O Ecoar da Oralidade: a escrita como magia criadora e silêncio tumular

July 24, 2017 | Autor: Giovanna Giffoni | Categoria: Orality-Literacy Studies, Oral Traditions
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Giovanna Marina Giffoni

O ECOAR DA ORALIDADE A escrita como magia criadora e silêncio tumular

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura: Literatura Comparada, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura: Literatura Comparada.

Orientador: Professor Doutor Antonio Jardim

Rio de Janeiro 2007

O Ecoar da Oralidade: a escrita como magia criadora e silêncio tumular por Giovanna Marina Giffoni Dissertação submetida ao corpo docente da Faculdade de Letras - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre. Aprovada por:

_______________________________________________ Orientador: Dr. Antonio Jardim _______________________________________________ Dr. Auto Lyra Teixeira

_______________________________________________ Dr. Maria Lucia Guimarães de Faria

Suplentes:

_______________________________________________ Dr. Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira _______________________________________________ Dr. Alberto Pucheu Neto

Rio de Janeiro 2007

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GIFFONI, Giovanna Marina O Ecoar da Oralidade: a escrita como magia criadora e silêncio tumular 75 f. Orientador: Antonio Jardim Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós Graduação em Ciência da Literatura, 2007. Referências bibliográficas: f.71 1. Oralidade 2. Letramento 3. Idade Média 4. Romantismo 5. Antigüidade I. Jardim, Antonio II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura III. Título.

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RESUMO

GIFFONI, Giovanna Marina. O Ecoar da Oralidade: a escrita como magia criadora e silêncio tumular. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada pela UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. 75fls.

O presente trabalho debruça-se sobre o estudo de dois modos de ser em relação às diversas manifestações artísticas ou culturais — o modo de ser da oralidade e o modo de ser da escrita.

Palavras-chave: Oralidade – Letramento – Originalidade – Autoria – Autenticidade

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ABSTRACT

GIFFONI, Giovanna Marina. O Ecoar da Oralidade: a escrita como magia criadora e silêncio tumular. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada pela UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. 75fls.

This work lingers on the study of two different visions about artistic or cultural manifestations – that of orality and that of literacy.

Key-words: Orality – Literacy – Originality – Authorship – Authenticity

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.........................................................................................07 INTRODUÇÃO..............................................................................................11 POESIA E PROSA.........................................................................................20 ORALIDADE, ESCRITA, MEMÓRIA E HISTÓRIA..................................24 O TÍTULO, A ASSINATURA.......................................................................30 AUTORIA E ORIGINALIDADE..................................................................35 ECOS DE ORALIDADE: OS ROMANCES DA IDADE MÉDIA E O ROMANTISMO MEDIEVAL...................................................................................38 VERDADE, HISTÓRIA E MITO..................................................................56 A ÁRVORE DO SAGRADO MOVENTE E A PEDRA DO MEMORIAL SILENTE: A ESCRITA COMO MAGIA CRIADORA E COMO SILÊNCIO TUMULAR................................................................................................................59 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................69 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................71

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APRESENTAÇÃO

Este trabalho não se destina a nada. Seu caminho é o próprio caminhar, numa via de muitas mãos como foi e sempre tem sido o percurso iniciado, ou melhor, traçado pela vigência da escrita como mantenedora do saber e da cultura. É ela que se inventa e passa a se inscrever como a principal fonte de conhecimento, inaugurando as questões fundamentais para se entender o modo de conceber a arte num mundo letrado, a saber, originalidade, autoria e autenticidade.

E é ela, em contrapartida, que acaba por inaugurar a questão da oralidade, ou, antes, desvela-a aos nossos olhos. Quantas palavras, quanto verbo se proferiu, para que a escrita se estabelecesse? Assim, de tempos em tempos, descobrimos oralidade curiosamente através de textos escritos que, encobrindo, deixam-na entrever por nós, leitores. Nisso está a atual magia da escrita, magia resquício de seus antigos poderes mágicos de trazer à presença vida ou morte. A escrita de hoje ainda pode trazer de volta à vida, mas a oralidade perdida. É no velamento que se mostram os resquícios, ou se fazem ouvir os ecos de um outro modo de sentir a poesia, o mundo. Sim, pois como descobrir um tempo de oralidade sem ouvir os seus ecos ironicamente escritos?? Mas, se é verdade que, às vezes, temos podido ouvi-los, é verdade também que essa audição se dá por meio da contemplação, pois, desde o surgimento das primeiras formas de escrita, e, mais tarde, desde “alfabetizações” progressivas do homem, passamos muito mais a ver mundo do que ouvi-lo. Em contrapartida, lendo, vendo, textos ainda podemos ouvir cantar o bardo.

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Porque escolhemos viandar por dois caminhos de viajantes – o medieval e o romântico – acompanhamos diversos relatos de diferentes autores sem nos preocuparmos com fronteiras territoriais que ultrapassamos. Se levarmos em conta que a poesia, brasileira ou inglesa, é a poesia que vige desde tempos imemoriais, que é a mesma, poderíamos confundir a poesia de um poeta como Álvares de Azevedo, para dar um exemplo romântico, com uma das tantas canções presentes em sagas do norte, na poesia beduína ou de qualquer povo, com um/o imortal canto de morte do qual constante e sempiternamente se recordam os poetas. Este canto de morte é a própria celebração da poesia contida em toda obra memorável, em toda obra plena de voz.

As barreiras de tempo, essas “O Tempo” desfaz. O que resta de fato é somente a tradição poética — não européia, ou oriental ou brasileira — em que muitas vezes o filho renega o próprio pai e colhe em ramos de outras árvores sua ancestralidade. Não estamos aqui tratando de antologias, compilações, aqui lidamos com os resquícios, que, assim como as ruínas, são perenes e possuem o grande poder de nos envolver, circulando pelos mistérios e fascínios de cada um.

Muitas vezes essas ruínas, esses fragmentos, tentam ser recolhidos, selecionados e costurados pelo trabalho do filólogo ou interpretados/ lidos pelo trabalho da crítica. Nada temos contra a existência desses estudos, somente atentamos para o fato de que montando ou não os quebra-cabeças, suas peças se disseminam — fidelidade em poesia, com o passar dos tempos, só e possível através de uma artificialidade, e mesmo os trabalhos que buscam resgatar os textos ou analisá-los não podem se isentar da parcialidade dos estudiosos que lidam com eles. E isso só pode nos indicar uma coisa, que a poesia é um bem comum a todos os homens, transpondo as barreiras da autoria,

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nacionalidade, periodização e mesmo da autenticidade, originalidade. Ou seja, “Neste mundo a beleza é comum.” (BORGES, 1999: 286)

E nisso está a arbitrariedade dos estudos literários, com seu esforço, não empenho, em atestar a autenticidade ou qualidade de determinada produção de determinada cultura. Pois, ao mesmo tempo em que classificam obras já nascidas após a fixação da escrita como anônimas, populares, e, até mesmo, ingênuas (como se dá com obras como as Mil e Uma Noites), classificam como “autorais” obras de poetas anteriores à consolidação da escrita. Isso é bastante perceptível nos estudos de Literatura Clássica, que querem a todo momento transpor para aquela esfera um pensamento altamente letrado, recusando-se a aceitar, por exemplo, o “analfabetismo” de certos poetas como Homero e Hesíodo. Tal atitude denota um preconceito com manifestações orais que se instaurou em nossa cultura conforme os processos de letramento foram se consolidando.

Todos os esforços que podem levar a uma lembrança fugidia e pobre da poesia são os mesmos que fazem vigorar até hoje obras que, se não se constituíram como memória, tiveram uma memória forjada pela impressão e pelo trabalho da crítica que repetida e fastidiosamente lembra aos homens sua existência. Contudo, a existência de tais obras – se é que podem assim ser designadas – é sempre ameaçada pelo perecer da vida humana. Tais “obras” não a transcendem como ocorre com aquelas que verdadeiramente constituem Memória, e que, por isso, são imortais, atemporais. Assim, tais “obras” são tão mortais quanto os homens e, pior, dependem da partidaridade – tão volúvel – dos homens. A qualquer mudança nos gostos, vêm abaixo, desaparecem dos

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compêndios e coletâneas, ou, pior, estes se tornam sua única morada. Não são capazes de resistir à antologia do tempo de que fala Borges:

“Ninguém pode compilar uma antologia que seja muito mais do que um museu de suas ‘simpatias e diferenças’, mas o tempo acaba por editar antologias admiráveis. O que um homem não pode fazer, as gerações o fazem. (...) nove ou dez páginas de Coleridge apagam a gloriosa obra de Byron (e o resto da obra de Coleridge).” (BORGES, 1969: 7)

Como saber então distinguir o que de fato permanecerá como memória do que artificialmente restará na insistência das lembranças? O poeta Rainer Maria Rilke considerou o amor – concreta manifestação da linguagem – uma experiência de Memória que, como tal, cuidaria, seria sensível ao que é memorável, sentindo a sua presença, ouvindo seu apelo: “As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrarse justo com elas.” (RILKE, 1983: 32)

A poesia é uma dançarina com seus véus na escuridão, mesmo sem vê-la somos capazes de sentir sua presença, o seu perfume trazido pelos distantes ventos de uma temporalidade dos deuses, infinita e imperscrutável, e prescindimos do ímpeto de perguntar seu nome. Ou como Borges nos ensina novamente:

Sentimos a poesia como sentimos a proximidade de uma mulher (...) Se a sentimos imediatamente, por que diluí-la em outras palavras, que sem dúvida serão mais fracas que nossos sentimentos? (BORGES, 1999:289)

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INTRODUÇÃO

A escrita é o duplo da fala. Ela é sua vida e sua morte. Ela cavalga em suas costas, rouba-lhe a energia, mas a consagra, rende-lhe uma homenagem obsessiva, uma derradeira homenagem, sempre definitiva. Rende-lhe homenagem e a devolve à vida.

O contrário do que acontece ao pensamento acontece com o mito e também com a passagem dos modos de registrar o pensamento: houve um processo de materialização. Antes o Deus supremo era amorfo como o verbo, a oralidade, era uma força (não um conceito, é claro, aqui não estamos falando de abstração



o processo

da escrita em si e do pensamento letrado, sim, dão-se com a passagem do concreto para o abstrato: aqui o que temos com o deus supremo é apenas o não concreto, o amorfo, a força, a dynamis.) O Deus supremo, o oculto, o é porque não tem matéria, é só pulso, é a guerra, é o vento, a luz, etc. para mais tarde tornar-se animal, e depois homem de atributos “da guerra”, “do vento”... A passagem de proferir o verbo para um registro escrito também foi uma materialização do que era todo pulso, todo força e dynamis. E magia. Magia... A oralidade é um deus supremo, o oculto detentor do conhecimento mágico, da força que se afastou dos homens, o deus criador que resolve assolar a humanidade com a devastação, mas que para isso tem de se consumir a si mesmo. Ela se retira dando lugar ao deus juiz: a palavra escrita. Os símbolos, os ídolos. O que antes era a própria magia manifesta tornou-se símbolo de magia, para posteriormente perder o sentido. E assim nos tornamos ateus da palavra, do verbo. Não cremos mais, só no que vemos, mas o que vemos muitas vezes é tão pobre de sentido.

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Houve muitos apelos à Memória durante toda a vigência da Arte. A oralidade antiga, que soa aos ouvidos destreinados e esquecidos de hoje como sonho e fugacidade, transmitiu à Arte um aprendizado, um ofício dos mais importantes – o ofício da memória. Curioso é pensar que, com o aperfeiçoamento das técnicas da escrita e de seus suportes, a arte da palavra tenha se esquecido da Memória.

A escrita, que deveria fixar na lembrança a memória da poesia, acaba por fixá-la apenas no papel. Isto está relacionado à artificialidade de qualquer esforço por lembrar. A memória não quer ser forçadamente fixada, a memória, como linguagem, se diz, sempre a seu tempo. Fixar a memória, apenas a tentativa de fixá-la, é perdê-la. Pois fixar a memória não é dizê-la, como faziam os aedos, os skalds, os bardos, num exercício de aprendizagem. A oralidade, que aprendiam esses poetas, aprendiam-na com a própria memória vigente nos versos.

Além disso, é inútil, ingênua mesma, tal

tentativa, pois somente permanece, como memória, o que se constitui como tal; isto em detrimento de qualquer esforço.

Somente a poesia é a memória do tempo, porque a poesia conhece o tempo. Os poetas são, portanto, os que ouvem a memória do tempo através da poesia, ela lhes dita o conhecimento do tempo. Como linguagem em sua forma mais originária, nomeia mundo, mas um mundo particular – a memória. Esta memória nada tem a ver com documentação de fatos antigos; não, ela diz da memória do presente, tempo da linguagem, mas a confusão não é por acaso, ela se deve a um fato que mudou para sempre o modo de ser do homem no mundo: a invenção da escrita.

