O ECA e os Desafios da Universalização da Infância, do livro: \"Ensino de Sociologia: direitos humanos, sociais, educação e saúde\", 2013 (org. Mauro Meirelles et al)

July 6, 2017 | Autor: Patrice Schuch | Categoria: Human Rights
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O Estatuto da Criança e do Adolescente Patrice Schuch

Introdução

Em seu livro “A História Social da Criança e da Família”, publicado em 1960, o historiador francês Philippe Ariès (1981) marcou em definitivo as problematizações sobre a “infância” como uma construção social e política da Modernidade. Segundo este autor, a Modernidade “inventou” a infância através de uma progressiva consciência da particularidade infantil em relação aos adultos. A partir do século XVI, processos complexos como a ascensão da família nuclear e o aparecimento da escola como modo formativo preferencial das crianças foram fundamentais para a criação de uma sensibilidade especial em relação à infância, percebida, fundamentalmente, como um período de formação para a vida adulta. A infância tornava-se “sagrada” e deveria ser protegida e vigiada. Desde então, um conjunto diverso de instituições, saberes, morais e princípios legais procuraram dar forma social a tal sensibilidade em direção à infância como uma fase da vida de crescimento e de desenvolvimento. Esse processo não teve nada de homogêneo e é possível considerar – ainda hoje – as maneiras diversificadas em que tal sensibilidade em relação à infância se objetivou em práticas diversas de gestão dessa população, de acordo com os universos socioculturais e cenários político-econômicos em questão. Não obstante, nota-se um claro esforço de instituições, saberes e legislações ocidentais em universalizar a infância como essa fase especial da vida para todas as crianças. Trata-se de um desafio cotidiano enfrentado por professores, familiares, militantes, médicos, profissionais diversos de órgãos estatais e não estatais envolvidos no cotidiano e na gestão da vida das crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990 no Brasil, é uma dessas ferramentas contemporâneas de promoção da infância | 151

e de sua universalização. Sua promulgação significou a comemorada assunção legal de que todas as crianças e adolescentes, até 18 anos no Brasil, são “sujeitos de direitos”, considerados pessoas em desenvolvimento e destinatários de proteção integral do Estado, família e sociedade. A consideração da proteção integral está de acordo com os princípios consagrados na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e da Organização das Nações Unidas (1989) e na Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), assim como também pelo artigo 227 da Constituição Federal brasileira, que afirma: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Enquanto uma espécie de “narrativa mestra” da nação, no que se refere às políticas de proteção à criança e ao adolescente, o ECA objetiva certa concepção hegemônica de infância que se pretende universalizar. Entretanto, um dos desafios mais instigantes na consideração das práticas de sua efetivação é, exatamente, como realizar tal universalização em um contexto sociocultural e político-econômico que, de fato, não universalizou as condições de acesso aos direitos necessários para tal empreendimento. É o confronto com tal desafio e com algumas das tensões cotidianas que ele gera nas práticas daqueles envolvidos com as políticas de promoção da infância que irá balizar a escrita deste texto. Começarei, entretanto, com uma incursão na história das políticas de proteção à infância e à juventude no Brasil, necessária para contextualizar a importância contemporânea do ECA. Neste tópico discutirei as principais modificações introduzidas por essa legislação no Brasil, caracterizada pelo “paradigma da proteção integral”, frente ao chamado “paradigma da situação irregular”. Passarei então à discussão de algumas tensões entre as propostas legais e as práticas sociais, concentrando-me em três âmbitos de consideração: a) as (persistentes) diferenciações de classe, gênero e raça/etnia; b) o ECA e a interculturalidade; e, c) a (constante) busca por culpados: pais 152 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

abusadores e/ou profissionais incompetentes? Por fim, retomarei algumas dimensões essenciais de serem levadas em conta na análise dos desafios da universalização da infância. Mais do que uma simples anunciação teórica, a ideia deste texto é explorar a riqueza de um conhecimento engajado, que toma os desafios contemporâneos como oportunidades de debates sobre as políticas de proteção à infância e dos seus efeitos na vida daqueles a quem tais políticas são destinadas.

juventude

Através de variadas maneiras de intervenção e domínios de autoridades que envolvem agentes diversos, a vida de crianças e adolescentes passou a ter uma importância fundamental na gestão da sociedade brasileira, articulando um conjunto diverso de saberes, poderes e éticas. A análise desse processo no Brasil aponta para uma trajetória que abarca, a partir do século XX, três matrizes distintas de intervenção (SCHUCH, 2009): a matriz higiênicosanitarista, destinada à produção de populações saudáveis e civilizadas (19001950); a matriz modernista, de desenvolvimento nacional (1950-1985); e, a matriz dos direitos, que investe na proteção integral das crianças e adolescentes (1985 - atual). Cada uma dessas matrizes de intervenção é composta por agentes, formas de conhecimento e instituições que expressam formas distintas de constituir os sujeitos do atendimento, relacionadas a objetivos particulares e modos específicos de conceitualizar as realidades abarcadas.

