O Ecomuseu do Montemuro-Paiva. Organização Sistémica de um Museu Integrado

June 9, 2017 | Autor: J. Abreu | Categoria: Museology
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José Guilherme Abreu

O Ecomuseu do Montemuro-Paiva Plano de Organização Sistémica de um Museu Integrado

Dissertação                   Curso de Pós-graduação em Museologia e Património

Universidade Lusíada de Lisboa Orientação: Profra Doutora Natália Correia Guedes

L’ Écomusée n’ est pas visité, il est vécu. Pierre Mayrand L’ écomusée de Haute-Beauce, 1984

Introdução

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O conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito, porquanto estas resultam de uma construção efectiva e contínua, nem nas características preexistentes do objecto, uma vez que elas só são conhecidas graças à mediação necessária dessas estruturas, e que estas, ao enquadrá-las, enriquecem-nas (quanto mais não seja para situá-las no conjunto dos possíveis) Jean Piaget, Epistemologia Genética, 1970

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Constitui objecto da presente dissertação analisar, discutir e resolver algumas das questões que se colocam à elaboração do programa de um hipotético ecomuseu integrado, a criar no território do Montemuro-Paiva, definido pelos limites actuais do Município de Castro Daire. No nosso ponto de vista, a instalação de um ecomuseu justifica-se, quando um determinado território e uma população são detentores de marcas cuja sobrevivência se encontra ameaçada por lenta asfixia ou por violenta transformação, e se coloca assim em risco o direito fundamental à manutenção das suas particularidades, com isso sacrificando testemunhos necessários à investigação. Por isso, parece-nos importante fazer preceder a instalação de um ecomuseu da elaboração de um plano de reconhecimento global do território, do património e da comunidade em causa, para em seguida, partindo da avaliação de algumas experiências realizadas no nosso pais neste domínio, definir as premissas conceptuais do projecto museológico, as acções de preservação a empreender, o tipo de actividades cujo desenvolvimento se julga ajustado e pertinente para a região, a(s) disciplina(s) base, as estratégias de investigação, o modelo orgânico, a metodologia preconizada, as funções museais, os corpos administrativos e as suas formas de interacção com o exterior, numa perspectiva de reforçar o vínculo da comunidade ao seu território Elaborar esse plano é, portanto, definir o seu programa. Um programa que assente em objectivos e estratégias pertinentes de perspectivar e interpretar a dialéctica que, ao longo do tempo, uma comunidade e o seu território vão estabelecendo entre si. Um programa que reconheça nos princípios que constam na Definição Evolutiva de Ecomuseu de Georges Henri Rivière (1897-1985), uma referência dinâmica fundamental. Um programa fundado no pressuposto do envolvimento activo da comunidade nos diferentes níveis em que se processa a actividade museal, pois como diz Gerard Collin, “c’est la participation de la population qui fonde la «légitimité» de l’écomuseé”a. Um envolvimento que não se restrinja à informação e doação, mas que se estenda aos planos da divulgação, dinamização e decisão, relacionados com o arranque e consolidação do projecto museal, na expectativa de promover, em resultado da sua acção, o desenvolvimento social e económico da comunidade, em harmonia com a sua identidade. No presente caso, o território do Montemuro-Paiva apresenta um relevo montanhoso irrigado por uma significativa rede hidrográfica, compondo um cenário natural que a acção humana, ao longo dos séculos, transformou numa paisagem rural de matriz agro-pastoril, onde se pode descobrir um património importante e nalguns aspectos singular. Sobre este ponto, fundamentamos o nosso parecer, por um lado, no contacto directo e regular que ao longo dos anos temos estabelecido com a região, motivado pela ascendência familiar e pela experiência docente em início de carreira, e, por outro, na opinião sustentada por vários autores de reconhecido valor, que serão citados ao longo do trabalho, entre os quais, de imediato, gostaríamos de destacar o Dr. Aarão de Lacerda - que publicou uma belíssima monografia sobre a Ermida do Paiva, em 1919 - e o Profor. Amorim Girão - que publicou um estudo exaustivo sobre a Serra do Montemuro, em 1940 - pelo pioneirismo e qualidade das investigações que a

In, La muséologie selon Georges Henri Rivière, Dunod, Tours, 1989, p. 323

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ambos conduziram, as quais denotavam já uma certa componente interdisciplinara, alicerçada no conhecimento, in loco, dos respectivos objectos de estudo, num período de difíceis deslocações, como se poderá facilmente adivinhar. Também José Leite de Vasconcelos, Fernando Galhano, Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira e Jorge Dias, para citar somente os nomes mais conhecidos no campo da etnografia e da etnologia, publicaram trabalhos que são hoje referência obrigatória sobre esta matéria, onde sublinham as especificidades da região, no que toca, por exemplo, às alfaias agrícolas e artesanais, às técnicas de construção dos telhados de colmo das habitações tradicionais do Montemuro, à transumância, ao cancioneiro popular, ou, segundo um estudo mais recente realizado por um historiador local, inclusive, à existência de um verbo próprio, falado entre os pedreiros da vila de Cujó, como veremos. Destes e doutros estudos, ressalta a ideia da existência de um vasto património natural e cultural, material e imaterial, tradicional e até industrial, que importa preservar, valorizar e porventura viabilizar, face às crescentes investidas de carácter uniformizante, prosseguidas pelo progresso tecnológico e pelo crescimento económico, que, em regra, convivem mal com práticas ancestrais de que tendem a fazer tábua rasa, reduzindo a pó o facies da ruralidade. É isso que, sem querer dramatizar, julgamos encontrar-se iminente em toda a região. A abertura próxima do IP3, que cruzará de Norte a Sul o Concelho, irá certamente abrir novas frentes de urbanização, operando, a longo prazo, uma provável redefinição dos centros de actividade e de lazerb, com isto ameaçando desertificar ou concentrar o povoamento, de acordo com o jogo das conveniências imediatas, do que previsivelmente resultará a adopção de padrões culturais, estéticos e comportamentais de carácter progressivamente citadino, afirmando uma tendência cujos vectores mais visíveis são o boom vertical dos edifícios e o correlativo boom horizontal das vias de comunicação, como expressão mais brutal da presente campanha de generalização de uma revolução económico-cultural, em termos patrimoniais, bem mais demolidora para a região, do que a própria revolução industrial, directamente, alguma vez chegou a serc: a era do consumo de massa. Irá sucumbir o mundo rural? Dever-se-ão estabelecer limites para o crescimento das comunidades rurais? Será possível harmonizar consumismo e ruralidade? Que deverá preservar-se, e como poderá preservar-se?

a

No caso da monografia sobre O Templo das Siglas, Aarão de Lacerda chegou mesmo a consultar, a propósito do nome Roberto do presumível fundador da Ermida do Paiva, ouçâmo-lo dizer, “a grande romanista Ex.ma Sra D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos que se dispôs imediatamente a esclarecer-me” - op. cit., p. 40.

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O PDM, aprovado em 30 de Junho de 1994 pela Assembleia Municipal de Castro Daire, e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 111/94 de 29 de Setembro do mesmo ano, classifica os centros urbanos em três níveis hierárquicos: centro concelhio (Castro Daire), centro subconcelhio (Termas do Carvalhal) e restantes aglomerados urbanos, ultrapassando ocentro subconcelhio muitas outras povoações com maior área edificada e maior população residente, como acontece por exemplo com a vila de Mões, povoação que foi concelho até 1855. Facto é que o IP3 passa ao lado das Termas do Carvalhal, estando prevista a construção de um nó (ver mapa).

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Como procuraremos demonstrar, a industrialização não chegou a afectar directamente a região, uma vez que os dois elementos fundamentais da sua propagação, o comboio e a mecanização da produção, nunca se instalaram verdadeiramente aqui, por razões que se prendem com as características geográficas e sociais do município.

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A museologia, nas últimas décadas, tem procurado responder a estas questões, de uma forma inovadora e empenhada. Actualmente, nenhum museólogo atento à realidade circundante, estranharia a decisão de se programar a realização de um ciclo de exposições temporárias, de colóquios ou de debates, cujos temas recaíssem sobre questões como as que foram acima formuladas, exposições e actividades essas que poderiam ser organizadas por qualquer museu local, cujo programa científico estabelecesse como disciplina base a etnologia, e definisse como política prioritária sua, utilizar o discurso expositivo, no sentido de levar a comunidade a reflectir sobre questões que lhe são comuns. Aprofundando esta linha de conduta, a Nova Museologia tem inspirado o desenvolvimento de programas e de projectos museais de âmbito local, como forma de promover, no terreno, o estudo das culturas tradicionais, colocando-se no campo da própria pesquisa, numa reacção contra a museologia clássica, marcada pelo peso e formalismo, quando não elitismo, das instituições estáticas. Mas esta viragem - esse corte epistemológico - traduz um esforço recente que não carece de problemas e de indefinições. Basta referir, de passagem, a controvérsia relacionada com a definição do estatuto e da tutela destes museus, a sua relação com os poderes públicos, as questões relacionadas com o financiamento, os moldes em que se deve processar a participação das populações, a política de aquisições, o reconhecimento científico das investigações, a controvérsia das musealizações, etc, etc. Estas e outras questões são objecto de abordagem e de apreciação desigual, por parte de museólogos e personalidades implicadas na ecomuseologia e nos chamados museus de sociedade. Tudo se passa como se a quantidade, a diversidade e a complexidade dos novas hipóteses de actuação que se oferecem presentemente à actividade museal, colocassem o museólogo perante o desconcertante imbróglio, de ao mesmo tempo que assiste a uma profusão das modalidades de intervenção - musealização do território e/ou da paisagem, criação de museus in situ, história ao vivo, contextualizações, realização de exposições temporárias, itinerantes e interactivas, kits, museobus, arqueologia industrial, museus de ar livre e ecomuseus - igualmente verificasse que, na generalidade, esse boom não é acompanhado por um desenvolvimento equivalente no domínio dos meios, dos métodos e dos modelos que permitem coordenar e integrar, por via de uma teoria comum, a função do museu e o trabalho do museólogo. Tudo se passa como se a avalanche da complexidade, colocasse a museologia à beira de uma crise de crescimento. Como levar a bom termo a fragmentação do museu? Como organizar e desenvolver a interdisciplinaridade? Se o ecomuseu interpreta um território, uma comunidade e um património, como conceber e integrar, no espaço, as estruturas físicas - núcleos, itinerários e sítios - e como programar e coordenar, no tempo, as funções culturais - conservação, investigação e formação - articulando-as em torno do objectivo central, do museu se constituir como espelho da complexidade, que um território e uma população vão assumindo ao longo do tempo, fazendo-o com um mínimo de custos e um máximo de resultados, e agindo de acordo com procedimentos cujo rigor científico possa ser reconhecível? Estas questões conduzem-nos directamente ao ponto central da nossa tese. Para a nova museologia poder considerar-se um ramo científico da museologia ou, se se preferir, poder constituir-se como conhecimento cientificamente orientado, como julgamos talvez preferível dizer-se, presentemente ela carece de uma actualização metodológica, assente numa base fiável e irrefutável, 7

que possa funcionar como instrumento conceptual, capaz de gerar modelos integradores da complexidade que cada sociedade assume, quer na sua relação com as outras que a antecederam no tempo, quer com as outras com que se relaciona no espaço. Esta metodologia já existe: é a abordagem sistémica. No texto que foi lançado como base de discussão, para os debates que ocorreram durante o I Atelier Internacional, subordinado ao tema Ecomuseus/Nova Museologia, realizado no Québec, em Outubro de 1984, encontra-se, de passagem, uma referência a este tipo de abordagem, onde é sugerida a sua adopção, e surge caracterizada, nos seguintes termos. Os sublinhados são nossos:

“L’interdisplinarité est de rigueur: A l’encontre de la spécialisation et de l’hermétisme des musées conventionnels, la nouvelle muséologie préconise une approche interdisciplinaire, une approche horizontale dans le veine de la méthode systémique d’analyse des phénomènes et situations sociales. Toutes les sciences sont utilisées comme un faisceau de lumière pour balayer l’inconnu, les préjugées, les erreurs... Au lieu de regarder l’infinement petit, l’ínfinement loin, l’infinement précis, l’aproche systémique regarde l’infinement complexe avec les yeux de tous les savoirs, qu’ils soient scientifiques, empiriques ou pragmatiques.”a

À problemática da utilização da abordagem sistémica pela museologia, dedicámos, por isso, uma secção da nossa tese, onde os conceitos relacionados com os aspectos estruturais e funcionais de todo e qualquer sistema, como os de isomorfismo, equifinalidade, fronteira, elementos, reservatórios, redes, fluxos, tempos, comportas, retroacção positiva e retroacção negativa serão tratadosb, dentro de um enquadramento que julgamos pertinente para a museologia, muito embora não se possa esperar de uma tese, com as características e as limitações como aquelas a que esta se encontra sujeita, o grau de desenvolvimento e de fundamentação desejáveis, que unicamente um ensaio de especialidade, sobre este tema, que julgamos pertinente, poderia garantir. Definida por Joël de Rosnay como uma “nova metodologia que permite reunir e organizar os conhecimentos com vista a uma maior eficácia de acção”c, o emprego da abordagem sistémica, sendo correctamente esquematizado, poderá ajudar o museólogo, e a sua equipa, a encontrar soluções racionalmente válidas, para alguns dos impasses com que se deparam os responsáveis dos museus em geral, e dos museus locais, em particular. Logo à partida, como é sublinhado no documento preparatório do Atelier do Québec, em virtude da sua maleabilidade de aplicação, estabelecida que é como linguagem comum de diferentes ramos e modalidades do saber, a abordagem sistémica pode desempenhar, no contexto museal, um papel primordial na programação e prossecução da investigação interdisciplinar, assim como ajudar a planificar a

MOUTINHO, Mário C. - Museus e Sociedade, Cadernos de Património, Museu Etnológico do Monte Redondo, 1989, p.55.

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Para uma análise imediata, ver Anexo 1

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ROSNAY, Joël de, O Macroscópio. Para uma visão global, Lisboa, 1977, p. 77

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as relações e interacções dos diversos módulos, sistemas e subsistemas que integram, e em que se encontra integrado, o museu, em áreas que se estendem da programação à administração, e até como instrumento de ponderação dos critérios de optimização de meios e de custos, no âmbito das incontornáveis restrições orçamentais, com que em regra se debatem os museus locais. À parte a já mencionada referência do texto preparatório do Atelier de Québec, nem na Declaração final apresentada no final dos trabalhos, nem nas Actas do II Atelier Internacional de Lisboa de Novembro de 1985, subordinado ao tema Museus Locais - Nova Museologia, se encontra qualquer referência à abordagem sistémica, entre as proposições e recomendações apresentadas pelos três grupos de trabalho, entretanto reunidos. Consideramos esse facto lamentável. Se, como se refere nas próprias actas, se considera que “a fundação de museus locais em bases científicas levará os investigadores a considerá-los, por sua vez, como quadros e como instrumentos de trabalho”a, e mais adiante “a programação científica facilitará a elaboração de planos de financiamento”b, temos dificuldade em compreender como poderão os museus locais estruturar-se em torno de uma teoria e de uma prática comuns, sabendo, como nas próprias actas igualmente se reconhece, que estes estão sujeitos a uma “variedade de conteúdo e de meios segundo os contextos locais e/ou nacionais”a, se a sua programação, organização e dinamização de actividades de investigação e desenvolvimento comunitário, não se organizar a partir de uma abordagem comum, fiável e irrefutável, aos fenómenos sociais e culturais. Por inerência contrários à erudição, se por erudição se entender uma forma essencialmente retórica de conhecimento, só assim, poderão estes museus construir o seu prestígio científico, e tornar-se algo mais do que meros apêndices culturais das autarquias e restantes poderes públicos, sem uma coluna dorsal que os estruture e dinamize, em torno de objectivos e estratégias coerentes de efeitos visíveis. Mas a abordagem sistémica não interessa ao museólogo, apenas como auxiliar metodológico da organização e da dinamização museal. Para lá desse âmbito mais restrito, do seu emprego como matriz das múltiplas interacções com o exterior que o museu deve assumir no exercício normal da função social para o qual foi programado, a abordagem sistémica coloca ao alcance da equipa museal um instrumento, por assim dizer, de aplicação universal, que poderá funcionar como interface e transdutor entre o museu e a comunidade, animando um subsistema mediático, como elemento catalisador e regulador da comunicação multilateral que caracteriza a actual sociedade da informação, também aqui, reunindo, associando e restituindo, diferentes significados e representações, tendo como objectivo provocar ou promover determinado efeito social. Numa perspectiva sistémica, não existem, portanto, sistemas herméticos. Todos os sistemas sejam eles quais forem têm os seus inputs e outputs, e recebem do exterior um feedback de informações que utilizam e interpretam, para em seguida, em função do seu conteúdo específico, procederem aos ajustamentos internos necessários à manutenção do equilíbrio dinâmico que os mantém operantes. a

In, Actas do II Atelier Internacional de Museus Locais/Nova Museologia, Lisboa, 1985, p. 16

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Ibidem

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Facilmente se percebe, que muitas das questões que à partida se colocam ao museólogo - como perspectivar a participação das populações, como proceder à fragmentação do museu mantendo-o coeso e íntegro, como organizar e desenvolver a interdisciplinaridade, ou como estabelecer a relação com os poderes públicos - poderão ser encaradas e resolvidas numa perspectiva sistémica, sem comprometer os objectivos programáticos do museu, e sem colocar em risco uma existência, por natureza, perene, mas que a vulgar dependência a que estes estão sujeitos em relação aos poderes públicos e às suas variações conjunturais, pode determinar, assumindo dialecticamente o duplo compromisso de integrar materialmente e transcender simbolicamente o tecido social, e tornando-se, a vários níveis e em simultâneo, palco e motor de uma permanente e evolutiva interacção. Em síntese, ao adoptar a abordagem sistémica nas suas diversas aplicações e desdobramentos, o museu local oferece, em teoria, boas hipóteses de poder realizar o projecto idealizado por Georges Henri Rivière na sua definição evolutiva de ecomuseu, na medida em que, pelo funcionamento horizontal dos mecanismos sistémicos aí instalados, a cada momento ele confronta-se com a necessidade de se (re)converter dinamicamente, para se manter operante, e abre o caminho, queremos crer, para o nascimento de ecomuseus da 4ª Geração. b

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Destas considerações decorre a aplicação do conceito de ecomuseologia integrada, cujas primeiras formulações, reconhecemos na experiência de Fernanda de Camargo e Almeida-Moro, à frente da organização do Ecomuseu Integrado do Bairro de S. Cristóvão, situado na parte Norte da cidade do Rio de Janeiro, que aparece descrita no artigo São Cristóvão: l’écomusée d’ un quartier, publicado na já citada revista Museum, inteiramente consagrada aos ecomuseus. À parte a natureza do território, que em tudo difere daquele que estamos a tratar, quer em termos de metodologia de trabalho, quer em termos de formulação de objectivos, existe uma notória convergência de critérios e de intenções, relativamente àquilo que projectamos para o Concelho de Castro Daire. Efectivamente, mais do que o modelo francês, passe-se a expressão, mais facilmente adaptável a sociedades à partida mais ricas e mais instruídas do que a nossa, como por exemplo acontece com o Québec, parece-nos, neste aspecto, bem mais próximo e ajustável à realidade económica e social portuguesa, o modelo proposto pela, então, Presidente do Comité Nacional brasileiro do ICOM. Desde já, confessamos aqui uma preferência que entendemos alicerçada em factos concretos, e que exige uma justificação. Globalmente, o conceito adoptado por Fernanda Almeida-Moro e a sua equipa, é particularmente interessante pela abertura às diversas vivências da comunidade que promove e pela interpretaa

Op. cit., p. 18.

b

Cf artigo de François Hubert Les Écomusées en France: contraditions et déviations, publicado na revista Museum, nº 148 (vol XXXVII, nº4), 1985, p. 186.

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ção que delas, justamente, faz, garantindo, por isso, a adesão e participação do público-alvo e às actividades programadas. Na verdade, para criar um museu aberto à totalidade da população, não basta, no nosso ponto de vista, fragmentá-lo. Nada nos garante, só por isso, que a população se reconheça nele, e com ele interaja, emprestando-lhe vida, como retribuição natural da vivência das representações que o museu lhe proporciona. Ao recusar criar mais um espaço-instituição, F. Almeida-Moro dá um salto qualitativo fundamental, em termos de filosofia museológica. Na nossa opinião, somente a capacidade de percepcionar e esquematizar globalmente a realidade, ao mesmo tempo nos seus aspectos estruturais e funcionais, poderá explicar o êxito de um projecto, cujo programa teórico assentava na seguinte opção de fundo:

“Si cette fois nous avons souhaité nous appuyer sur les institutions, cella tient nom seulement à l’ immensité du quartier, mais aussi à notre volonté de les intégrer à notre travail, de former un tout homogène, propice à l’éboration de la vision interdisciplinaire qui doit présider à la collecte des éléments de la mémoire collective, autrement dit de former une cooperative de musées au service du quartier. Il était hors de question de créer, avec l’écomusée du quartier, une institution de plus; il fallait structurer notre écomusée en intégrant les institutions existantes.”a

Essa vivência é neste caso quanto a nós obtida pela circunstância de F. Almeida-Moro se apoiar num conceito de cultura de matriz antropológica, associando em pé de igualdade valorativa todos os domínios da actividade e da relação humana, passíveis de descoberta e interpretação. De facto, por causa de uma falta de sensibilidade antropológica, o museólogo muitas vezes, apesar de sabê-lo sob o ponto vista conceptual, esquece-se de que, no seu dia-a-dia e à sua volta, a cultura, ou se se preferir, as culturas, constitui(em) a regra, nunca a excepção. Além do mais, no Bairro de S. Cristóvão, a programação não se limitava a associar e sublinhar as diferentes actividades, relações e produções do humem e/ou da natureza. Para lá dessa componente objectiva, F. Almeida-Moro também associa e articula diferentes representações e significações de matriz estruturalista, cuja simbologia lhe é revelada, pelo conhecimento psicológico que a autora demonstra possuir da própria comunidade. Referimo-nos concretamente a uma passagem do artigo já mencionado, onde se pode ler:

“Le parc et les maisons du quartier donnent la vision de l’environnement, l’observatoire, celle de l’univers, le Musée national, celle du monde, le marché du Nordeste, une sensation d’enchantement pour tous et de nostalgie pour certains. Quant aux écoles de samba, elles génèrent la joie.”b

Um outro aspecto que julgamos importante salientar, é o facto da organização da prospecção e análise do território, da comunidade e do património, na prática, ter sido concebida e orientada, apoia

Op. cit., p. 238.

b

Op. Cit., p. 240.