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É inapropriado, entretanto, falar em invenção. O homem não inventou a escrita; “analfabeto”, ele aprendeu a desenhá-la, a simbolizá-la, a manuseá-la, em etapas, de diversas maneiras, em diferentes partes do mundo. Após um longo aprendizado, passou a utilizar a escrita que aprendeu de uma maneira que nunca poderia fazer com a sua voz, com seu canto – passou a registrar a memória, fixando-a, e, conseqüentemente, confundir registro com memória. Da mesma forma, os poetas passaram a registrar sua poesia, gravando-a em pedras, tábuas, rolos, papel. Deixaram para os suportes a tarefa, antes sua, de suportar a memória que lhes era ditada pela voz.

No modo de ser da oralidade, cabia aos poetas o empenho de suportar a memória da tradição e transmiti-la, reatualizando-a. A função das Musas era distinta da que se configurou posteriormente: elas ditavam, geralmente em sonhos divinatórios, a Verdade à escuta dos seres que se empenhavam na sua audição: os poetas, que, por sua vez, emprestavam sua voz ao canto ditado pelas musas.

O que elas [as musas] proferem é apropriadamente resumido como ‘as [coisas] do presente e do passado’ (ta eonta, ta proeonta) e, também, do ‘porvir’ (ta essomena), o que, no contexto, com os outros dois particípios, se refere, não à novidade que vai ser profetizada, mas a uma tradição que continuará e permanecerá previsível. (HAVELOCK, 1996b: 98)

Já no modo de ser da escrita, que se dá até hoje, cabe ao documento, em qualquer suporte, a tarefa, a função de suportar a obra de um de terminado autor já sem vínculo com a memória da tradição. As Musas já não transmitem o conhecimento da tradição, a Verdade como o que se apresenta, mas inspiram os autores para que eles sejam originais, autênticos, autorais.

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Entretanto, os diferentes modos de lidar com o dado poético, a saber, o empenho de memorizar e peregrinamente carregar e transmitir o legado de um conhecimento particular de mundo; e o esforço por registrar este mesmo conhecimento — antes memória — em sentenças, não chegam a se anular mutuamente. Desde que o mundo passou a ser visão de mundo, tem comportado a convivência desses dois comportamentos, que se dá, na maioria das vezes, de maneira desequilibrada, com um evidente prestígio do registro sobre a memória. Houve, no entanto, períodos de transição em que manifestações artísticas carregadas de oralidade e a preocupação de registrá-las convergiam muitas vezes num mesmo modo de ser.

Detivemo-nos, portanto, em pontos cruciais da história em que aqueles dois modos de ser, de que falamos anteriormente, conjugavam-se num mesmo empenho – o de preservar e transmitir saberes da tradição. E esses períodos são a Grécia recémalfabetizada, a Idade Média, e o período Romântico1, que se configura mais como um sentimento, ou uma atitude, do que como um movimento, um gênero literário delimitado no tempo.

Havelock, no primeiro capítulo de A Revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais, nos fala de um período de transição onde “mesmo o leitor solitário lia alto para si mesmo, e os escritores ainda procuravam audiência.” (HAVELOCK, 1996a: 37) Em seu trabalho, atenta para o preconceito de estudiosos que querem negar a todo custo a vigência de uma cultura não letrada no tempo de Homero, o “analfabetismo” de Homero. Isso se deve ao fato de que enxergamos tudo com as lentes de nossa própria cultura, que de tão letrada, esquece que a letra é posterior à voz

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Nossa visão sobre Romantismo orienta-se nos textos teóricos do escritor argentino Jorge Luis Borges.

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que se fala e ouve. Uma cultura, que aprendeu a conhecer o mundo de forma predominantemente visual, torna-se cega para qualquer possibilidade de escuta. Não ouvimos o ecoar da alteridade de um tempo em que ainda começávamos a tatear o mundo com os olhos. A escrita alfabética ainda nos fascinava esteticamente – ainda não era mero utensílio, porque não era ainda de utilidade pública. Neste tempo em que começávamos a “abrir os olhos”, ainda enxergávamos de maneira concreta.

Havelock aponta uma transição no pensamento dos autores recém-escritores como descritivo num primeiro momento – marcadamente carregado de uma tradição oral que compartilhava no mundo a presença das coisas – e propositivo, numa etapa mais tardia de letramento, onde a subjetividade sobrepujou uma experiência concreta de linguagem. “Ele [o poeta] cessa de ser um bardo e se torna um pensador.” (HAVELOCK. 1996:19) Estes poetas-escritores passaram de um modo concreto de lidar com a palavra, para a abstração do pensamento que prescinde da presença do nome. Não é mais como Nome, renuncia ao nome, ao nomear – esta relação sagrada de originar mundo – para apontar, propor e conceituar um mundo apenas visto, de fora. O poeta passou a viver em despedida das coisas, ainda fascinado por elas, mas incapaz de proclamá-las a partir de seu próprio modo de ser – o indizível.

Em um recente e lento processo de alfabetização, a escrita alfabética ainda nos fascinava esteticamente, suas formas ainda remetiam à lembrança de elementos concretos, construindo pensamentos concretos; o modo de lidar com a escrita ainda não era também o do leitor solitário, pois era também prática pública, mesmo a poesia lírica era recitada publicamente (nos simpósios) e o leitor solitário lia alto para si mesmo2. 2

Ver HAVELOCK (1996b) sobre o conceito de “oralidade escrita” – o uso primeiro e bastante forte da escrita seria o de registrar, com todas as suas características, a oralidade.

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Na Idade Média resgata-se essa maneira de lidar com a escrita dos recémletrados gregos. Uma grande parcela da população não era alfabetizada, era, portanto, via oralidade que se transmitia boa parte do conhecimento através da figura dos bardos, dos trovadores, que à semelhança dos aedos, eram demiurgos. Mas, aliado a isso, havia o trabalho conjunto de copistas, gravadores, ilustradores, encadernadores, homens letrados, geralmente pertencentes ao clero, que ironicamente foram os responsáveis pela preservação de muito do que conhecemos de culturas pagãs, de suas tradições, cultos, deuses e heróis.

Por fim, com o surgimento do que chamamos espírito romântico, através do seu contato com uma Idade Média que se mostrou fonte inesgotável, há o resgate de temas, ritmos e de uma diversidade cultural (principalmente a redescoberta do Oriente) que permitiu novamente uma flexibilização dos conceitos de autoria, originalidade. Pois o poeta romântico apropria-se, traduz, divulga, adapta obras de outros autores ou de uma coletividade, inserindo-se, claro como autores, mas também como construtores anônimos dessas obras que, como as catedrais góticas, são formadas por gerações de homens.

Num tempo, os poetas detinham o conhecimento da poesia, transmitiam-no em voz alta a ouvintes, que o aprendiam e retransmitiam e, muitas vezes, reinventavam; hoje, os poetas desfazem-se do peso deste conhecimento descarregando-o no papel em que escrevem. Antes, a poesia era um mundo partilhado, criado conjuntamente; hoje, confinada no livro, é obra de um autor, carrega sua assinatura. É claro que sempre houve os autores, quem primeiro ouvia o chamado da poesia e aprendia a memorizá-la

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para depois transmiti-la, proclamá-la. Conhecemos a existência de autores anteriores à escrita graças à memória transmitida pelo poeta, que muitas vezes louvava em seu canto outros poetas e suas obras. Outras vezes, é pelo próprio nome pronunciado – o autor nomeia-se em seu canto; já sendo, quer ser parte dele, coisa nomeada. Assim acontecia na Idade Média, período em que também se assiste – como numa etapa inicial do letramento na Grécia Antiga – a uma configuração de convivência entre os dois modos de ser: o empenho dos bardos e o esforço dos copistas e artesãos quase se confundiam. Assim acontece, já bem posteriormente, com a experiência romântica da volta a temas e a ritmos arcaicos que trouxe novamente os ecos de uma oralidade perdida anunciados pelos bardos.

Hoje, passadas as “trevas-trovas” medievais e a nostalgia romântica, o autor não mais possui tal intimidade com sua obra, está exterior a ela, numa assinatura. Vende essa assinatura, é preciso vendê-la, é lícito e justo que a venda. A assinatura, entretanto, não é algo tão recente. Apesar de ser alvo de uma supervalorização nos nossos dias, a assinatura do poeta foi sendo gravada lentamente na pedra bruta de um difícil processo de “alfabetização”. Além de o poeta desvencilhar-se da memória da poesia, gravando-a num suporte, aos poucos o próprio livro, o seu conteúdo (a própria obra), passou a ser em si um suporte também, um mero suporte para a assinatura do autor, que assim vive e, por isso, morre - exterior à sua obra.

E estar de certa forma exterior ao próprio mundo tem sido o destino dos homens letrados. Os poetas, que compartilham em parte de tal destino, afastam-se do real nomeado pela poesia quando dessacralizam a experiência poética tentando racionalizála, não ouvindo nem respeitando seus silêncios. Tal experiência poética, afastada da

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numinosidade, afasta-se dessa maneira da origem da poesia, por ela ser o próprio mundo que configura e conhece – a Memória.

Entretanto, todos somos capazes de sentir a presença da Memória, porque somos constituídos de sua mais gritante forma – a linguagem. O poeta, amante da linguagem, é o que mais ouve esse apelo da memória. Ela clama por ser ouvida, fala, canta, fica à espera. Entretanto, com o advento da escrita e da fixação dos poemas, quebrou-se um ciclo sagrado. É preciso recorrer aos livros, é preciso esforço. A memória silenciou na fala dos homens, tão empobrecida de linguagem. Os homens de alguma forma desaprenderam, não ouvem mais, por isso estão mudos. Como Benjamin atenta em “O Narrador” ninguém nem é mais capaz de narrar um acontecimento, por mais banal que seja.

São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1993:197-198)

E, talvez a narrativa, como prosa, esteja tão intimamente ligada ao esquecimento da memória quanto o surgimento da escrita. Sim, pois este foi fundamental para que aquela se sofisticasse até o extremo do romance moderno. É claro que as narrativas existiam antes do surgimento da escrita, mas eram em forma de poemas, em versos. É necessário esclarecer, contudo, que o conjunto de recitações-músicas-dançasrepresentações que talvez constituísse o que conhecemos hoje por Ilíada, Sagas Germânicas, o Ciclo Arturiano, não eram narrativas adaptadas ao ritmo e à métrica do

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poema, mas, quase ao contrário, o ritmo, a dança do poema eram o que engendravam na audiência a memória de uma narrativa.

Uma narrativa propriamente dita, sem os ritmos, o tempo, sem a música que encadeasse memória, só pôde aparecer e se fixar num suporte. É como a muleta de que os homens precisam para lembrar de coisas que talvez não se constituíssem como memória.

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POESIA E PROSA

Assim como houve grandes apelos à memória desencadeados pela oralidade, houve grandes apelos ao esquecimento trazidos pela escrita e, mais recentemente, pela prosa. Foi como se um modo-de-ser da memória fosse dando lugar paulatinamente (mas cada vez mais rápido) a um modo-de-ser do esquecimento. Não aquele esquecimento que, para Borges, é uma forma de memória. Tal esquecimento está longe daquela – tão verdadeira – vigência da memória. O esquecimento como memória constrói na lembrança dos homens as ruínas, os labirínticos escombros, tão cheios de histórias, carregados de sentido. Ao contrário, o esquecimento que vivemos hoje vem acompanhado das mais altas tecnologias de guerra de não deixar pedra sobre pedra. E, não as havendo, não há o encoberto, não há estratificações. A informação, tão cara ao momento que vivemos, é anti-séptica.

A informação é anti-séptica. Ninguém compra “jornal de ontem”. Não é à toa que Benjamin atribui a ela grande contribuição ao estabelecimento do romance moderno — forma extremada de prosa — como forma de prestígio, em detrimento do antigo ofício de narrar. “Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.” (BENJAMIN, 1993:203)

A imprensa tem promovido incessantemente o maior esforço por lembrar de que se tem notícia. Para ela tudo deve ser reportado, documentado, para depois ser esquecido. A imprensa tem aberto, portanto, a perigosa trilha de um esquecimento pobre, porque esquecimento de coisas não memoráveis, mas apenas insistentemente lembradas. O esquecimento torna-se da mesma forma vicioso, um hábito.

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Felizmente a poesia, a obra de arte, consegue transcender qualquer intento, porque ultrapassa o curto tempo das intenções mortais. Por isso, mesmo sem poder voltar a um tempo de oralidade e escuta — porque vigemos sempre e somente no presente — ainda podemos aprender e ouvir a oralidade de algumas, poucas, obras que nos atentam para o apelo da memória. Isto porque, digna de memória, a poesia, independente de suportes, recusa fixar-se. É sempre movente, pede para ser cantada, em voz alta, para que ouçamos a memória de nossos ancestrais.

Assim, mesmo com os atentados à memória da poesia ainda há e sempre haverá obras que, mesmo em prosa, se fixam no papel para serem lidas apenas em voz alta e, muitas vezes, uma única vez; depois, já são memória, já nos ensinaram a memória de seus versos, de seu texto. Menos do que de escrita ou de papel, precisam de uma voz que as propague e de uma audiência atenta. Assim acontece com muitos poemas, assim acontece, ainda, com algumas narrativas.