Menores de 1927

A constituição da “justiça de menores” no Brasil, no início do século XX, inseriu-se no processo mais abrangente da formação de um sentimento da infância elaborado na modernidade, caracterizado no referido estudo de Ariès (1981). Segundo o autor, a criação da noção de infância, enquanto uma fase socialmente distinta, processou-se no desenvolvimento da sociedade moderna ocidental, mediante a instituição da necessidade de um processo de | 153

preparação para a vida adulta, que tem na educação e na escola seus agentes difusores. Neste contexto, a família deixou de ser uma instituição de direito privado para a transmissão de bens e de nome e assumiu a função moral de “formação de corpos e almas”. Analisando o caso francês, Jacques Donzelot (1980) vai associar às transformações nas sensibilidades familiares um complexo de estratégias de disciplinamento da população, desenvolvido a partir do século XVIII, com modos de ação e incidência diferentes segundo as camadas sociais. Para as classes burguesas, o disciplinamento se efetivava por uma aliança entre o médico e a mãe, voltada para o que chama de uma “economia do corpo” e centrada na produção de corpos infantis sadios. Nas classes populares, tal disciplinamento incidia na legalização dos matrimônios, na ênfase do cuidado materno e nas estratégias de nuclearização da habitação. Essas políticas disciplinadoras – a “polícia” das famílias –, foram levadas ao cabo por agentes diversos, tais como o Estado, a Igreja e as associações filantrópicas, e produziram uma progressiva demarcação dos domínios público/privado, fundamental para o desenvolvimento de um modelo nuclear de família, definido como o lugar dos “afetos” e do amor gratuito entre pais e filhos. Tais demarcações resultaram de métodos de desenvolvimento da potência da nação, amparado pelo conjunto de estratégias que Donzelot (1980) denominou de “complexo tutelar”. No Brasil, alguns estudos salientam a diferença frente ao modelo francês, dada pela impossibilidade de garantia do fornecimento de subsídios sedutores à população, que possibilitem a mudança de suas práticas e valores. Pesquisas mostram a continuidade de modelos familiares diversos, de uma circulação de crianças entre a parentela, amigos e conhecidos e instituições privadas ou estatais, além da alta incidência de uniões extraconjugais (FONSECA, 1995; VIANNA, 1999). A ineficiência da ação, contudo, não significa inexistência das tentativas de disciplinamento ou igualdade em seus modos. Uma análise das políticas estatais destinadas à juventude indica que, no Brasil, as preocupações com a delinquência, insegurança pública, desenvolvimento industrial e urbanização crescente de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, começaram a caracterizar uma atenção de diferentes agentes para as questões ligadas ao governo das populações, por volta do final do século XIX e início do século XX. Entre debates diversos sobre migração, trabalho e violência, a 154 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

criança também se tornou objeto de problematização social, principalmente da parte de juristas e médicos. Juristas moviam-se pela assustadora imagem das crianças nos presídios de adultos, divulgando a necessidade de “humanizar” e “modernizar” o Direito (RIZZINI, 1995). Médicos higienistas alertavam sobre as consequências nefastas, para a qualidade da população brasileira, do mau cuidado dos filhos, visto como uma atividade produtora das altas taxas de mortalidade infantil da época. Através do lema “salvar às crianças”, toda uma rede de autoridades passou a ser discutida e viabilizada, para atenção e controle à infância. Tal rede foi fundamental não apenas para a explicitação desse domínio como alvo das políticas estatais, mas para a própria constituição de autoridades públicas e para o governo das populações, em um país recém-elevado à condição de República. No que diz respeito aos debates jurídicos, no início do século XX houve um engajamento significativo, por parte de muitos juristas, na discussão sobre a necessidade de um domínio jurídico especializado para infância e juventude. Era preciso construir um novo domínio – um domínio especializado – com agentes de ação e objetos/alvos práticos, definidos diferentemente daquele já definido pelo direito penal. Daí a aliança entre médicos e juristas, característica da primeira metade do século XX. Tal aliança visava tanto o melhor aparelhamento institucional, capaz de “salvar” a infância brasileira no século XX, quanto tornar a própria “vida” de crianças e adolescentes objetos de pensamento e ação de um conjunto heterogêneo de agentes. Entre esse conjunto de novas autoridades, a abordagem médica higiênica se destacava, na medida em que prometia aperfeiçoar a população, elemento de crucial importância na construção da nova nação republicana brasileira. O objetivo de formar uma população sadia e com hábitos civilizados significava ter que expandir as formas de governo para o gerenciamento dos hábitos familiares, espaços públicos, assim como também organizar uma rede legítima de instituições para a normalização e vigilância das condutas. Saberes médicos e jurídicos envolveram-se significativamente nessa tarefa de constituir esse novo espaço de intervenção sobre a vida de crianças e adolescentes. É preciso dizer que a ligação entre médicos e juristas estava em voga não apenas no Brasil, mas estava presente internacionalmente em congressos científicos, como mostra a existência dos Congressos Pan-Americanos da Criança, cujo primeiro evento aconteceu em 1916, na Argentina, e as | 155