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ando-se numa metodologia próxima da abordagem sistémica, mesmo se isso não chega a ser assumido formal ou conscientemente. Vejamos esta passagem. Os sublinhados são nossos:

“C’ est en général à São Cristóvão que l’enfant carioca établit sa première relation profonde avec le concept d’univers, avec l’environnement naturel, avec le passé. C’ est là, qu’ amené par ses parents, le petit enfant découvre ses choses fascinantes: l’imense parc de la Quinta da Boa Vista, le vieux bâtiment et les collections du Musée national, les coupoles argentés de l’Observatoire national «où la grande lunette permet de voir les étoiles». C’ est là encore qu’ il découvre l’imense Marché du Nordeste aussi bruyant que haut en couleur, où l’on peut apercevoir, entre des montagnes d’ objects et de nourriture, des chanteurs et des conteurs d’histoires. On y trouve aussi de giagntesques favelas agglutinées sur les pentes des colines, des églises qui ne désemplissent pas, des écoles de samba, dont on entend la musique, des firmes commerciales - grandes, moyennes et petites - qui s’allient à de puissantes industries.”a

O primeiro comentário que esta passagem, nos inspira, e que nos parece uma evidência, é que os elementos que F. Almeida-Moro no texto assinala, não constituem uma enumeração de tipo sistemático, isto é, eles não descrevem nenhuma série homogénea de entidades. Não sendo um enunciado com propósito classificatório, o critério que prevaleceu à feitura desta lista, decorre da aplicação de uma visão estrutural de matriz sociológica, como se cada um dos elementos referidos se tratasse de uma «peça de xadrêz», e exercesse uma função que decorre no tempo, dentro do espaço definido pelo «tabuleiro» a que corresponde o território do Bairro de S. Cristóvão. Estamos pois perante uma forma de perspectivar a sociedade, em termos gerais, concordante com a que caracteriza a abordagem sistémica. Tal como aqui, trata-se de um olhar horizontal, isto é, não hierarquizante, aquele que F Almeida-Moro lança sobre os vários elementos. Apoia-se em conceitos e teorias que reportam às ciências sociais e humanas, nomeadamente à sociologia, à antropologia e à psicologia. No fundo, «as peças» que a autora enumera, podem ser convertidas nos seus equivalentes sistémicos de índole estrutural, da seguinte forma:

a



Bairro de S. Cristóvão = limite espacial do sistema



Criança carioca = elemento-alvo



Quinta da Boavista = reservatório de elementos ambientais



Museu Nacional = reservatório de colecções museais



Observatório nacional = reservatório de imagens e de aparelhos astronómicos



Mercado do nordeste = reservatório de produtos e de tradições nordestinas



Favelas = reservatórios de pessoas e de vivências



Igrejas = reservatórios de fiéis e de materiais de culto



Escolas de samba = reservatórios de materiais e tradições carnavalescas



Lojas comerciais = reservatórios de produtos para venda



Indústrias = reservatórios de matérias primas e máquinas

Op. Cit., p. 237-238

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Mais a diante, prosseguindo a descrição do território, a autora refere outro tipo de aspectos. Tal como anteriormente os sublinhados são nossos:

“Finalement nous sommes arrivés à la conclusion que la communauté n’était pas uniquement formée de ceux qui habitaient le quartier mais qu’il fallait aussi prendre em compte ceux qui y travaillent et par conséquent l’utilisaient et y vivaient du lever au coucher du soleil, ainsi que les habitués du marché du Nordeste, musée animé du dimanche, où tous les habitants de Rio originaires du Nordeste se retrouvent pour passer cette journée.”a

Nesta passagem, F. Almeida-Moro introduz novos aspectos que também podem ser interpretados e equacionados sistemicamente. É justamente aqui, que se pode comprovar que a autora encara o seu território não só como sistema, mas como sistema aberto, envolvido num regime de trocas - inputs e outputs - que se estabelecem com o exterior. Facilmente se podem aí ver presentes os conceitos de fluxos e de tempos da abordagem sistémica, quando esta salienta os aspectos funcionais. Como para os aspectos estruturais, os seus equivalentes sistémicos seriam, agora, estes:



Entrada de trabalhadores vindos de outros bairros = fluxos (input)



Periodicidade da entrada de trabalhadores = tempos (diária)



Periodicidade de realização do mercado do Nordeste = tempos (semanal)

Mas para obedecer a uma matriz sistémica, um mecanismo fundamental falta referir, no que toca à determinação dos critérios de programação de actividades a serem desenvolvidas pelo museu e à interpretação dos seus efeitos na comunidade, com o fim de determinar, ou não, (re)ajustamentos subsequentes à programação inicial, por exemplo, tanto em relação aos tempos das próprias actividades, como mesmo em relação a uma alteração ou reforço das suas próprias premissas. Sob este aspecto a autora diz: “Nous avons donc eu recours a des expositions temporaires axées sur l’étude de thèmes déterminés: Le Carnaval de Venise, le gout aux temps de l’Empire, La route des Indes. Prolongeant les interrogations de la communauté, ces expositions avaient toutes comme thème fondamental le processus de l’ acculturation.”b

A interpretação desta passagem é, porventura, ambígua. O artigo que temos vindo a seguir não pretende ser um repositório sistemático da organização de um ecomuseu integrado, tão somente visa a divulgação sucinta de uma experiência nos seus traços gerais. Ainda assim, não pode haver dúvidas de que a programação do ecomuseu previu o estabelecimento de determinados mecanismos de

a

Op. cit., p. 238

b

Op. cit., p. 240

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participação e de influência da comunidade na programação das suas próprias actividades. O texto não refere se se trata de inquéritos, entrevistas ou do estabelecimento directo do diálogo com elementos da comunidade. Mas seja como fôr, é sempre de um anel de informação ou seja de um circuito de retroacção que se está aqui a tratar, e tanto é assim que, logo a seguir, fazendo o balanço dessas actividades, a autora diz:

“La communauté a été interpellée par l’ exposition, et c’ est peut-être là la meilleure réaction que nous pouvions espérer. A travers ces interrogations, nous avons pu aborder, parallèlement la problematique du marché de São Cristóvão, l’analiser, et la lier au programme”a

Aqui não restam dúvidas de que nos encontramos perante uma avaliação dos efeitos da exposição, e de que o conteúdo dessa avaliação é relevante para o enriquecimento do próprio programa. É talvez interessante notar que o resultado da avaliação confirma a justeza do programa, ajuda-o a desenvolver-se, contribuindo para a clarificação da problemática do mercado de S. Cristóvão, ou seja, contribuindo para a estabilidade do próprio programa, isto é, o acto de avaliação funcionou como ciclo de retroacção negativa desse mesmo programa. Penso que não terá sido em vão que nos detivemos na análise desta experiência, embora o documento de que partimos não nos permitisse ir muito longe, e por isso não possamos, no fim, dar como demonstrada a aplicação da abordagem sistémica pela museóloga brasileira, doutora em Arqueologia. Certo é que na organização do ecomuseu do Bairro de S. Cristóvão, F. de Almeida-Moro, se apoiou em pressupostos que são comuns aos da nova museologia - por vezes a autora prefere chamar-lhe museologia diferente - que valorizam a dinamização da comunidade, dinamização essa completada por uma abordagem interdisciplinar e, neste caso particular, intercultural. Não terá sido complexidade bastante esta, para a museóloga e a sua equipa terem sentido necessidade de reger-se por uma abordagem inovadora, bem conhecida dos investigadores norte-americanos, onde, por sinal, os museus de vizinhançab, com os quais este projecto tem tantas semelhanças, mais se desenvolveram? No início da análise confessámos a nossa preferência pelo conceito da ecomuseologia integrada. Mas uma preferência é sempre relativa, e, se descobrimos aí motivos bastantes para reconhecer valor e pertinência, é também muito claro para nós que a experiência do bairro de S. Cristóvão, inscrevese numa matriz não-formal da museologia, tornando-se, por isso, e só por isso, discutivelmente aplicável ao nosso país. No Brasil, a cultura expressa-se, vive-se e transmite-se de modo muito mais imediato e informal do que em Portugal - se é que o conhecimento que temos da sociedade brasileira no-lo permite afirmar - e essa espontaneidade cultural garante a adesão e participação quase automáticas da comunidade. Apesar de conceptualmente mais próximo de nós do que o modelo francês dos três comités, e sendo mais barato do que este, o modelo brasileiro de ecomuseologia integrada, traduzido no Bairro de a

Idem, ibidem

b

Referimo-nos evidentemente à experiência do museu de Anacostia de John Kinard

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S. Cristóvão por uma cooperativa de museus e outros estabelecimentos educativos e culturais, para poder ser aplicável em Portugal, carece de uma reformulação pontual, que quanto a nós passa fundamentalmente por uma configuração mais formalizada das estruturas directivas e dos processos de funcionamento do museu, como é aliás prática corrente entre nós. Consideramos que a institucionalização não constitui um obstáculo ao desenvolvimento da participação comunitária, nem da prossecução da função social do museu local. Pelo contrário, receamos mesmo que sem um determinado grau de institucionalização, o museu tenderá a fechar-se e a marginalizar-se, ou ser marginalizado, pela comunidade, como nos pareceu verificar, por exemplo, no caso do Museu Etnológico de Monte Redondo, cujo programa, museografia e actividades de investigação consideramos exemplares, embora, permaneça ainda encerrado a maior parte do ano, abrindo apenas nos meses de Verão. O garante da participação comunitária não é quanto a nós a institucionalização ou não dos museus locais, a sua fragmentação ou a seu propósito inicial de abertura. Na esteira de Pierre Camusat, Director do ecomuseu de Fourmies-Trelon, França, a participação da comunidade é realizável, “pour autant que l’ on définissent clairement les niveaux auxquels elle peut se manifester.”a No ecomuseu do Montemuro-Paiva, preferimos optar por um modelo institucional de organização, mas numa perspectiva de uma instituição dinâmica, não estática. Se nos é permitido o trocadilho, diríamos mesmo numa perspectiva de “instituição estética”! Aliás, talvez seja interessante discutir, desde já, o próprio conceito de instituição. Para nós, um sistema institucional é aquele em que cada elemento e cada função são definidos a partir de um estatuto ou regulamento que determina normas de conduta reconhecidas como válidas pelos seus membros, e se orienta segundo um dado código deontológico que expressa a relevância da sua função social Esta definição pode concretizar-se, felizmente para a equipa museal, de formas muito diversas. Formas que diferem fundamentalmente do contexto em que ela se aplica. Permitam-me referir aqui, como exemplo, o caso do “sacristão” da Ermida do Paiva. De alguns anos a esta parte, foi colocada uma fechadura na porta lateral da Ermida, e ao contrário do que sucedia antes, a porta agora está sempre fechada. Mas isso não implica nenhuma dificuldade maior para quem deseje visitar o templo, visto tudo aquilo que há a fazer é, como antes, dirigirse ao local, pois o certo é o Sr. Manuel (?) se encontrar por perto para abrir a porta. Poderá ter de esperar algum tempo, como já nos aconteceu, uma vez em que ele estava num terreno próximo a tratar das suas culturas, e teve de vencer, entretanto, um declive demasiado íngreme para a sua idade... Certo é que, até hoje, nunca nos sentimos defraudados. Existem, evidentemente, formas tradicionais de institucionalização da acção comunitária, como aquela de que o sacristão se sentia investido, porventura com um sentido de responsabilidade e de serviço bem mais desenvolvido do que o de um funcionário assalariado, sentado a uma secretária à entrada, fundamentalmente preocupado com o cumprimento de um horário, como por exemplo fomos descobrir nalguns núcleos do Ecomuseu do Seixal.

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In, La muséologie selon Georges Henri Rivière, Dunod, Tours, 1989, p. 320

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Para um ecomuseu integrado, agir em conformidade com o conhecimento das regras tradicionais de institucionalização, é certamente bastante importante não só para desencadear os mecanismos da participação comunitária, mas também para melhor conhecer e poder interpretar algo que, afinal, mais não é do que uma outra forma de expressão patrimonial. Mas não só as formas de institucionalização tradicionais interessam ao modelo de organização que defendemos. Formas modernas deverão, paralelamente, coexistir, com a condição de se harmonizarem com as tradicionais, ou pura e simplesmente comuns, de institucionalização. Se insistimos neste ponto, é porque consideramos que somente a partir de uma institucionalização de atributos e de funções, poderão a equipa museal e a comunidade sentir-se investidas de uma missão, e considerar-se vinculadas a uma colaboração recíproca. Não tem sido essa, tanto quanto julgamos saber, a via escolhida entre nós. Pecando nuns casos por excesso, noutros por defeito, os museus locais em Portugal, ao nível da determinação do seu modelo institucional, de um modo geral, denotam uma certa falta de determinação ou de imaginação, esquecendo que essa discussão poderá ser fundamental para o desenvolvimento da sua função social, e adoptando aparentemente, de forma passiva, modelos “alienígenas”, desfasados da realidade comunitária, que depois não funcionam, ou funcionam mal. Para nós, esta discussão deve ser travada no nosso país quanto antes. Dizemos no nosso país, porque, por exemplo em França, a discussão entre o estatuto associativo e o estatuto público, encontrase bastante avançada, registando-se ao nível dos museus locais a coexistência tanto de museus de estatuto municipal ou estatal, como de estatuto associativo, e nalguns casos verificando-se mesmo fenómenos de transição de um para o outro (ex: Musée de la Chapellerie à Chazelles-sur-Lyon). Ou seja, a instituição museu local, por inerência, tem de ser dinâmica. Não pode ter receio da mudança. Porventura, mais do que a instituição propriamente dita, aquilo que importa aqui discutir é o processo de institucionalização. É que, se uma instituição pode tornar-se estática, e fossilizar, surgindo como objecto arqueológico, já o processo de institucionalização, porque decorre no tempo, é dinâmico, e encontra-se sujeito a uma multiplicidade de variáveis e de tendências que condicionam e provocam a sua evolução. Para nós, a definição do modelo institucional do ecomuseu do Montemuro-Paiva, passa pela junção de duas tendências: uma centrífuga que reclama a sua dispersão e outra centrípeta que reclama a sua concentração. Por acção da primeira, apoiando-se no conceito de ecomuseologia integrada de Fernanda de Camargo e Almeida-Moro, ele ramifica-se a partir de uma estrutura polinucleada. Por acção da segunda, apoiando-se no conceito de museu laboratório de campo - ou centro de estudos, como prefere designar Mário Moutinho - ele concentra-se a partir de um centro documental, que reúne, integra e coordena toda a investigação. O ecomuseu é então concebido como um sistema complexo, composto por vários subsistemas autónomos, coordenados por um centro, por sua vez condicionado por cada um dos subsistemas, sem conhecer hierarquia de relações, apenas de funções.

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Em síntese, o ecomuseu do Montemuro-Paiva é por nós concebido como uma instituição dinâmica, com um centro coordenador que ocupa um edifício concreto, onde trabalham e colaboram funcionários assalariados e representantes da população. Aí serão asseguradas as funções museais que exigem um maior controlo científico (ex: conservação e restauro, investigação, formação). Quanto aos diferentes núcleos espalhados pelo concelho, eles procurarão preferencialmente integrar diferentes pólos, onde se verifique existir já uma certa dinâmica com interesse patrimonial, no sentido de se complementarizarem uns aos outros, para assim melhor se exprimir a identidade da região. Além desta intensificação e encaminhamento de actividades tradicionais, também propomos o recurso às polémicas musealizações. O critério aqui terá de ser o da importância patrimonial de determinado espaço que apesar de presentemente inactivo, pelo facto de constituir uma importante referência para a região e para a comunidade, não pode deixar de renascer, mesmo se correndo o risco de poder rodear-se de algum artificialismo. Tentámos, neste particular, definir os critérios de correcção necessários para que a obra não parecesse, por assim dizer, postiça, como muitas vezes acontece. Para fazer com que toda esta estrutura funcione e evolua, sugerimos um conjunto de programas a desenvolver com as Escolas, os Bombeiros, as Associações Culturais e Recriativas, a Edilidade, as Freguesias e as Paróquias do concelho, criando brigadas de informação patrimonial e brigadas de observação da natureza, em ligação com o ecomuseu. *

Foi, portanto, com base nestes pressupostos que desenvolvemos a nossa tese. Numa primeira fase, analisaremos as experiências portuguesas de museologia local com o propósito de esboçar uma espécie de diagnóstico da situação. Em seguida procuraremos determinar as causas das disfunções que detectámos na expressão e interpretação do território, da comunidade e do património, e partindo das premissas já expostas, procuraremos lançar as bases do estudo da região, ao mesmo tempo que tentamos demonstrar o interesse da adopção da abordagem sistémica como ferramenta auxiliar da museologia comunitária. No fim, esquematizaremos um programa museal adaptado à região em causa, como exemplificação do alcance prático da metodologia sistémica na programação museológia. Trata-se, para nós, de um projecto aliciante, mas ao mesmo tempo desmesurado. Para começar, desmesurado certamente em face das limitações do seu autor. Mas também desmesurado, devido a dificuldades inerentes ao próprio tema, a dificuldades introduzidas escusadamente por parte do autor que, porventura, complicou ali onde era de aligeirar, e facilitou lá onde deveria aprofundar. Dificuldades, igualmente, que se prendem com grandes carências e lacunas bibliográficas, nas bibliotecas e livrarias a que normalmente temos acesso, em muitos dos aspectos fundamentais para a nossa tese, e, por fim, a maior dificuldade de todas, ou pelo menos a dificuldade mais angustiante: o escasso tempo de que dispúnhamos para a sua realização. No nosso ponto de vista, o objecto desta tese - a programação sistémica de um ecomuseu a instalar no Concelho de Castro Daire - enforma logo à partida de uma dialéctica, que nós sintetizaría-

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mos desta forma: para programar um ecomuseu integrado, é necessário estudar a região, nas múltiplas vertentes em que se manifesta a interacção comunidade/território, tanto no espaço como no tempo, mas, simultaneamente, considera-se que a instalação de um ecomuseu integrado constitui, justamente, a forma mais eficaz, senão mesmo a única, de se proceder, no terreno, a esse mesmo estudo. Na impossibilidade objectiva de elaborar um estudo de raíz sobre a região, como aconteceu no caso da programação do ecomuseu do Seixal, que foi precedida pela publicação do trabalho “História do Concelho do Seixal” de António José Nabais, no caso de Castro Daire tivemos de nos basear em elementos avulsos, dispersos por uma bibliografia especializada, cujos principais aspectos foram compilados por uma equipa de três investigadores, numa Monografia editada, em 1986, pela Câmara Municipal. Aí podem-se encontrar os tópicos mais importantes da História, Arqueologia, Arquitectura, Etnografia, Economia, Geografia, Geologia e Demografia locais, mas essa obra como os seus autores o reconhecem, por ser generalista, não podia abarcar toda realidade espácio-temporal do território, ignorando aspectos que no nosso ponto de vista são pertinentes e relevantes. Para remediar estas lacunas procurámos reunir uma bibliografia alternativa, donde se destacam quatro livrinhos de um historiador e professor locala, que reputamos de muito interessantes, pela preocupação didáctica de que se revestem, sendo essa bibliografia complementada com algumas recolhas que fizemos no terreno, contactando pessoas e instituições, durante as breves e apressadas estadias, que o facto da nossa família possuir aí uma casa, nos permitiu ali passar. Elaborar o programa do ecomuseu do Montemuro-Paiva, exigia, antes de mais, a formação de uma equipa museal reconhecida pela Edilidade, e em íntima ligação aos sectores da comunidade implicados e actuantes na acção cultural, que pudesse dividir entre si tarefas, trocar pontos de vista e em função dos estudos e dos contactos estabelecidos, definir uma proposta final de programa a ser apresentada aos representantes públicos e privados da comunidade local. Não podendo dispôr dessa equipa, e perante o reduzido entusiasmo que o projecto nos pareceu suscitar junto do executivo camarário, devido à circunstância das verbas disponíveis para investimentos desta natureza se encontrarem já destinadas à construção de um Centro Municipal de Cultura, esta tese vê-se confinada àquilo que lhe resta, a priori, ser: um trabalho teórico. Uma programação sistémica, à partida, deveria ter a possibilidade de se confrontar com a prática. Deveria assimilar e integrar informações e estudos, deveria testar os mecanismos e funções instaladas. Nessa impossibilidade, resta-nos lançar ao vento um punhado de considerações e de formulações, cuja prova de fogo terá de ficar adiada. Mas não constitui a teorização, por outro lado, a actividade mais avançada da razão humana? Ainda assim, paralelamente a estas dificuldades, também pudemos contar com apoios significativos. Começando pelos apoios institucionais, gostaríamos de expressar os nossos agradecimentos à Exª Directora do Ecomuseu Municipal do Seixal, Drª Graça Pimentel, que amavelmente nos facultou a consulta do dossier sobre a programação do ecomuseu. Devemos também o nosso agradecimento ao a

O Exmo profor da Escola Preparatória de Castro Daire, Abílio Pereira de Carvalho

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Director da Biblioteca do Instituto de Conservação da Natureza, pelas facilidades de consulta e reprodução de material bibliográfico que nos proporcionou. Gostaríamos igualmente de agradecer aos elementos da jovem equipa do Museu Etnológico do Monte Redondo, o facto de nos terem cedido para consulta algumas publicações do museu. Ainda em relação ao Exº Director das Termas do Carvalhal, pelos números e informações relativas à sua utilização pelos aquistas, nos últimos anos, devemos prestar os meus agradecimentos, bem como ao Exº Director do Hotel do Montemuro, pelos valores relacionados com a ocupação do Hotel e pelo grande interesse manifestado pelo nosso projecto. Também à Exª Directora do Centro de Artesanato do Mezio, Srª Dª Dolores queremos agradecer a autorização de visitar e fotografar a colecção e as instalações do centro, numa altura em que este se encontrava, por circunstâncias de serviço, encerrado ao público. Ao Exmo Sr. Samuel, proprietário de uma loja de artesanato em Castro Daire e dedicado defensor do património cultural, devemos também o nosso agradecimento pelas indicações que nos deu sobre os caminhos da Serra. Outros apoios importantes vieram de sujeitos particulares que dentro das suas respectivas especialidades, nos indicaram informações e materiais que de outra forma seria para nós difícil ou moroso de obter. Devemos por isso agradecer ao consultor jurídico e científico do Parque Nacional da PenedaGerês e amigo Dr. Pedro Monteiro, as sugestões bibliográficas sobre museologia e interpretação do território, bem como a assessoria jurídica que nesse campo nos proporcionou. Também à amiga e colega Drª Teresa Noronha, queremos agradecer o ter-nos proporcionado o acesso ao estudo patrimonial que o grupo em que ela se encontrava inserida fez sobre o vale do rio Paiva. A todos quantos directa ou indirectamente contribuiram para que este trabalho pudesse realizar-se, gostaríamos de agradecer aqui os apoios prestados. E neste particular, não poderíamos deixar de exprimir o nosso reconhecimento à Doutora Natália Correia Guedes, que desde a primeira hora nos encorajou a levar por diante este projecto, disponibilizando-nos de forma particularmente franca e dialogante o apoio inestimável dos seus conhecimentos e experiência, sempre que os solicitámos. Antes de terminarmos estas palavras introdutórias, interessa talvez referir que as três partes que compõem o trabalho que a seguir se desenvolve, embora não estejam desligadas umas das outras, são autónomas entre si, podendo por isso a leitura das páginas que se seguem iniciar-se por qualquer uma dessas partes, sem grande prejuízo, julgamos nós, para a sua compreensão global.