Tarefa bem mais difícil do que “inventar” uma escrita, e invisível frente ao faustoso esforço dos copistas, compiladores e críticos, o empenho dos poetas decididamente é livre de esforço e indizível. Somente a fala dos poetas pode fazê-lo emergir e dizer-se, como somente um poeta pode dar conta de sua própria natureza. E é o que dizem as palavras de Rilke, citado por Karlos Rischbieter na introdução de Os Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno: “Nós somos as abelhas do invisível. Nós colhemos desvairadamente o mel do visível pala acumulá-lo na grande colméia do invisível.”

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Esta colméia do invisível é o legado de poesia, bem comum da humanidade, só possível e imune à passagem do tempo pelo lento, invisível, ancestral empenho dos poetas, bem diferente do esforço.

A atitude do poeta é o empenho — empenho aí nada diz dos artifícios de fixação de lembrar- esquecer. Empenho é cuidado, é ouvir os resquícios de fala da poesia, que ainda tem a ensinar de Memória a quem se empenha no seu aprendizado. O empenho é próprio dos poetas, e, para além dos mitos — no banal sentido do termo — do gênio, do transe e da inspiração, eles calam para ouvir o dizer da memória da poesia, que é tempo, linguagem.

Ao registrar a memória da poesia com a escrita em um suporte, ao conservar esse suporte e, num outro momento, utilizar-se de um gênero de linguagem escrita (que só podia dar-se num contexto de escrita) que se quer ausente de qualquer marca de oralidade — a prosa — , o poeta letrado passa a investir o seu talento não mais pela vigência da memória de uma poesia atemporal e presente, mas pela insistência de fixação de uma linguagem aprendida que se conservará, artificialmente, pelos séculos — efêmeros — dos homens. A poesia, a partir do seu registro escrito, passou não mais a ser obra de uma coletividade humana, mas da sua própria vontade individual. O tempo e o acaso deixaram de ser os únicos a ditar o digno de ser preservado; porque assinamos e valorizamos nosso próprio nome, tendemos a salvar do esquecimento obras com as quais o tempo talvez fosse implacável. Entretanto este esforço em que nos concentramos por salvar o próprio nome não alcança a nossa própria salvação. Escolhemos abdicar do sagrado Nume, além disso, somos volúveis, e, pior, somos, não

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agora por nossa escolha, efêmeros. É, por fim, o Tempo que decidirá sobre a importância do que está aprisionado sob uma assinatura.

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ORALIDADE, ESCRITA, MEMÓRIA E HISTÓRIA

As ruínas são o que permanece. A poesia edifica as ruínas do tempo e as preserva em seu canto. As ruínas, que sempre nos fascinaram por sua memorialidade, sua perenidade e sua constância permanentemente ameaçada, sofrem hoje a ameaça das conservações artificiais. Porque nossas ruínas de hoje são, como todas, plenas de memória, envergonham pela memória que testemunham da violência instantânea de seu próprio nascimento. Sim, pois não há como comparar o processo de constituição de uma ruína grega, com o das instantaneamente geradas pelas guerras do século XX. O desrespeito às ruínas — à memória — é tão grande que já se criaram armas de destruição em massa que deixam intactas as construções. Assim, nos privamos do direito ao esquecimento, quando abrimos mão delas, as ruínas, que são todo esquecimento porque são todo memória. Limpamos os nossos rastros, higienizamos nossa violência e, num simulacro, imitamos a lembrança do passado, deixando cada coisa em seu lugar, para que ele apenas insista, não vigore. Deixa de ser passado memorável para ser passado artificial e violentamente preservado.

O passado do homem sempre foi algo proibido; proibição, é claro, disfarçada sob os conceitos de anacronismo, obsolescência, ingenuidade (conceitos estes que derivam diretamente de originalidade, autenticidade). Porque o passado, se investigado, permite a volta, o retorno à origem, o contato com os mortos. Não que o homem não o faça a cada vez que olhe no espelho invisível de seu próprio ser, mas o passado é um estado de ruína latente. É como um sarcófago indevassável cujo contato inaugura na vida dos homens uma maldição decorrente da violação. O passado é, antes de um contato, contágio, um contágio promíscuo, sem noção de higiene, e, por isso, improdutivo.

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O homem é anterior à própria história do homem, em sua memória há algo de monumental. Entretanto, a história de cada homem é apenas o curto espaço do presente, do “estar aqui” e, mesmo este átimo de história, tem experienciado uma série de atentados à memória. As areias do tempo, não fosse a poesia, levariam, junto com o pó dos mortais, a imortal memória nascida junto com a linguagem.

Somente a poesia pode edificar e preservar esta monumental construção abalada pela história, a ruína memória do homem. E, embora cada homem carregue consigo, seja também,

a ruína do homem (cada geração carrega, como a pedras, alguns

escombros do passado, quiçá do futuro), é vetado aos homens comuns preservar-se como ruína. A vida humana é breve como a certeza das construções seguras.

Borges, para quem “neste mundo a beleza é comum.”, nos diz também que a presença da poesia é sentida como a proximidade de uma mulher. Sendo assim, este sentimento também é algo comum; a relação com a poesia é uma experiência de que partilham ou devem partilhar todos os homens. Essa experiência, a de sentirmos conjuntamente a presença da poesia, faz com que o discurso nunca seja “do outro” por ser sempre “parte prévia da nossa memória”. Uma experiência que, sendo pessoal, é de todos, diz da nossa eterna relação com a poesia, como seus eternos construtores, evocada pelo autor argentino com respeito às Mil e Uma Noites: “Poderíamos pensar nas catedrais mal chamadas góticas, que são obras de gerações de homens.” (BORGES, 1999:261)3 Como eternos construtores da poesia, partilhamo-la como ao mundo, sentimo-na em nós como em nossos ancestrais e no 3

Apesar desta imagem não ser muito apropriada com relação a esta obra, que, com este nome e como a conhecemos, já nasce consolidada pelo letramento, como obra escrita. O caminho que percorre é inverso: ela vem sendo desconstruída, oralmente, pela coletividade anônima que a difunde através dos séculos.

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que está próximo, e este sentimento sempre latente, perpetuamente partilhado, é o que faz com que (esperamos) de tempos em tempos sempre volte a surgir no mundo esta forma de sentir a poesia: como catedral onde cabem todos os homens e se presta respeito à memória dos ancestrais. Pois de tempos em tempos sempre se restaura a vigência de um tempo sagrado e atemporal, ou a-histórico (o que seria uma espécie de amorfismo em relação à coisa tempo). É este tempo do sagrado que se aproxima verdadeiramente do sentido de “templo” como bem atesta Mircea Eliade:

Cabe a Hermann Usener o mérito de ter sido o primeiro a explicar o parentesco etimológico entre templum e tempus, ao interpretar os dois termos pela noção de intersecção (“Schneidung Kreuzung”). Investigações ulteriores afirmaram ainda mais esta descoberta: “Templum exprime o espacial, tempus o temporal. O conjunto desses dois elementos constitui uma imagem circular espaço-temporal”. (ELIADE, 1992: 68)

Essa

memória

ancestral

configurou-se

através

de

uma

preocupação

predominantemente didática, mas, ao mesmo tempo em que na oralidade era necessária uma função didática nas manifestações artísticas, sem que, no entanto fosse diminuída em nada sua qualidade artística, didática aí assumia a nobre, originária tarefa e empenho de manutenção e difusão dos mitos – do tudo que formava e distinguia a humanidade como tal. Se era necessário tal didatismo, é bem verdade como nos mostra Havelock, que essa necessidade foi sendo suplantada, através de um crescimento de um modo de ser da escrita (e do pensamento que inaugurou) pelo desejo e busca de originalidade do autor. Visto que os Mitos, e o que mais tarde os venceu em importância – a História – poderiam ser consultados, lidos e relidos, individualmente, solitariamente, longe dos espaços públicos por leitores curiosos. Não mais a espera, por parte de uma audiência

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pública, em grandes espaços públicos, de que fossem desvelados e revelados pela figura do aedo, do rapsodo, ou dos atores e do coro.

São duas configurações que coexistiram num período de transição do oral predominante para o predominantemente escrito. Mas, como foi dito anteriormente, esse estado de transição, ou aparente transição, foi sentido outras vezes, de maneiras indiscutivelmente distintas, mesmo depois do estabelecimento irreversível do prestígio de um modo de ser da escrita. Assim, em alguns períodos da História (portanto surgidos de uma configuração de tempo só possível com a escrita que inventa a História), puderam aparecer novamente os resquícios de oralidade perdida. Nossa memória, sendo ruína, sempre nos traz restos de antigas construções de mundos antigos. Houve novamente, já bem depois daquele didatismo homérico, um didatismo via escrita, sofrendo, portanto, as devidas adaptações, mas conservando ou preservando as ruínas, os ecos (matéria de ruínas) de uma oralidade antiga, trazendo algumas de suas marcas aos novos tempos.

Aconteceu na Idade Média, em que o empenho didático concentrava-se no empenho de reescrever, recontar, traduzir, copiar, ilustrar, compilar, encadernar e editar contos, histórias, fábulas, anedotas já contados e, muitas vezes, já escritos por outrem (outros autores outros povos) em outro tempo ou em lugares distantes (que se traduzem melhor pela palavra-imagem: Oriente). Aconteceu também com o surgimento do espírito romântico de resgate deste empenho, mas com uma noção de originalidade um pouco mais apurada pela contaminação maior da escrita. Assim, são reinventados, não só recontados, muitos mitos e textos medievais, que, por sua vez, já haviam resgatado de outros tempos e distâncias sua matéria.

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Estes dois empenhos, o medieval e o romântico, parecem configurar-se como uma solução erudita para o fenômeno de reatualização dos mitos de sociedades ágrafas. Esta reatualização dá-se pelo verbo, proferindo-se em situações especiais, únicas, os mitos de origem. Novamente o encontro com a origem passa pela esfera, ou pelo círculo do sagrado, pois os mitos, como os deuses, não podem ser evocados em situações corriqueiras. E são até mesmo vetados ao conhecimento da maioria da população. Somente aqueles a que chamamos sacerdotes ou xamãs ou poetas têm acesso a esses mitos de origem ou podem transmiti-los, reatualizando-os.

Esta reatualização, nada tem a ver com o sentido moderno de “dar novas cores”, nova roupagem, num exercício autoral que se quer autêntico, original, de tudo que é antigo, mas importante. De tudo que, em sociedades modernas, ou “pósmodernas”, se considera caduco e se quer resgatar. Não, a reatualização dos mitos de origem naquelas sociedades é dizer o fenômeno como o que se mostra e o que se diz, sem inovações, sem afastamento, sem a interferência de um “autor”. O fenômeno se disse e mostrou e ele deve, em diferentes ocasiões, dizer-se e mostrar-se ciclicamente. Eliade nos dá um testemunho da reatualização do mito eosmogônico na Polinésia: O homem das sociedades tradicionais sente a unidade fundamental de todas as espécies de 'obras' ou de 'formas', sejam elas de ordem biológica, psicológica ou histórica. Uma guerra desastrosa é comparável a uma doença, a um coração triste e abatido, a uma mulher estéril, à ausência de inspiração de um poeta ou a qualquer outra situação existencial crítica em que o homem é levado ao desespero. E todas essas situações negativas e desesperadas, aparentemente sem saída, são anuladas pela recitação do mito cosmogônico, nomeadamente pela repetição das palavras com as quais Io engendrou o Universo e fez brilhar a luz por entre as trevas. Por outras palavras, a cosmogonia constitui o modelo exemplar de toda situação criadora; tudo o

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que o homem faz, repete, de certa forma, o 'feito' por excelência, o gesto arquetípico do deus criador: a criação do mundo. (ELIADE, 1986:33)

O tempo do mito, numa concepção de mundo baseada na memória e transmissão oral, é sempre, ciclicamente, o presente. Abstrações como “passado” e “futuro” só são possíveis pelo congelamento do tempo, propiciado pelo aprisionamento dos eventos com seu registro escrito. Mesmo que, em composições orais, o tempo reproduzido soe aos nossos ouvidos como passado, na verdade o que temos é o Tempo, que é sempre fora do tempo e que perpassa todas as linhas de tempo presentificando-se sempre que se diz e se mostra novamente.

O verdadeiro pai da história não foi um "escritor" como Heródoto, mas o próprio alfabeto. A memória oral trata fundamentalmente com o presente. Ela capta e recolhe o que está sendo feito, ou o que é apropriado para o momento presente. Ela registra as instituições do presente, não do passado. (HAVELOCK, 1996a: 30)

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O TÍTULO, A ASSINATURA

Especula-se que a necessidade da escrita pode ter advindo das necessidades de propriedade, para se demarcar a propriedade de um “dono da coisa”4. E aqui dissemos que a própria obra de arte ganhou paulatinamente este estatuto de coisa pertencente – não só o seu conteúdo intelectual, a sua matéria pertence a um determinado autor, é fruto de sua “criação original”, como também o objeto que a suporta, o livro no caso, é propriedade privada, disponível sempre a consultas do dono. Tal configuração nem sempre se deu. Não só o nome do autor não constava como assinatura, como também não havia títulos tal qual os concebemos hoje, vazios de significados, sintéticos, impactantes, etc. Havia, sim, uma descrição global do texto, uma exposição do tema. Tudo, por fim era narrado, contado, experienciado.

