII, pp.151-152. 19 Cf. Aritmetica generale e algebra elementare, pp. 63.

18

de alguma coisa, e é neste ponto que ocorre confusão. Como mencionamos, uma razão não é uma divisão, e por isso 2/1 não é o mesmo que 2. Isto nos leva a concluir que operações entre números racionais podem ser efetuadas apenas entre eles; ou seja, o “domínio” de todos os números racionais é fechado, e não “interage” com os inteiros da maneira como pensamos, de forma que (2/1)+3=2+3=5 também é “má gramática”. Mas esse isolamento, pensamos, põe em dificuldade a mera noção de “fração de..” pois não podemos multiplicar um número por uma fração, de forma que não possuímos mais os meios para dizer que “4×(1/2)=2”, ou que “a metade de 4 é 2”. Essa ideia de multiplicação, acredito, surge por conta do princípio da extensão, que sempre tem causado males. Vejamos a definição exata de razão, como feita por Russell20. A proposição “x possui para com y a relação (n/m)” é verdadeira, quando “xm=yn” é verdadeira. Pela definição de divisão, sabemos que, caso a segunda proposição seja verdadeira, então x=(yn)÷m, ou y=(xm)÷n. Dado um z qualquer no campo dessa fração21, “(n/m)῾z” representa o único elemento que associa-se a z na relação (n/m), que por definição é “a fração (n/m) de z”. I.e, se x for esse elemento, então “x possui para com z a relação (n/m)” é verdadeiro, também o sendo “xm=zn”; logo, x=(zn)÷m. Para n=1 e m=2, temos x=z÷2, que é o conceito “metade de z” procurado. Sendo assim, não há nenhum pressuposto de multiplicação por número cardinal na noção “fração de..”, onde no lugar de “..” colocamos cardinais quaisquer. Voltando as operações, embora (2/1)+3 seja indeterminado, (2/1)+(3/1) é determinado, 20 Cf. Sur la logique des relations, em Revue de Mathématiques, Vol.VII. 21 I.e, no domínio ou contradomínio da relação.

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embora não possua um significado completo. Também podemos efetuar operações da forma {(2/1)῾x}+3, onde x é um número natural. É claro, essas tecnicalidades podem ser poupadas aos estudantes do ensino médio e fundamental, mas seu desconhecimento pelo público da matemática é completamente imperdoável. Tudo isso não passa de notícia velha, já mencionada por Russell e Peano no começo do século XX, e gritada pelo quinto livro e sétimo livro de Euclides em não sei quanto antes de Cristo.

3.

Chegamos agora a teoria dos números-relacionais, ou, como

conhecemos, números negativos e positivos. Essa teoria é bem recente, e podemos dizer que sua forma completa surgiu apenas com o terceiro volume dos Principia22 de Russell e Whitehead. É claro, a esquerda matemática (que consiste nos seguidores de Zermelo e Fraenkel) elaborou teorias de números negativos (1 e +1 não são diferenciados em suas abordagens) baseadas no cálculo de classes, mas essas teorias dificilmente possuem algum mérito filosófico,

assemelhando-se

a

construções

ad

hoc.

Sem

mencionar

a

ingenuidade de suas teorias funcionais, que sinceramente parecem cópias mal feitas da lógica de relações. Como o nome nos sugere, falaremos agora de “números-relacionais”, que na verdade são apenas relações entre números, não sendo por si números. Depois dos avanços de Peano e Russell, tornou-se claro que a noção de progressão é fundamental para matemática moderna, pois ela condensa todo o aparto conceitual necessário. Progressões são classes cujos 22 Cf. Part VI *300. 20

termos possuem para com eles mesmos certa relação, sendo completamente independentes da noção de número23. Considere como exemplo a relação “é pai de”, e a classe de termos