Conferências Pan-Americanas de Eugenia e “Homicultura”, iniciadas em 1927, em Cuba. A realização desses seminários destaca a relevância internacional que o tema da “criança” já tinha, no início do século, como pauta de discussão política internacional. Nesse âmbito, houve também a fundação de organizações especializadas na promoção do bem-estar das crianças, como por exemplo, a Children’s Bureau (Estados Unidos, 1912), a Associação Internacional para a Proteção da Infância (1913), o Comitê para a Proteção da Infância da Sociedade das Nações (1919) e o Instituto Interamericano del Niño (sede em Montevidéu, 1927). Houve também a proclamação da Declaração de Genebra, aprovada no ano de 1924, pela Assembleia da então Liga das Nações, que concebia a necessidade de uma “proteção” especial às crianças. No Brasil, os debates internacionais receberam muita atenção, principalmente por parte de juízes, ansiosos pela criação de aparatos jurídicos destinados à infância e juventude. Em 1924 houve a criação do primeiro Juízo de Menores no Brasil, idealizado por Mello Matos, também primeiro “juiz de menores” do Brasil e da América Latina. Em 1927, houve a promulgação do Código de Menores de 1927. Na época da promulgação dessa lei, os debates tinham, efetivamente, se expandido do universo jurídico da arbitragem tradicional e, sob a liderança dos juízes, a questão de um tratamento especializado das crianças e dos adolescentes compunha as discussões de um circuito de agentes diversos como, por exemplo, a força policial, os setores políticos, as cruzadas médicas e as associações caritativas e filantrópicas. O objeto dessa cadeia de autoridades acabou sendo definido como o “menor”, uma categoria ambígua, cristalizada no campo jurídico a partir do Código de Menores de 1927. O “menor”, como categoria de hierarquização social, era o personagem social que abarcava uma ampla gama de substantivos e adjetivos diversos – “crianças desvalidas”, “miniaturas facínoras” etc. – atribuídos na prática policial e jurídica àqueles indivíduos definidos legalmente em situação de menoridade (VIANNA, 1999). Como uma vasta bibliografia sobre o assunto tem destacado, o “menor” era definido, primordialmente, em torno de sua situação de subordinação social pela pobreza. As medidas jurídico-estatais dirigiam-se à população carente da sociedade brasileira, que era objeto privilegiado das medidas de reforma populacional e alvo de um esforço classificatório de reordenamento do social, algo particularmente relevante em um momento de recente fim da escravidão. 156 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

Com a instauração das políticas da ditadura do Estado Novo, em 1937, percebe-se uma ideologização dos discursos dos representantes do Estado no atendimento à infância e juventude. Em 1941, tentando implementar políticas centralizadas de atenção à infância e juventude, Getúlio Vargas instaurou o Serviço de Atendimento aos Menores (SAM), órgão que teve alcance nacional somente a partir de 1944. Iniciava-se, assim, um período de forte centralização estatal da gestão da infância no Brasil.

No plano internacional, um marco importante foi a promulgação do Código Pan-Americano da Criança, em 1948, que acentuou a importância legal dos direitos das crianças e foi um mecanismo importante de produção da universalização da infância. A ênfase dos direitos das crianças estava em consonância com o contexto político e social internacional do pós-Segunda Guerra Mundial, em que foram formuladas normativas internacionais de proteção à soberania do indivíduo. As novas instituições internacionais emergentes no contexto pós-guerra, como a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945, e o seu órgão especializado em crianças e adolescentes, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), também passaram a atuar na difusão de uma ideia de indivíduo portador de direitos fundamentais, acima de qualquer identidade atribuída. No mesmo ano da aprovação do Código Pan-Americano da Criança, isto é, em 1948, a ONU promulgou a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”. A criação da ONU e a promulgação da “Declaração Universal dos Direitos do Homem” se fundamentaram na convicção de que a proteção dos direitos do indivíduo não deveria ser apenas uma preocupação de cada país. Seguindo tal diretiva, houve a promulgação dos Direitos da Criança pela ONU, em 1959, momento de efetiva internacionalização das orientações legais em torno da proteção da “criança”. Tal internacionalização só se tornou possível através da ênfase numa ideia de “igualdade” entre os homens, noção amparada no pressuposto de sua universalidade ontológica. Ganha força a concepção de uma “infância universal”: a infância concebida como um período de vida dotado de universalidade e que deve ser protegida e promovida, independente de qualquer | 157