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A Nova Museologia em Portugal

Por muito que um etnólogo faça, a sua presença altera sempre a realidade, de forma que o acto de etnologar é por sua vez acompanhado pelo acto de ser etnologado. Estes dois pensamentos devem, pois, estar sempre na mente de quem se propõe olhar a ruralidade Estas mãos são, num primeiro olhar, mãos de quem trabalha. Mas será que esta constatação encerra uma realidade global? Será que a vida desta mulher poderá ser resumida numa frase, ou mesmo num livro? Não haverá, para lá disso, um dia-a-dia da vida? - Mãos que trabalharam, mas também acariciaram, que acenaram, que pentearam. Mário Moutinho A Organização de um Museu Local de Etnologia, 1986

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As Novas questões que se colocam ao museólogo 1.1- A definição de ecomuseu: análise e problematização Porque eles sintetizam as grandes linhas programáticas da ecomuseologia e constituem os seus verdadeiros axiomas, qualquer abordagem à temática da ecomuseologia, deverá partir de um exame aos princípios que aparecem consagrados na definição evolutiva de Georges Henri Rivière. O texto da terceira e última versão revista e corrigida por Georges Henri Rivière, em Janeiro de 1980, é o seguinte:

“Un écomusée est un instrument qu’un pouvoir et une population conçoivent, fabriquent et exploitent ensemble. Ce pouvoir, avec les experts, les facilités, les ressources qu’il fournit. Cette population, selon ses aspirations, ses savoirs, ses facultés d’approche. Un miroir où cette population se regarde, pour s’y reconnaître, où elle recherche l’explication du territoire auquel elle est attachée, jointe à celle des populations qui l’on précédée, dans la discontinuité ou la continuité des générations. Un miroir que cette population tend à ses hôtes, pour s’en faire mieux comprendre, dans le respect de son travail, de ses comportements, de son intimité. Une expression de l’homme et de la nature. L’homme y est interprété dans son milieu naturel. La nature l’est dans sa sauvagerie, mais telle que la société traditionnelle et la société industrielle l’on adaptée à leur image. Une expression du temps, quand l’explication remonte en deçà du temps où l’homme est apparu, s’étage à travers les temps préhistoriques et historiques qu’il a vécus, débouche sur le temps qu’il vit. Avec une ouverture sur les temps de demain, sans que, pour autant, l’ écomusée se pose en décideur, mais, en l’occurence, joue un rôle d’information et d’analyse critique. Une interprétation de l’espace. D’espaces privilégiés, où s’arrêter, où cheminer. Un laboratoire, dans la mesure où il contribue à l’étude historique et contemporaine de cette population et de son milieu et favorise la formation de spécialistes dans ses domaines, en coopération avec les organisations extérieures de recherche. Un conservatoire, dans la mesure où il aide à la préservation et à la mise en valeur du patrimoine naturel et culturel de cette population. Une école, dans la mesure où il associe cette population à ses actions d’étude et de protection, où il l’incite à mieux appréhender les problèmes de son propre avenir. Ce laboratoire, ce conservatoire, cette école s’inspirent de principes comuns. La culture dont ils se réclament est à entendre en son sens le plus large, et ils s’attachent à en faire connaître la dignité de l’expression artistique, de quelque couche de la population qu’en émanent ses manifestations. La diversité en est sans limite, tant les données diffèrent d’un échantillon à l’autre. Ils ne s’enferment pas en eux-mêmes. Ils reçoivent et donnent.”a

No nosso ponto de vista, este texto não constitui propriamente uma definição. Uma definição por princípio restringe e delimita. Georges Henri Rivière, que tanto cultivava as definições, neste caso evitou fazê-lo, pelo menos dessa forma. Mais do que uma definição, este texto constitui uma Declaração de Princípios. Trata-se ali de reunir e de articular uma série de traços, com o propósito de esquissar, à maneira do arquitecto, uma ideia que afinal é uma semente: um projecto em evolução.

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Museum, (Unesco, Paris) nº 148 (vol. XXXVII, nº 4), 1985, p.182.

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A concepção evolutiva não representa, por si só, um contributo inovador, dir-se-á com toda a razão. Mas aquilo que G. H. Rivière aì introduz, subliminarmente, não é um conceito, mas sim um modelo de evolução. Um modelo concretizado no ecomuseu. Uma evolução traduzida pela história. Um projecto que emerge da reformulação dos museus de ar livre, que existiam na Escandinávia - ex: Skansen - desde os finais do século passado. Mas não se trata de um esquisso vago ou indefinido. Os seus traços compõem perfeitamente uma figura. Uma figura que se traduz muito mais pelas funções que desempenha - instrumento, espelho, expressão do homem, da natureza e do tempo, interpretação do espaço, conservatório, escola, laboratório - do que pelas suas feições que, por razões da especificidade de cada contexto, só podem ser diversas umas das outras. Trata-se, isso sim, de uma referência fundamental. Para François Hubert1, constitui mesmo a única obrigatória. A única que, pelo menos até hoje, apesar de algumas imprecisões e cansaços, melhor traduz um projecto que é, em parte, uma demanda, e que representa um dos mais estimulantes desideratos culturais da actualidade: organizar processos de expressão, interpretação, investigação e preservação das relações e dos nexos que se estabelecem entre uma população e o seu território. É a apoteose da museologia: o museu omnipresente! Mas uma profissão de fé, também, na própria profissão. Uma inabalável fé na ciência e na razão. G. H. Rivière era um asceta da museologia. Uma museografia pensada até ao mínimo pormenor, com o propósito fundamental de transmitir e interpretar o conhecimento das colecções, como o fez até à exaustão no Museu Nacional das Artes e Tradições Populares, - MNATP - onde o discurso expositivo traduz a voz do objecto, na sua diacronia e sincronia, paralelamente, numa perspectiva de público especializado - Galeria Científica - e numa de público em geral - Galeria Cultural. Foi aí que se produziu a grande obra de G. H. Rivière, mas à semelhança de Le Corbusier, seu conhecido, que com a Igreja de Nª Srª de Ronchamp (1950-55) superou a estética funcionalista da sua arquitectura, também G. H. Rivière, na parte terminal da sua carreira, superou a ascese estruturalista da sua museologia, com a criação da ecomuseologia e com a redefinição da função social do museu como instrumento de desenvolvimento comunitário. Um paralelismo gratuito, dir-se-á. Mas não terá sido esse rasgar das paredes, essa fragmentação do museu, esse musée éclaté como Hugues de Varine gosta de designar, o resultado compreensível de uma escalada nos processos museais de reconstituição do mundo, agora abertos ao próprio mundo? Daí, a importância fundamental dos princípios que o texto de G H Rivière deixou como legado, à nova geração de museólogos. Quanto a nós, os fundamentais a reter são os seguintes:



Interacção permanente entre o ecomuseu e a comunidade



Conhecimento e divulgação da comunidade e dos seus antepassados



Conhecimento das sucessivas adaptações da comunidade à natureza (museu de civilização)



Expressão do tempo desde o passado mais remoto, até ao presente e ao futuro (museu do tempo)

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Interpretação do território: itinerários e sítios (museu do espaço)



Documentação e investigação em articulação com a comunidade científica



Preservação e valorização do património natural e cultural



Formação e informação direccionada à consciencialização dos problemas do futuro



Diversidade nas soluções, uniformidade nos princípios.



Conceito alargado de cultura, conceito alargado de objecto artístico



Abertura ao exterior

A todos estes princípios se encontra vinculado o programa do ecomuseu do Montemuro-Paiva, na linha da interpretação que fazemos do texto de G. H. Rivière. Mas a forma como se manifesta, e se tem manifesatado, o vínculo dos ecomuseus a estes princípios, tem sido objecto de variação, ou melhor de evolução. Em cada contexto e em cada época, a tradução prática destes princípios vai conhecendo uma transformação, em virtude de os modelos que suportam a sua organização evoluírem, no sentido da obtenção e manutenção de um ajustamento perfeito que obedece a um processo dinâmico e denota uma tensão dialéctica. Tal como os violinos de uma orquestra têm de ser afinados no início de cada audição, também o ecomuseu para se integrar e se harmonizar com o território e a comunidade, necessita permanentemente de “afinar o seu modelo” quer em função da evolução do conceito, quer em função da evolução da comunidade. Daí que, numa segunda leitura, seja fácil verificar que, para lá de estabelecer uma série de princípios evidentemente consensuais e axiomáticos, esta “definição” não deixa de ter problemas, e um dia, certamente, ela terá de ser actualizada. Um desses problemas relaciona-se com as lacunas e imprecisões que ela contém. Basta ver que ao longo de todo o texto, se presumem como factos, aspectos que tanto se podem verificar, como não. Por exemplo, pressupõe-se logo à partida como elementos constitucionais do projecto ecomuseológico as aspirações, os saberes e as faculdades de abordagem de uma população, e dados como garantidos os especialistas, as capacidades e os recursos de um poder. Não constituirá uma visão um tanto romântica, presumir a disponibilidade de todos estes meios? Não poderão existir outras motivações ou interesses por parte dessa população, ou desse poder, pelo ecomuseu, além dos que aí são referidos? E se eles não se verificarem, o ecomuseu não se realiza? Não deveria mesmo, o ecomuseu representar uma forma de retirar a população do imobilismo e da nostalgia? Se se reparar bem, esta definição apoia-se quase exclusivamente em afirmações positivas, e a única negativa que existe, “Avec une ouverture sur les temps de demain, sans que, pour autant, l’ écomusée se pose en décideur”, representa uma restrição, justamente, para o ecomuseu. Claro que não podemos considerar sustentável o equivalente oposto, de o ecomuseu se substituir à comunidade na tomada de decisões, mas também não podemos deixar de lembrar que, como parte integrante que é do sistema cultural da sociedade, o ecomuseu encerra um potencial fabuloso de formação da opinião pública, e como tal não se encontra imune às pressões políticas que sobre ele são naturalmente exercidas. Porque nós concordamos com a ilegitimidade da manipulação da opinião pública, pensamos que os

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ecomuseus devem encontrar-se conceptualmente preparados para gerir e di-gerir o embate de estratégias e concepções que sobre eles se precipitam, se eles forem realmente abertos. Sobre este ponto, a definição de G. H. Rivière não nos diz rigorosamente nada. E o que poderia dizer, perguntar-se-á? Quanto a nós, ela deveria começar por precisar e aprofundar melhor a natureza dialéctica do próprio ecomuseu. Não basta dizer-se que o ecomuseu se rege por um conceito evolutivo, é fundamental acrescentar-se que essa concepção evolutiva é de natureza dialéctica. De facto, existe uma tensão fundamental entre o homem e a natureza, e uma tensão fundamental entre o passado e o futuro. Claro que a solução - a síntese - será sempre um compromisso entre ambos. No primeiro caso, esse compromisso é estabelecido pela cultura, no segundo, pelo presente, mas o problema maior é saber a partir de que base deve o ecomuseu estabelecer os seus compromissos. Para nós, a base de todo o compromisso a assumir por um ecomuseu reside no conhecimento. Somente a partir daí, o ecomuseu poderá conquistar o prestígio científico e até moral, e, como procuraremos demonstrar, desenvolver plenamente a sua função social, que mais não é do que propiciar o desenvolvimento integral da comunidade, através da partilha e da fruição de serviços e de bens de natureza cultural. Compromisso para com o conhecimento, mas conhecimento não retórico, claro está. Não se trata aqui de construir o discurso do saber. O que interessa é o conhecimento que traduz e induz o acto, o conhecimento que germina e anima, e que se propaga. Numa palavra: o conhecimento que se integra na sociedade. Para fazê-lo, o ecomuseu, ou museu local, tem de dar um salto qualitativo. Tem necessariamente de encarar a sociedade como um sistema complexo, constituído por subsistemas muito heterogéneos, uns em relação com os outros, e depois de encarada a sociedade a partir deste prisma, ele deverá integrar-se activamente nos seus mecanismos e processos, e agir, culturalmente, de acordo com os princípios positivos estabelecidos por G. H. Rivière, comportando-se como um parceiro social entre todos os demais, mas detentor de uma vantagem sobre todos os restantes: a chave sistémica que abre as portas da complexidade. Para desempenhar uma autêntica missão social, o museu local deverá, portanto, desenvolver canais e códigos próprios. E é isso que esta definição não esclarece, e que porventura terá constituído um dos factores que condicionaram a criação do MINOM, e de outras estruturas nacionais e internacionais de representação e de coordenação dos museus locais e ecomuseus, nos países onde esse movimento vai mais avançado. Vejamos mais de perto este assunto, na secção que se segue. 1.2- A vocação social dos museus comunitários Para melhor perspectivar, e poder relançar, uma das discussões que nas últimas décadas mais têm marcado a museologia, torna-se necessário situar esta questão historicamente.

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Os sinais de uma mudança de fundo sobre esta problemática começaram a manifestar-se de uma forma consciente, por volta da segunda metade da década de sessenta, vindos de diferentes proveniências e com diferentes cambiantes, fruto da abertura cultural e da prosperidade económica que, então, se começava a desenhar quer no Ocidente, quer no Leste, e mesmo nalguns países do então chamado Terceiro Mundo. Como reflexo desse boom de renovação económica e cultural, dão-se os primeiros passos no sentido de precisar cada vez mais rigorosamente o conceito e as funções do museu. Desse percurso podemos hoje registar a evolução da definição de museu, tal como ela foi sendo estabelecida pelo ICOM. Vejamos a definição que aparece no primeiro número do Icom News, de 1948:

“Le mot «musée» comprend toutes les collections ouvertes au public d’objects artistiques, techniques, scientifiques, historiques ou archéologiques, y compris les zoos ou jardins botaniques, mais à l’exclusion des bibliothèques, sauf si elles entretiennent des salles d’exposition permanente”a

Trata-se de uma definição simples, senão mesmo simplista. Nela, a categoria de museu surge como atributo de todo o espaço físico aberto ao público que apresente uma colecção de objectos, aparecendo como única função museal requerida a exibição. Sendo um compromisso muito limitado em termos culturais e sociais, em 1951 surge uma nova versão, mais completa:

“§1: Le mot musée désigne ici tout établissement permanent, administré dans l’intérêt général en vue de conserver, étudier, mettre en valeur par des moyens divers et essentiellement exposer pour la délectation et l’éducation du public un ensemble d’éléments de valeur culturelle: collections d’objects artistiques, historiques, scientifiques et techniques, jardins botaniques et zoologiques, aquariums... §2: Seront assimilés à des musées les bibliothèques publiques et les centres d’archives qui entretiennent en permanence des salles d’exposition.”b

Trata-se de uma definição que consagra um maior compromisso social, ao vincular a sua administração ao interesse geral, e estabelece outras funções museais para lá da exposição - conservação, estudo, valorização, educação e deleite. As definições dos anos de 1961 e 1968 não introduzem novos conceitos, limitando-se a reconhecer como museus os palácios, os tesouros de igreja e outros monumentos ou edifícios históricos, sujeitos a visita regulamentada do público, os parques naturais de carácter científico e educativo. Em 1975, o título II dos estatutos do ICOM, estabelece o seguinte:

a

In, La Museologie selo Georges Henri Rivière, Dunod, Tours, 1989, p. 82

b

Idem, ibidem

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“Art. 3. Le musée est une instituition permanente, sans but lucratif, au service de la société et de son développement, ouverte au public, et qui fait des recherches concernant les témoins matériels de l’homme et de son environnement, acquiert ceux-là, les conserve, les communique et notamment les expose à des fins d’études, d’éducation et de délectation.”a

Aqui são introduzidos aspectos que não constavam das versões anteriores. Agora, o museu aparece vinculado a servir a sociedade e o seu desenvolvimento, e o seu âmbito alarga-se, centrando a sua actividade não só nos testemunhos do homem, mas também nos testemunhos do meio ambiente. O que se passou, entretanto? Uma transformação, ou melhor, uma evolução. Uma evolução que acompanha as transformações que se começam a verificar na sociedade industrial. O modelo de sociedade industrial que assentava numa oposição fundamental, por um lado, entre mundo rural e mundo urbano, e por outro, entre países produtores de matérias primas e países produtores de produtos industriais, vai-se esbatendo. O boom do sector terciário, a progressiva escolarização da população mundial e a generalização dos meios de comunicação de massa, fazem aumentar o volume da informação e estreitar a comunicação, logo a permutar permanentemente novas mensagens e divulgar novos conhecimentos. Acompanhando estas tendências que, então, actuavam ainda como gérmens, a museologia irá evoluir também em sentido equivalente, e essa evolução, quanto a nós, manifestou-se em três áreas fundamentais - a etnologia, a ecomuseologia e a arqueologia industrial - e passou por três fases distintas - uma fase preliminar, de carácter empírico, até à Mesa Redonda de Santiago do Chile, marcada pela génese dos museus de vizinhança, como o de Anascotia, nos EUA’s e dos ecomuseus em França, uma fase de teorização e experimentação, de que é bom exemplo o projecto da Casa del Museo no México, e uma fase de activismo e de pragmatismo, após a criação do MINOM, em 1985, em Lisboa. Na primeira fase, tratava-se fundamentalmente da criação de uma nova dinâmica que se não era ainda claramente de âmbito social, contudo visava um alargamento da esfera da acção cultural do museu, para lá dos limites convencionais das colecções. Em relação ao México, e sobre o Museu Nacional de Antropologia e o Museu de História Natural, ambos abertos ao público em 1966, Georges Henri Rivière afirma o seguinte. Os sublinhados são nossos:

“- Le musée d’Anthropologie, avec sa superbe architecture; illustration du patrimoine archéologique et ethnographique, il exprime l’intégration des deux sources de peuplement du pays, l’une indienne, l’autre espagnole: c’est l’identité culturelle de la nation. - Le musée d’Histoire naturelle, qui bénéficie également d’une architecture admirable: il se veut synthèse des sciences de l’univers et de la terre, des galaxies jusqu’au monde minéral, végétal et animal du quaternaire.”b

a

Idem, ibidem

b

In, La Museologie selo Georges Henri Rivière, Dunod, Tours, 1989, p. 69

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De acordo com a interpretação do autor, nestes museus verificava-se um propósito de fundamental de integrar diferentes conteúdos culturais e étnicos, sob a alçada de um mesmo discurso expositivo e de uma nova arquitectura. De alguma maneira, estes museus apesar de concebidos ainda sob a égide de uma museologia clássica, ou pelo menos não-ruptural, levantavam já algumas questões que posteriormente viriam a ser amplamente debatidas: a questão da abertura das colecções às culturas marginalizadas, e a questão da interpretação das relações entre o homem e a natureza. Ainda durante a década de sessenta, nos Estados Unidos, e como tentativa de encontrar respostas para os problemas de integração social patentes nas grandes cidades entre as comunidades branca e negra, começaram a desenvolver-se algumas experiências museais que colocavam a tónica da sua acção na obtenção de determinado efeito social, nascendo assim o conceito de museu de vizinhança. Quer no bairro de Anascotia, situado nos arredores da cidade de Washington, e aberto ao público a 15 de Setembro de 1967 numa sala de cinema remodelada, quer em Nova Iorque, com o museu das crianças de Brooklyn, um propósito fundamental de serviço e de intervenção social é claramente assumido por estes museus que transcendem destarte a mera acção educativa e cultural. Noutros pontos do globo, outras experiências procuram abrir novos campos à museologia, como acontece por exemplo em França, com a criação de ecomuseusa em Parques Naturais, após 1967 por Georges Henri Rivière e Hugues de Varine (Landes de Gascogne em 1969), e no Brasil com a criação do museu conceptual do Bairro de Stª Teresa, na cidade do Rio de Janeiro, em 1968, de Fernanda de Camargo e Almeida Moro. Sem pretendermos dar uma visão linear, como tantas vezes acontece, da génese e do desenvolvimento da função social dos museus, cuja necessidade começava a ser percepcionada em diferentes contextos e com diferentes pressupostos, evoluindo segundo vias paralelasb e com ritmos distintos, é possível afirmar-se que se encerra uma primeira fase preparatória com a realização da Mesa Redonda de Santiago do Chile, que, sob a égide da UNESCO, de 20 a 31 de Maio de 1972, reuniu não só responsáveis de museus, como também especialistas de várias disciplinas, onde a reflexão e o debate sobre a acção e função dos museus foram equacionados e formalizados, em termos bastante críticos relativamente à museologia convencional. Este encontro marcaria a consciencialização e a consagração de uma importante viragem, senão mesmo uma ruptura, em termos museológicos. Segundo Georges Henri Rivière, as conclusões que aí foram expressas focavam os seguintes pontos: 1. “Les musées d’Amérique latine ne sont pas adaptées aux problèmes qui découlent de sont développement... Ils doivent s’employer à remplir leur mission sociale, qui est de faire

a

Esta designação só viria a ser adoptada em 1971, apo´s o célebre discurso do Ministro do Ambiente Robert Poujade proferido a 3 de Setembro de 1971, durante a 9ª Conferência Geral dos Museus organizada na cidade de Dijon, pelo ICOM.

b

Outras iniciativas e projectos foram nascendo e desenvolvendo-se, durante a década de sessenta, muitas vezes simultaneamente em diferentes pontos do globo. Desde a Escandinávia com C.N.S.E.I. (Centro Nacional Sueco de Exposições Itinerantes) até à Índia com o Industrial and Technological Museum de Calcutta e a Exposição científica Muséobus de Birla.