Luis I, Luis II, Luis III, Luis IV, Luis V, Luis VI, …

Sabemos que, para cada elemento dessa classe, digamos Luis ?, sempre existirá outro elemento, digamos Luis ??, tal que “Luis ? é pai de Luis ??” é verdadeiro ou “Luis ?? é pai de Luis ?” é verdadeiro. Também sabemos que existe um elemento tal que não existe outro elemento que possua a relação “é pai de” para com ele, i.e, na classe não há nenhum elemento que seja pai de Luis I, embora ele obrigatoriamente deva ter um pai. O elemento “Luis I” é chamado elemento inicial da progressão, e possui para com todos os outros elementos certa ordem do produto relativo da relação “é pai de”. Quando digo produto relativo duma relação, me refiro ao seguinte: suponha que R seja a relação considerada, de pai para filho, e R² seja outra relação que satisfaz a seguinte propriedade: “x possui para com y a relação R² ” é verdadeiro quando “Existe um z tal que x possui para com z a relação R e z possui para com y a relação R ” é verdadeiro. Neste caso, Luis I possui para com Luis III a relação R², que consiste na relação de avô para neto. O mesmo vale para Luis I e Luis IV, sendo R³ de bisavô para bisneto, etc. Agora considere como primitivas as seguintes regras, que constituirão o cálculo de nossa progressão: (a) O símbolo 0 representará o elemento inicial da progressão (que passaremos 23 Cf. Sur la logique des relations, part III, de Russell.

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a representar por u ); (b) Se x for um elemento de u, então o símbolo x+0 equivale ao símbolo x; (c) Se x for um elemento de u, então qualquer proposição envolvendo o termo x+1 será equivalente (no sentido lógico de dupla implicação) a uma proposição envolvendo um termo y tal que “x possui para com y a relação R ” é verdadeira. I.e, se for x for um u, então x+1 é o pai de x. Considere uma relação S, que ocorre entre os termos da progressão u, tal que “x possui para com y a relação S ” é verdadeiro quando “x equivale y+1” é verdadeiro. A relação S é chamada de sucessão e representada simbolicamente por (+1). Sua relação conversa (converse), que consiste na relação que subsiste entre os mesmos termos, mas em ordem oposta, é representada por (-1). Chegamos a aritmética quando substituímos, para os termos da progressão u, cardinais definidos à la Cantor.

Equipados da teoria correta, vemos a demolição de muitas proposições consideradas como usuais na aritmética elementar, como x-1=x+ (-1), que nos leva a considerações negativas relacionadas ao princípio da extensão para equações como x2+1=0.

O leitor pode pensar que tudo isso não passa de tecnicalidades inúteis, mas não devemos esquecer que essas tecnicalidades surgiram de necessidades, e temos de mantê-las em mente. Ao igualar uma divisão a uma fração, perdemos o aparato conceitual que utilizamos para comparar magnitudes com relação a seu tamanho, o que impossibilita boa parte das

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ciências. Ao igualar (+1) ao cardinal 1, jogamos no lixo toda teoria moderna das progressões, cuidadosamente construída para possibilitar uma teoria vetorial, e com isso perdemos o conceito de velocidade e todo aparto básico para expressar grandezas físicas em linguagem científica.

Acredito que a seguinte passagem de Russell 24 é uma maneira bem sábia de lidar com toda porcaria e tolice que acabamos de ver:

Talvez o mundo perdesse um pouco do seu interesse e diversidade se tais crenças fossem completamente substituídas pela ciência fria. Talvez possamos nos alegrar com os abecedarianos, assim chamados porque, tendo rejeitado todo o ensino profano, consideravam imoral que se aprendesse o abc. E podemos apreciar a perplexidade do jesuíta sul-americano que se perguntava como foi possível a preguiça ter viajado, desde o tempo do dilúvio, do Monte Ararat até ao Peru — uma viagem que parecia quase incrível, dada a lentidão dos seus movimentos. Um homem sábio desfrutará os bens que há em abundância, e de lixo intelectual encontrará abundante dieta, no nosso tempo como em qualquer outro.

24 Um esboço do lixo intelectual.

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