cenário sociocultural e político-econômico. O contexto internacional pôs em evidência a necessidade de um debate nacional acerca da necessidade de uma transformação no Código de Menores, elaborado em 1927. É nesse momento que apareceram as primeiras noções da relevância da participação comunitária na reflexão sobre as causas e soluções do problema do “menor”. Nacionalmente, o debate era intenso acerca das possibilidades de transformação legal e das estruturas de atenção à infância e juventude. Configurando tais preocupações, estava uma ênfase na ideologia da modernização da sociedade brasileira, que deu visibilidade crescente aos processos de nuclearização da família. Com o desenvolvimento de uma ideologia de modernização da sociedade brasileira, desejava-se investir no desenvolvimento do país, de forma rápida e eficiente – veja-se o famoso slogan do governo de Juscelino Kubitschek, “50 anos em 5”. Para tanto, essa abordagem privilegiou o urbano, o investimento do capital financeiro externo na indústria automobilística e o desenvolvimento econômico do país. A diretriz do Ministério da Previdência e Assistência Social era “Modernizar para Funcionar” (RIZZINI & RIZZINI, 2004), o que possibilitou a reflexão sobre melhores estruturas estatais – racionalizadas e centralizadas num estado forte de “bem estar” – para o controle dos “menores”, aquelas crianças e adolescentes, cujas famílias não haviam conseguido se adaptar aos padrões hegemônicos. O sujeito da intervenção passou a ser conceitualizado como sujeito de necessidades. Mais tarde, com o início do governo autoritário, as políticas e as discussões voltaram-se para a proteção e defesa da “segurança nacional”. Um dos aspectos fundamentais da política centralista de “bem-estar do menor” foi a substituição, em 1964, do SAM pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). No que diz respeito às políticas de internamento, o aparato constituído – grandes institutos, poucos espaços privados, coletivização do atendimento e presença de serviços diversos como educação e saúde próprios, por exemplo – evidenciava uma política totalizante, cujo projeto de desenvolvimento valorizava a função de uma elite estatal na produção de um país economicamente moderno, embora desigual. A linguagem modernista era a linguagem do desenvolvimento e não dos direitos dos cidadãos e o seu principal alvo era o subdesenvolvimento e não a desigualdade social. Com a elaboração do Código de Menores de 1979, o alvo das políticas 158 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

ficou definido como o “menor em situação irregular”, categoria que manifesta a focalização das intervenções nas crianças pobres e suas famílias. Os discursos sobre as “famílias desestruturadas”, a “indiferença e insensibilidade das mães” e das “domésticas que se engajam em uniões livres e sucessivas e que revelam extraordinária indiferença ao filho”, começaram a fazer parte, de forma frequente, das interpretações presentes nas publicações da FUNABEM (RIZZINI & RIZZINI, 2004). No entanto, a promulgação dessa legislação suscitou críticas importantes. Do ponto de vista jurídico, as críticas se concentraram em torno das fracas salvaguardas jurídicas. Com relação aos militantes da área e aos educadores, a crítica à legislação salientava o viés classista do personagem “menor em situação irregular”. Tais objeções ganharam fôlego à luz do debate internacional. No mesmo ano da promulgação do segundo Código de Menores, em 1979, a UNICEF e a Organização Mundial da Saúde (OMS) proclamaram o “Ano Internacional da Criança”, organizando diversos seminários e fóruns de debates internacionais, nos quais foi divulgada a noção de “crianças do mundo” (world’s children) e a possibilidade da categoria “infância universal” ordenar discursos teóricos e políticos em diferentes frentes temáticas nacionais. Nacionalmente, as pressões para o retorno da democracia e o fortalecimento de movimentos sociais passaram a compor um cenário de reformulação do centralismo estatal na condução do governo de crianças.

da Criança e do Adolescente

A desconstrução do legado da “situação irregular” foi dada a partir da elaboração da Constituição Federal de 1988 – chamada de “Constituição Cidadã”. A orientação de “proteção integral” à criança e ao adolescente, presente no artigo 227 (referido na introdução deste texto) da Constituição Federal, foi celebrada por militantes da área e movimentos de proteção de direitos. Essa diretriz constitucional ganhou amplitude com a promulgação do ECA, em 1990. Nessa legislação, o chamado “paradigma da proteção integral” de crianças e adolescentes tornou-se dominante no âmbito jurídicoestatal da infância e juventude no Brasil, tal como orientavam as legislações e normativas internacionais dessa área. Um dos mais importantes aspectos | 159

das transformações na administração da infância foi a orientação que as políticas de atendimento devem ser realizadas por uma gestão articulada entre estado, família e comunidade. Outra modificação fundamental se deu com a universalização das crianças e adolescentes atingidos pelas políticas. Ao invés dos “menores em situação irregular”, o alvo das intervenções passou a ser definido como todas as crianças e adolescentes, de zero a 18 anos, percebidos como “sujeitos de direitos”. O seguinte quadro resume algumas das principais diferenças entre os paradigmas da “situação irregular” e de “proteção integral”: Quadro 1: Paradigma da “Situação Irregular” X Paradigma da “Proteção Integral” Legislação Base da doutrina

Políticas Concepção político-social Forma de Gestão

Código de Menores de 1979

Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) Doutrina da “Situação Doutrina da “Proteção Integral”. Irregular”. Direito tutelar do Crianças e adolescentes menor – definido como em definidos como “sujeitos de “situação irregular” direitos” Autoritarismo estatal e Democratização e desigualdade no controle social universalização dos direitos Instrumento de controle social Instrumento de desenvolvimento social Hierarquização piramidal do Articulação em redes de proteção: controle social: centralismo participação social (ONG’s estatal (autoridade policial, nacionais e internacionais, judiciária e administrativa) governos federal, estaduais e municipais, Conselhos Tutelares, Fundos e Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, família, comunidade etc) Fonte: Elaboração da autora