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que le citoyen s’identifie à son milieu naturel et humain, considéré sous tous les aspects; le musée nést pas que le patrimoine, c’est aussi le développement. 2. Le musée, desormais, doit inverser le sens de son vecteur temporel, dont le point de départ se situe à un moment quelconque du passé mais dont l’extrémité, la pointe de la flèche , arrive jusqu’au présent et même le dépasse, pour atteindre le futur. 3. Les participants adoptent un nouveau type de musée: le musée intégral, réplique de l’écomusée européen et africain; ils préparent à Mexico une exposition circulante à travers l’Amérique latine, pour en démontrer les principes.”a

Para Mário Moutinho, as conclusões da Mesa Redonda de Santiago do Chile, ultrapassaram, porém, largamente o território da América Latina, reflectindo, a nível mundial, as condições de desigualdade patente entre os níveis de desenvolvimento material e desenvolvimento cultural. Nesta perspectiva, a fórmula de museu integral aí proposta, surge como primeira atitude de ruptura com a museologia convencional. O museu deixa de se reduzir às colecções e às funções museais clássicas que com elas se relacionam - aquisição, conservação, investigação e exposição - fazendo tábua rasa do contexto económico e social em que se encontra inserido, mas antes passa a constituir um instrumento de intervenção activa nesse mesmo contexto, como “instituição inseparável da sociedade que lhe dá vida”b Esse novo tipo de museu, propunha-se atingir os seguintes objectivos: 1. “Estimular uma vontade de acção, buscando os fundamentos da sua intervenção nas condições históricas de desenvolvimento de cada comunidade 2. Contribuir para o desenvolvimento da consciência crítica das populações 3. Intervir directamente nos processos de desenvolvimento, fazendo uso da interdisciplinaridade, em particular na área das ciências humanas. 4. Avaliar constantemente o trabalho desenvolvido, no sentido de aprofundar as relações entre a comunidade e o museu. 5. Promover, em áreas rurais, exposições sobre tecnologias que possam contribuir para o desenvolvimento, e apresentar soluções alternativas para os problemas sociais e ecológicos 6. Preocupar-se, nos meios urbanos, pelos problemas contemporâneos de desenvolvimento 7. Participar nas políticas nacionais de educação, e possuir um serviço educativo que funcione dentro e fora do museu, garantindo a educação permanente”c

Seria interessante situar historicamente esta concepção de museu integral, mas não é este seguramente o espaço e o momento indicados para o fazer. Seja como fôr, este conceito de museu e a concepção de museologia que lhe está associada, representam hoje fórmulas, por assim dizer, datadas. Para começar, trata-se de uma construção meramente teórica que assenta numa interpretação das condições gerais da civilização, quanto a nós equacionada de forma um tanto superficial. Na verdade, pensamos que se deve ser prudente ao elaborar interpretações que tendam a proclamar-se em termos absolutos. Se é fundamental que o museu intervenha activamente no terreno social, e procure implicar toda a comua

Idem, ibidem

b

MOUTINHO, Mário, Museus e Sociedade, Museu Etnológico do Monte Redondo, !989, p. 31

c

Idem, ibidem

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nidade na construção do desenvolvimento económico, através do aprofundamento da sua consciência crítica, buscando os fundamentos da sua intervenção nas condições históricas dessa mesma comunidade, como afirmavam os próprios princípios então formulados, não seria antes de mais necessário o museu levar essa mesma comunidade a questionar-se sobre os critérios por que deve reger-se o seu próprio desenvolvimento? Será que existe um padrão universal e intemporal de desenvolvimento, que dispense toda e qualquer reflexão ou discussão prévias? Não se trata aqui de pôr em causa a importância das conclusões da Mesa Redonda de Santiago do Chile, para o nascimento de uma nova filosofia museológica, que em si é inquestionável, mas em termos conceptuais nós pensamos que não existe um modelo de desenvolvimento padrão simbolizado, tout court, na tecnologia ou na informação, e que o desenvolvimento comunitário seja ele tecnológico, informacional ou tradicional, sê-lo-á verdadeiramente integral, precisamente e unicamente, se fôr equacionado a partir do questionar da própria comunidade. Sem essa abertura, o museu integral, quanto a nós, só pode constituir-se como detentor privilegiado, ou mesmo exclusivo, do conhecimento social, acabando por funcionar socialmente à maneira de uma máquina de propaganda, ao serviço da teoria, ou mesmo da ideologia. Não foi, aliás, isso mesmo que se verificou, nas primeiras tentativas de levar à prática os princípios consagrados em Santiago do Chile, com a experiência da “Casa del Museo”, no México? Com o projecto Casa do Museu, lançado pelo Museu Nacional de Antropologia do México, onde, como vimos, uma predisposição de abertura e de expansão da nuseologia tradicional já se fazia antes sentir, a teoria social proposta em Santiago do Chile conheceu uma aceitação imediata, sendo posta à prova, com a criação de um novo campo de experimentação museológica, em três bairros populares mexicanos: Zona do Observatótrio, El Pedregal e na Cidade de Nezahualcoytl. Desta tripla experiência e dos seus altos e baixos nos dá notícia Mário Moutinho, na obra já citada Museus e Sociedade, seguindo de perto a comunicação de Miriam Arroyo, ao IV Atelier do MINOM, intitulada, Information Sobre la Casa del Museo. Fundamentalmente, estas experiências tiveram a grande importância de poder confrontar teoria e prática. Vejamos alguns dos aspectos destas experiências:

“Na primeira área de intervenção, Zona do Observatório, apesar da vontade da equipa dinamizadora pretender modificar a relação museu/população os resultados não corresponderam às perspectivas na medida em que a população abrangida quedou-se numa atitude passiva e de cepticismo e(sic) em relação ao projecto. A razão desta atitude foi por certo o facto de a equipa não ter compreendido de imediato que a atribuição de novas tarefas ao museu implicava uma nova gestão desse mesmo museu. Toda a planificação e realização das exposições e outras actividades então desenvolvidas era realizado(sic) por especialistas a partir do Museu Nacional, afastando por conseguinte qualquer razão que justificasse a participação dos grupos locais.”a

a

Idem, p. 35

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Como acima se reconhece, a transformação programática do museu no sentido da promoção do desenvolvimento social da comunidade, não depende da aplicação unilateral de uma formulação conceptual formalmente irrepreensível, nem tão pouco a existência de uma equipa museal deveras empenhada em modificar a relação tradicional museu/população, oferece garantia suficiente de uma efectiva transformação. Outra não foi a origem do logro que durante os anos setenta contagiou os sectores mais avançados da intelectualidade. Aliás, o fosso entre a teoria e a prática é bem um dado do mundo, e a forma mais usada ao longo da evolução para o transpôr, como salienta Edgar Morin em o Paradigma Perdido, não tem sido senão o exercício permanente do “método das tentativas e erros”, e a superação deste dilema, em museologia, ensaiada com a criação do MINOM, começou a nascer, como veremos, a partir de uma inversão radical de ponto de vista. A única que uma atitude de ruptura poderia admitir: em vez de partir da conceptualização teórica para a aplicação prática, havia que partir da conceptualização da prática, para se chegar à consciencialização de uma nova teoria. O desenvolvimento do segundo projecto em El Pedregal de Santo Domingo nasceu a partir destas constatações, o que conduziu a uma menor preponderância por parte da equipa museal, junto da população. Os responsáveis pelo projecto em vez de chamar a si o poder de decisão, preferiram limitarse a orientar e a sistematizar as determinações da comunidade, formuladas em grupos onde se discutiam e analisavam as questões relacionadas com as exposições. Esta concepção museológica encontra paralelo, em Pedagogia, nas correntes não-directivas de ensino/aprendizagem, como as que são defendidas por Carl Rogers e A. S. Neil. Tal como afirma Miriam Arroyo, “estava-se criando uma nova concepção de museu, o qual começava a ser um meio de comunicação e de educação na medida em que atravez (sic) deste se estava participando num processo de ensino-aprendizagem integrado no desenvolvimento da comunidade.”a O terceiro projecto viria a ficar marcado pela criação, em Nezahualcoyotl, de um curso de “museologia popular”, que fornecia formação em diferentes áreas como: “produção e montagem de exposições, visitas guiadas e actividades complementares, investigação, promoção e difusão”, aberto a cinquenta jovens. Os três projectos conjugados, foram-se desenvolvendo até 1980, afirmando, construindo e consolidando uma alternativa credível à museologia convencional. Não tardou que a mobilização comunitária e a militância dos especialistas fossem “pressentidos pelos conservadores da museologia tradicional como um ameaça aos seus museus instituídos. Consideravam então que o projecto da Casa do Museu, mais não era do que um esbanjar do dinheiro e de recursos humanos.”b Por terem prevalecido estas posições, o projecto da Casa do Museu acabaria por ser dado como extinto em 1980, bloqueado pela supressão de meios e de recursos. Somente três anos mais tarde, e por força da substituição da Administração do Instituto Nacional de Antropologia e História do México, sob a forma da criação de um “Programa para o desenvolvimento da função educativa dos museus”, as a

b

ARROYO, Miriam, Information sobre La Casa del Museo, Comunicação ao IV Atelier Internacional do MINOM, p.5. MOUTINHO, Mário, !989, p. 36

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raízes e as sementes do projecto da Casa del Museo, puderam desenvolver-se e frutificar, consagrando no México a organização de uma rede nacional de museus comunitários que, em 1988, se estendia já a cinquenta museus comunitários, sendo esse programa coordenado por uma equipa interdisciplinar nacional, coadjuvada num segundo nível de gestão por uma rede de promotores que vivem e trabalham nos locais onde se podem desenvolver museus comunitários. As etapas em que, de acordo com este processo, se desdobra a criação de um museu comunitário, aparecem descritas na obra que temos vindo a acompanhar, e que nos dispensamos de analisar agora2, fazendo-o mais tarde, quando discutirmos as premissas e os critérios a aplicar na programação do Ecomuseu do Montemuro-Paiva. Para já, e a título meramente provisório, não podemos deixar de observar que a metodologia de instalação de museus comunitários aí avançada, pressupõe um quadro político-social distinto daquele que vigora actualmente em Portugal, salientando-se no caso do México dois aspectos que caracterizam o seu sistema federal: a descentralização política e administrativa do Estado, e o seu forte intervencionismo a nível económico e sociala. Esta segunda fase de criação de projectos museais de desenvolvimento comunitário, ficou, aliás, quanto a nós marcada pela sua fragilidade. Fragilidade que se verifica em primeiro lugar numa certa dificuldade de articulação entre a teoria e a prática (cf Zona do Observatório), onde ao contrário das recomendações saídas da Mesa Redonda de Santiago do Chile, não se registara a mudança de atitude dos conservadores ligados à museologia tradicional. Fragilidade também que se constata na dependência incontornável desses projectos relativamente aos poderes públicos que os financiam. A superação destes impasses começou a ser ensaiada, na fase mais recente que assistiu à criação do MINOM, como organização coordenadora de um movimento museológico de âmbito internacional. É bom a este propósito lembrar que até à criação formal do MINOM em 1985, a renovação da teoria museológica girava em torno de um grupo muito restrito de pessoas como Georges Henri Rivière e Hugues de Varine, dentro do qual se destacava pela sua autoridade moral e prestígio intelectual a figura do primeiro, como atestam as definições de museu que se sucedem ao longo dos anos setenta, no sentido de precisar cada vez com maior acuidade a função social do museu. Não pode aliás constituir uma mera coincidência, o facto da criação do MINOM consumar-se em 1985, alguns meses após o falecimento de G. H. Rivière: o seu desaparecimento impunha uma nova orientação. A ideia de agrupar museólogos de vários países ligados às novas experiências museais, partira do grupo de responsáveis dos ecomuseus do Québec, como Pierre Mayrand e René Rivard, justamente no ano anterior. Foi assim que em Outubro de 1984, com a presença de representantes da Alemanha Federal, Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, México, Noruega, Portugal e Suécia, se realizou no Québec o I Atelier Internacional dedicado ao tema Ecomuseus/Nova Museologia. Os seus objectivos eram os seguintes:

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1. Criar as condições de intercâmbio sobre a ecomuseologia e a nova museologia no mundo 2. Definir as suas relações com a museologia em geral 3. Aprofundar os conceito e encorajar as práticas

A metodologia dos trabalhos constou da formação de grupos de trabalho e de sessões plenárias, encontrando-se as várias propostas de reflexão enquadradas pela Declaração de Santiago de 1973. Para lançar o debate, foi apresentado aos participantes um texto que em parte transcrevemos na Introdução. Em síntese, esse textob colocava questões, enunciava problemas e propunha soluções. Relativamente às primeiras, a discussão centrava-se em clarificar as relações das novas experiências museais com a museologia, nomeadamente:

1. Saber se existe ou não uma nova museologia 2. Determinar e qualificar, em caso afirmativo, a sua natureza 3. Encontrar, em caso negativo, uma explicação para as diferenças que se verificam entre o museu institucional e as novas experiências museais

Quanto aos problemas aí enunciados, eles prendem-se com a necessidade de proceder a uma análise profunda dos aspectos inovadores das experiências museais não convencionais, mas de tal modo que essa análise não se restringisse às inovações - os aspectos formais da nova museologia - devendo incluir também os valores - os aspectos específicos de diferenciação da nova museologia. Como tentativa de resposta ao problema, o texto propõe uma solução que se apoia nos seguintes tópicos, que constituem um autêntico Decálogo da Nova Museologia. A tradução é nossa:

1. A memória colectiva torna-se o património mais importante 2. A temática social substitui os objectos de colecção 3. A busca constante do movimento criador evita a estagnação 4. Os objectivos museais visam o desenvolvimento comunitário 5. A utilização do espaço tende para uma “explosão” territorial 6. A interdisciplinaridade é rigorosa 7. A interpretação transforma o método museográfico 8. O método museográfico baseia-se na participação popular 9. O visitante passivo é mais ou menos necessário 10. As atitudes, as relações, os hábitos de trabalho pretendem-se novos

a

Cf Encyclopédie Géographique, Milan, 1972, Éditions Stock, p.658 e seguintes.

b

Cf Anexo 3

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Numa primeira análise, é fácil verificar que esta sistematização vai consideravelmente mais longe em termos conceptuais do que a definição evolutiva de ecomuseu. Aqui, uma parte considerável do texto desenvolve-se em termos de negação do convencional e de promoção da inovação, ou seja, faz acentuar a vertente dialéctica, como se pode aliás verificar no desenvolvimento do ponto 3, onde, inequivocamente, se diz:

“À l’opposé l’une de l’autre se trouvent deux forces, l’une centripète representée par «l’institutionnalisation»: plus ou moins statique, sécurisante, s’accaparant (par délégation ou non) des devoirs publics en matière de conservation du patrimoine, et l’autre centrifugue: moins définissable, constamment en quête d’innovation et de «mouvement», tirant profit des énergies populaires et des situations, recherchant les appuis de la base et la globalité de l’action. [...] Le dévelopement de la nouvelle muséologie est intimement lié au respect de l’équilibre entre ces deux forces: institution versus mouvement.”a

Esforço de teorização, esforço de consenso. Aos participantes deste primeiro atelier internacional, cabia a ingrata missão de conceptualizar a prática e avaliar as experiências até então realizadas, com vista ao seu intercâmbio e coordenação. Missão árdua, essa! A integração do museu na sociedade e o seu compromisso fundamental com a inovação criadora, se por um lado são libertadores para o museólogo, por outro colocam-no perante a complexidade incontornável das sociedades pós-industriais, cuja natureza multipolar promove a explosão das particularidades e o estreitar das relações. Daí que, os sucessivos ateliers do MINOM, e desde logo aquele que lhe deu origem formal, em Lisboa, fruto da preparação do Grupo de Trabalho Provisório, saído do atelier do Québec, tenham assumido uma orientação mais pragmática, com o sacrifício de uma teorização de maior envergadura filosófica. Receando não lograr formalizar ex-nihilo a síntese conceptual da nova museologia, os novos museólogos reagem à complexidade e à relatividade contemporâneas, agarrando-se à realidade concreta, como se verifica no texto adoptado no final dos trabalhos do Atelier do Québec.

“Os participantes no 1º atelier internacional “Ecomuseus/Nova Museologia, identificam-se e reconhecem-se nos pontos seguintes: 1. A museologia actua com vista a uma evolução democrática das sociedades 2. A intervenção dos museus no quadro desta evolução passa por: um reconhecimento e uma valorização das identidades e das culturas de todos os grupos humanos, inseridos no seu meio ambiente no quadro da realidade global do mundo. 3. Existe um movimento caracterizado por práticas comuns podendo assumir formas diversas em função dos países e dos contextos, que deverão conduzir à emergência de um novo tipo de museu correspondente a estas novas perspectivas 4. Nestas condições a interdisciplinaridade e a função social conduzem a uma mudança do papel e da função do museólogo, o que implica uma formação neste sentido a

MOUTINHO, Mário, 1989, p. 54 e seguinte.

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Os participantes recomendam que estes reflexos comuns continuem a nível internacional, e que uma estrutura, ou seja, uma associação seja criada para este efeito”

Em relação ao primeiro ponto, esta declaração começa por estabelecer um compromisso de natureza política. Para quê? Será que existe uma conceito universal e intemporal de “democracia”? Não ficará a nova museologia, no fim, refém de um discurso banalizado de tipo jornalístico? A intervenção social dos museus, para nós, não pode, quanto à natureza das motivações que a determinam, ficar sujeita à controvérsia política. Por constituir um sério atentado contra a deontologia, é inadmissível admitir que algum museólogo encarasse o novo museu a edificar como uma espécie de reduto iluminado, vanguarda social de um novo poder. Neste particular, respeitamos em absoluto a máxima de Georges Henri Rivière de que o (eco)museu não pode substituir-se à população na tomada de decisões. Quanto ao segundo ponto, aí encontra-se a essência da nova museologia. Por um lado, a solidariedade para com todas as culturas e o respeito pela identidade dos povos, sem discriminação, e por outro a mobilização dos diferentes grupos para o trabalho museológico, como vector de integração e de desenvolvimento social. Quer isto dizer, que a intervenção social do museu é uma intervenção de carácter cultural que visa induzir um efeito, capaz de transcender a mera acção cultural, o que nos conduz necessariamente à consciencialização do valor, em última análise, económico, das actividades e dos investimentos no domínio cultural. Julgamos mesmo, que não será irrealista encarar-se as actividades económicas ligadas à área da cultura, como aquelas que muito provavelmente mais postos de trabalho poderão vir a criar, ou mesmo que, mais do que o sector industrial, poderão absorver uma parte considerável da força de trabalho agrícola excedentária nos meios rurais, no nosso país e não só. Quanto ao terceiro ponto, aí reside a maior dificuldade da nova museologia. Como conciliar a uniformidade dos princípios com a diversidade das soluções? A resposta não é de todo evidente, e sobretudo não será decerto linear. Quanto a nós, o cerne desta dificuldade é que, fundamentando-se a nova museologia com base na abertura de novos campos de experimentação e na adopção de novas práticas, cuja variação e disparidade constituem o corolário de um movimento criador e inovador, por sua vez enquadrado por uma moldura conceptual mínima, onde os conceitos fundamentais são importados de diferentes áreas do conhecimento, com maior relevo para as ciências sociais, é praticamente impossível, num contexto desta natureza, fazer prevalecer uma unidade legitimadora, que não obste a expansão do movimento renovador e criador. Esta constitui a tensão dialéctica que se estabelece entre a opção pelo movimento e a opção pela instituição, como já vimos. Quanto a nós, como defendemos na introdução ao nosso trabalho, a síntese ainda assim é teoricamente possível estabelecer-se, através da adopção de um modelo de instituição dinâmica, marcado por uma institucionalização permanente, que simultâneamente se traduz por uma conceptualização e/ou gestão da prática do próprio movimento.

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Quanto ao último ponto, aí trata-se da criação de uma escola, mas de uma escola, também ela, nova. Uma escola não própriamente de especialistas, ou melhor, de eruditos. Haverá mesmo no futuro lugar à erudição, quase se poderia perguntar? Se de facto, a intervenção social do museu pretende ultrapassar a mera acção cultural, o conhecimento que interessa aqui aprofundar, e ele nunca será superficial, queremos crer, é o conhecimento global, ou seja aquele em que sujeito e objecto são espáciotemporalmente indissociáveis, e por mais que se diga não consideramos constituir essa uma forma de conhecimento inacessível, mas justamente aquela que por ser ontologicamente constitucional ao ser, maior projecção e maior mobilização logrará induzir na comunidade, reconciliando-a de vez, se nos é permitida a forma literária de o expressar, com uma cultura do conhecimento que em nenhum momento lhe foi estranha. Museu ao serviço do desenvolvimento da comunidade e comunidade ao serviço do desenvolvimento da cultura, por força dos objectivos comuns de desenvolvimento social e económico, só pode ser essa a ”política” do novo museu a criar. Tal é a interpretação que fazemos da razão de ser da criação do MINOM. Para nós, em termos muito gerais, doravante a função de todo e qualquer museu é fomentar a integração do passado no presente e promover a integração das diferentes culturas na sociedade. Não tem sido sempre esta, no entanto, a linha de rumo que tem constado das declarações de alguns museólogos mais intrasigentemente empenhados na afirmação e desenvolvimento da nova museologia como movimento, onde no enfoque das antinomias sociais, aplicam como instrumento de conceptualização da prática museológica o materialismo dialéctico, e por isso dificilmente se conseguem livrar de uma perspectiva político-ideológica, julgamos sabê-lo, unicamente aplicável às sociedades industriais, a cuja metamorfose, presentemente, se assiste. Como exemplo desta linha de teorização, vejamos a seguinte passagem:

“Os meios de produção de um museu são o conjunto de objectos que compõem as suas colecções, o conjunto de objectos com que as colecções são manipuladas e o conjunto de condições materiais necessárias à sua manipulação. Estes meios de produção só podem assumir uma função social quando sobre eles for aplicada a força de trabalho dos diferentes agentes de produção museológica. O processo de trabalho na museologia compõe-se assim pelos diferentes meios de produção e determinada força de trabalho.”a

Diga-se o que se disser, esta perspectiva de análise tem sabor a déja vu! Ela não decorre de uma conceptualização inovadora da prática, mas parte da aplicação de uma metodologia de análise dos fenómenos sociais, por assim dizer, clássica: a teoria marxista dos modos e das relações de produção. As dificuldades de aplicação desta teoria à nova museologia, começam logo pela circunstância da sua adopção implicar uma sobrevalorização do objecto e uma desvalorização correlativa do sujeito, o que em museologia corresponde a enfatizar a importância das colecções. Isso mesmo, começa Mário Moutinho, surpreendentemente, por afirmar, quando defende que “O objecto de trabalho de um museu a

Op. cit., p. 85

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é no essencial a colecção”a, o que visivelmente contraria o princípio fundamental da nova museologia de que o património de um museu não é formado unicamente pela sua colecção, mas também pelos problemas da população que serve. A conceptualização da prática constitui um trabalho árduo e ao mesmo tempo muito delicado. Pensamos que essa tarefa, deverá ser de natureza interdisciplinar, e para a levar a bom termo, talvez conviesse que na equipe para o efeito constituída, pudesse fazer parte também um filósofo, versado em fenomenologia e epistemologia do conhecimento, que podia muito bem ser um professor de filosofia da Escola Secundária mais próxima do local onde fica instalado o museu. Com todos estes problemas, será o MINOM capaz de coordenar a nível internacional a autêntica transfiguração museológica que para si mesmo reivindica? Pode ser que sim, pode ser que não. Certo é que mesmo que não o viesse a conseguir, a museologia institucional só pode congratular-se pelo vendaval de refutação que a nova museologia gerou à sua volta, pois, no fundo, o mais certo é a primeira acabar por absorver a segunda, quando esta, terminada a inquietação e a rebeldia iniciais, tal qual seu filho pródigo, um dia regresse ao seu lar, porque instituição e movimento serão, no fim, a mesma e a única coisa, quando a institucionalização permanente se constituir como síntese de ambas. Seja como fôr, a verdade é que Portugal tem responsabilidades neste movimento. Em primeiro lugar como país possuidor de um património e de uma memória colectiva notáveis, em perpétuo risco de alienação ou de aniquilação. Depois, pelas expectativas criadas de inversão desta tendência com a adesão às teses da nova museologia, por parte de museólogos e responsáveis institucionais e comunitários que se traduzem em projectos e práticas que apontam para uma certa especificidade. Por último, porque essa especificidade já é, ela também, um dado cultural, e como tal encontra-se sujeita ao princípio, por assim dizer, moral, da sua salvaguarda e estudo. Por isso, e porque para nós não faria sentido proceder à programação do Ecomuseu do Montemuro-Paiva, na abstracção de tudo aquilo que neste domínio tem sido feito na última década no nosso país, passaremos seguidamente em revista algumas das experiências museais que tivemos ocasião de visitar, ou sobre as quais conseguimos reunir algumas informações, durante o tempo que tivemos entretanto ao nosso dispôr.

a

Op. cit., p 84

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2- A nova museologia em Portugal: balanço crítico “La conception et la pratique de l’écomuséologie ont été d’autant mieux acceptées par la population et par de nombreux responsables locaux qu’en periòde de crise elles offrent des instruments de réflexion et d’étude pouvant leur servir à résoudre des problèmes qu’ils rencontrent tout en les aidant à découvrir les ressources économiques, énergétiques, technologiques, touristiques et culturelles de la région. Les musées locaux portugais qui ont adopté ces principes ont cependant conservé l’appelation de musée municipal et le nom da la localité où ils se trouvent (en général le chef-lieu de la circonscription).” António José Nabais, Le développement des écomusées au Portugal, 1985

A nova museologia encontrou em Portugal um terreno fértil à sua propagação. No boletim do prémio europeu do museu do ano de 1983, Kenneth Hudson afirma: “Au Portugal, nous avons été fortement impressionées par le style et l’éfficacité des nouveaux musées du Seixal et de Santiago do Cacém. [...] Dans tous ces endroits, un talent, un enthousiasme et une originalité exceptionels associés à l’acceptation de très longs horaires de travail, ont donné des résultats que des personnes travaillant dans des musées de type plus classique et dans des pays plus riches pourraient juger impossibles à obtenir”.