Esta dificuldade em sintetizar a obra num título pode ser conseqüência das práticas de memorização da matéria épica oral em que muitas vezes se decorava e transmitia apenas o argumento, cabendo ao poeta inserir os demais elementos de composição. O poeta de sociedades orais era portanto um compositor, ele com-punha com uma tradição anterior a ele por gerações e que conhecia ... Daí podermos falar sempre e nunca podermos falar em autor. Se considerarmos este trabalho de composição em que o indivíduo é relativamente livre para inserir os elementos ou eventos que mais lhe fossem caros, haveria, sim, o trabalho original de um autor, que daria um toque pessoal à matéria de que dispunha. Mas, se, por outro lado, levarmos em conta que mesmo com essa liberdade, o seu trabalho aliava-se a uma memória compartilhada de uma tradição conservada por outros de sua classe, o poeta não era propriamente um 4

Os mais antigos textos escritos pertencem ao gênero da dedicatória. Como nos relata Rosalind Thomas, em comunidades bilíngües, os gregos viam seus vizinhos dedicarem aos deuses objetos escritos.

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autor no sentido de que proclamava algo de original e autêntico, mas que, com-pondo com a tradição, reatualizava o sempre verdadeiramente original, sendo, portanto, um com-positor, um cantor, que emprestava sua voz aos ecos da tradição oral.

E, assim como nas sociedades não-letradas o bardo empresta sua voz ao canto da tradição, a escrita de início necessitou também de uma voz que lesse e cantasse. A escrita nem sempre foi uma companhia silenciosa e muito menos era conhecida por todas as camadas da sociedade. De início ela exercia uma fascinação como ainda hoje exercem escritas não-alfabéticas.

Como Eliade aponta em sua obra, todo novo fazer, toda nova criação, necessita de um mito de criação, tem uma explicação mítica. Com a escrita se deu da mesma forma. Geralmente ela é um presente dos deuses aos homens ou criação de um deus, ou, ainda, na busca incessante pelo conhecimento, um deus tem a revelação dos signos da escrita. É o que se passou na mitologia nórdica, em que Odin, que, cegando um dos olhos como prova de determinação pelo conhecimento, domina os símbolos do futark. Há ainda escritas que até hoje não tiveram sua origem muito bem estabelecida, como é o caso da escrita ogâmica dos povos celtas. Apesar de o seu nome apontar também para um deus, Ogam, muito pouco se sabe sobre sua criação ou sobre sua função. Mas uma coisa é certo dizer sobre a escrita e os seus usos primordiais em qualquer lugar: sua característica mágica, sua associação com a magia e os símbolos mágicos. Porque o surgimento da escrita está sempre muito próximo à vigência de um tempo em que todas as manifestações estavam carregadas de significado, sem exceção plantas, animais, a pedra, a água e, principalmente a palavra, o sopro. A escrita inicial é herdeira direta da voz, do canto, é sempre um prenúncio de canto.

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Há vários exemplos dessa utilização mágica da escrita inicial (e iniciática), a começar pelo próprio nome dos símbolos gráficos. Todos tinham um significado, eram de fato o que nomeavam – uma casa, uma espada, uma árvore. Até mesmo os nomes das letras do alfabeto grego já foram plenos de significado. Seus nomes derivam dos símbolos fenícios, que, por sua vez, mantêm relação com alfabetos mais antigos como o hebraico e o siríaco. “Alfa”, “beta”, “gama”, “delta” – que originaram nosso “a”, “b”, “g”, “d”, meros nomes de sons – já foram “boi”, “casa”, “camelo”, “puxador de porta”.

Investigamos, assim, como a escrita, cuja criação parece ter sido motivada pela necessidade de propriedade, registrar o dono da coisa, reflete-se no aprisionamento das obras sob uma assinatura que se quer atualmente mais importante do que a própria obra, evidenciando a figura do autor.

Um artifício que nasceu para nomear, garantir a preservação do nome, da propriedade, evoluiu para um estágio alcançado pelo alfabeto grego em que seus símbolos tornaram-se carentes de significado, sem designar nada, apenas remetendo a uma abstração sonora, um fonema. Assim o alfabeto grego não nomeia como faziam seus antecessores, mas conceitua, inaugurando assim a configuração de um pensamento cada vez mais abstrato, conceitual.

Havelock considera tal perda de sentido em prol de um mero significado fonético um grande avanço, sem o qual a escrita jamais poderia ter desempenhado seu papel de registrar pensamentos abstratos, visto que sempre remeteriam à presença da “coisa”, de um dado concreto. Esta perda foi fundamental para que o verbo em sua forma escrita, não mais nomeasse, ou não só nomeasse, mas conceituasse. Este 32

“avanço” da escrita permitiu a adoção de um mesmo sistema de símbolos em culturas diferentes, os nomes já não eram um impedimento à compreensão, pois nada diziam. Este afastamento de sua função primeira – nomear – foi o que tornou possível sua difusão.

A escrita foi reduzida a um truque; não tinha valor intrínseco em si mesma como escrita, e isto a distinguia de todos os sistemas anteriores. Veio a ser um traço característico do alfabeto o fato de que os nomes das letras gregas, emprestadas do fenício, pela primeira vez se tornaram sem sentido: alfa, beta, gama etc. (...) Esses nomes, no semítico original, eram nomes de objetos comuns, como casa, camelo etc. Estudiosos irrefletidos da história da escrita sempre reprovarão ao sistema grego o fato de que, em grego, os nomes das letras tornaram-se insignificantes. (HAVELOCK, 1996:83)

Até mesmo suas formas passaram gradativamente a constituir uma arte abstrata. Os nossos símbolos gráficos, que derivam de ancestrais ideográficos, não ilustram, não simbolizam coisa alguma. Entretanto, nossa necessidade estética faz com que arranjemos estes caracteres de maneira harmoniosa, que brinquemos com suas formas. Temos, assim, durante a Idade Média, as letras góticas e os livros ilustrados, dispondo o texto escrito em consonância com figuras ou mesmo formando figuras. Mais recentemente houve a experiência da poesia concreta, explorando os recursos gráficos da escrita, sem falar na publicidade, que, a todo momento, cria novos arranjos e fontes.

A religião muçulmana tem num livro a sua criação, ou seja, já nasce da escritura relativamente contemporânea às revelações do profeta Maomé. Há, desde o primeiro verso corânico, uma exortação à prática da leitura: “Lê, em nome do Senhor que criou; Que criou o ser humano a partir de uma gota de sangue. Lê! Porque o Senhor, o Grande Nobre [âlÂkramu], ensinou com a pena.” (Sûra ’Al’alaq, 96a, 1-5). A partir de seu 33

surgimento, observou-se e se observa até hoje a alfabetização em massa na língua da revelação (o árabe) de todos os povos convertidos. Apesar disso, esta religião resgatou um valor estético dos símbolos gráficos, já havia muito, esquecido, elevando a escrita à condição de arte pictográfica das mais refinadas. Isto por proibir a seus artistas as representações de Deus e da figura humana (imagem de Deus).

Entretanto, Thomas recua ainda mais para trás nesta questão, ao reconhecer nos alfabetos regionais do início do letramento na Grécia uma manifestação dessa mesma necessidade estética:

As formas regionais das letras arcaicas, assim como os dialetos regionais, eram provavelmente um reflexo da altiva identidade local; e as “excentricidades” da escrita arcaica podem, mais propriamente, expressar uma criatividade e uma imaginação reanimadoras na aproximação dos escritores ao meio. A escrita padronizada não é, de modo algum, um desenvolvimento óbvio e só pode se tornar possível por meio de um método uniforme de ensino ou pela preferência por alguma forma específica tida como superior. (THOMAS, 2005:105)

É, por fim, ou desde o início, o belo que nos move, até mesmo para a configuração de uma forma rígida, padrão, com a qual sempre houve e haverá a necessidade de romper.

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AUTORIA E ORIGINALIDADE

O homem é a sua própria visão de mundo. O homem emite suas opiniões. Tudo no homem é de sua criação, criação humana. A arte é uma de suas criações.

Será que estas proposições foram sempre verdadeiras, trouxeram sempre consigo o desvelamento de um mundo real? A relação do homem com a arte que antes proferia, profetizava, anunciava, sempre foi de sujeito-objeto? Ou isso se deu de maneira mais tardia e de forma paulatina quando, pouco a pouco, as formas artísticas tornaram-se cada vez mais palpáveis, presas a suportes que permitiam seu deslocamento no espaço e seu esquecimento do tempo. A arte da palavra, que antes era soprada pelas musas aos ouvidos de uma coletividade, à classe dos poetas – que retransmitiam o conhecimento de memória que lhes ensinavam – apenas quando passou a ser escrita num suporte permitiu que dela tomasse posse um indivíduo: o artista.

O título, a função de “com-positor” foi gradualmente substituída pela do “autor”, e, com isso se flexibilizou, se estendeu, ou, mais precisamente, se alterou o sentido de autoridade.

Antes, era o verbo. A autoridade do poeta – e, no tempo em que se confundiam os registros oral e escrito, o autor de teatro ainda era considerado poeta também – estava na sua fala e no que ela guardava e transmitia de memorável, de experiência, de exemplar. Era a autoridade do mito e de quem se resguardava na escuta de seu aprendizado – os poetas.

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Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior à constituição da pólis e à adoção do alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o máximo poder da tecnologia de comunicação. Toda visão de mundo e consciência de sua própria história (sagrada e/ ou exemplar) é, para este grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundo que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. (TORRANO, O mundo como função de Musas, In: HESÍODO, 2006: 16)

O teatro, também prática pública, surge ainda carregando um modo de ser da oralidade, sua função didática; mas agora, tal função, que antes era desempenhada pela classe dos aedos, que, viajantes, difundiam o saber por toda a Grécia, estava concentrado na figura dos dramaturgos (e Havelock considera os dos primeiros tempos ainda como compositores), encerrados num lugar particular e exibindo paulatinamente uma visão cada vez mais particular de mundo. Como bem mostra o autor, a função didática da memorização de versos transmissores de um saber acumulado por gerações passou a ser prescindida devido a fixação da escrita em suportes. Toda a história e o saber de uma civilização poderiam ser consultados nos tratados dos primeiros historiadores (frutos também do letramento), a qualquer hora, em qualquer lugar, solitariamente5. O espaço do teatro não precisava mais desempenhar uma função como esta. Por isso, o entretenimento, antes em relação de equilíbrio, foi subjugando o ensinamento de valores e condutas. O autor foi aparecendo detrás do poeta – parte de um grupo – para anunciar seu próprio pensamento, individual, original. Com o advento de uma escrita alfabética, sistematizada, o homem foi, pouco a pouco, à medida que se

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Mas, mesmo os “historiadores” dos primeiros tempos fiavam-se em testemunhos, na presença.

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alfabetizava, abandonando um modo concreto de ver o mundo para uma forma cada vez mais abstrata de pensar o mundo.

As noções de autoria, originalidade e autenticidade estão, desta forma, sempre vinculadas ao pensamento letrado.

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ECOS DE ORALIDADE: OS ROMANCES DA IDADE MÉDIA E O ROMANTISMO MEDIEVAL

Primeira parte:

A Idade Média foi marcada por uma convivência entre as formas de conceber mundo (pela memória oral ou visual) que a aproximou da experiência de uma Grécia recém alfabetizada. Houve, naquele período, um resgate, ou, antes, uma rememoração coletiva de um tempo arcaico, revivido nas práticas e produções artísticas. A “Idade das Trevas” talvez seja assim própria e justamente chamada: por ter se empenhado no desencobrimento, no desvelamento de obras da Antigüidade e da memória de seu próprio tempo, ficou na treva do que se oculta ao desocultar o oculto, cobriu-se com o véu de seu próprio empenho de desvelamento.

Esse desvelamento deu-se de duas formas – uma, pelo empenho dos poetas que resgataram inconscientemente, como num sonho (matéria de poesia) coletivo, o forte impulso de uma poesia oral; a outra, pelo esforço de copistas, editores e autores em registrar a memória já naturalmente configurada como tal.

Foi um período responsável por muitas traduções, interpretações e cópias de textos antigos, já registrados da oralidade, e também registros e versões de obras mais recentes, populares, que eram recolhidas, copiadas e muitas vezes prosificadas. Este faustoso trabalho deu-se juntamente com a presença dos trovadores que perpetuavam a memória de uma poesia oral que atravessava os tempos. Unindo música, recitação, dança, estes poetas viajavam de reino em reino carregando consigo a bagagem da poesia

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que aprendiam ao longo do caminho da existência. Por sua vez, o anonimato da obra desses poetas era registrado e copiado por mãos também anônimas num trabalho artesanal que unia especialistas em caligrafia, pintura, iluminura, couro e ourivesaria. Assim como a poesia oral, o livro, nesta fase de transição, guardava ainda esta coletividade de criação que gerava não um objeto, um mero suporte das obras recolhidas, mas uma nova obra, uma obra de arte. Cada exemplar era único, de valor inestimável. O anonimato mantinha-se como o secreto nome de gerações de artistasartífices e, no entanto, a autenticidade de uma obra era indiscutível como sua presença, ela mesma atestava, nomeando, sua autenticidade.