Embora os avanços legais sejam indiscutíveis, a análise dessa pequena genealogia das matrizes de intervenção possibilita evidenciar que os processos de universalização da infância envolveram distintas concepções sobre como gerir crianças e adolescentes. Por um lado, tais diversificadas visões sobre os modos de administração da infância manifestam que a promulgação de qualquer legislação não depende de consensos harmoniosos, mas de enfrentamentos tensos de poder e de sentido explicitados em filosofias e 160 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

práticas específicas de governo. Por outro lado, tais enfrentamentos permitem, também, admitir que a simples promulgação de uma lei não tem por efeito a produção de um consenso acerca da problemática abarcada pela orientação legal. De fato, muitas vezes, a promulgação de princípios legais dá visibilidade a tensões de sentido em torno da legitimidade da causa abarcada pela lei e/ou torna explícita a existência de contradições entre os princípios legais e suas condições de exequibilidade nas práticas sociais. Esse será o assunto tratado a seguir.

A implantação do ECA deu visibilidade a algumas tensões relacionadas ao desafio de universalizar a infância em cenários de muita diversidade e diferença nos contextos de vida das crianças e adolescentes. Entre as problematizações possíveis de serem destacadas, analisarei em mais detalhe: as (persistentes!) diferenciações de classe, gênero e raça/etnia; o ECA e a interculturalidade; e a (constante) procura de culpados: pais abusadores e/ou profissionais incompetentes?

Apesar das orientações legais, a construção de crianças e adolescentes como “sujeitos de direitos” não se realiza sem ambiguidades. Eventos conhecidos como, por exemplo, a “Chacina da Candelária”, acontecida em 1993, no Rio de Janeiro, expõem, com clareza, que diferenciações morais subjazem avaliações cotidianas de quais crianças e adolescentes têm, efetivamente, condições de se tornarem “sujeitos de direitos”. Nesta ocasião, crianças e adolescentes foram mortos por um grupo de extermínio, na medida em que foram classificados como “perigosos meninos de rua”. Não apenas a atitude do extermínio contestava as orientações legais do próprio direito à vida, mas o debate social que tal chacina provocou, também revelou que parte da população brasileira considerava o ECA “muito fraco” para lidar com os “perigosos meninos de rua”. É possível observar que, nessa lógica, tais crianças e adolescentes não tinham direito à “infância”. | 161

Outra faceta dessa tensão entre diferenciações cotidianas e universalização de direitos à criança e ao adolescente pode ser encontrada na quantidade de artigos publicados sobre o tema das infrações juvenis, nos jornais e revistas brasileiros, assim como as constantes discussões sobre a possibilidade de diminuição da idade penal para 16 anos. Tais elementos são alguns exemplos da dimensão que o tema toma como objeto de preocupação social e de contestação pública. Dimensões mais naturalizadas de diferenciação encontram-se nas próprias distinções de classe, gênero e raça/etnia e suas interseções. Tais elementos conjugam-se para produzir crianças e adolescentes com diferentes condições de acesso aos direitos, assim como maiores ou menores vulnerabilidades frente às instituições de controle social. A título de exemplo da eficácia dessas diferenciações no engendramento de diferentes tipos de infância e acesso aos direitos, cito uma pesquisa realizada no ano de 2005 em Porto Alegre, sobre a estrutura e funcionamento dos equipamentos para acolhimento de crianças e adolescentes vinculados ao Conselho Municipal de Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA). Embora o espaço aqui seja pequeno para aprofundar os dados da pesquisa, chama à atenção a maior colocação das crianças e adolescentes brancos, do gênero feminino e com menos de 15 anos, nos equipamentos considerados em maior consonância institucional com o ECA. Meninos negros e pardos e maiores de 15 anos eram a maior parte da população dos equipamentos mais criticados da rede de atendimento, em função de suas estruturas institucionais e formas de gestão (FONSECA & SCHUCH, 2009). Esses resultados apontam que ser criança não leva automaticamente à experiência da infância, que deve ser protegida e promovida. É possível depreender de tais elementos que, embora o ECA dê visibilidade à determinada concepção de infância, a universalização dessa noção é contestada em diversos âmbitos em que variáveis morais, étnico-raciais, de classe, de gênero e outras, se intersectam para promover diferenciações no acesso aos direitos. Mesmo a própria visibilidade que determinadas categorias adquirem pela lei pode ter efeitos inesperados, ao engendrarem certas “frentes discursivas” – um conjunto de mobilizações variadas em torno da produção de epistemologias, instituições e práticas ligadas a um tema ou grupo específico. Essa noção de “frente discursiva” foi trazida por Claudia Fonseca e Andrea Cardarello (1999) ao problematizarem o engajamento em 162 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

torno da proteção às “crianças de rua” no Brasil. As autoras apontam que, segundo algumas estimativas de documentos da UNESCO na década de 1990, o número de “crianças de rua” no Brasil chegava a 30.000, quase abarcando todas as crianças pobres do país. Segundo Fonseca & Cardarello (1999), a visibilidade desta questão pode ser considerada uma “faca de dois gumes”: por um lado, é fundamental para mobilizar apoio político em bases amplas e eficazes; por outro lado, podem reificar o grupo alvo das preocupações, alimentando imagens que pouco têm a ver com a realidade. O perigo é que a forte carga emocional, envolvida no tratamento de temas com forte apelo, possa criar uma espécie de “cortina de fumaça” que ofusque a real complexidade das situações, dificultando as soluções subsequentes.