Originalidade, talento, trabalho entusiasmo, são algumas das palavras que o presidente do prémio europeu do museu do ano escolheu, para qualificar as novas práticas museológicas em Portugal. Vindas de onde vêm, essas palavras representam, evidentemente, um estimulante e significativo reconhecimento do valor que essas práticas encerram. Valor esse tanto maior, quanto grande parte do trabalho realizado ao nível das regiões partia quase sempre da estaca zero. Porquê então nenhuma das novas experiências museológicas até à data realizadas em Portugal, recebeu ainda o almejado prémio, que tanto poderia ajudar a projectar e melhorar as suas prestações? Será que a museologia comunitária se encontra à partida condenada a ser considerada parente pobre da museologia institucional? Foi com estas interrogações no espírito que partimos para o estudo, melhor dizendo, para uma esquematização tipológica sucinta de algumas das mais representativas experiências de museologia activa desenvolvidas nos últimos anos no nosso país. Como iremos ver, essas experiências não deixam de ter os seus problemas e de suscitar algumas interrogações, quando não desencadear inevitáveis críticas. É bom sinal! Isso só quer dizer, que uma estrutura de funcionamento e uma dinâmica de intervenção social foram já criadas, e que o mais difícil se encontra já assegurado: sair da letargia que durante décadas impediu o desenvolvimento culturalmente apoiado das comunidades locais. Em termos das suas repercussões na organização do nosso trabalho, os objectivos do presente levantamento podem reduzir-se fundamentalmente aos seguintes: 1. Conhecer diferentes estruturas organizativas 2. Informar-se sobre as várias funções desempenhadas 3. Inteirar-se das actividades organizadas 4. Sondar a dinâmica comunitária desenvolvida

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5. Comparar museografias 6. Analisar programações 7. Identificar disfunções 8. Avaliar modelos 9. Propôr alternativas 10. Registar soluções passíveis de adaptação ao nosso projecto

Nem sempre foi possível, contudo, reunir dados suficientes que nos permitissem satisfazer todos estes objectivos, no tempo que tínhamos ao nosso dispor. Muitos destes projectos são recentes e sobre eles não é fácil, à distância, obter toda a informação necessária, e mesmo deslocando-se lá, nem sempre existe uma biblioteca para nos esclarecer as dúvidas que subsistem após uma visita guiada, como aconteceu connosco no caso do Museu Rural e do Vinho do Cartaxo, cuja Biblioteca se situa num edifício em remodelação, e por isso se encontra encerrada ao público.

2.1 - O Ecomuseu Municipal do Seixal Inaugurado o Núcleo Sede no ano de 1982, como manda a praxe, a 18 de Maio, data simbólica do dia internacional dos museus, o Ecomuseu Municipal do Seixal, penso poder afirmar-se sem reservas, constitui ainda hoje uma importante referência de inovação no panorama da museologia portuguesa. Não terá sido por acaso que quando se realizou em Mafra no ano de 1989 o II Encontro de Museus de Países e Comunidades de Língua Portuguesa, o programa das actividades incluia uma visita detalhada ao ecomuseu do Seixal, que culminou em suave passeio pelo Tejo, numa falua restaurada nos estaleiros recuperados da Arrentela: o núcleo naval do ecomuseu do Seixal. Projecto ambicioso, portanto, o do Ecomuseu do Seixal. Ele torna-se particularmente exemplar não só pelos méritos que Hugues de Varine3 lhe reconhece, mas também pelo próprio processo que antecedeu a sua criação. O Ecomuseu do Seixal é um bom exemplo do nível de concretização a que pode chegar uma colaboração responsável entre as instâncias do poder local e o(s) museólogo(s). Essa colaboração, como veremos já a seguir, passou pela criação de um novo sector nos Serviços Culturais da Câmara do Seixal, a quem coube a tarefa de proceder ao levantamento e estudo do Património Histórico-Cultural do Município, trabalho esse que viria a culminar no apoio da Edilidade à publicação da obra em dois volumes de António Nabais, História do Concelho do Seixal, cuja elaboração preparou o terreno para a programação do ecomuseu, e dotou o município de uma importante peça para o conhecimento da sua identidade e evolução. Um outro facto preliminar à inauguração do ecomuseu bastante importante foi a organização em 1981 de uma exposição subordinada ao tema “O Trabalho na História do Concelho”, que funcionou como antevisão do que viria a ser o ecomuseu, ao mesmo tempo que desencadeava a participação da população, já que grande parte dos objectos aí expostos haviam sido cedidos pela comunidade.

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Vejamos então mais de perto este projecto museológico, numa descrição sucinta que resulta da reunião e integração de um apanhado de informações recolhidas quer bibliograficamente, quer no local, durante a breve visita de um dia que efectuámos a três núcleos do ecomuseu - Núcleo Sede, Núcleo Naval e Moínho de Maré de Corroios. Esse périplo compreendeu a visita e o levantamento fotográfico das várias exposições, estendendo-se ainda à Biblioteca central, onde consultámos e tirámos algumas notas do dossier da planificação do ecomuseu que a Exma Directora do Ecomuseu, depois de informada da natureza do nosso trabalho, amavelmente nos facultou a sua consulta. Eis, pois, alguns dos aspectos que na nossa perspectiva melhor exprimem e tipificam o projecto museológico do Ecomuseu Municipal do Seixal.

Descrição do Projecto De acordo com o seu Catálogo, os critérios a partir dos quais o Ecomuseu do Seixal se desenvolveu, foram os seguintes: •

Representar a História do Município nos seus múltiplos aspectos, visando a identidade colectiva do Concelho



Distribuir os materiais de acordo com factores de ordem cronológica e temática, com preocupações de estética e de transmitir uma mensagem actual



Definiram-se 4 secções na exposição permanente

Museografia:

1. História e Geografia do Concelho do Seixal 2. Etnologia (agricultura, pesca, filarmónica) 3. Arqueologia Naval 4. Arqueologia Industrial •

Optou-se por uma divisão temática, devido à necessidade de destacar as actividades económicas que foram essenciais na formação do Concelho.

Modelo estrutural: • Trata-se de um Museu Polinucleado, cuja Sede Provisária ocupa instalações cedidas por uma Escola localizada na Torre da Marinha, que compreende os seguintes núcleos: 1. Núcleo Antigo da Vila do Seixal 2. Núcleo Naval (3 embarcações adquiridas pela Câmara Municipal do Seixal) 3. Forno de Cal do Séc. XIX (Quinta da Azinheira) 4. Moínho Novo dos Paulistas 5. Lagar de Azeite (Quinta do Pinhalzinho) 6. Núcleo Antigo da Amora 7. Núcleo Antigo da Arrentela 8. Moínho de Maré de Corroios 9. Espaços para exposições temporárias

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Possui espaço reservado ao Serviço Educativo



Dispõe de um carpinteiro naval que no local (núcleo naval) faz modelos de barcos típicos do Seixal e ensina a arte de construção naval tradicional

Organização de actividades com: •

Escolas



Colectividades



Juntas de Freguesia



Comissões de moradores



Comissões de trabalhadores



Paróquias

Programação autor: António José Castanheira Maria Nabais 1- Introdução A programação começa por definir as premissas a partir das quais o museu será organizado •

Como Museu Municipal, visa garantir a identidade colectiva do Município



Como Museu Municipal, destina-se a “documentar no domínio da Geografia Humana, da História e da Arqueologia a formação e desenvolvimento do Concelho.”a



Como Museu Misto, não pretende mais do que fornecer “Chamadas a propósito das quais se dará uma explicação.”b

2- História do desenvolvimento do Ecomuseu do Seixal 2.1- Fases principais da iniciativa camarária: •

Admissão de 4 historiadores para efectuarem o levantamento histórico-cultural do Concelho



Criação do sector do Património Histórico-Cultural dos Serviços Culturais da Câmara do Seixal



Aquisição de 2 Moínhos de Maré, com o objectivo de garantir o seu funcionamento e musealizá-los.



Aquisição de 3 embarcações típicas do Tejo (Falua, Fragata e Varino)



Reserva de espaços para exposições na Torre da Marinha, Amora e no Seixal

2.2- Actividades do sector do Património Histórico-Cultural •

Recolha de utensílios usados nas actividades económicas do concelho ( pesca, construção naval, moagem, transporte fluvial e terrestre, agricultura e indústria)



Recolha de testemunhos orais entre a população da 3ª Idade

a

Sic CHICÓ, Mário Tavares.

b

Cf MOITA, Irisalva, Fundamentos de um Museu de Lisboa, Lisboa, 1973

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Apresentação de proposta - relatório - para a classificação dos moínhos de maré como Edifícios de Interesse Público



Dinamização de reuniões nas Juntas de Freguesia, Colectividades e Escolas.



Participação em actividades culturais dentro e fora do concelho



Elaboração de publicações 1.1- Documentação para professores e alunos 1.2- História do Concelho do Seixal ◊

Cronologia



Barcos históricos



Elementos para Colectividades



Forais



Moínhos de Maré



Organização de visitas guiadas



Organização da Exposição: O Trabalho na História do Concelho do Seixal

2.2- Participação da População A participação da população destaca-se nos seguintes aspectos: •

Transmissão de informações



Doação de peças



Organização da exposição de 1981



Exposições temporárias nas Escolas

3- Finalidades do Ecomuseu do Seixal Tendo como objectivo fundamental fomentar o desenvolvimento da comunidade, a intervenção social do ecomuseu foi concebida a partir de uma análise das alterações verificadas no concelho nas últimas décadas. Essa apreciação conduziu às seguintes conclusões: 1. Acelerado processo de industrialização transformou espaços ocupados pelas quintas em unidades fabris e bairros residenciais. 2. Poluição das águas do Tejo conduziu ao desaparecimento de muitas espécies de peixe e dos viveiros de ostras 3. Rápido crescimento populacional

Para caracterizar com maior acuidade o momento presente, procedeu-se a um reconhecimento sociológico do Concelho. Desse reconhecimento destacam-se o funcionamento do concelho como área de residência, tendencialmente descaracterizada, com uma apreciável população em idade escolar que frequenta estabelecimentos de ensino cuja maior parte dos professores não pertencem ao Concelho, desconhecendo, portanto, a realidade local.

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Estes e outros factos que os estudos preparatórios da organização do projecto evidenciaram, vieram reforçar a convicção inicial de que a criação de um ecomuseu no concelho do Seixal, se justificava plenamente. Em seguida, com base nos conteúdos espcíficos das várias recolhas, estudos e contactos estabelecidos com a população, a programação avançou no sentido de definir os objectivos específicos que deveriam estabelecer a “política” e a dinâmica do ecomuseu. Por dizerem exclusivamente respeito ao projecto do Ecomuseu do Seixal, e se referirem a uma realidade radicalmente distinta daquela que se verifica no Concelho de Castro Daire, dispensamo-nos aqui de os transcrever.

4- Fundamentos do Museu Neste item, encontra-se reunida a bibliografia de suporte à programação do ecomuseu. Pelas razões anteriores dispensámo-nos de transcrevê-la, registanto unicamente a importância que o museólogo programador neste caso atribuiu à sua compilação e pensamos também, permanente actualização.

5- Organização, localização de espaços e funções. Como em tantos outros projectos similares no nosso país, preferiu-se também aqui recorrer à adaptação de edifícios disponíveis, para abrigarem as vários funções do ecomuseu.. A- Edifício-Sede Relativamente ao Edifício-Sede, como já se disse, a sua sede provisória localiza-se na Torre da Marinha, em instalações desactivadas de uma Escola, e os espaços e as suas funções respectivas, distribuem-se da seguinte maneira: •





Espaços Públicos ◊

Recepção - compreende o acolhimento específico a deficientes e crianças



Telefone



Lavabos



Exposição permanente

Espaços Semi-públicos ◊

Direcção



Sala de reuniões



Biblioteca e sala de leitura



Sala polivalente (audio-visuais, conferências)



Serviços administrativos



Investigação



Lavabos

Espaços privados ◊

Reservas

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Conservação



Arquivo



Apoio técnico



Oficina/armazém



Arquivo Histórico Municipal

B- Exposição Permanente Título genérico da exposição: “O Território - O Homem - A História” Organizada cronologicamente, focando os seguintes temas: •

História e Geografia Locais



Etnologia



Arqueologia Naval



Arqueologia Industrial



Aspectos da vida actual do Concelho.

Exposições Temporárias A realizarem-se em três espaços cedidos pela Câmara Municipal para o sector do Património Histórico-cultural. São eles: 1. Antigo Mercado do Seixal 2. Amora - uma sala junto ao Centro Comercial 3. Moínho de Vale de Milhaços

Outros Núcleos: Para evitar repetições inúteis, daqui em diante procederemos, em simultâneo, a uma descrição e análise detalhadas de dois núcleos do ecomuseu do Seixal, e a partir desta amostra pensamos poder estar em condições de fazer uma apreciação de uma experiência museal bastante representativa do rosto da nova museologia em Portugal.

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Avaliação do Projecto Numa perspectiva sistémica que é, aliás, coincidente com o que a nova museologia defende, toda e qualquer organização carece de formar uma representação das suas condições internas e/ou externas de funcionamento, para que com base nessas informações se (r)estabelecer de acordo com as alterações endógenas e/ou exógenas detectadas. Em museologia, como em pedagogia, esse objectivo é alcançado através da avaliação. Claro que nós não somos possuidores de todos os elementos necessários a uma avaliação integral do projecto, que em rigor somente o museu em causa conhece em toda a sua extensão. Fazê-lo, implicaria escrever uma outra tese especialmente consagrada a esta temática, o que agora vendo bem poderia ter bastante interesse. Se não o fizemos, foi porque aquilo que julgamos efectivamente constituir o núcleo e a essência do nosso trabalho, não é tanto o acto de avaliar ou criticar por si só, mas sim o acto de criar um projecto comunitário novo, a partir de uma apreciação de outros projectos similares. Será, portanto, uma avaliação parcelar aquela a que iremos proceder, em grande parte baseada na nossa leitura e interpretação do que nos foi dado ver, ouvir e ler sobre este projecto, numa tentativa de assinalar desvios entre teoria e prática, e entre concepção e realização, à luz da declaração de princípios que a “Definição Evolutiva de Ecomuseu” de Georges Henri Rivière consagra. Para o fazermos, confrontaremos o sistema “ecomuseu do Seixal”, com um leque de perguntas que incidem sobre as estruturas e funções do programa e da actuação, com o propósito de qualificar a concepção, organização e funcionamento do projecto museológico. Começando pelo plano estrutural: O sistema ajusta-se bem à realidade local? Existe uma rede de comunicação e de interrelação entre os elementos que o constituem? Possui os recursos e os meios indispensáveis ao seu desenvolvimento? Estabelece relações e contactos com o exterior? E no plano funcional: O sistema funciona bem? Tem impacto na população? Contribui para o desenvolvimento comunitário? Reflecte a identidade cultural da comunidade? Abre novas perspectivas de futuro? Constitui um instrumento de reflexão e de inovação sócio-cultural? Começando pelos aspectos estruturais, nós consideramos que os três núcleos que visitámos não conseguiram ainda libertar-se de um certo isolamento e de um certo artificialismo. Isolamento, porque o ecomuseu não definiu e explorou circuitos de descoberta e circuitos de observação entre os vários núcleos museológicos. Localizado em ambiente urbano densamente povoado, o ecomuseu do Seixal não encara o território como espaço musealizável, e exprime-o e interpreta-o de forma hierarquizada e selectiva. Valorizando fundamentalmente os bens arqueológicos e monumentais, o programa do ecomuseu não prevê a elaboração de roteiros turísticos, turístico-culturais, gastronómicos, arquitectónicos ou de conhecimento geral do Concelho com itinerários temática e/ou cronologicamente organizados. Tudo se passa como se, apesar do autocarro que a Câmara Municipal põe à disposição do

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ecomuseu para garantir as deslocações no seu território, o meio ideal de transporte entre os vários núcleos fosse o helicóptero! Mas para dá do isolamento, também julgámos detectar algum artificialismo. Na nossa opinião, nos núcleos não se respira a frescura da nova museologia de que se reclamam. A museografia é por vezes rígida, convencional e monótona. Expliquêmo-nos melhor e de forma mais sistemática. Em relação ao Núcleo Naval - inaugurado em 1984 - cujas embarcações aì restauradas (fotografias nº 1 e 2), de certa forma funcionam como ex-libris do ecomuseu, discordamos da forma como o espaço de exposição foi organizado. Começando pela análise do exterior, se compararmos a sua imagem actual (fotografia nº3) com a imagem original, tal como ela figura na maquete em exposição (fotografia nº 4) verificamos que em nada é aparente a utilização original das estruturas edificadas como estaleiro naval. Para lá de não se ter refeito a grua, o que puderemos aceitar na base de uma argumentação de não desrespeito da autenticidade, nem na construção da cobertura, nem na organização do espaço envolvente houve um mínimo de preocupação em evidenciar uma intenção de musealização do território, nem que para tanto se procedessem a escavações arqueológicas. Pelo contrário, a única preocupação parece ter sido a de construir mais um espaço de exposição permanente, complementado, é certo, por uma oficina de carpintaria naval, cuja análise faremos de seguida. O resultado final esteticamente é quanto a nós infeliz. Não houve a preocupação de ocultar fios eléctricos e telefónicos, permitindo-se que aos edifícios fossem adossados os mais prosaicos exemplares do nosso mobiliário urbano (caixote do lixo, contador da água, luz, sirene e dispositivo de alarme). Por outro lado a presença de uma carcaça de embarcação em completa ruína e de um velho Mini abandonado (fotografias nº 9 e 10), conferem a este conjunto uma relação algo sinistra com o estuário do Tejo. Relativamente aos espaços interiores, começando pelo núcleo de exposição permanente, quanto a nós trata-se de um espaço incaracterístico que à parte um certo cuidado em relação à manutenção de uma estrutura tradicional de telhado em madeira, museograficamente é rígido, apresentando vitrines e expositores aparentemente fixos (ver fotografias nº 5, 6, 7 e 8). A iluminação é fraca e insuficiente. Por alguma razão que não compreendemos, a funcionária mantinha todas as janelas fechadas e as luzes apagadas, entrando unicamente claridade por uma porta aberta, virada a Poente (rio) e meia-portada aberta, virada a Sul. A maior parte dos materiais expostos são modelos finaisa de embarcações tradicionais do Tejo, realizadas na oficina de carpintaria naval que funciona ao lado. Paralelamente dentro e fora das vitrines, alguns instrumentos ligados à construção e utensilagem naval ajudam à contextualização da documentação visual e escrita sobre as técnicas e materiais próprios de um estaleiro tradicional. Sobre o espaço da carpintaria, trata-se de uma oficina ampla bem equipada, iluminada e arejada que apresenta boas condições para trabalhar (ver fotografia nº 11). Museograficamente, à parte uma antiga bancada de carpinteiro de cor azul, os restantes materiais, acessórios e ferramentas são modernos a

Esta opção por expôr unicamente este tipo de maquetes parece-nos discutível. Seria interessante que a par dessas se expusessem outras, que pudessem ilustrar os passos mais significativos da construção e assim conferir alguma vida mais à exposição permanente

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e aparentemente de fabrico industrial, facto que provoca uma sensação estranha que a opção pela madeira como único material de construção presente agrava, e que não sendo indicadora de uma intenção assumida de ruptura com a construção tradicional, faz com que fique a pairar no ar uma certa ambiguidade contrária ao rigor que deve prevalecer nestas intervenções. É evidente que não nos encontramos aqui perante uma musealização, como atesta a inexistência de legendas e barreiras para o público. Mas ainda assim, a presença de materiais antigos juntamente com modernos é chocante, e pelo menos aqui julgamos que resultou mal. Nesta carpintaria são organizadas actividades de iniciação à construção naval tradicional, através da elaboração de modelos das principais embarcações. Nestas actividades participam alguns jovens em idade escolar. O actual responsável pelo seu funcionamento é o Sr. Arnaldo Cunha, antigo mestre carpinterio naval que inquirido por nós sobre o grau de adesão até ao momento conseguido, disse, cito de cor, que “a malta das escolas não quer saber da construção artesanal, só quer dinheiro fácil”. De acordo com o seu depoimento, os alunos que vão à oficina em visitas de estudo não se interessam minimamente pela carpintaria naval, porque consideram que não tem futuro. Na sua opinião, o desagrado em relação ao núcleo naval chegou já a manifestar-se por actos de vandalismo, como deitar mais do que uma vez fogo à carcaça de embarcação, de que já falámos, que se encontrava junto ao estaleiro para ser restaurada (ver fotografia nº 10) e que agora já não tem salvação possível. Em síntese, o núcleo naval, no nosso ponto de vista, encontra-se mal integrado no espaço e as actividades que promove estão desfasadas do seu público-alvo: os jovens. De facto, mais do que um restauro, as operações de recuperação das instalações do antigo estaleiro constituem uma reconstrução. O tipo e o acabamento das madeiras utilizadas na construção dos dois corpos, são os de hoje, não existindo um único local onde se jogue com a presença de diferentes épocas, nem mesmo ao nível dos pavimentos, que julgamos que seria sempre possível fazê-lo, se existisse essa intenção. Principalmente no interior da oficina de carpintaria, julgamos que se poderia ter optado por uma verdadeira musealização, nem que não fosse apenas numa pequena secção do espaço interior, como forma de lhe conferir uma maior autenticidade e, inclusive, queremos crer, poder mais facilmente motivar e mobilizar os jovens para as actividades aí desenvolvidas, pois uma coisa é trabalhar numa oficina qualquer, outra muito diferente é trabalhar numa oficina que prolonga as tradições navais das caravelas e das naus do tempo das Descobertas. Mas será possível transmitir à comunidade essa intenção, num espaço revestido a ripas de pinho escurecidas com bioxene e aparentemente enceradas, adulterando totalmente o ambiente próprio de uma carpintaria, e transformando-a numa espécie de oficina de bricolage doméstica do tipo «faça você mesmo»? Algo está mal, portanto. No nosso ponto de vista, a programação da revitalização das actividades artesanais tradicionais, porventura mais do que qualquer outro tipo de opção, não pode ser decidida de forma unilateral e directiva, sob pena de degenerar. Neste capítulo, todas as acções devem ser precedidas de consultas ao público-alvo potencial, e o seu “renascimento das cinzas” deverá resultar do envolvimento desse sector específico da população no projecto, por forma a que a comunidade nele se reveja, reconhecendo-o como veículo insubstituível de expressão de uma identidade sua, antes perdida. Não quer isto dizer, que, caso a população não manifestasse interesse por essas actividades, os pro47

jectos de musealização, de reabilitação e de restauro considerados vitais do ponto de vista de uma museologia clássica, se não realizassem, mas unicamente que os projectos de desenvolvimento comunitário que à partida lhe estariam, numa perspectiva de nova museologia, associados, não sendo ainda viável a sua implementação, deveriam esperar algum tempo mais, até que a população, entretanto mobilizada por outros projectos de melhor aceitação, gradualmente fosse reconhecendo e partilhando esses novos valores. Núcleo fundamental do ecomuseu do Seixal, o Moínho de Maré de Corroios (fotografias nº 12 e 13) apresenta também alguns problemas. Claro que nos encontramos aqui perante uma construção de características monumentais que lhe conferem uma expressão de grande interesse e qualidade museal, e antes de dizer seja o que fôr há que reconhecer que a intervenção aí operada foi pensada ao pormenor, havendo indicações de ter sido precedida de uma aturada investigação histórica e arqueológica, como é logo à entrada apresentado ao visitante (fotografia nº 14). Quanto a nós, porém, apesar do valor e da forma cuidada de que se revestiu a musealização daquele espaço, a sobrecarga, para não dizer panóplia, de instrumentos, de engenhos, de objectos e de informações é excessiva. Apesar de desconhecermos o diagrama “original” de preenchimento do espaço, em termos de aproveitamento pedagógico, tal como é apresentado agora, temos algumas dúvidas de que esta musealização funcione bem. Em casos como estes, é evidente que não é pacífico definir critérios de musealização, como por exemplo optar por uma reconstituição que privilegie a diacronia, dando assim destaque à evolução do engenho através dos tempos, ou por outra que privilegie a sincronia, reconstituindo o seu aspecto em determinado período, por convenção considerado mais representativo. Seja como fôr, julgamos que não é lícito abusar dos níveis cronológicos dos registos em presença, quando se trata da reconstituição de um espaço homogéneo (fotografias nº 15 e 16). Quanto aos restantes aspectos, não colhemos evidências de uma dinamização suficiente do espaço de auditório criado no piso superior (fotografias nº 17 e 18). As conferências, os colóquios e os debates que sabemos serem aí realizados, não se inscrevem em acções regulares de participação comunitária, mas fundamentalmente têm estado mais vocacionadas para a reunião de especialistas ou de notáveis, denotando assim algum elitismo. No Núcleo-Sede não registámos imagens. Preferimos visitá-lo apenas de bloco de notas na mão. Começando pela exposição permanente, esta pareceu-nos bem estruturada, com um percurso bastante claro e fácil de seguir. Trata-se de uma exposição temática cronologicamente sequenciada, como se explica na programação. Museograficamente, a linguagem não é, porém, muito rica, notando-se aqui e além um peso e uma densidade excessivas da informação escrita e visual em relação aos materiais exibidos, o que confere ao discurso expositivo, por vezes, um aspecto de manual didáctico de História, banalizando-o e pecando por um excesso de linearidade. De resto, o Núcleo-Sede apesar de funcionar em instalações provisórias, encontra-se munido das estruturas imprescindíveis a um funcionamento sem bloqueios, como se previu na programação dos espaços. As áreas são reduzidas, mas as actividades que aí se podem dinamizar são variadas e enrique-