Não pode passar despercebido que uma das principais matérias da Idade Média, que formava, junto com outras duas, o mais digno de ser cantado, seja o tema de Alexandre da Macedônia – ele, que tanto gostava do gênero de narrativas para se ouvirem à noite, durante a vigília nos acampamentos militares, numa oralidade viva e anônima sob a treva da noite.

Não pode passar despercebido também que o outro grande tema medieval, talvez o principal, o mito do Rei Artur e das aventuras de seus cavaleiros, seja retomado apaixonadamente por muitos artistas românticos, direta ou indiretamente.

O movimento Romântico, ao entrar em contato/contágio com uma outra ordenação de mundo que lhe apresentou uma Idade Média depositária da memória esquecida de vários povos, viola o sacro repouso das monumentais ruínas pagãs de todos os tempos. O Romantismo experimenta os odores pútridos de culturas esquecidas e com eles se delicia. É um modo de ser viciante, embriagante o que (re)inauguram os

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poetas românticos. É, sobretudo, embriagante por não tratar a poesia, a arte com sobriedade; ao pesquisarmos as fontes medievais sempre encontraremos vários originais e manuscritos, inúmeras fontes de um mesmo tema. Os românticos também, assim como os medievais — e como os ébrios — multiplicam as imagens que perseguem, violando uma lógica racionalista vigente por muitos anos.

E esta violação é a violação mesma de algo interdito para a arte nesses últimos tempos que nos distanciaram da “promiscuidade” medieval: a retransmissão do conhecimento, a difusão das histórias, a reatualização dos Mitos fundados desde o sempre da linguagem poética do homem. Uma “improdutividade” poética que pode ser reconhecida quando confrontada com seu inverso — a busca faustosa por originalidade, autenticidade (uma busca considerada “produtiva”). Demonstrando como o conceito de produtividade está tão infiltrado em poesia, fala-se até em “dívida” — um autor, um poeta em dívida com outro, uma obra em dívida com outra e, mais grave, gerações inteiras endividadas com outras.

Hölderlin, poeta romântico alemão, ciente deste

caráter sintomático que assolava a arte do seu tempo escreve:

(...) sonhamos com originalidade e autonomia, acreditamos enunciar o novo em alto e bom tom, mas tudo isso não passa de reação, de uma espécie de vingança suave contra a escravidão que norteia o nosso relacionamento com a Antigüidade. Parece que, realmente, quase não se oferece uma outra escolha senão deixar-se soterrar pelo já assumido, pelo positivo ou, com a mais violenta soberba, contrapor a vida de nossas forças a tudo o que foi dado, aprendido, a todo o positivo. (HÖDERLIN, 1994:21)

Este sentimento de escravidão que denuncia traz à tona a nossa moderna concepção de arte como agrilhoada com os ferros dos “grandes mestres do passado” de que nos devemos “libertar” de tempos em tempos. Esta associação mercantil de senhor e 40

escravo, mestre e servo, esconde o verdadeiro sentido de liberdade que deveríamos buscar em poesia — a intimidade e conhecimento de sua origem — sempre anônima, sempre de uma coletividade, mas sempre de homens, e de homens livres — para nos despojarmos do ingênuo intento (passageiro como as novidades) de ser autênticos.

Assim, Hölderlin nos alerta ainda:

É preciso considerar, enfim, tudo o que, antes e em torno de nós, surge desse instinto como sendo o que, em todos os seus produtos, brota do fundo originalmente comunitário, reconhecendo as direções mais essenciais que assume antes e em torno de nós, bem como os descaminhos que nos cercam. Desse modo, o mesmo fundo, esse igual em toda parte, por nós vivamente assumido enquanto origem do instinto de formação, haverá de indicar a nossa própria direção, determinada através das direções anteriores (...) e isso de tal modo que possamos sentir intimidade e igualdade com o fundo originário de todas as obras e atos humanos, sejam eles grandes ou pequenos, ao passo que, na direção específica, devemos assumir. (IDEM, ibdem:22)

O Romantismo volta-se (virando numa direção oposta ao caminho costumeiro) para um caminho que o leva a retomar uns passos na direção do conhecimento do passado. Mas, muito além de segui-los, assume-os como seus, também, como caminho vigente em seu próprio presente, visto que parte e é parte de sua origem. Assim, reservase o direito à liberdade de segui-los livremente, e continuá-los, já que são também seus os passos ancestrais.

Tentamos seguir nesta direção até agora, mas, ao longo do percurso, esbarramos continuamente com as interdições que impõe ao nosso caminho a supervalorização de abstrações como “autoria”, “originalidade” e “autenticidade”. Podemos encontrar nestes

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trechos interditados obras que tiveram sua marcha interrompida, legadas ao esquecimento simplesmente por não poderem atestar uma autenticidade que insiste em ser exigida. Podemos citar, entre tantas outras, a obra do “inglês” – que na verdade era escocês – James Macpherson de tradução do bardo celta Ossian, filho de Fingal; e, ainda do século XIX, As Canções de Bilitis, de Pierre Louÿs, amigo de Valéry, que, assim como aquele, “traduziu” “originais” de sua própria autoria (com a diferença de que Louÿs criou também um manuscrito em grego, cópia de antigas inscrições “encontradas” na tumba da poeta Bilitis; mas os manuscritos em gaélico em que teria trabalhado Macpherson nunca foram encontrados). Borges, que levou para o século XX, da descrença, o costume de “inventar” poetas e manuscritos, só não é menosprezado porque a ele se concede (e isso é um privilégio) esta liberdade – vista como lúdica – e o desobrigamos dos atestados.

Entretanto, os caminhos tortuosos que levaram a arte a duvidar de sua própria origem como coletividade, e a confundir verdade com documento escrito, vêm desde o início de uma alfabetização progressiva da população na Grécia Antiga e segue até mesmo pelo espaço medieval. O problema das autorias já é sentido na Idade Média, como nos mostra o texto, do séc. XIV, de D. Juan Manuel, considerado, devido à sua profunda consciência de “autor”, o primeiro escritor espanhol.

Et porque don Iohan vio et sabe que en os libros contesçe muchos yerros en los trasladar, porque las letras semejan unas a otras, cuydando la una por la una letra que es outra, en escriviéndolo, múdase toda la razón et por aventura confóndesse, et los que después fallan aquello escripto, ponen la culpa al que fizo e libro; et porque don Iohan se reçeló desto, ruega a los que leyeren qualquier libro que fuere trasladado del que él compuso, o de los ibros que él fizo, que si fallaren alguna palabra mal puesta, que non pongan la culpa a él, fasta que bean el libro mismo que don Iohan fizo, que es

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emendado, en muchos logares, de su letra. (DON JUAN MANUEL. 1971: 47-48.)

Mesmo com o grande poder exercido ainda por uma cultura oral, podem-se sentir os primeiros sintomas trazidos pela também efusiva atividade da escrita naquele período, apontando para problemas que, à primeira vista, parecem apenas tratar-se de meras “confusões tipográficas”, mas que denunciam o eclodir do germe de todas as questões fundamentais para se entender os caminhos da literacia como instituidora dos interditos de linguagem, disfarçados por aquelas mesmas noções de que se tem falado exaustivamente neste trabalho: autoria, originalidade e autenticidade.

E, como nos interessa o contato, o contágio, entre os poetas românticos e os antecessores que elegeram como imediatos – os bardos medievais – transcrevemos a seguir esta mesma discussão sobre autoria no discurso de um romântico, Samuel Taylor Coleridge, no prefácio de seu poema “Christabel” – poema sobrenatural que integra a matéria de vampiros muito apreciada pelos românticos e da qual o Drácula, de Bram Stocker é apenas um dos mais famosos exemplos.

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For there is amongst us a set of critics, who seem to hold, that every possible though and image is traditional; who have no notion that there are such things as fountains in the world, small as well as great; and who would therefore charitably derive every rill they behold flowing, from a perforation made in some other man’s tank. I am confident, however, that as far as the present poem is concerned, the celebrated poets whose writings I might be suspected of having imitating, either in particular passages, or in the tone and the spirit of the whole, would be first to vindicate me from the charge, and who, on any striking coincidence, would permit me to address them in this doggerel version of two monkish Latin hexameters. ‘’Tis mine and it is likewise yours; But an if this will not do; Let it be mine, good friend! for I Am the poorer of the two.’ (COLERIDGE, 1983: 214-215.)

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Segunda parte:

Fazendo a viagem para um passado medieval, o poeta romântico penetra neste vórtice que o leva a refazer as viagens dos viajantes e a acumular a memória dos ancestrais. Aliás, quando usamos o termo "viagem" não é por acaso. O poeta romântico é um viajante por excelência. O gosto que tem por culturas "exóticas" o faz viajar, ou, de uma outra maneira, o exotismo que vê no outro já constitui em si a própria viagem. Este exotismo se deu a conhecer ou a redescobrir talvez por duas obras que carregam em si tanto as narrativas dos viajantes quanto a memória de toda uma cultura. Estas obras foram: As Mil e Uma Noites, publicada pela primeira vez na Europa através da tradução feita pelo orientalista francês Antoine Galland entre 1704 e 1717; e a obra Fingal, an ancient Epic Poem in six books, together with several other poems composed by Ossian, the son of Fingal, translated from the gaelic language, outra "tradução", portanto, feita em 1761 por James Macpherson.

As Mil e Uma Noites é “parte prévia de nossa memória”, com suas cidades opulentas, com suas histórias fantásticas e com seus relatos de viagens a lugares estranhos. Muitos heróis das histórias narradas por Shahrazade se encontram envolvidos em viagens por mares desconhecidos, por terras estranhas, com costumes estranhos, como a China e a índia. A mesma estranheza e exotismo que sentem os românticos em suas viagens, por mares e por ópio, através deste mundo que lhes desvelou aquelas infinitas noites. Mamede Mustafa Jarouche, no prefácio do primeiro volume de sua tradução destas fascinantes noites, nos fala de uma divisão dos gêneros narrativos árabes em histórias exemplares, em fábulas, e no gênero de histórias "para serem contadas à noite". Ele discorda dos que querem enxergar a obra como sendo do primeiro

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gênero (ora, se As Mil e Uma Noites instaura a liberdade romântica, seria absurdo pensar num conteúdo moralizante) e chama a atenção para a total desobediência, por parte de Shahrazade, ao conselho de seu pai e sua réplica com outra história conveniente para seus fins (o de se casar com o rei tirano, arriscando-se a morrer, para tentar pôr fim à tirania), relativizando o conceito de exemplaridade.

Bem, mas se isto é incontestável, é incontestável também o fato de que são histórias contadas à noite. Não sabemos se isto basta para inseri-las no terceiro gênero, o das "histórias para se contarem à noite", mas foi esse fato que possibilitou a manutenção da vida de Shahrazade durante o dia. E isto remete a uma anedota curiosa, citada por Jarouche no mesmo prefácio, de um livreiro de Bagdá que vivera no séc. X: a de que Alexandre da Macedônia era um grande apreciador dessas histórias para se contarem à noite:

E o correto, se Deus quiser, é que o primeiro a passar a noite entretido em colóquios [asmar] foi Alexandre [da Macedônia]: ele tinha um grupo que o divertia e o entretinha contando histórias, com as quais ele buscava não o prazer, mas sim a proteção e a vigília.(ANÔNIMO, 2005, p. 16)

Assim como acontecia com a famosa filha do vizir, eram as histórias que mantinham sua vida, mas, durante a noite, deixando-o acordado nos acampamentos. E Alexandre foi um dos primeiros e grandes contatos entre Ocidente e Oriente. Citando novamente Borges:

Alexandre, que conquista a Pérsia, que conquista a Índia e que por fim morre na Babilônia, até onde se sabe. Foi esse o primeiro vasto encontro com o Oriente, um encontro que afetou Alexandre a tal ponto que ele deixou de ser grego para tornar-se parcialmente persa. Os persas agora o

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incorporaram a sua história. A Alexandre, que dormia com a Ilíada e com a espada embaixo do travesseiro. (BORGES, 1999: 256)

Ou ainda em: "Nos países do Islã ele [Alexandre] ele ainda é celebrado sob o nome de Alexandre Bicorne, porque dispõe dos dois chifres do Oriente e do Ocidente." (IDEM, ibdem: 257)

Alexandre também protagoniza uma outra coincidência que talvez una todos os viajantes e todos caminhos numa única caravana do Oriente. Como aprendemos novamente do escritor argentino, agora em seu Curso de Literatura Inglesa, Alexandre é uma das grandes matérias da Idade Média, ao lado da Matéria da Bretanha e da Matéria da França. Havia uma terceira matéria permitida aos poetas da Idade Média. O verso diz 'de France, de Bretagne et de Romme la grant'. Mas a matéria de Roma não era apenas a história romana, mas também - porque Enéias era troiano — a história de Tróia, a história de Alexandre Magno. (BORGES, 2002: 331-332)

Por que esse interesse por Alexandre? Talvez muitas das histórias e do conhecimento sobre Alexandre só tenham chegado com a entrada dos árabes na Península Ibérica e seu intenso trabalho de tradução de textos gregos e latinos. Sim, devemos aos árabes nosso fascínio por Alexandre. Mas não totalmente a eles.