Para além das economias morais que validam diferencialmente crianças e adolescentes em função de seus atributos de classe, gênero e raça/etnia, outro desafio da implantação do ECA e do processo de universalização da infância a todas as crianças e adolescentes refere-se aos desafios interculturais. A existência de grupos étnicos e sua valorização política e cultural como, por exemplo, indígenas e quilombolas, coloca em pauta a necessária consideração dos valores e conhecimentos culturais de tais grupos, o que, muitas vezes, pode conflitar com prerrogativas legais universalizantes. Questões de grande comoção popular como as suspeitas de infanticídio indígena de gêmeos e casamento de indígenas com idade considerada precoce pelos parâmetros ocidentais são armadilhas eficazes para práticas de discriminação étnica, uma vez que possibilitam construir o “outro” como selvagem, violento e incivilizado. O outro lado dessa moeda pode estar, também, na perigosa construção das crianças indígenas como altamente livres e sem autoridade dos pais ou imersos em uma vida sem nenhuma pedagogia ou formas sistematizadas de vida e aprendizagem. Tais imagens da “candura” ou da “crueldade” contribuem pouco para compreensão das dinâmicas socioculturais específicas de povos indígenas e para as suas concepções de “infância”, as quais não a percebem necessariamente como uma fase do “vir a ser”, tal como a concepção hegemônica ocidental moderna. Como já escreveu a antropóloga Antonella Tassinari (2007), | 163

especialista em estudos sobre crianças indígenas, há uma série de diferenças entre as concepções modernas e indígenas de infância: Verificamos que, ao contrário da visão adultocêntrica do pensamento ocidental, o pensamento indígena coloca as crianças como mediadoras entre categorias cosmológicas de grande rendimento: mortos/vivos, homens/mulheres, afins/ consanguíneos, nós/outros, predação/produção. Igualmente, ao contrário de nossa prática social que exclui as crianças das esferas decisórias, as crianças indígenas são elementos-chave na socialização e na interação de grupos sociais e os adultos reconhecem nelas potencialidades que as permitem ocupar espaços de sujeitos plenos e produtores de sociabilidade (TASSINARI, 2007, p. 23).

Desta forma, para além do discurso da denúncia sobre a “candura” ou “crueldade” de práticas indígenas, caberia investigar os sentidos culturais – que são sempre dinâmicos e incorporam transformações – que dão inteligibilidade às ações e modos de produção das infâncias indígenas, na medida em que não é possível generalizar nesta questão. O exercício de comparação intercultural de práticas assim iniciado, talvez permitisse a problematização de modos de vida ocidentais tornados hegemônicos, inclusive através de sua objetivação em lei. Isto é, os grupos culturais e/ou étnicos que integram a sociedade brasileira não devem ser encarados unicamente como âmbitos de problemas para o universo legal e para os profissionais envolvidos em sua difusão – como muitas vezes o são. Tais grupos devem ser percebidos como fontes de práticas e saberes que podem questionar e, possivelmente, até mesmo informar, pelo diálogo intercultural, a expansão das categorias normativas vigentes em direções mais culturalmente inclusivas. A orientação legal da adoção plena – em que a criança e/ou adolescente adotado passa a ser, irrevogavelmente, para todos os efeitos legais, filho legítimo dos adotantes, desligando-se de qualquer vínculo com os pais de sangue e parentes – não poderia, por hipótese, ser problematizada à luz das formas de criação e educação das crianças indígenas, em que a ampla rede de parentela investe fortemente na sua educação e proteção? Através desse processo, de uma noção de tolerância multicultural – convivência entre vários universos culturais – passaríamos a uma dinâmica de 164 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

relações interculturais, definidas pelas interconexões e influências recíprocas entre diferentes grupos sociais e/ou étnicos.