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cedoras. Não lhe faltam espaços como biblioteca, auditório, ateliers, salas de reunião, limpeza e restauro, loja de publicações, etc. Também, em termos globais, os recursos e meios de que o ecomuseu dispõe, parecem-nos suficientes, encontrando-se o sistema equipado de espaços para exposições permanentes e temporárias, serviço educativo, biblioteca, arquivo, conservação, centro de documentação, reservas, auditórios, salas de reunião, lojas, autocarro para deslocações, etc. Ainda assim faz-se sentir a falta de espaços de lazer e de convívio. Por exemplo, junto ao Moínho de Maré de Corroios, julgamos que se justificava a criação de uma esplanada ou bar no terreno que dá acesso ao monumento, por forma a animar aquele espaço, desde que essa esplanada ou bar, que poderia ser explorada em regime de concessão, não originasse conflitos em relação ao movimento de peões e dos automóveis que por aí circulam, respeitasse a distância regulamentar, não se sobrepusesse ou perturbasse a leitura da silhueta do monumento em nenhum dos pontos de vista fundamentais, de preferência procurando tirar partido da relação com o rio. Pensamos que não faz sentido avançar aqui uma sugestão, coisa que somente um arquitecto ou um Gabinete de arquitectura, de preferência em regime de concurso público, teria autoridade para fazer. Sobre a abertura do ecomuseu ao exterior, convém lembrar aqui que relativamente próximo do Seixal, em Alcochete, existe um projecto similar de ecomuseu, em fase adiantada de organização, e o facto é que em nenhum lugar encontrámos referência a interacções ou intercâmbio de experiências. Também a relação com a Capital não nos parece ser suficientemente explorada, apesar desta partilhar com o ecomuseu o rio Tejo e verificarem-se tantas deslocações diárias entre o Seixal e Lisboa. Ao contrário, por exemplo, da programação do ecomuseu integrado do Bairro de S. Cristóvão no Rio de Janeiro que não considerava a população aí residente como seu público-alvo exclusivo, duvidamos da capacidade da programação do ecomuseu do Seixal integrar uma comunidade mais vasta, formada por residentes da Margem Norte, ou por quem elege a Outra Banda como futura área de residência. Ainda assim, pensamos que a estrutura polinucleada escolhida pode servir os objectivos para que foi criada, e apesar das dificuldades, não conseguimos ver como seria possível dinamizar social e culturalmente este Concelho nas suas várias vertentes, se não se optasse por um modelo descentralizado de organização. Só que não basta considerar os modelos sob uma perspectiva estrutural, é necessário analisá-los, paralelamente, sob o ponto de vista funcional. Relativamente a esse aspecto, as nossas dúvidas são imensas. As perguntas anteriormente colocadas - saber se o sistema funciona bem, se tem impacto na população, se contribui para o desenvolvimento comunitário, se reflecte a identidade cultural da comunidade, se abre novas perspectivas de futuro, se constitui um instrumento de reflexão e de inovação socio-cultural - arriscam-se a ficar sem resposta. Como sondar estes aspectos, sem possuir uma chave, sem possuir um instrumento de análise do efeito social do ecomuseu? Não existindo ciclos de retroacção em funcionamento permanente ou regular numa organização, esta não encontra maneira de representar perante si mesma o estado geral das condições de funcionamento interno e externo do sistema, e arrisca-se a tornar-se uma instituição estática, funcionando indefinidamente de acordo com os mesmos pressupostos e procedimentos de sempre, e correndo o risco de definhar, progressivamente. Claro está que para avaliar correctamente a di49

nâmica de uma organização sócio-cultural, não basta analisar os números relativos à frequência dos seus visitantes ou intervenientes nas diferentes actividades. Muitos outros aspectos, igualmente de natureza meramente quantitativa, como a duração média das visitas e das actividades desenvolvidas pelos participantes - tempos e/ou fluxos - a taxa de participação nas actividades do museu por parte das mesmas pessoas, o número de acções organizadas conjuntamente com entidades e representantes da comunidade, por ano, etc., etc. Paralelamente, há a necessidade de proceder a sondagens qualitativas inquéritos - que não precisam de ser preenchidos pela totalidade do público ou da população, desde que sejam distribuídos de forma aleatória (existem tabelas de números aleatórios especialmente elaboradas para fins estatísticos), facilitando a sua correcção. Até lá, fica a opinião pessoal de que o efeito social do ecomuseu do Seixal, ainda não é suficiente, e que para lá das acções organizadas pelo Serviço Educativo com o propósito de divulgar e promover o património local, junto da população, nomeadamente escolar, deveriam igualmente ser organizados, colóquios e debates abertos à comunidade sobre temas que de alguma forma sejam actuais, mesmo que remotos do ponto de vista cronológico (ex: gravuras de Foz Côa, Dinossauros, Alterações do ambiente e do clima, organização de projectos de investigação patrimonial e museológica). Por outro lado, havia também interesse em melhorar a museografia que, diga-se de passagem, mesmo na exposição permanente nos pareceu exprimir a histrória da região de uma forma demasiado linear e compartimentada, como se o tempo histórico não possuisse os seus ciclos, ritmos, evoluções e involuções. * Em síntese, a programação escolhida, apesar de formalmente bem concebida, preparada e sistematizada, não se integra perfeitamente na realidade local. O ambiente urbano coloca problemas muito diferentes e mais complexos do que o ambiente rural, em que o museu parece inspirar-se. O exacerbado dinamismo dos sistemas sociais, a variação muito rápida dos padrões de comportamento que são próprios das populações mais jovens, colocam dificuldades acrescidas de aceitação de uma reconciliação que por vezes pode parecer nostálgica com as tradições. Para se libertar destes constrangimentos, pensamos que a programação deste ecomuseu deveria ser revista, não no sentido de alterar a configuração da sua estrutura, mas no sentido de a dotar de um novo fôlego, através de uma reformulação da participação comunitária, integrando-se mais activamente nas comemorações e festividades locais, concomitantemente ensaiando a sua abertura e projecção para lá dos limites convencionais do próprio município, com o propósito de desde já antecipar a organização de programas e actividades comuns entre as margens e as povoações do Tejo, que o estabelecimento de novas ligações fluviais, ferroviárias e rodoviárias cada vez irão tornar mais próximas umas das outras. Uma abertura ao futuro, portanto, programada a partir de objectivos museais específicos. Objectivos esses que visariam uma coordenação e uma integração global dos vários projectos de preservação e de valorização do património natural e cultural de toda a região.

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2.2- O Ecomuseu de Alcochete

As informações que conseguimos reunir sobre este projecto não foram muitas. O artigo de António Nabais sobre o desenvolvimento dos ecomuseus em Portugal na Revista Museum, sobre este projecto diz:

“À Alcochete, sur la rive sud d l’estuaire du Tage, la phase d’organisation de l’écomusée est déjà avancée. La municipalité a pris des dispositions voulues pour qu’il puisse s’ouvrir, en aménageant des locaux pour la section centrale et des antennes muséologiques réparties sur le territoire de la circonscription, et en fournissant un soutien à la recherche, notamment dans les domaines de l’archéologie, de l’étnologie et de l’histoire. [...] La section centrale présente sous forme diachronique l’«homme» et le «territoire» de la municipalité. Les antennes traitent des activités économiques qui étaient naguère les plus répandues dans la région, comme l’exploitation des marais salants, l’agriculture, la construction navale et les transports fluviaux. La section des salines se compose d’une ancienne exploitation qui, à côté d’autres marais salants déjà modernisés, continue à fonctionner avec un équipement traditionnel: bâtiments annexes, utensiles, pompe, machines... Une ancienne ferme abrite la section rurale; on y trouve les équipements d’apprivisionnement en eau utilisés localement: noria, puits, réservoir. [...] D’autres antennes seront crées dans la circonscription afin de préserver in situ les vestiges matériels les plus significatifs de l’histoire locale: fours à pain, fours à chaux, fours à céramique, moulins à vent, etc. Parmi les itinéraires muséologiques figureront les visites à l’estuaire du Tage, partiellement située sur le territoire du Conseil, et au centre historique de la ville. Pendant la phase d’organisation, des visites d’étude, des colloques et des expositons ont été mis sur pied à l’intention de la population locale, et en particulier scolaire.”a

Como o texto o demonstra, este projecto apresenta várias semelhanças com o do Seixal. Como neste último, trata-se de um ecomuseu cujo território coincide com uma municipalidade. Trata-se igualmente de um modelo polinucleado cuja programação estabelece como disciplinas base a arqueologia, a etnologia e a história e interpreta o território fundamentalmente a partir das relações que o homem ao longo do tempo aí desenvolveu através das actividades económicas. Tal como no ecomuseu do Seixal, é o património material que tem a primazia sobre o imaterial, e é o património cultural que se sobrepõe, por maior tratamento museográfico, ao natural, embora no caso do ecomuseu do Alcochete essa diferença tenda a ser menor, como se pode perceber pelo cuidado em criar itinerários de descoberta que além de compreenderem o centro histórico da cidade, se estendem ao próprio estuário do Tejo. Sobre este último ponto, muito nos impressionou, pela positiva, quando nos deslocámos a Alcochete, o trabalho paralelo levado a cabo pela Reserva Natural do Estuário do Tejo, que tem sede aí, (fotografia nº 19) e funciona como organismo ligado ao Instituto de Conservação da Natureza (ICN). No Rés-do-Chão das suas instalações, decorria um exposição de fotografia subaquática subordinada ao tema Planeta Água (fotografia nº 20 e 21). No andar superior, funcionam os serviços propriaa

In, Museum nº 146, 1985, p. 214-215

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mente ditos da instituição, onde uma série de folhetos explicativos, bastante bem organizados e apresentados, elucidam o leitor sobre os aspectos fundamentais da fauna e flora, daquela reserva natural que compreende uma parte do território do Município de Alcochete. Da breve visita que fizemos a Alcochete, foi esta a única instituição que pudemos visitar, uma vez que tanto o Museu Municipal, como o Museu de Arte Sacra (fotografia nº 22) se encontravam encerrados, pois além da segunda-feira, também a terça-feira constitui, para surpresa nossa, dia de descanço semanal. Ainda assim, deslocámo-nos às salinas de Samouco para visitar o Museu do Sal. Em síntese, do projecto de Alcochete, retiramos a ideia fundamental de que o território é encarado como espaço musealizável, não se fazendo sentir uma hierarquização tão forte como no Seixal do património monumental, e pareceu-nos que a menor pressão urbana que ainda se exerce sobre Alcochete poderá constituir uma vantagem que, a não ser de imediato aproveitada, poderá rapidamente perder-se, uma vez que a nova ligação rodoviária com a margem norte, e com a Expo 98, está já a ser construída, e como tivemos oportunidade de verificar, passará muito próximo das salinas de Samouco. Face a esta situação, registamos a aparente descoordenação ou desarticulação entre os organismos Ecomuseu de Alcochete e Reserva Natural do Estuário do Tejo. O primeiro ligado ao poder local e o segundo ligado ao poder central, dispõem de meios e recursos muito diferentes que poderiam muito bem completar-se mutuamente, o que pareceu-nos que não acontecia, embora consideremos que deveremos ser prudentes na avaliação, porque não nos foi possível reunir informação suficiente para o afirmar peremptoriamente.

2.3- O Museu Rural e do Vinho do Cartaxo Apesar do nome não o reflectir, o Museu Rural e do Vinho do Cartaxo pertence à família dos ecomuseus, como explica António José Nabais, seu museólogo programador:

“O Museu Rural e do Vinho do Cartaxo não se reduz a uma colecção ou a um espaço, mas engloba todos os testemunhos materiais e espirituais que ajudam a compreender a organização e evolução da vida rural no Concelho e estende-se a todo o território do Município. É um ecomuseu com núcleos e itinerários que permitirão a descoberta do «habitat» ribatejano, da paisagem e das actividades económicas antigas e actuais do Concelho e ao mesmo tempo, fornecerão elementos para a sua interpretação e desenvolvimento.”a

Como se pode observar no mapa anexo, o território deste ecomuseu abarca todo o Município do Cartaxo, estruturando-o em dois itinerários distintos: o «Bairro» e o «Campo», separados um do outro pelo traçado da linha férrea. Ligadas ao primeiro, encontram-se as freguesias do Cartaxo, Vale da Pinta, Ereira, Lapa, Pontével, e parte de Vila Chã de Ourique. Ligadas ao segundo, encontram-se as freguesias de Valada e parte da freguesia de Vila Chã de Ourique.

a

In, Museu Rural e do Vinho do Concelho do Cartaxo, Comissão Instaladora do Museu Rural e do Vinho do Concelho do Cartaxo, Câmara Municipal do Cartaxo, 1985.

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Um e o outro compõem duas paisagens rurais bem distintas. O «Campo» compreende a planície que corresponde aos depósitos quaternários, e para lá da produção de vinho branco de alta qualidade, são cultivados aí também o trigo, o milho, o arroz, o tomate, o melão e outros hortícolas, em simbiose com o Tejo que constitui a moldura envolvente da zona meridional do Concelho do Cartaxo. O «Bairro» compreende os planaltos miocénicos, por vezes recobertos de camadas pliocénicas, onde se produz vinho tinto de alta qualidade, bem como algumas searas de trigo e olivais, e se destacam alguns moinhos, como vestígios de uma indústria rural que utilizava a energia eólica. O Núcleo Sede do ecomuseu localiza-se na Quinta das Pratas, propriedade adquirida por deliberação camarária de 21 de Março de 1979, aos herdeiros do banqueiro Francisco Vieira Machado, cujos vastos espaços partilha com o Complexo Desportivo e Cultural da Quinta das Pratas. As instalações do Museu repartem-se por um Edifício Principal, em remodelação (que abriga a Recepção, as Exposições Temporárias, os Serviços, o Auditório e as Reservas), um Celeiro (Exposição Permanente: tecnologia rural do vinho; produção de azeite e cereais; Cavalo e Touro), Alpendre (exposição permanente: instrumentos e máquinas; hidráulica agrícola; transportes), Taberna (musealização: aspectos ligados ao consumo do vinho), Casa do caseiro, Jardins, Poço, Nora, Pomar e Vinha, ocupando no conjunto uma extensão de cerca de 20 ha. A colecção do museu é bastante rica, e resultou basicamente da aquisição, em 1982, pela Câmara Municipal, em leilão, da colecção de instrumentos agrícolas reunida pelo Lavrador e Ganadeiro Manuel Duarte de Oliveira. O projecto continua em desenvolvimento, como o provam as obras a que está a ser submetido o Edifício Principal, que por isso se encontra encerrado ao público. As vistas às exposições são orientadas por uma «Guia» cujas habilitações se restringem ao 12º ano, tendo sido destacada da Câmara Municipal do Cartaxo, a cujo quadro pertence, para exercer ali a actividade de vigilância e orientação da visita às exposições4. O horário das visitas é muito restritivo, encerrando à hora do almoço das 12:30 horas até às 15:00! A quando da visita que aí efectuámos, tivemos de esperar quase duas horas pela hora de abertura, e quando acabámos a visita, já pouco faltava para as 17:30 horas, que é o horário de encerramento! Relativamente à museografia, pareceu-nos bastante bem esquematizada. Ao contrário do ecomuseu do Seixal, aqui não se faz sentir uma tão grande falta de espaço, e uma distância suficiente separa os objectos e as peças expostas umas das outras. Também a informação escrita e visual suplementar não é excessiva, não deixando a sensação desagradável de substituição da peça pela sua imagem. Relativamente às exposições, as nossas maiores críticas vão para a conservação dos materiais expostos, uma vez que em virtude da elevada temperatura que se registava no interior do Celeiro, alguns desses materiais apresentavam indícios inequívocos de mau estado, não havendo praticamente nenhuma fotografia que não estivesse dobrada pelo calor, e mesmo numa ou outra zona onde a luz directa era mais intensa alguns dos materiais expostos se encontravam já um pouco desbotados, como acontecia em relação a uns manequins forrados de papel colorido, alusivos a festividades rurais. Espora-

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dicamente, pareceu-nos também que algumas das madeiras apresentavam sinais de exagerada secura. Infelizmente, não dispomos de imagens ilustrativas deste facto. Em parte alguma encontrámos termohigrógrafos para registar a evolução das condições de ambiente. De resto, todos os espaços que visitámos se encontram tematicamente bem estruturados e como diz Kenneth Hudson «contam uma história». No nosso ponto de vista, o maior problema deste ecomuseu são se situa no plano das instalações e dos equipamentos, ou seja das estruturas físicas, mas sim no plano das relações funcionais. Criado segundo as palavras de António Nabais graças “à iniciativa do Dr. Renato de Campos” Presidente da Câmara em exercício na altura da sua programação, o Museu Rural e do Vinho do Concelho do Cartaxo, encontra-se presentemente com menor actividade, em virtude da alteração da correlação das forças partidárias no Concelho que levaram à substituição da equipa camarária, sendo a sua anterior Directora a, então, Vereadora do Pelouro da Cultura, Maria José Campos, afastada das suas atribuições quer na Câmara, quer no museu, sendo o cargo de Director presentemente exercido pelo actual Presidente da Câmara. A História repete-se! Para surpresa nossa, uma experiência que nasce ligada à nova museologia deixa-se enredar nas malhas da política local. De que servem as recomendações e resoluções do MINOM5? De que serve a abertura do museu ao exterior, se o aparelho político-partidário se instala aí de armas e bagagens para utilizar o museu como palco ou tribuna de acção política, usando os seus espaços como moldura cultural promotora do seu próprio protagonismo? Mesmo acreditando que os políticos locais desejem que o museu se desenvolva o mais possível, pois daí decorre também o desenvolvimento da sua região, nós consideramos desaconselhável e contrário à deontologia museal que um cargo de Direcção de um museu local ou ecomuseu, possa ser exercido por um dirigente político, em regime de acumulação das suas funções. Pensamos que apesar deste princípio não constar expressamente das resoluções recomendações do MINOM, ele surge como consequência concreta da sua aplicação. Em sintese, o Museu Rural e do Vinho do Cartaxo é um projecto inequivocamente interessante e com valor. Pareceu-nos bem inserido na comunidade, coisa para que muito ajudou a decisão feliz de implantá-lo num centro cívico como o Complexo Desportivo e Cultural. Aliás, a visita que aí fizemos é um testemunho disso mesmo, porque além da guia que orientou a visita, um elemento da população local também seguiu a mesma, e era manifesto o seu interesse e apreço por tudo o que via. Essa foi uma nota positiva. Em termos estatísticos, tem sempre o valor de uma amostra. Mas seja como fôr, confessamo-nos desde já sensíveis a estes aspectos. É que o museu novo que está ainda por criar, não será seguramente um museu só de objectos. Nele, às pessoas, aos sujeitos individuais e/ou colectivos, caberá sempre um pepel fundamental e determinante, e nós não saberíamos isolar a análise da visita que efectuámos das circunstâncias específicas de interacção humana em que ela se desenrolou. Interacção essa que viria a culminar num solidário e cordial brinde com vinho abafado na taberna musealizada do ecomuseu, às «Águas do Cartaxo»!

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Assim sendo, os aspectos a melhorar aqui, quanto a nós prendem-se com a constituição de uma equipa museal inequivocamente autónoma, consciente da sua missão e da missão do ecomuseu. Uma equipe que desenvolva ausa própria metodologia de intervenção e dinamização social. Uma equipa que possua um estatuto definido e que seja aceite e reconhecida pela comunidade. Para finalizar, ficámos com a impressão de que os itinerários de descoberta, dentro das duas zonas do «Bairro» e do «Campo», ainda não estavam no terreno definidos, e não encontramos na loja do ecomuseu qualquer folheto que pudesse orientar e estruturar uma exploração do território concelhio. Aliás, e essa é uma das notas talvez mais marcantes das experiências e dos projectos que conhecemos, a inserção do museu no meio ambiente, ou seja, a construção do tal museu do espaço, será, porventura, uma das dificuldades maiores da prática da ecomuseologia no nosso país.

2.4-

Museu

Etnológico

de

Monte

Redondo

Nenhum outro se lhe compara! O Museu Etnológico de Monte Redondo (fotografia nº 23), fascinou-nos. E porquê? Talvez pela sua autenticidade, talvez pela sua rusticidade. Um museu de freguesia em pleno mundo rural, não pode deixar de surpreender, quanto mais não seja pela sua raridade.

fot. nº 23

Trata-se evidentemente de um museu que obedece a um modelo conceptual. Um museu local de Etnologia, visto fundamentalmente como Centro de Estudosa. Centro de estudos esse bastante bem fornecido, do ponto de vista qualitativo, de material (levantamentos, recolhas, publicações). Mas além disso, um museu que exibe uma notável Exposição Permanente sobre as actividades tradicionais existentes na sua área de influência (mapa nº 2), cuja simplicidade de meios contribui para sublinhar ainda mais a sua qualidade museográfica (fotografias nº 24, 25, 26 e 27). Qualidade museográfica, pela discreta harmonia cromática dos materiais e dos expositores, onde pontuam a côr branca e as diferentes tonalidades das madeiras. Qualidade museográfica, também nos engenhosos jogos volumétricos, quasi arquitectorais, dos expositores (fotgrafia nº 26), Qualidade museográfica ainda, no preenchimento equilibrado e ritmado dos espaços de exposição, aqui e além destacados com barras de acetato de côr amarela, para dar vida e animar as imagens e os materiais expostos (fotografias nº 24 e 25). Qualidade museográfica, acima de tudo, na reconstituição da oficina de carpinteiro (fotografia nº 27) onde, à parte o invólucro das paredes do museu, tudo o resto observa um rigor e uma autenticidade que falam por si.