Se pegarmos uma obra do séc. XV intitulada Le Morte d'Artur, de Sir Thomas Malory, obra que, no fim da Idade Média reconta, num único texto, todas as histórias da saga de Artur e seus cavaleiros, estabelecendo de maneira definitiva a grande epopéia do continente europeu, e que, como diz Jean Markale em sua obra Le Roi Arthur et la societé celtique (O Rei Arthur e a sociedade celta), em nada deve aos gregos ou aos 47

latinos; enfim, naquela obra, mais precisamente em seu prefácio, escrito pelo famoso editor (o primeiro editor da Inglaterra) William Caxton, é mencionada uma das tantas "Tríades Galesas" — processo mnemônico em que se enumeravam de três em três (3, número cabalístico, a unidade e o infinito como a cifra 1001) os temas dignos de memória. Assim, cita os três grandes pagãos, que teriam sido as primeiras encarnações de Jesus Cristo (mas talvez esta referência cristã seja somente de autoria de Caxton, e não da original tríade galesa). São eles: Heitor de Tróia; Alexandre, o Grande; e Júlio César. Heitor, personagem da Ilíada, com a qual o segundo, Alexandre, costumava dormir. E por que será que os galeses, povo celta, que também habitou Portugal e Espanha, bem antes do estabelecimento dos estados árabes, elege Alexandre como uma grande personagem?

A isso não podemos responder precisamente, mas podemos sentir, sentindo neles também o nosso mesmo sentimento do Oriente como algo fascinante; e, tendo Alexandre conhecido, conquistado e sendo conquistado de volta pelo Oriente, merece toda a admiração por nos ter feito sentir, assim como ele se sentiu também, "menos gregos" e por ter iniciado este grande convite à viagem, aceito pelos românticos de todos os tempos.

Auerbach, na Introdução aos estudos literários, situa o início do Romantismo na Alemanha insurgida contra o racionalismo e classicismo franceses por volta de 1770, com sua primeira fase conhecida como Sturm und Drang. Entretanto, poetas desta geração foram influenciados pelo Ossian, de Macpherson; Goethe, o mais notável deles, cita-o no seu Werther ("Ossian suplantou Homero no meu coração. Que mundo aquele para onde me leva o poeta sublime!") (GOETHE, 1983. P. 381). Isto nos permite, então,

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introduzir aquela obra cronologicamente no início do Movimento Romântico — na Escócia, mas em língua inglesa, adiantando-se à publicação conjunta de Coleridge e Wordsworth de Lyrical Ballads em 1798 — sendo, de fato, um dos germes de seu nascimento em toda a Europa.

Contudo, a outra obra — As Mil e Uma Noites — remonta a tempos de intensa confluência entre manifestações orais e escritas que a afastam seguramente do "mal do século". Mesmo a sua primeira tradução no ocidente data de período bastante anterior ao início dos primeiros "sintomas" registrados. Não obstante, o escritor argentino Jorge Luís Borges entende tal publicação como o "estopim" para o início de uma estética romântica:

Quando se fala em movimento romântico, pensa-se em datas muito posteriores. Poderíamos dizer que o movimento romântico começa naquele instante em que alguém, na Normandia ou em Paris, lê As Mil e Uma Noites. Está saindo do mundo legislado por Boileau, está entrando no mundo da liberdade romântica. Virão depois outros fatos. A descoberta francesa, por Lesage, do romance picaresco; as baladas escocesas e inglesas publicadas por Percy por volta de 1750. E, por volta de 1798, o movimento romântico começa na Inglaterra com Coleridge, que sonha com Kubilai Khan, o protetor de Marco Polo. (BORGES, 1999: 266)

Apesar de não citar especificamente a obra de Macpherson, Borges menciona outras baladas escocesas — outra via de contágio com o passado celta — e outra obra da Idade Média, As Viagens — ou "O Milhão" — de Marco Polo, reforçando mais uma vez o estímulo, o convite feito à geração romântica por um tempo das mais insólitas viagens, como a oriental incursão de Polo e as voltas pelos círculos infernais de Dante.

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O Romantismo, portanto, não é uma periodização, um gênero literário, mas um sentimento que se operou desde a descoberta de As Mil e Uma Noites e se dá até hoje. Um sentimento de resgate de uma liberdade perdida, de reatualização, de retransmissão de mitos.

É o mesmo sentimento romântico que também nos impulsiona de volta, principalmente, a um passado medieval. E esta volta nos põe em contato com uma liberdade para lidar com as questões de originalidade, autenticidade e autoria. As duas obras citadas como marco do sentimento romântico — as traduções de Galland e Macpherson — refletem bem essa liberdade.

Foi justamente nesse resgate de um tempo em que conviviam pacificamente a experiência e memória da oralidade — através dos bardos viajantes — e o minucioso trabalho de registro e preservação escrita dos compiladores, copistas, editores, que se pôde resgatar de igual maneira essa intimidade com a poesia como obra de gerações — não como, apenas, gênio de um indivíduo, ou autor (noção digamos, avant la lettre, para o mundo medieval, para o qual preocupações com autoria, originalidade e autenticidade, muito vivas em culturas predominantemente letradas, não influíam tanto em seu trabalho secular e, quase anônimo, pois coletivo).

Nada mais natural, diante disso, o fato de os autores que reapresentaram, que presentificaram, e presentearam o fim do século XVIII, e os que se seguiram, com esse tempo de "liberdade autoral" lidarem também de maneira livre com as obras que publicaram, que deram a conhecer. E foi realmente um conhecimento da obra — um nascer junto — que lhes permitiu essa intimidade e liberdade. Sim, as publicações de

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Galland e Macpherson são livres traduções — confundidas muitas vezes com falsificações. Mais que tradutores, são, também, dois copistas que foram em busca desse conhecimento esquecido e que ameaçava se perder. Assim, o "inglês" viaja pela Escócia e Irlanda recolhendo textos e também ouvindo, e memorizando, canções, narrativas populares; Galland viaja para o "oriente" e também encontra manuscritos e ouve o que ficou na memória do povo, através da memória de um seu amigo árabe (confirmando Borges, para quem "a literatura é tecida de amizades."). Entram ambos "em contato", e por isso se contaminam, deixam-se tocar intimamente pela gênese das obras que buscaram, e, por isso, passam a fazer parte também de sua criação.

Macpherson "traduz" as baladas de um outro Ossian, que é ele mesmo — Macpherson — presenteado com a "dádiva" da memória daquele Ossian ancestral que conheceu (no sentido de co-nascer) em suas andanças (fazendo-nos inevitavelmente lembrar da análoga dádiva de uma "memória de Shakespeare").

Antoine Galland era um orientalista que em suas viagens encontrou um manuscrito (o mais antigo manuscrito árabe) do Livro das Mil e Uma Noites e resolveu traduzi-lo. Sua tradução, contudo, é um pouco condenada hoje por não ser muito fiel ao texto, omitindo muitas cenas eróticas e não inserindo os poemas que permeiam todo o texto em prosa. Entretanto, sabemos que fidelidade não era o lema do "autor" medieval, e os românticos de certa forma resgatam tal postura. Assim, Galland, além das alterações citadas, contribui com um acréscimo à cifra já infinita de mil e uma noites; uma "noite" que não se encontra em nenhum manuscrito árabe medieval: a famosa história de "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa". Este conto lhe teria sido presenteado

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por um amigo maronita que fizera em suas viagens, e ele o inseriu nas Noites6. Borges nos relata o acontecimento da seguinte maneira:

(...)Sabe-se que Jean Antoine Galland era um arabista francês que trouxe de Istambul uma paciente coleção de moedas, uma monografia sobre a difusão do café, um exemplar arábico das Noites e um maronita suplementar, de memória não menos inspirada que a de Scherazade. A esse obscuro assessor - de cujo nome não quero esquecer, e dizem que é Hanna devemos certos contos fundamentais que o original desconhece: o de Aladim, o dos Quarenta Ladrões, o do príncipe Ahmed e a fada Peri Banu, o de Abulhasan, o adormecido acordado, o da aventura noturna de Harun Al Hashid, o das duas irmãs invejosas da irmã caçula. (BORGES, 2001:80)

E ainda em:

Há um conto que é o mais famoso de As Mil e Uma Noites e que não se encontra nas versões originais. É a história de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa. Aparece na versão de Galland, e Burton procurou em vão o texto árabe ou persa. Houve quem suspeitasse que Galland falsificara a narração. Creio que a palavra "falsificar" é injusta e, maldosa. Galland tinha tanto direito a inventar um conto quanto aqueles confabulatores nocturni: por que não supor que, depois de traduzir tantos contos, ele quis inventar um e assim fez? (BORGES, 1999:266)

A outra obra, o “Ossian” de Macpherson, também é bastante condenada, mas por outro motivo: por ser uma obra forjada, uma falsificação. Macpherson ganha uma bolsa

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Para mais informações sobre a fonte de Galland para o conto de Aladim e a Lâmpada

Maravilhosa, ver a introdução de John Payne à sua obra Alaeddin and the Enchanted Lamp and other stories disponível em www.wollamshram.ca/1001 /Payne/aladdin/p 13 index.htm , onde há trechos extraídos do diário de Galland que informam sobre seu encontro com um maronita de nome Youhenna Diab -"Hanna" — e as contribuições deste para o seu trabalho.

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da universidade para viajar pela Escócia, e assim recolher e traduzir manuscritos que encontrasse, como forma de resgatar as origens literárias da Escócia, quem sabe encontrar o seu épico, e promover uma valorização nacional. Sabemos que o Romantismo é geralmente ligado a tal sentimento nacionalista. No Brasil, elege-se o passado pré-colombiano e o herói aborígine: o índio. Na Inglaterra, Escócia, Irlanda e Gales elege-se o passado celta e às vezes até o passado dos invasores nórdicos. Macpherson retorna de suas pesquisas com a "tradução" cuja autenticidade foi logo questionada, descobrindo-se a farsa: a autoria de Fingal era do próprio Macpherson e não do bardo Ossian. E este Fingal do título é o lendário Finn, da cultura celta, que, junto com seus guerreiros — os Fiana — formaria uma espécie de arquétipo de Rei Arthur e seus cavaleiros.

Tanto Galland como Macpherson, foram resgatar restos mortais que se perdiam e se depararam com seu próprio nascimento, vivo, esplêndido, imortal, infinito. Esse renascer de algo que aparentemente está morto, nos leva ao pensamento de outro poeta romântico, o alemão Friedrich Hölderlin, quando associa "espírito" a "fermento" como nos mostra a sua tradutora Márcia de Sá Cavalcanti:

Por espírito, Hölderlin tinha sempre em mente a etimologia proposta por Leibniz segundo a qual Geist deriva-se de Gest, fermento, palavra que sobrevive correntemente nas línguas escandinavas (jäst). A relação viva com a língua morta é, portanto, o mistério de uma fermentação.O que ocorre numa fermentação é que da morte acontece vida. (CAVALCANTI, Márcia C. de Sá. "Introdução: Pelos caminhos do coração". In: HÖLDERLIN, 1994:13)

Por isso é interdito o contato com os mortos. Tocar no cadáver é contaminar-se também com esta vida que está na morte. O Romantismo vai desafiar esse interdito dos

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mortos, e, junto com ele, dos fantasmas e dos seres sobrenaturais e malditos. A partir do corpo putrefato do passado, fermenta aos olhos dos românticos a vida dos antigos saberes e seres. A sua "liberdade romântica" libertou os seres antigos, gênios aprisionados em garrafas, lâmpadas e anéis de tempo, não por Salomão, mas por uma interdição voluntária, ou involuntária, dos homens que se mantém até hoje — e enquanto predominarem os valores trazidos com o letramento — e que, exatamente por isso, continua a nos "tentar" a tocá-los e libertá-los.

O Romantismo deu-se, portanto, como um grande contato com o interdito, uma grande festa pagã. Resgatando, entre outros, mitos adormecidos de um passado celta pagão ou a religiosidade viva da cultura muçulmana, com sua outra lógica, outra ordem, a poesia romântica se depara com outros deuses — ou outro "O Deus" — outros heróis e reinos, reinos do submundo, com seres do submundo, djins. Está garantido o fascínio pelo sobrenatural. São inúmeros os contos de vampiros e outros seres fantásticos que possuem, de alguma forma, estreita relação com o mundo dos mortos. O romântico é um necrófilo, mas ama o tema da morte justamente por aquela sua fecundidade mencionada anteriormente. O vampiro é um undead imortal, só quando morre pode renascer para uma juventude sem limites, eterna. Este tema, que se encontra na cultura celta, onde há o reino da juventude eterna (e Ossian penetra-o), encanta também os sempre jovens poetas românticos; eles também, assim como heróis do passado, chegaram a esse mundo subterrâneo que os fez conhecer a imortalidade na juventude. Do contato com a morte ou do contrato com demônios (como em Fausto) surge ou ressurge este espírito sempre jovem de um movimento livre para o culto interdito de deuses, demônios, amores e aventuras fantásticas.