Em um contexto que enfatiza a “universalização da infância”, mas não a universalização das condições de acesso à infância, facilmente proliferamse classificações culpabilizadoras dos agentes que são percebidos como fracassados na promoção da proteção à infância. Os mais vulneráveis a tais acusações são os pais e/ou responsáveis ou os profissionais envolvidos com as políticas de intervenção. Os dados trazidos pela pesquisa antropológica de Andrea Cardarello (1996) são importantes para a compreensão das maneiras em que certas mudanças legais podem ter inusitados efeitos sociais. A autora comparou dados sobre os motivos de ingresso nos Abrigos Residenciais da então Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM-RS), recolhidos nos anos de 1985 (antes do ECA) e 1994 (depois do ECA). Os resultados de 1985 mostram que 42% dos motivos de ingresso referiam-se aos “problemas socioeconômicos”. Já em 1994, dá-se uma relação inversa: o percentual dos motivos de ingresso que, reunidos, sugeriam a ação maléfica de pais/tutores (maus tratos, abandono, negligência etc.) era de 75%. Suspeitando de uma mudança tão rápida na direção do potencial ofensivo de pais e tutores em um período de tempo tão pequeno, Cardarello (1996) conversou com as técnicas de atendimento, as quais lhe informaram que muitos dos casos que atendiam em 1994 continuavam a ser puramente assistenciais. Entretanto, estes, passaram a ser classificados como “negligência” em função da tentativa de adequar os motivos de ingresso em categorias de classificação legal, uma vez que não era mais possível abrigar crianças e adolescentes por motivos socioeconômicos. Para a autora, mais do que uma mudança em direção a comportamentos paternos mais ofensivos, deu-se uma modificação nas próprias categorias de classificação utilizadas para descrever as realidades. Tal transformação, segundo Fonseca & Cardarello (1999) associa-se com a própria reconfiguração dos modos de gestão da infância e juventude: | 165

A passagem do “problema socioeconômico” para “negligência” revela uma mudança de enfoque na visão da infância pobre e da sua família no Brasil. Se em 1985 considerava-se que motivos como “mendicância”, “maus tratos”, “desintegração familiar” e “doenças do menor” eram decorrência direta de “problemas socioeconômicos”, hoje, mais do que nunca, a família pobre, e não uma questão estrutural, é culpada pela situação em que se encontram seus filhos (FONSECA & CARDARELLO, 1999, p. 107).

Isto é, ao se enfatizar a família como culpada pelo abrigamento dos filhos, há um correlato apagamento de outras questões mais estruturais que certamente contribuem na necessidade de abrigamento de crianças e adolescentes. Neste cenário, tal como escreveu Irene Rizzini (2006), um dos maiores desafios é como se pode garantir a proteção da criança diagnosticada em situação de risco e, ao mesmo tempo, respeitar o seu direito à convivência familiar e comunitária. Para a autora, as principais causas que levam ao afastamento da família são situações classificadas como violações de direitos da criança. No entanto, ultrapassados tais fatores, a pobreza e/ou a ineficácia de políticas públicas podem dificultar a permanência das crianças em casa: Além disso, há outros fatores que dificultam a permanência da criança em casa, tais como a inexistência ou ineficácia das políticas públicas, a falta de suporte à família no cuidado junto aos filhos, as dificuldades de gerar renda e de inserção no mercado de trabalho e a insuficiência de creches e escolas públicas de qualidade, em horário integral, com que os pais possam contar enquanto trabalham. O problema, portanto, é parte do quadro brasileiro mais amplo de desigualdade socioeconômica, comprometendo a garantia de direitos básicos de todos os cidadãos e, em particular, das crianças e adolescentes (RIZZINI, 2006, p. 1).

Sem dúvida, perversidades, maus tratos, negligência e todas as violências devem ser combatidas; mas para isso é preciso avaliar com cuidado e precisão a complexidade das situações em questão. É neste sentido que Irene Rizzini (2006) propõe a atenção para alguns mitos e distorções que podem resultar em dificuldades no respeito à convivência familiar e comunitária, prevista pelo ECA: a) a intervenção sobre a família e seus filhos deveria ser exceção, 166 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

mas não é (por falta de condições básicas para criar os filhos, podem ocorrer inúmeras violações de direitos); b) o alvo da intervenção é a família pobre (casos semelhantes de violação de direitos da criança não recebem o mesmo “tratamento” se a família tem recursos financeiros); c) confusão acerca da autoria da violação (o problema não é, em geral, entendido como violação de direitos por parte do Estado, mas da própria família); e, d) o apoio à família sem “retaguarda” e sem articulação (falta de um aparato de apoio às famílias, como os serviços de cunho médico, educacional e psicológico). A atenção a tais mitos e distorções é imprescindível na reflexão sobre as formas de engajamento na problemática da violação de direitos de crianças e adolescentes. Também é importante para reflexões sobre os próprios modos de formulação das respostas públicas de intervenção nas situações, com frequência acionados quando os problemas já se agravaram de tal forma que se torna mais difícil revertê-los (RIZZINI, 2006; RIZZINI & RIZZINI, 2007). Nestes casos, outro alvo fácil de denúncias e/ou culpabilização são os próprios profissionais das políticas de intervenção social. Analisando a literatura sobre institucionalização infantil da década de 1970 até a década de 1990 no Brasil, Fonseca & Cardarello (1999) assinalaram que era espantoso o tom apocalíptico com que gestores, técnicos e demais funcionários das instituições pareciam representar as “forças do mal”. O que se evidencia tanto no caso do diagnóstico sobre as famílias, quanto na elaboração de acusações em relação aos profissionais é que o fracasso na consecução do fim maior – a transformação de crianças e adolescentes em “sujeitos de direitos” – é visto como consequência de pais desatentos ou profissionais incompetentes. Submeter tal racionalidade à análise é compreender não apenas as boas intenções dos discursos oficiais, mas analisar também as próprias condições de sua implementação prática, que, muitas vezes, estão permeadas por tensões e desafios bastante complexos.