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Mas nem tudo são «mares de rosas» e na verdade fomos encontrar em Monte Redondo um museu, por assim dizer, aparentemente, parado. Enquanto na região, várias organizações institucionais, populares e recreativas tinham agendados programas de animação cultural durante os meses de Verão, como consta do Calendário de Animação da Região de Turismo de Leiria, somente o Museu Etnológico de Monte Redondo não tinha agendadas quaisquer actividades, embora constasse da lista de museus que aí figurava, sendo descrito, nos seguintes termos: “MUSEU ETNOLÓGICO DO MONTE REDONDO: Museu Regional com actividades temporárias no espírito da nova museologia - Eiras - Monte Redondo - 2425 Monte Real - Tel: (044) 685159”. No texto em francês, a estas parcas informações acrescentavase ainda: “Horaire: Provisoirement, ouvert seulement en été.” É para nós evidente que um museu com as características deste não se encontra vocacionado para se tornar um museu de massas, pejado de turistas ávidos de pitoresco. Aliás pela pesquisa que fizemos, no passado o museu organizou actividades com a população, como refere Mario Moutinho quando diz que “a acção do museu junto das costureiras da região permite uma valorização profissional e social destas.”b Parece-nos fundamental que um nível de funcionamento intermédio entre o turismo de massas e uma actividade comunitária mínima, que mobiliza um círculo muiito restrito e monótono de pessoas, tem de ser encontrado, sob pena do museu correr o risco de deixar de aparecer paerante a população como um serviço público aberto a toda a comunidade, para surgir como uma associação cultural hermética e, de uma maneira muito peculiar, algo elitista, também. Em síntese, no Museu Etnológico de Monto Redondo encontramos ao mesmo tempo uma inspiração e um aviso. Inspiração pelo modelo conceptual subjacente à sua criação. Um Centro de Estudos como explica António Nabais: “La présence de toute une équipe de spécialistes, composée de d’anthropologues, de géographes, d’un historien et d’un ethnomusicologue, garantit la interdisciplinarité de la recherche.” Só que terminada a recolha, efectuados os etudos do património etnográfico da pequena zona de influência do museu, se não se viabilizarem formas comunitárias de interacção local e regional, o museu definha e com ele, também, o seu próprio projecto, de cuja perenidade a equipa museal tem a responsabilidade de ser o garante. Para evitar este problema, julgamos que um projecto como o de Monte Redondo, podia muito bem evoluir no sentido de serem aí ministrados cursos de museologia popular: formação de monitores, de funcionários museais, restauro e conservação, investigação patrimonial, etc., etc. Na região existem bastantes museus locais, que se encontram muito provavelmente carentes de quadros médios e de funcionários, conhecedores minimamente da actividade e da deontologia museais. Claro que uma estratégia assim implica dificuldades gigantescas. Questões como a angariação de professores e/ou orientadores, a definição dos programas, a obtenção do reconhecimento oficial dos cursos, a garantia de um número mínimo de inscrições, e claro está a expansão e adaptação das a

Cf MOUTINHO, Mário C., A Organização de um Museu Local de Etnologia, IPPC, Lisboa , 1986

b

MOUTINHO, Mário C, Museus e Sociedade, Museu Etnológico do Monte Redondo, !989, p.47

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instalações do museu no sentido de viabilizar o funcionamento de “uma escola”, são problemas complicados, principalmente numa região tão afastada dos grandes centros de decisão. Mas não valeria a pena, antes de mais, sondar a comunidade local e regional, institucional e científica, técnica e profissional no sentido de detectar a sua predisposição para participar, apoiar e dinamizar um projecto desta natureza?

2.5. Ecomuseu do Barroso

Trata-se de um projecto que se encontra ainda em fase de estudo. Programado inicialmente pelo arquitecto paisagista Fernando Pessoa cujos trabalhos sobre musealização e interpretação do território são referência quase única no nosso país, este projecto arrasta-se, e como iremos ver encontra-se na confluência de um emaranhado de tensões dialécticas bloqueado por uma complexa triangulação de poderes e contrapoderes, em cujos vértices se situam, por um lado, as estruturas administrativas do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), que têm poder de jurisdição sobre uma parte do território da Serra do Barroso, por outro, a Câmara Municipal de Montalegre de quem depende a aquisição de um espaço para funcionar como Núcleo Sede do ecomuseu cuja localização está já programada para Travassos do Rio e, por fim, a Igreja Católica que se faz representar pela pessoa do activo e influente Pe Lourenço Fontes6, com quem a comunidade parece manter um estreito relacionamento. Informados do projecto do ecomuseu do Barroso, fomos no dia 16 de Setembro surpreendidos por uma notícia do jornal diário O Público, que lançava o tema para a ribalta da comunicação social, divulgando a organização de um “ecomuseu temporário”, cuja iniciativa atribuía ao Pe Fontes. Segundo o articulista, a ideia do conhecido Padre Barrosão era de, durante uma semana, “abrir as portas de uma das mais belas aldeias do PNPG”: a aldeia de Paredes do Rio, situada na Freguesia de Covelães, no Concelho Montalegre que de 18 a 24 de Setembro iria viver, como refere o lead da notícia do Público, “uma espécie de viagem no tempo, transformando-se toda ela num imenso ecomuseu, espécie de mostra de actividades tradicionais em ambiente natural.”a Vejamos nas palavras do Pe Fontes, os objectivos desta acção:

“Será uma espécie de ecomuseu do povo, para se revitalizar os espaços e o legado dos nossos pais; no fundo, mostrar que Paredes não morre e está de pé. [...] O Parque tem outras aldeias típicas, como Tourém, Pitões das Júnias, mas estas não têm animação nenhuma e os usos e costumes vão-se perdendo; deveria dar-se a volta a isto e mostrar às pessoas que as suas tradições têm interesse e não podem morrer.”b

a

In, Ecomuseu em Paredes do Rio, Jornal O Público, 19 de Setembro de 1995, p. 58, Articulista, Celeste Pereira

b

Idem, ibidem

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Motivados pela notícia, dirigimo-nos ao local, para assistir ao culminar da experiência que iria ter lugar no Domingo seguinte, dia de encerramento daquele «ecomuseu temporário». Colhemos imagens fotográficas e de video, visitámos os locais onde decorriam ainda actividades e, por fim, trocámos algumas impressões com o próprio Pe Fontes, após um almoço colectivo num restaurante típico de Paredes, cuja realização havia sido viabilizada, através de inscrição prévia, pelo PNPG que ainda cedeu um autocarro para deslocações no terreno. O projecto do ecomuseu do Barroso, como pudémos verificar, reveste-se de grande importância para o nosso trabalho. Quer em relação ao ambiente geográfico, quer mesmo em relação a alguns aspectos do património cultural e natural, existe uma apreciável similitude de traços e de aspectos entre o território do Barroso e o território do Montemuro-Paiva. Uma mesma matriz agro-pastoril caracteriza os dois territórios, enquanto uma ameaça comum de desertificação humana e descaracterização cultural paira sobre ambos. Destes factos decorre a primeira ilação que julgamos lícito retirar-se: se é justificável a organização de um ecomuseu permanente no território do Barroso, de igual modo se justifica organizar também um projecto similar no território do Montemuro-Paiva.

Programação do Ecomuseu do Barroso Sobre a programação do Museu de Interpretação das Terras Barroso, recolhemos do Arqto paisagista Fernando Pessoa o seguinte sistema de interpretação museológica:

“TRAVASSOS DO RIO - aldeia ainda com muito interesse arquitectónico, toda ela um polo do museu: forno comunitário, corte do boi do povo, moinho do povo Aqui poderá ficar a sede do Museu do Barroso, num conjunto muito interessante de construções adquiridas pela Câmara Municipal de Montalegre, e para a qual se apresenta um esboço de adaptação. Aqui se conta a história e a vida da região, com documentos,peças de utensilagem, artesanato, gravuras, tudo quanto possa documentar de forma simples e dinâmica, o fio condutor da interpretação da região. Junto do moinho, e ocupando parte dele, poderá ficar uma exposição que conte o caminho desde o cereal ao fabrico do pão, fundamental para as novas gerações saberem o labor que fica acrescentado num pedaço de pão que se come PAREDES - toda a aldeia, recuperando algumas habitações, é um polo do museu. Existe um pisão reconstruído, a incluir no percurso do museu, e numa casa a reabilitar poderá instalarse uma sala temática ao conhecimento da agricultura do Barroso: a batata e o centeio, sobretudo. PITÕES DAS JÚNIAS - toda a parte ainda conservada da aldeia deve merecer trabalhos de recuperação, já que se não podem evitar as aberrantes construções entretanto erguidas. Existem ainda um forno do povo um moinho comunitário a reabilitar e incluir no Museu. O antiquíssimo Mosteiro de Santa Maria, a ser recuperado pelo Parque, deverá constituir um espaço para encontros culturais e uma sala temática dedicada à medicina e farmacopeias populares, tão vivas ainda no Barroso, e que será do maior alcance para o património natural e cultural da região. TOURÉM- toda a aldeia é uma peça do museu. Aqui se poderia instalar uma sala temática sobre a vida social dos povos de ambos os lados da fronteira, nomeadamente a história do couto franco que permaneceu até aos tempos modernos.

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MONTALEGRE- Sede do Concelho, com muito interesse patrimonial, e uma Câmara Municipal a acreditar que o Parque vai mesmo criar o seu museu, ao qual disponibiliza os meios ao seu alcance. Vamos a ver se o Parque cumpre. O castelo de Montalegre é uma bela peça de arquitectura militar medieval, e será o local indicado para uma exposição temática sobre a arquitectura do Barroso, desde as construções megalíticas às dos vários séculos subsequentes, tanto civis como religiosas e militares. FAFIÃO- aldeia ainda com muito interesse, onde existe um lagar e um fojo, a incluir no museu, e aqui se poderia instalar temática dedicada ao boi barrosão. POUSADA REGIONAL- não directamente ligada ao ecomuseu, mas ainda assim com ele relacionada; interessa recuperar um antigo solar ou casa senhorial, de que há belos exemplares em várias aldeias, Pitões em especial, para manter também este património construído mais erudito, e o seu uso poderia ser o de uma pousada regional, onde o acolhimento e a gastronomia sejam sob as formas tradicionais no Barroso, e a que se deveria acrescentar uma secção museográfica dedicada à vida doméstica e ao cotidiano dos povos da região.”a

A presente fómula não se trata de uma proposta museográfica, mas, como o autor refere, apenas de “um esquema de organização para propostas museográficas”. Apesar de ser, por isso mesmo, um tanto lacónica, esta proposta de organização contém para nós virtudes que os outros ecomuseus que visitámos não apresentam. Virtudes que se relacionam com o aproveitamento museográfico do património natural e com a relação estreita que na presente proposta se estabelece entre este e o património cultural.

a

PESSOA, Fernando, Museologia de Interpretação da Paisagem. Sistema museológico para as áreas protegidas do ICN, ICN, Lisboa, 1994, p.

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3- Registo de conclusões De tudo aquilo que foi anteriormente exposto, é fundamental retirarem-se as devidas conclusões, para que em face do diagnóstico dos problemas e das disfunções, se possa projectar uma terapia de remediação adequada ao contexto real da ecomuseologia portuguesa. Quanto a nós, as principais conclusões a tirar são as seguintes:

1. A ecomuseologia em Portugal ainda não se afirmou como movimento diferenciado da museologia, tornando-se por vezes ambígua a distinção entre museu local e ecomuseu. 2. A ecomuseologia em Portugal hesita entre a tutela local (Câmaras Municipais)e a tutela central (Instituto de Conservação da Natureza) Ambas as hipóteses parecem implicar progrmas e soluções diferentes do pnto de vista da interpretação do território e da mobilização da comunidade 3. Existe um problema fundamental de comunicação entre as populações e as entidades organizadoras dos projectos museológicos. Principalmente em ambiente rural, as populações locais têm dificuldade em designar ou encontrar os interlocutores válidos para fazer ouvir a sua voz a dinamizar a sua participação. 4. À falta dasses interlocutores, surge a tendência dessa mediação ser desempenhada por dirigentes políticos ou religiosos locais que muitas vezes terão dificuldade em ajustar a sua abordagem a uma perspectiva de gestão e revitalização do património. 5. Os projectos existentes não se encontram suficientemente enraizados na comunidade, existindo à margem das tradições locais que pretendem preservar e desenvolver.. 6. De um modo geral, nestes museus instalou-se a rotina, stringindo-se muitas das vezes as suas actividades de dinamização comunitária à colaboração e apoio às escolas. 7. Não se verifica uma mobilização suficiente dos sectores mais disponíveis da comunidade: as crianças em idade pré-escolar e os idosos.

Rapidamente são estas as conclusões que se nos afiguram mais pungentes. Ultrapassá-las não constitui tarefa fácil, pois não basta tomar consciência delas para as resolver. É necessário angariar os meios e recursos necessários e conceber conceitos e modelos alternativos. Seja como fôr, certo é que existe um espaço e uma necessidade reais para o desenvolvimento de projectos museológicos comunitários. Sem o seu empreendimento, dificilmente se poderá verificar o desenvolvimento social e identitário das comunidades. As transformações sócio-económicas, aliás, exigem-lo, sob pena de se romperem os laços com o passado, mantidos desde há séculos, pela partilha e vivência das tradições, com o presente.

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Mas essas mesmas transformações são favoráveis ao desenvolvimento da museologia, como os dados relativos à fundação de museus e à sua frequência no-lo atestam. Nas páginas seguintes, iremos ver como poderá a museologia adaptar-se à mudança fundamental que parece estar em curso, na génese de uma nova sociedade pós-industrial e informacional

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4- Uma nova museologia para a Sociedade da Informação “L’ordre ancien bouge: cette formule, vieille comme le monde, a pris un sens nouveau au débout des anneées 90. [...] Sur tous les continents, des bouleversements spectaculaires ont attiré l’attention du monde entier; d’autres sont plus localisés et moins connus en dehors de la région. L’attention que nous avons été contraints de préter aux problèmes liés à l’environnement est l’un des changements les plus lourds de conséquences. En même temps, les catastrophes écologiques — sécheresses, cyclones ou marées noires — nous ont fait prendre conscience de l’interdépendance planetaire et des limites de la croissance. Le partenariat, de nouvelles formes d’union politique et monetaire sont des éléments de plus en plus importants du nouvel ordre mondial. Que viennent faire les musées dans tout cela? Sont-ils simplement des dépositaires des preuves matérielles de la mémoire collective de ce qui fut?Les musées des sciences et les musées d’art contemporain seraient-ils les seuls en prise directe sur le monde d’aujourd’hui, les musées d’art s’occupant de l’art vivant, les musées de sciences se chargeant du monde des idées? Notre place dans la société reste-t-elle aussi statique que certaines de nos collections, ou les changements dans la société exigent-ils des changements dans les musées? Et si des changements s’imposent, sont-ils simple adptation à la réalité, ou appartient-il aux musées de prendre des iniciatives «au service de la société et de sont dévellopement»?” Brenda Berck, Musées: quelles limites?, in Museum nº 174

O mundo atravessa um período de profundas e extensas transformações. Os velhos antagonismos desvanecem-se, perante a percepção emergente da interdependência dos novos problemas. Em causa, está o relacionamento do ser humano consigo mesmo e com o seu ambiente, à medida que se torna cada vez mais clara a necessidade de trabalhar numa perspectiva convergente, de modo que a resolução dos novos problemas possa ser encarada e empreendida a nível global: a plataforma única e comum donde poderá gizar-se a sua superação. A ser assim, que lugar poderá a museologia ocupar neste novo contexto? Sobre este ponto, Brenda Berck lança ao ar algumas interrogações fundamentais. E fá-lo bem, porque independentemente da consciência ou do conhecimento maior ou menor que se possa ter de determinada realidade, todo o período de transformação representa colectivamente um exame e uma reformulação dos conceitos e dos juízos, a partir dos quais a comunidade, daí em diante, deverá (r)estabelecer-se. Interrogar-se é fundamentalmente sondar novas respostas, o que por sua vez implica rejeitar as velhas. Mudam-se os contextos sociais, alteram-se os conteúdos mentais, e vice-versa, também, no vendaval imparável da aceleração dos tempos. É justamente perante esta vertigem, que nós julgamos que a museologia deve posicionar-se, por assim dizer, como Guardiã da História. Guardiã, porque para lá das descontinuidades, rupturas e diferentes ritmos do tempo, para lá de todas as mudanças de conceitos e de contextos, existe um fio condutor imaginário que importa manter e indagar, e esse fio só pode ser o conhecimento que o ser humano extrai da sua própria evolução, para lá de todos os sobressaltos que possam povoar a sua jornada pelo tempo. Se se aceitar como premissa, que o fio condutor da História se identifica com a expansão da consciência, simbolicamente traduzida pela escalada constante do conhecimento humano, então, a res62

posta à indagação sobre qual o papel dos museus no novo contexto criado pelos anos 90, que a autora começa por formular no texto, terá necessariamente que passar pelo acto de contar e de interpretar fundamentadamente uma história sobre a História do conhecimento do Homem, pois, como diz Paul Veyne, a «História é um romance verdadeiro»a. Claro que o museu não pode reduzir-se à função de depositário das provas materiais da memória colectiva. Esse é o protótipo do museu mausoléu que se limita a resguardar os tesouros das investidas do tempo. Aliás, o drama desse tipo de museu traduz-se no facto de, dada a impossibilidade de conservar a totalidade das coisas, constantemente confrontar-se com a necessidade de hierarquizar e seleccionar os testemunhos, indo à revelia da filosofia da História, que actualmente considera que tudo aquilo que diz respeito ao homem é relevante, ao trocar a hierarquização dos acontecimentos, pela seriação metodológica dos factos e dos documentos que os sustentam, e por isso um tal museu encontra-se condenado a sucumbir sob o peso das suas próprias colecções, sempre que a profusão e variedade da produção material do homem se torne, como hoje em dia, alucinante. Os objectos não podem portanto constituir, doravante, a finalidade única do museu. Para lá dos objectos, o que se encontra presentemente em risco de se perder são os contextos das relações sociais e ambientais que foram vindo a estabelecer-se e a substituir-se desde o início da industrialização. Não faz sentido, também, como é sugerido no texto, operar cortes e amputações. Atribuir aos museus de arte e de ciência o privilégio da representação da contemporaneidade, é absurdo porque um tal reducionismo não goza de consenso generalizado no pensamento actual, e isso implicaria introduzir distorções tremendas nas representações que ficariam para o futuro, como testemunhos deste tempo. É que a actual fuga para a frente, que se verifica quer na arte, quer na ciência, determinada, no primeiro caso, por razões relacionadas com as tensões dialécticas que atingem os valores estéticos, e no segundo com as tensões dialécticas que atingem os valores éticos, arte e ciência só problematicamente são representativas do ser humano comum, e perante a ameaça do consumismo e da vulgarização, ambas pretendem autonomizar-se do tempo, exprimindo-se no tempo, mais do que exprimindo o seu tempo. Privilegiar esses museus, significaria, então, cair na vã-glória do elitismo. A explosão museal é pois um dado do nosso tempo, e como tal julgâmo-la incontornável. Inclusivé, ela surge como um movimento de alguma forma insólito, pois, tanto quanto se sabe, nunca antes, em período de transição tão abrupta como aquele que se vive actualmente - a chamada Terceira Vaga - parece ter havido uma preocupação tão grande de guardar e exibir as relíquias de épocas que a cada momento deixam inesperadamente de ser, perante os nossos olhos esbugalhados de espanto. Se calhar, é justamente por isso, porque as mudanças materiais e mentais são hoje tão rápidas que numa mesma vida se assiste ao submergir e emergir de uma tão grande variedade e disparidade de objectos e de contextos, que as pessoas procuram agarrar-se às coisas de antigamente, numa busca saudosa de um passado mitificado e apaziguador.

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VEYNE, Paul, Como se Escreve a História, Edições 70, Lisboa, 1983, p. 10.

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A isto chamam os museólogos, depreciativamente, nostalgia. Depreciativamente, porque ninguém deseja ser cúmplice da mistificação cultural que tantas vezes grassa no Ocidente, o que, em si, nos parece ser justo. Mas para lá de todas as mistificações, os fenómenos da explosão e da inovação museais das últimas décadas são bem o efeito e o sinal da acção de gérmens em parte ainda latentes, que uma vez por inteiro activados, decerto desencadearão a génese do museu pós-industrial: aquele que melhor se adequa à sociedade da informação. É essa a nossa convicção, e é ela que nos faz prosseguir, através do caminho à partida penoso da consciencialização de um outro museu, e de uma outra museologia. Relativamente ao primeiro, e retornando ao texto de abertura, pensamos que o museu como criação cultural que é, partilha naturalmente da evolução geral da sociedade, arrogando-se inclusivamente ao direito de considerar que intervém no seu encaminhamento, na medida em organiza e dinamiza actividades culturais e/ou sociais, com impacto informativo e formativo nas populações, pelo que só podemos considerar que se pretende manter essa influência, o museu deve fazer um esforço constante de actualização e adaptação aos novos tempos. Por outro lado, porém, o museu é depositário de atitudes e comportamentos, cujas origens se perdem na noite dos tempos. Nesta perspectiva, pode certamente dizer-se que o museu alberga valores cuja essência é intemporal, exprimindo bem este aspecto a panóplia de efabulações e de mitos que se encontram etimologicamente associados à origem mitológica do próprio vocábulo, como expressão de espaço sagrado e de encantamento, pelo que nenhuma mudança que o museu possa conhecer deverá ferir esse núcleo que representa a sua mais íntima e tocante qualidade. Cultural na substância e intemporal na essência, o museu cruza de lés a lés os tempos, sendo numa perspectiva estruturalista a maquete viva da dialéctica que articula diacronia e sincronia. Formalizar coerentemente um conceito à volta destas premissas, não é pacífico, e facilmente se corre o risco de derrapar na mais delirante e tentadora fantasia, pelo que os museólogos que se arriscarem a fazê-lo têm todo o interesse em prevenir-se criticamente contra os embustes e as falsificações, através de um esforço permanente de relativização temporal e cultural das fórmulas que propõem. Na esteira do pensador de língua francesa Raymond Abellio (1907-1986), nós consideramos que o problema dessa dificuldade, reside na natureza do próprio acto de conceptualizar. Para o autor de La Structure Absolue, a ambição de conceber uma metodologia integrante capaz de iluminar a noção de «estrutura absoluta» “il est clair qu’on ne peut la former qu’en sortant d’une philosophie du concept, pour rentrer dans une philosophie de la conscience.” a Seja como fôr, os contornos do museu que perseguimos não se esgotam nas noções de instituição - perspectiva da museologia clássica, valorizadora dos aspectos formais - ou de instrumento perspectiva da nova museologia, valorizadora dos aspectos informais. Para nós, o museu é um sistema. Um sistema integrado na sociedade, que por sua vez integra diferentes subsistemas. Um sistema vocacia

ABELLIO, Raymond, La Structure Absolue. Essai de Phénoménologie Génétique, Éditions Gallimard, Paris, 1965, p. 13.