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O olhar do Romantismo para o passado medieval, proporcionou-lhe uma imagem caleidoscópica, pois a Idade Média é um vórtice de tempo para onde convergem as mais variadas culturas e que continua aberto desde que a curiosidade romântica o (re)descobriu. Éramos muito mais globalizados naquela época porque o fenômeno dava-se não só espacialmente (e, talvez, nem mesmo hoje se verifique uma integração espacial de tamanha proporção), mas temporalmente também. Além disso, nesse mundo medieval cabiam outras duas complexidades fundamentais: o convívio conflitante entre o cristianismo já fortemente consolidado e a memória de uma época/épica pagã — trazida muitas vezes ao conhecimento do povo por homens da Igreja; e o convívio harmonioso entre oralidade e escrita. Mantendo todas estas conexões, podemos encontrar as duas classes de narradores identificados por Walter Benjamin em "O Narrador": o viajante — que difundia e alargava sua experiência pelos lugares visitados; e o sedentário, que memorizava e anunciava o conhecimento passado de geração a geração na cultura de que era parte. O novo e o antigo, o solitário e o viajante.

De qualquer forma, este contato com a Idade Média — porta de todos os outros contatos — não pode ser explicado de outra maneira se não por essa "liberdade romântica". A liberdade, bem mais profunda, que se operou, como pela primeira vez, no espírito romântico, foi um modo de lidar com a poesia totalmente livre, resgatando práticas há algum tempo esquecidas e, mais verdadeiramente, interditas.

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VERDADE, HISTÓRIA E MITO

Borges, a propósito da Divina Comédia contrapõe, à intimidade com o sobrenatural que detinha Dante – e talvez a maioria de seus contemporâneos – a incredulidade sentida em outros relatos:

Entramos, então, no relato, e entramos de um modo quase mágico, pois atualmente, quando se conta algo sobrenatural, isso é feito por um escritor incrédulo que se dirige a leitores incrédulos e que tem de preparar o sobrenatural.(BORGES, 1999: 230)

Poderíamos dizer que, mais do que a intimidade com o sobrenatural, o que se perdeu foi a intimidade com a Verdade. De fato, o que houve foi uma distorção do seu sentido primordial, visto que cada vez mais ela se confunde com documento histórico. E esta distorção se deu através de um novo modo de pensar inaugurado pela escrita, dos conceitos, das abstrações.

Quase poderíamos fazer uma analogia com o que se passa em algumas sociedades estudadas por Mircea Eliade em sua obra Aspectos do Mito:

Acrescentemos que, nas sociedades em que o mito ainda está vivo, os indígenas distinguem cuidadosamente os mitos – ‘histórias verdadeiras’ – das fábulas ou contos, a que chamam ‘histórias falsas’. (ELIADE, 1986: 15) (...) Enquanto as ‘histórias falsas’ podem ser contadas em qualquer ocasião e em qualquer lugar, os mitos só devem ser recitados durante um período de tempo sagrado (geralmente durante o outono ou Inverno e apenas à noite). (IDEM, ibdem: 16)

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Quase poderíamos, mas não podemos. O Mito não está mais vivo em nossa sociedade, nem distinguimos “histórias verdadeiras” de “falsas”. Julgamos o que se constitui como História e o que não se constitui como tal. Atribuímos, agregamos valor, supervalorizamos uma em detrimento da outra.

A escrita acaba por criar uma contradição perturbadora: a crença absoluta no documento escrito ao lado de uma predisposição para um estado de incredulidade, uma apatia diante do discurso poético, mesmo que já distante de suas origens orais. Isso se dá porque, com o pensamento letrado, separaram-se manifestações artísticas antes profundamente interligadas. Religião, Poesia, e História (para falar de maneira simples) atuavam juntas na formação e preservação cultural de comunidades orais, assim como, num outro plano, não se poderiam dissociar recitação, canto, dança, representação, música, relato, rito. E, para ilustrar com um exemplo simples, podemos dizer que conhecemos o passado viking porque conhecemos as suas Sagas, e, como letrados que somos, distinguimo-las em Sagas históricas e Sagas populares. Mas não há dúvida da presença da história – ou da História – nas populares, nem da poesia – ou “fantasia” – nas históricas.

Para uma sociedade altamente letrada como a nossa é difícil entender a complexidade e o hibridismo das manifestações mantenedoras do saber e da experiência. Quando encontramos, num mesmo discurso, poesia e religiosidade, classificamos como “mitologia’, da mesma forma, quando nos deparamos com a mistura de religiosidade e história, ou de poesia e história, atribuímo-lhe classificações como “fábula”, conto “maravilhoso”, todos quase sempre com sentido pejorativo. Daí também, e para voltarmos ao texto de Borges, nascem os termos “fantástico”,

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“sobrenatural”. Se ainda hoje concebêssemos Verdade como Presença, jamais poderíamos pensar em algo sobre-natural visto que a verdade não está além ou aquém da natureza, do natural.

“Romântico” (e, da mesma forma, “medieval”) é também um desses termos pejorativos – carregados de más intenções – surgidos a partir desta desconfiança da própria verdade da arte. Porque o Romantismo, mesmo sendo já do início de uma era científica, e, por isso, não conseguindo – apesar do empenho – tratar com tanta naturalidade o “sobrenatural”, resgata de alguma forma este conhecimento original de verdade interdito pela escrita. Assim, somos “românticos” quando desafiamos os interditos, quando nos libertamos da dúvida e da dívida que insistem em se infiltrar nos híbridos, complexos domínios da arte.

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A ÁRVORE DO SAGRADO MOVENTE E A PEDRA DO MEMORIAL SILENTE: A ESCRITA COMO MAGIA CRIADORA E COMO SILÊNCIO TUMULAR

A escrita é o duplo da fala. Nisso está a atual magia da escrita, magia resquício de seus antigos poderes mágicos de trazer à presença vida ou morte. A escrita de hoje ainda pode trazer de volta à vida, não a morte dos mortais, mas o silêncio da oralidade. É no velamento que se mostram os resquícios, ou se fazem ouvir os ecos de um outro modo de sentir a poesia, o mundo.

Da mesma forma, a pedra anseia ser o duplo da árvore, anseia abrigar em si o sagrado de seiva viva, movente não-muda. Com sua escrita gravada, quer ter a voz sagrada dos ramos ecoantes. A lápide, a escultura, o ídolo, os menires, a estela. O juramento pela pedra, o monumento, as ruínas.

As clareiras eram os templos dos antigos, erigidos pelas colunas vivas de árvores sagradas. Mais tarde “const-ruíram-se” templos, com pedras: para que ruíssem, com ruínas de pedras – os ossos da terra. O culto e seu ritual passaram a ser escritos como prática a serem seguidas e, portanto, esquecidas pela própria estaticidade da escrita, do registro, em acordo com a estaticidade da pedra que o suporta. Pois, a pedra é sempre in memoriam daquilo que já não é: seja uma vida humana, sejam a virtude e a fé.

O que se registra é sempre a fala de um determinado momento (sempre póstumo) e espera-se que esta fala seja para sempre proferida sem alterações, independente de construir ou não sentido para quem as repete. É o que já acontecia, por exemplo, nos rituais funerários egípcios após uma crescente popularização da escrita, ou da confiança na escrita (atestada, entre outros, pela proliferação de livros dos mortos). O

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que antes era proferido pelo sacerdote em êxtase, iniciado nos deuses, agora era lido por um “sacerdote-leitor”, iniciado apenas na escrita, que, bem diferente dos mistérios divinos, tornar-se-á um dia acessível a todos:

O sacerdote-leitor, cujo nome significa “aquele que transporta o livro-de-ritual”, é freqüentemente representado em templos e túmulos lendo um rolo de papiro, embora por vezes se encontre simplesmente em destaque nas cerimônias. A sua qualificação principal era um conhecimento dos costumes ritualistas que já não eram apenas uma questão de experiência e memória ao alcance de cada um dos participantes; isto é, o ritual já não era principalmente acessível diretamente através do armazém da memória societária (com o que não me refiro a nada de mais místico do que a memória dos velhos), mas indiretamente através dos livros. (GOODY, 1987: 53)

As coisas realmente importantes não podem ser de fácil acesso, não podem constituir-se num portal aberto a todos. É preciso morar junto a elas, demorar-se nelas, conhecê-las e respeitá-las. É preciso nascer para elas. Assim eram vistas todas as formas de sabedoria, e, principalmente o conhecimento religioso, os mistérios (lugar do silêncio). Mesmo os rudimentos de seu registro escrito eram cifrados, careciam de um conhecimento e memória orais prévios e seletivos. A leitura só poderia ser feita por quem compreendesse suas lacunas, seu ocultamento, o que para nós são as falhas de um texto, as omissões.

“A palavra que eu profiro me domina, mas a que eu não profiro é dominada por mim”. Este testemunho da sabedoria, encontrada no livro de Kalila e Dimna, testemunha-nos o respeito ao silêncio e a importância do não-dito. O silêncio, assim como o dom do discurso, devia ser aprendido e dominado com mestria.

Mas, mesmo a leitura, inicialmente, conservava ainda um caráter ritualístico próximo da oração. Rosalind Thomas nos dá dois exemplos, bem distintos e distantes, 60

mas que atestam nosso “recente” comportamento como não iniciados. O primeiro testemunha-nos a prática de leitura em voz alta numa Grécia recém letrada: “Um epitáfio realmente saúda o viajante em agradecimento por ter cedido sua voz ao nome do morto”. (THOMAS, 2005:89.)

O segundo, desvela-nos um sentimento do sagrado também com a escrita e que, infelizmente, também se perdeu: “Quando os primeiros livros impressos começaram a aparecer, alguns monges foram exortados a copiá-los à mão, com base na crença de que os textos impressos eram superficiais e careciam da dimensão espiritual apropriada a manuscritos iluminados.”(IDEM, ibdem:105)

Há vários exemplos de uma utilização mágica da escrita inicial (e iniciática), a começar pelo próprio nome dos símbolos gráficos. Todos tinham um significado, eram de fato o que nomeavam – um boi, uma casa, uma espada, uma árvore. Hoje não conseguimos mais sentir nenhuma proximidade de sentido com nossos não-símbolos alfabéticos – e é, como já se disse, isto que, para Havelock, constitui toda a revolução técnica do alfabeto grego e o que permitiu com que se inaugurasse definitivamente a linguagem abstrata. Antes deste evento crucial, entretanto, a escrita era concreta, era uma construção a partir de casa, boi, espada, chuva, etc. Mas era, também, mistério. Mistério que se guardava para poucos, que perseveravam em sua morada, os templos.

O significado da palavra “runa”, por exemplo: do antigo islandês rúnar = segredo; do antigo saxão runa = murmuro; e seus correspondentes celtas: irlandês rún/ galês rhin= segredo, mistério; daí sua origem mágica, como veremos adiante, fazer parte de uma iniciação.

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Os nomes das letras ogâmicas: “bétula”, “carvalho”, “abeto”, “teixo”, “freixo”, “aveleira”, todas árvores sagradas e dotadas de virtudes especiais para os celtas. As runas anglo-saxãs contavam também com seis nomes de árvores. Sabemos também que estas duas escritas eram inicialmente gravadas em madeira devido à sua constituição de linhas diagonais e sua utilização em jogos de adivinhações, com ramos de árvore.

Sobre o caráter sagrado do carvalho temos ainda o seguinte relato:

Parece que Donar, o predecessor de Tor, assim cmo o grego Zeus, era associado aos grandes carvalhos da floresta que cobria boa parte da Europa Ocidental. Os germanos, celtas (cujo deus do trovão era Tanaros), as tribos bálticas, e os eslavos, todos tinham bosques sagrados no interior da floresta, onde o deus do trovão era venerado. Grimm sugere que a ligação entre o deus e o carvalho era uma coisa prática, pois o carvalho era a árvore mais freqüentemente atingida por raios. A ênfase, porém, provavelmente deveria estar no fato de que quando um grande carvalho é atingido por um raio, a cena de sua destruição é algo inesquecível. (DAVIDSON, 2004: 72)

Nem sempre, portanto, a escrita configurou-se como o que é para nós, mero utensílio. A escrita já nos encantou com sua magia. A escrita já foi mágica, já foi gravada em madeira, corpo da árvore, mas que nem por isso deixa de se constituir com uma pouco de sua seiva orgânica. Os cristãos, quando perceberam a importância divina da árvore para os povos pagãos, trataram de derrubar, de silenciar, inúmeras florestas sagradas. É estranho, pois não é como apagar leis, derrubar monumentos erigidos em homenagem a antigos reis ou deuses ou ambos. É acreditar, ou sentir mesmo a força daquele ser sagrado aparentemente invisível, pois sem legenda, sem marcas, sem marco. Ao mesmo tempo, é um esforço inútil, pois as árvores regeneram-se como o próprio cosmos, como as gerações de deuses. A vida da árvore é como a do deus da regeneração que a cada inverno morre e depois ressuscita trazendo de volta a vida, a fertilidade, a

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abundância. Cada ramo de árvore florido ou com frutos é uma cornucópia da abundância sustentada pela grande deusa mãe de cada árvore.