No processo de universalização da infância e promoção de direitos às crianças e adolescentes, não há soluções fáceis. Algumas observações, no | 167

entanto, podem contribuir na exploração dos seus desafios, a saber: 1) Refletir para além do discurso normativo: perceber as complexidades mais do que procurar “culpados” em discursos unidimensionais; 2) Privilegiar a dimensão contextual e experiencial dos direitos: enfatizando as vivências e as complexidades das vidas de pessoas reais, imersas em práticas concretas, assim como sua agência e capacidade de ação no enfrentamento de problemas, mais do que uma fácil domesticação da conflitualidade em categorias facilmente estigmatizantes; 3) Não ocupar o lugar crítico sem ser analítico: cuidado com as leituras do mundo social baseadas puramente na indignação, assim como aquelas baseadas numa perspectiva moral de crítica social; focalizar as contradições, dilemas e dificuldades dos processos de implantação de direitos; e, 4) Atentar não apenas para o acesso a direitos, mas as implicações dos direitos na constituição dos sujeitos: isto é, na medida em que os direitos não são neutros, eles têm papel ativo na constituição de sujeitos e da vida social. A tarefa reside, então, na constante exploração dos desafios da colocação em prática dos direitos que renovam a vida social através de sua própria enunciação. Todas as colocações acima destacam que a construção dos “sujeitos de direitos”, ou a universalização da noção de “infância”, envolve mais do que transformar leis. Trata-se de modificar práticas sociais de geração das desigualdades e também da incorporação da interculturalidade como uma dinâmica importante de expansão das nossas maneiras de conceber, praticar e produzir a “infância”. Para tanto, é necessário adicionarmos às reflexões sobre os “direitos dos sujeitos” aquela acerca dos “sujeitos de direitos”, como já sugeriu o antropólogo Theophilos Rifiotis (2007). Este autor clama por uma incorporação da vivência e da capacidade criativa dos sujeitos nas discussões e práticas sobre direitos humanos. Dar atenção para os “sujeitos de direitos” - as crianças e adolescentes na sua relação com familiares e/ou responsáveis assim como para a complexidade das situações que configuram as suas vidas e impasses cotidianos é, também, expandir as alternativas para sua compreensão e para o estabelecimento de conexões que permitam eventuais mútuastransformações. O enfrentamento das complexidades permite renegociar os sentidos de pertencimento e inclusão social junto com as pessoas, que são alvos das políticas de intervenção e universalização da infância, sempre em disputa em um contexto tenso de luta pela justiça social marcado por intensas desigualdades e diferenças sociais. Como já escreveu Carlos Drummond de Andrade: “As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”. 168 | Ensino da Sociologia: Direitos Humanos, Sociais, Educação e Saúde

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Dicas de como utilizar esse texto em Sala de Aula Com vistas à utilização do presente texto em sala de aula e a partir das problemáticas nele abarcadas, sugere-se ao professor, se este o desejar, a utilização do documentário: “A Invenção da Infância”, de Liliane Sulzbach (Brasil, 2000, 26 min.). A ideia é, a partir do filme, através de um diálogo com os alunos, explorar aquilo que está contido na frase que o encerra e que também embasa os argumentos do texto ora apresentado: “Ser criança não significa ter infância”. Outra possibilidade reside na realização de um trabalho em grupo, no qual o professor deverá orientar os alunos a refletir sobre os três principais desafios de implementação do ECA apontados pelo texto, quais sejam: a) as (persistentes) diferenciações de classe, gênero e raça/etnia; b) o ECA e a interculturalidade; e, c) a (constante) procura de culpados: pais abusadores e/ou profissionais incompetentes?. Realizada a presente reflexão, o passo seguinte reside em solicitar que os alunos relacionem tais desafios com a sua realidade escolar (análise de currículos, modos de relação professor-aluno, relação escola, família e comunidade etc.), através da reflexão sobre cada um dos desafios destacados. Sobremaneira, sugere-se ainda, se oportunidade convir, a utilização de alguns documentários, entre os muitos existentes sobre a temática, dentre os quais destacamos: a) A Fita Branca (Alemanha, Michael Haneke, 2009); b) Juízo” (Brasil, Maria Augusta Ramos, 2008); c) Juno (EUA, Jason Reitman, 2007); d) Pro Dia Nascer Feliz (Brasil, João Jardim, 2006); e) Meninas (Brasil, Sandra Werneck, 2006); f) Ninguém pode Saber (Japão, Hirokazu Koreeda, 2004); g) Nascidos em Bordéis (Índia/EUA, Ross Kaufman e Zana Briski, 2004); h) Promessas de um Mundo Novo (EUA/Palestina/ Israel, Justine Arlim, Carlos Bolado e B. Z. Goldberg, 2001); i) “Ser e Ter” (França, Nicholas Philibert, 2002); j) “A Invenção de Infância” (Brasil, Liliane Sulzbach, 2000); k) “Kids” (EUA, Larry Clark, 1995) e l) “Pixote – a Lei do mais Fraco” (Brasil, Hector Babenco, 1981).

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