Curiosamente, a pedra também já nos encantou como pedra — não como atributo “de pedra” —. Era, também, templo, habitação dos deuses. Até hoje algumas nos chamam a atenção por suas formas intrigantes, e há quem nelas distinga deuses, animais, gigantes, trolls. Há ou houve alguma vez pedras especiais, dotadas de essência divina, como a pedra que elegia os legítimos reis da Irlanda com seu brado, a pedra onde se cravou a espada de Arthur, ou seja, do legítimo herdeiro do trono, a pedra centro do mundo, o umbigo da deusa, ou as pedras-templo do Deus dos povos semíticos:

“Os árabes adoram pedras”, escrevia Clemente de Alexandria. (...) Pesquisas recentes demonstraram, no entanto, que os árabes pré-islâmicos veneravam certas pedras denominadas pelos greco-latinos baytili, termo de origem semítica que significa “casa de Deus”. (...) os baytili, no entanto, nunca foram adorados como pedras, mas apenas na medida em que manifestavam uma presença divina. (ELIADE, 1993:185)

Mas convém lembrar que (...) a pedra representava apenas um sinal, uma “casa”, uma teofania. A divindade manifestava-se por intermédio da pedra ou – em outros ritos – devia testemunhar e santificar um pacto concluído na sua vizinhança. (...) Após ter concluído o pacto entre Jeová e seu povo, Josué “agarrou em seguida uma grande pedra e pô-la debaixo do carvalho que estava no lugar consagrado ao Eterno. E Josué disse ao povo: ‘Aí está a pedra, que servirá de testemunha contra nós; porque ela ouviu todas as palavras que o Eterno nos disse, ela servirá de testemunha contra vós, para que não abandoneis o vosso Deus!’”. (IDEM, ibdem:186-7)

Aqui podemos perceber dois aspectos que nos interessam: a convivência da pedra com a árvore, anteriormente o único símbolo de consagração ao deus (o carvalho

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sagrado). A pedra, assim como as fontes, vão aliar-se às árvores como altares, como lugar de consagração e não é difícil ver uma fonte sagrada ao pé da árvore sagrada, assim como a pedra monumental à sombra de uma árvore. Estes três elementos constituem uma espécie de microcosmo sagrado:

A pedra representava a realidade por excelência: a indestrutibilidade e a duração; a árvore, com sua regeneração periódica, manifestava o poder sagrado na ordem da vida. No lugar onde as águas vinham completar esta paisagem, elas significavam os estados latentes, os germes, a purificação.(ELIADE, 1993:219)

Outro aspecto é a função de testemunha adquirida pela pedra, mas uma testemunha silenciosa onde o silêncio tudo comunicava pela própria presença erguida da pedra nua, sem inscrições. Sua presença monumental dizia-se e manifestava por si só como testemunha e testemunho de algo memorável, pois que a pedra é o próprio ser da memória, do memorial. Mais tarde, somente mais tarde, inscreveu-se na pedra o testemunho que ela por si só manifestava, talvez por nosso esquecimento da pedra como local sagrado, como casa de Deus. Profanamo-la com a nossa escrita, erigindo pedras de leis e memoriais, erigindo o que desde antes era ereto, vigoroso.

No início, contentavam-nos suas formas exóticas, aproveitávamos sua imponência e elevação, a geometria geológica de cada uma, singularmente, para então gravar a inscrição. Sua posição, nicho e forma eram preservados. Em seguida, passou-se a “criar” pedras, retirando-as de seu lugar próprio e lapidando-as mais uniformemente, ou mesmo fabricando-as com tamanho e formato de acordo com a necessidade. R. Thomas atesta que só tardiamente usou-se registrar documentos em lascas finas de pedra. “(..) o uso de lascas de pedra para a escrita derivou do uso anterior de grandes pedras como marcos não-inscritos ou apoios mnemônicos.” (THOMAS, 2005: 121)

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Assim também só mais tarde adorou-se o ídolo “de pedra”, a escultura, e não a própria pedra-pedra:

“Se recuarmos ainda mais no tempo”, escreve Pausânias, “veremos todos os gregos prestarem homenagens divinas não a estátuas mas a pedras não trabalhadas(argoi lithoi).” A figura de Hermes é precedida de uma pré-história longa e confusa: as pedras colocadas à beira dos caminhos para “protegê-los” e conservá-los chamam-se hermai; só mais tarde é que uma coluna itifálica com uma cabeça de homem, um hermès, passou a ser a imagem do deus. Assim, antes de se tornar, na religião e na mitologia pós-homérica, a “figura” que é conhecida, Hermes era apenas uma teofania de pedra. Esses hermai significavam uma presença, encarnavam uma força, protegiam e fecundavam ao mesmo tempo. A antropomorfização de Hermes é o resultado da ação corrosiva da imaginação helênica e da tendência que cedo tiveram as pessoas para personalizar cada vez mais as divindades e as forças sagradas. (...) O grego figurou de formas diferentes, no decurso do tempo, as suas experiências e os seus conceitos. Os horizontes do seu espírito ousado, plástico e fértil alargavam-se e, nestes novos cenários, em que perdiam a sua eficiência, as antigas teofanias perdiam também o seu sentido. Os hermai manifestavam a presença divina apenas àquela consciência que recebia a revelação do sagrado de uma maneira imediata, em qualquer gesto criador, em qualquer “forma” ou “sinal”. O próprio Hermes se separou da matéria; a sua figura tornou-se humana, a sua teofania tornou-se mito. (ELIADE, 1993: 190-1)

Passa-se do marco sagrado da árvore do deus para o ídolo de pedra ou mesmo a pedra bruta e fria de adoração – as esculturas de ídolos. Se são as pedras os ossos da terra, como viam os gregos, são, portanto, restos mortais. E é nesses restos que o homem vai gravar um conhecimento que antes lhe sopravam os ramos audíveis das árvores. Assim, surge o culto da imagem e da palavra escrita, e com ele, o culto da verdade como documento escrito, gravado, fixado, rígido.

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A esta História “científica” chamamos também história verdadeira. E se não cunhamos de falsa a literatura, a poesia, é porque temos inúmeras outras atribuições que a substituem de maneira mais específica como “fábulas”, histórias “de aventuras”, conto “fantástico”, “maravilhoso”, etc.

Já foi dito que todo novo fazer, toda nova criação necessitava de um mito de criação, tinha uma explicação mítica e que com a escrita se deu da mesma forma. Geralmente ela é um presente dos deuses aos homens, criação/fruto do sacrifício de um deus, como o que se verifica na mitologia nórdica:

No poema Hávamál, Odim aparece dependurado na árvore do mundo, o freixo Yggdrasill, perfurado por uma espada (...):

Sei que fiquei pendurado na Árvore fustigada pelo vento, Por nove dias e noites Fui espetado com uma lança E entregue a Odim, Eu, entregue a mim mesmo...

Esse é um sacrifício voluntário, e seu propósito é a aquisição de conhecimentos secretos, ocultos, pois o deus é capaz de olhar para baixo da árvore e levantar as runa que representavam a cultura da magia....

Não ma ajudaram Dando-me de comer ou beber. Olhei para baixo, Apanhei as runas, Gritando, eu as apanhei – E então, caí. (DAVIDSON: 122)

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Temos aí novamente a árvore como fonte de conhecimento e recolhimento, templo de um conhecimento que, oculto em suas raízes, só é desvelado para quem se põe à prova de merecimento, prova esta pela qual até um deus deve passar.

Porque o surgimento de escrita está sempre muito próximo à vigência de um tempo em que todas as manifestações, sem exceção, estavam carregadas de significado, plantas, animais, a pedra, a água e, principalmente a palavra, o sopro. A escrita inicial é herdeira direta da voz, do canto, é sempre um eco de canto. Daí, como registra mais uma vez Thomas: “A confiança de Safo na sobrevivência de sua poesia reside em sua continuação na canção, não em sua existência como texto escrito (fr. 193 L-P; fr. 55 LP).” (THOMAS, 2005:159)

Por isso, não deveríamos distinguir prosa e poesia, mas, sim, canto de não-canto. O que permanece e ecoa como música, do que se apaga. O que apenas transmite, e como transmissão pode ser esquecida, cortada, interrompida, do que sempre reatualiza e traz à presença. Isso, no entanto, está além de nossos julgamentos, isso se mostra através dos tempos, é “invisível aos olhos”, escapa a uma simples análise, mas, no entanto, podemos senti-lo, com o coração e com entusiasmo.

A escrita como magia que permanece em nossos dias é a que sempre cantará, em voz alta, ecoante como os ramos de uma árvore, bem distinta do documento, da rigidez mórbida de pedra. A arte, em todas as suas manifestações, reatualiza e experimenta o ciclo de regeneração dos organismos vivos. Nada mais sem propósito do que a preocupação em ser atual na arte, em ser contemporâneo, moderno, “à frente do nosso tempo”. O nosso tempo não basta, é limitado, não serve de comparação à idade da arte.

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Sua idade é o próprio tempo nascido com ela, e que ela transcende. Ou como, finalmente, nos sugere Eliade:

Quase poderíamos dizer que o conto repete, num outro plano e por outros meios, o cenário iniciático exemplar. O conto retoma e prolonga a ‘iniciação’ ao nível do imaginário. Este só constitui um divertimento ou uma evasão para a consciência banalizada e nomeadamente para a consciência do homem moderno; na psique profunda, os cenários iniciáticos conservam a sua seriedade e continuam a transmitir a sua mensagem e a operar mutações. Sem dar por isso, e imaginando divertir-se ou evadir-se, o homem das sociedades modernas beneficia ainda desta iniciação imaginária fornecida pelos contos. Poderíamos, então, interrogamo-nos se o conto fantástico não se terá transformado muito cedo numa ‘réplica fácil’ do mito e do rito iniciáticos, se ele terá tido esse papel de reactualizar as ‘provas iniciáticas’, ao nível do onírico e do imaginário. Este ponto de vista só surpreenderá aqueles que consideram a iniciação como um tipo de comportamento exclusivo do homem das sociedades tradicionais. Hoje em dia, começamos a verificar que aquilo a que chamamos ‘iniciação’ coexiste com a condição humana, que toda a existência é constituída por uma série ininterrupta de ‘provas’, de ‘mortes’ e de ‘ressurreições’, seja quais forem os termos de que a linguagem moderna se serve para traduzir estas experiências (originariamente religiosas). (ELIADE, 1986:167)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O animal é mudo, sem mundo. Nós temos voz e o criamos, o mundo. Porque a temos, trazemos conosco a origem do mundo, o Verbo (os mitos, por serem poéticos, carregam sempre a verdade). A origem está no homem; ele, contudo, dela se afasta, ao se afastar da oralidade do verbo, ao se descuidar do cuidado com a Memória. Passa de criador a criatura atônita, perdida num mundo que a engole. Por isso, os homens atônitos recolhem-se na floresta, nus, guardados em sua própria origem, em seu templo memorial.

A floresta é Templo, a pedra, o Tempo. Assim, também o homem atônito recolhese em cavernas. Sempre houve essa necessidade de recolhimento motivada por uma recusa dos fatos “reais”, da História, verdadeira, documental – Merlin, Lancelote, Zaratustra, Gilgamesh e todos os ditos “loucos”, encetaram por essa vereda e sacerdócio da Verdade, cujo templo é o silêncio verde das árvores, a umidade muda da pedra. Elementos utilizados e desgastados para o registro, redimem-se quando lhes são prestadas as devidas homenagens de permanência e silêncio. Deixam de ser suportes, tornam-se altares. Não suportam mais o peso do trabalho do homem, agora se elevam à contemplação de seus ramos ou de sua textura. Sua textura, que é tecida desde o sempre da Memória, cujas marcas são vivos testemunhos de Verdade. Não são gravações, gravuras, inscrições que ferem sua trama natural. Estas marcas, como as listras de um tigre, são únicas, fascinantes, circulares. Cíclicas, não se repetem como acontece à História, moram sempre em sua origem, mordendo sua própria cauda.

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Templo é um lugar de Memória. Tempo é a memória do próprio Tempo. Tempo e Templo constituem-se como ruínas circulares onde o homem presta culto à sua própria origem encontrando-se consigo num movimento circular cuja imagem mais freqüente é a do ourobouros. Aproximar-se da origem é um empenho de devoção, digamos, religiosa, pois é, ao mesmo tempo, um afastamento do Século, deste tempo medido que se quer “o” Tempo, mas nada diz deste. Este encontro circular de Templo-Memória com o Tempo se dá pela recusa de um tempo repetitivamente medido para uma aceitação de um tempo cíclico. A História repete-se, a Verdade, não. Encontrar a Verdade é uma epifania do Deus único, mas circular, forma perfeita. Por isso, o círculo como arranjo de diversas ruínas que atestam cultos e sacrifícios: as clareiras, os menires, o anel.

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