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onado para a perpetuação do legado e da identidade culturais. Um sistema singelo ou elaborado, organizado a partir de anéis de informação que estruturam um funcionamento interactivo7. Um sistema que se reconhece numa função formativa. Formativa, em primeiro lugar, ao nível da própria museologia. Para nós, o museu é acima de tudo uma escola de museologia. Uma escola prática e/ou teórica, ou uma escola ora prática ora teórica, de acordo com os condicionalismos do seu modelo inicial e da sua evolução ulterior. Uma escola, no sentido em que nas sociedades ocidentais é a escola que assume mais continuada e intensamente a função socializadora, que não é mais do que o equivalente moderno dos ritos de iniciação das sociedades ditas primitivas. Mas o novo museu não poderá ser unicamente uma escola de museologia, pois isso equivaleria a fechá-lo sobre si mesmo. O novo museu terá de assumir-se como escola de civilização, na medida em que se encontra numa posição privilegiada para funcionar como charneira entre a sociedade industrial a cujo termo se assiste, e a sociedade pós-industrial que aos poucos vais emergindo. E dizemos charneira porque, como afirmámos numa passagem anterior da nossa dissertação (cf p. 35) se é verdade que a vocação dos museu consiste em integrar o passado no presente e as culturas na sociedade, somente um museu com essas características pode contribuir para uma transição, por assim dizer, não traumática de ciclo civilizacional - aqui poderíamos desenvolver o conceito de Terceira Vaga de Alvin Toffler - na medida em que promova uma abertura ao futuro, centrada na assimilação do legado patrimonial sobre o qual assenta a construção permanente da identidade cultural. Isso mesmo nós descobrimos, no projecto do Museé de la Civilisation au Québec, que Claire Simard, de forma sublime e contagiante, descreve no artigo “Le Musée de La Civilisation au Québec: Une Manière d’Être et de Faire”.a Sublime, porque como coordenadora de um projecto integrado na comunidade, a Directora de exposições deste museu não se limita a “fazer boa museologia”, vive-a e partilha-a com a comunidade, o que é muito mais importante. Contagiante, porque assenta em ideias que exprimem e interpretam o sentido da própria evolução, pois como diz Jacques Monod, «as ideias têm a força infecciosa dos vírus». Trata-se de uma formulação muito genérica, ou mesmo vaga, definir o novo museu a partir da ideia de escola de museologia e de escola de civilização, dir-se-á. Em parte, é assim, mas é-o deliberadamente. É que, de acordo com a perspectiva sistémica que defendemos, como explica Joël de Rosnay, um dos cinco princípios elementares de uma pedagogia sistémica é precisamente “Defender-se das definições muito precisas que ameaçam polarizar e esclerosar a imaginação. Um conceito ou uma nova lei devem ser estudados sob diferentes ângulos e recolocados noutros contextos — o que conduz ao mútuo enriquecimento dos conceitos graças mais a esclarecimentos indirectos do que à utilização mecânica de uma definição.”b Não traduzirá isto a génese da filosofia da consciência que Abellio, em 1965, já pressentia?

a

In, Musées et Sociétés. Actes du Colloque National Musées et Sociétes, Mulhouse-Ungersheim, 1991, p.156-160

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ROSNAY, Joël de, O Macroscópio. Para uma visão global, Arcádia, Lisboa, 1977, p. 240

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Porque o museu é uma escola de museologia, não faz sentido repensá-lo sem repensar a própria museologia. Para tanto, continuando a analisar o texto de abertura de Brenda Berck, se é efectivamente certo que a associação política e económica, estabelecida em torno de objectivos comuns, constitui um elemento cada vez mais importante da nova ordem mundial, de igual modo na museologia deveriam estabelecer-se os objectivos comuns, a partir dos quais se pudessem gizar planos de associação, traçados a nível local, regional, nacional e internacional, como por exemplo se verifica com o movimento de geminação de certas cidades. Mas uma definição de objectivos comuns esbarra com obstáculos imprevisíveis, como por exemplo a definição do campo de acção museológica, que numa perspectiva sistémica constitui uma das principais premissas. Não é pacífico proceder a essa definição, e no artigo que temos vindo a analisar, mais adiante, sobre a questão da definição dos limites da acção museal no contexto do «mundo alargado», a autora escreve: “Pour ma part, j’aurais tendance à affirmer que les moyens (financement, espace) sont les seules limites nécessaires de nos activités. Ma propre expérience m’apprend qu’au suject des musées la limite la plus courante et la plus grave est la manque de imagination. De temps à autre, nous sommes peut-être amenés à définir ou redéfinir des frontières, mais il nous faut d’abord examiner ce que nous faisons dans le contexte du monde élargi. Je crois que nous trouverons la clé de cette réflexion, dans la définition du musée donnée par l’ICOM comme étant «au service de la société et de sont développement. Cette conviction personnelle et professionnelle m’a amené à poser une série de questions à quelques-uns des auteurs de ce numéro et à des collègues de la commission chargée de la préparation du congrès. Ma contribuition au présent numero de Museum est de rappeler ces questions et de suggérer quelques responses personnelles. Par souci de brièveté, mes questions étaient centrées sur l’identité culturelle mouvante et l’environnement physique, et leur impact sur les collections des musées et leur fonction de conservation.”a

Este trecho aflora sem dúvida um dos aspectos mais sensíveis da museologia. Num contexto de transformação acelerada, faz efectivamente sentido colocar a questão dos limites. De facto, se as fronteiras da acção museal são inicialmente traçadas para logo a seguir serem transpostas, que sentido fará traçá-las, perguntar-se-á? Não desautorizará este facto o próprio museu? A nossa resposta aqui só pode ser brutal: as fronteiras devem ser traçadas, para depois serem transpostas, à medida que a conceptualização da prática e a reformulação da teoria permitam consciencializar um entendimento tendencialmente mais preciso dos seus próprios limites. Outra não é a essência da dialéctica de toda a evolução ou renovação. Além disso, numa perspectiva sistémica, traçar os limites ou definir as fronteiras do sistema constitui o primeiro passo obrigatório para estabelecer um plano racional de conhecimento, concepção ou gestão do próprio sistema. Aliás, estabelecer os limites de um sistema, não significa fechá-lo. Não se conhecem na realidade sistemas fechados, se se excluir o universo que, no seu conjunto, à luz dos conhecimentos actuais, tanto poderá ser fechado como aberto.

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In, Museum nº 174, p.70

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Na secção seguinte da nossa tese, iremos estudar mais pormenorizadamente a ajuda que a abordagem sistémica poderá dar ao museólgo para definir e transpôr numa perspectiva racional os limites da sua acção. De qualquer forma, não podemos concordar que os meios - financiamento e espaço - constituam o únicos limites necessários da acção do museólogo. Esses são precisamente os limites que mais o constrangem, e dos quais seguramente ele mais desejaria poder libertar-se! Para nós, e até à formação de um consenso mais alargado, os limites da museologia só poderão ser determinados mediante uma negociação aberta aos membros da comunidade, estruturados em função das suas competências ou atribuições institucionais, profissionais ou técnicas, na qual as relações e tensões dialécticas que a museologia estabelece com as outras ciências, disciplinas e ramos do conhecimento sejam ponderadas numa base multilateral, não traçada exclusivamente pelo próprio museólogo. A função social do museu tal como é definida pelo ICOM, o código deontológico por que se rege a profissão museal, as fronteiras do seu conhecimento irrefutável, a capacidade de interlocução com a comunidade e, claro está, a capacidade de criar e de inovar do museólogo, constituem alguns dos limites que este deve ter presente e ponderar, no decurso do diálogo social que implicam o desenvolvimento e a inserção comunitária da sua actividade, pois diga-se o que se disser o museólogo não é um deus ou um demiurgo criador ou organizador de «admiráveis mundos novos/velhos». Mas uma vez determinados os limites da sua intervenção, o museólogo deve ser portador de respostas metodológicas específicas que englobem e viabilizem a uniformidade de princípios e diversidade de soluções, que caracterizam uma museologia adaptada à sociedade pós-industrial e informacional emergente. Resposta adequadas e pertinentes, portanto, para as questões fundamentais que a profissão coloca. Questões cuja abordagem implica o debate sobre os grandes princípios que devem orientar a «política museal». Nesse particular, a proposta de Brenda Berck de identificar esses princípios com a problemática da identidade cultural, do ambiente físico, e as colecções museais e a função de conservação, fica aquém da unificação que a nova sociedade espera da museologia, não englobando, por exemplo, aspectos como a participação comunitária e o desenvolvimento sócio-económico, o mesmo que é dizer que a política museal aí proposta não reconhece e integra as teses próximas da nova museologia. Museologia clássica e nova museologia são duas faces de uma mesma moeda, que, representando sensibilidades distintas, divergem na busca de uma nova teoria cuja emergência e consolidação são correlativas da emergência e consolidação da sociedade pós-industrial. Uma teoria comum, eis o que falta! Uma teoria construída e aceite por museólgos de diferentes proveniências e sensibilidades, que se revejam na necessidade de proceder ao balanço da conceptualização da prática que a Nova Museologia desencadeou, enquanto movimento essencialmente mobilizador de uma dinâmica museal de carácter centrífugo favorável à abertura de novos campos de experimentação. Um tal balanço corresponderia à génese de uma nova dinâmica museal de carácter centrípeto no interior do movimento da Nova Museologia, como complemento necessário da primeira, na

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medida em que favorece a síntese de novos fundamentos, cuja validade poderá interessar e estender-se à própria museologia institucional. Essa nova dinâmica doravante passaremos a designar por consciencialização da teoria, como oposição complementar, mas não contraditória, da conceptualização da prática, que a não anula ou enfraquece, mas que em vez disso a absorve e integra, completando-a a um outro nível. Pela nossa parte, consideramos fundamental que a Nova Museologia active dentro de si mesma a matriz dialéctica que reconhece constituir o motor da própria evolução social. Só assim, através da génese de um movimento contrário de integração convergente, a Nova Museologia constituir-se-á como identidade representativa de uma totalidade, e evitará cair em erros que possam levá-la ao esquecimento da sua própria identidade, como sucede no seguinte excerto da obra de Mário Moutinho, Museus e Sociedade, já anteriormente citada: “Apetece-nos agora avançar com um paralelismo com outras áreas de transformação profunda da sociedade, igualmente resultante das mudanças de orientação geral do modelo económico. Tal paralelismo permite-nos colocar com mais segurança as novas condições de produção museológica no contexto geral do desenvolvimento. Por outras palavras, permite-nos colocar a acção museológica no contexto geral do desenvolvimento. Por outras palavras, permite-nos colocar a nova acção museológica como factor intrínseco do desenvolvimento. Isto significa que teremos que considerar a partir de agora a museologia como uma área da economia, contrariando a ideia corrente de que a museologia faria parte integrante das instâncias da ideologia, correntemente denominadas por cultura.”a

Nesta passagem, no nosso ponto de vista, verifica-se uma derrapagem. Logo no estabelecimento de paralelismos sociais, o autor apoia-se numa visão mecanista e linear desses paralelismos, como se o modelo económico determinasse, por si só, as estruturas e os parâmetros funcionais das restantes. Claro que existem paralelismos entre a ideologia e a estrutura económica da sociedade, mas esses paralelismos são mutuamente condicionados, não sendo, em rigor, válido considerar-se que os condicionalismos emanem do sistema económico-social, desencadeando uma série de transcrições ou transposições de sentido único, que determinem o sistema ideológico-cultural, ou vice-versa, exclusivamente. Ou seja, a museologia, tal como a ciência ou a arte, não é somente o produto de condicionalismos ideológicos ou económicos, ela participa também da gestação desses mesmos condicionalismos, e tanto mais o fará quanto mais ela fôr encarada como sujeito activo da inserção dos condicionalismos que lhe são específicos na sociedade. Desenvolvimentos mais precisos de uma crítica à interpretação mecanista e linear das ressonâncias entre o social e o cultural, em teoria da História de Arte, encontram-se na obra de José-Augusto França, nomeadamente, no Prefácio ao livro A Arte em Portugal no Século XIX, onde o autor afirma que “A Arte (as artes, visuais ou sonoras ou literárias ou espectaculares) é assim relegada ao papel de produto ou de reflexo de uma dada situação histórica, esquecendo-se que ela pode ser também um elemento criador dessa situação; e que só na verdade é válida como arte se assim agir” b, e propõe a

MOUTINHO, Mário, Museus e Sociedade, Museu Etnológico do Monte Redondo, !989, p.99-100

b

FRANÇA, José Augusto, A Arte em Portugal no Século XIX, Livraria Bertrand, Lisboa, 1966, Tomo 1, p. 9

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como modelo alternativo de interpretação das relações entre a arte e a sociedade, uma “dialéctica de interesse global que ao mesmo tempo integra e desintegra o contexto histórico em questão.”a Estabelecer paralelos com a realidade económica, social, política e cultural é legítimo e crucial para o pensamento rigoroso, se estes se mantiverem dentro dos parâmetros operativos da ciência, evitando reducionismos e simplificações que só podem conduzir ao logro. É o que criticamos na teoria de Mário Moutinho. Se é verdade que a nova museologia projecta o desenvolvimento da investigação científica. Se é verdade que ela tem legitimidade para alimentar essa pretensão, na medida em que se apresenta como criadora e intérprete de um relacionamento inovador com o legado cultural e natural da comunidade e desenvolve uma actividade autónoma relativamente às outras ciências sociais. Se é igualmente verdade que a nova museologia é detentora de práticas - os aspectos formais da nova museologia - e de valores - os aspectos específicos de diferenciação da nova museologia - como se reconheceu no Atelier do Québec (cf p. 32), então será a partir da especificidade dessas mesmas práticas e valores que a realidade social deverá ser sondada, numa perspectiva de estabelecer correspondências bi-unívocas entre ambos os termos, com vista ao seu esclarecimento recíproco e não numa perspectiva unívoca de pura mimese da realidade económico-social. Se assim não fôr, a nova museologia correrá o risco de se perder e de constituir um momento episódico da museologia institucional. Ao posicionar a museologia no campo do económico, e ao estabelecer um paralelo entre a nova empresa e o novo museu, logo ao significar a museologia como parte integrante de um sistema produtivo, ou seja, como um sistema organizado em função de valores como a produtividade, o lucro, a competitividade e o sucesso material, gerido em função das oscilações e flutuações da conjuntura económica e/ou política, e sujeito ao espectro implacável de uma falência funcional, Mário Moutinho, sem querer, amputa o conceito de um dos seus valores mais sensíveis: a perenidade do exercício da sua função e a imprescindibilidade da perpetuação da sua acção social. Uma consciencialização da teoria, dentro dos limites conceptuais que as novas práticas museológicas ajudam a definir, está, quanto a nós, por fazer. Uma tal consciencialização da teoria não é estabelecida, bem se vê, na abstracção dos condicionalismos sociais, mas em função de uma adptação da museologia aos novos contextos e problemas da sociedade da infomação, tal como estes são (re)equacionados e (re)interpretados a partir de uma óptica exclusivamente museológica, mas em cuja formulação intervêm, por via dos anéis de informação aí instalados, os restantes condicionalismos sociais. Numa perspectiva sistémica, a consciencialização de uma nova teoria museológica passa por:

Estabelecer os aspectos comuns às várias práticas museológicas Projectar uma metodologia adaptada aos novos contextos sociais Desenvolver-se em torno de uma filosofia e epistemologia próprias Reorientar a acção em função de um novo paradigma científico

a

Idem, ibidem.

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Desenvolveremos estes aspectos na próxima secção do nosso trabalho, inteiramente consagrada ao estudo da aplicação de uma abordagem sistémica pela museologia. De imediato, gostaríamos unicamente de referir que, o plano que acabámos de esquissar, obedece a um propósito fundamental de construir uma estrutura de teorização susceptível de ser desenvolvida em qualquer contexto museal, tanto na perspectiva da nova museologia, como na perspectiva da museologia institucional, até porque pelo que nos é dado verificar, tanto num como noutro caso nos encontramos, presentemente, perante um certo défice de teorização. Por isso, às vezes parece-nos supérfulo operar essa divisão em museologia. A nossa opinião é que a museologia, como disciplina específica e autónoma de um conhecimento cientificamente orientado, é uma só, e que a separação que hoje se verifica nas suas hostes, é meramente instrumental, e exprime ainda, qual cortina de ferro conceptual, um efeito retardado de tensões dialécticas próprias das sociedades industriais. Aliás, se é realmente verdade, como escreve Mikhaïl Gorbatchov, que o Novo Pensamento se traduz pela assunção das «grandes questões comuns à humanidade», e, como refere Brenda Berk, que a sociedade dos anos 90 se pauta pela consciencialização da necessidade de associação política e económica entre as nações, então também a museologia deve preparar-se para esse esforço de integração das diversidades, tomando como ponto de partida a génese de benefícios comuns. Sobre uma análise mais detalhada destas questões, e sobre a utilização da abordagem sistémica como instrumento conceptual capaz de ajudar a museologia a (re)constituir-se a si mesma, a partir de uma base racional, tendencialmente viável e irrefutável, tratará a próxima secção. Até lá, limitamo-nos a registar, em síntese, as conclusões fundamentais da nossa análise:

1. O novo museu deve ser visto como um sistema autónomo mas integrado na sociedade 2. Seja qual fôr a sua dimensão ou prestígio, o novo museu deve relacionar-se com a sociedade envolvente graças a uma configuração interactiva do seu modelo institucional. 3. A interactividade funcional corresponde a um enquadramento objectivo da participação comunitária, estruturada em torno de anéis de informação (retroacção social) 4. A autonomia do museu e a sua esfera de acção devem ser estatutariamente definidas de acordo com uma negociação periodicamente renovada e aberta a representantes institucionais, científicos, técnicos e profissonais da comunidade em que ele se integra, na sequência de uma interpretação consensual dos princípios e dos valores da actividade museal, tal como aparecem consagrados pelo ICOM e pelo MINOM 5. O novo museu é um sistema vocacionado para a prestação de um conjunto de serviços à comunidade e ao seu desenvolvimento, e programa a sua actividade à maneira de uma escola de museologia e de uma escola de civilização 6. O novo museu assume o papel de charneira e de mediação entre o passado e o futuro, e entre a comunidade e o mundo. 7.

Na medida em que se encontra ao serviço da perpetuação dos traços mais permanentes da identidade comunitária, o novo museu também cultiva a sua própria identidade e dedica um esforço permanente à elaboração de uma teoria comum que mereça o aval de diferentes sensibilidades da museologia e doutras disciplinas e áreas do saber, a ela contíguas

8. O novo museu não se reduz às suas colecções. Mais do que conservar e exibir objectos, o novo museu restitui representações onde sujeitos e objectos se combinam na reconstituição de contextos

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9. Museologia institucional e nova museologia são duas faces de uma mesma moeda, e a sua divisão é meramente instrumental, correspondendo a diferentes entendimentos da evolução das sociedades industriais. 10. O novo museu deverá conceber-se, organizar-se e gerir-se através de um processo de institucionalização permanente, que se traduza na construção constante de uma síntese entre a tendência centrípeta das organizações institucionais e a tendência centrífuga dos movimentos rupturais.

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Notas do 1º Capítulo 1

“Ce texte, comme l’écomusée qu’il définit, se veut évolutif; bien que très court - une seule page datylographiée il est désormais la seule reférence obligée de tout écomusée”. In, La muséologie selon Georges Henri Rivière, Dunod, Tours, 1989, p. 151.

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Por considerarmos importante este processo, resolvemos transcrever na íntegra da já citada obra de Mário Moutinho a passagem que se lhe refere, a páginas 37 e seguintes: “A coordenação do Programa é realizada por uma equipa interdisciplinar que se encarrega do Programa Nacional. No seio de cada Estado e consoante o desenvolvimento do programa existe um segundo nível de gestão directamente ligado à rede de promotores que vivem e trabalham nas comunidades onde são desenvolvidos projectos museológicos. Quando o promotor conseguir difundir o projecto do museu e divulgar as suas potencialidades, criam-se então cinco grupos de trabalho que exercerão as funções indispensáveis à vida de cada Museu. Podem distinguir-se várias etapas neste processo. Em primeiro lugar o Programa ocupa-se da formação de promotores dos museus comunitários ao qual incumbe criar os meios necessários para que uma dada comunidade conheça, valorize e compreenda o que é um museu e quais as suas funções, criando assim a possibilidade dos seus membros participarem em todas as acções do museu desde a planificação às acções de criação, conservação e difusão. Numa segunda etape compete ao promotor suscitar a formação de grupos no seio da comunidade «em grupo aprende-se a trabalhar com outros, a partilhar obrigações a contribuir com os seus conhecimentos e capacidades, o património cultural vai progressivamente pertencendo às colectividades que também vão assumindo a responsabilidade da sua preservação: o tempo de desenvolvimento desta etape é flexível; o promotor vai aprendendo a aplicar os elementos metodológicos: investigação participante, formação de grupos, planificação e sistematização do trabalho, formação em museologia comunitária» ((Idem 23 p. 11)). Quando o promotor conseguir difundir o projecto do museu e divulgar as suas potencialidades, criam-se então cinco grupos de trabalho que exercerão as funções indispensáveis à vida de um museu comunitário: Investigação, promoção e difusão, produção e montagem, visitas guiadas e actividades complementares. Passa-se então à fase propriamente de actividade museológica através da montagem de experiência geralmente com objectos emprestados pela comunidade convertendo o museu num lugar onde a comunidade se exprime, planifica e sistematiza os seus problemas em busca de soluções «O processo de formação do museu comunitário não foi fácil nem rápido, tem por fundamento a sensibilização que o promotor desenvolve na comunidade: rompendo com estereótipos avança-se, aprendendo a aprender, aprendendo a pensar, perdendo o medo da mudança e respeitando as diferenças. A educação é assim pensada como um processo de desenvolvimento integral e permanente do homem, demarcado pelos conceitos da educação popular a qual procura uma formação libertadora, a transformação para o bem estar social mediante uma atitude arítica com a qual o homem tomará parte na construção da sua própria cultura e da sua história pessoal e colectiva» ((Idem 23 p. 17))”.

3

Hugues de Varine, em 1983 a respeito do ecomuseu do Seixal disse: “possui as verdadeiras características de um ecomuseu com o espírito dos ecomuseus de desenvolvimento, com um território bem definido, uma comunidade que participa de várias formas, com preocupação global de estudo histórico, constituindo actualmente uma das experiências mais originais e inovadoras da museologia portuguesa” in Introdução à Museologia, Universidade Aberta, Lisboa, 1989, p.67

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Talvez tenha interesse referir aqui que após termos informado a funcionária, de seu nome Celestina Guedes da Silva, da circunstância de nos encontrarmos a estudar museologia, esta ter revelado interesse pelo assunto, chegando mesmo a exibir o conhecido livro da Universidade Aberta Iniciação à Museologia, que lhe tinha sido fornecido pela Câmara Municipal para “ir lendo a pouco e pouco”.

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Passamos a transcrever algumas passagens do texto produzido pelo grupo de trabalho”Museus locais e Poder Público” durante o II Atelier Internacional Museus Locais/Nova Museologia de Lisboa, 1985: “...Em nome da inviolabilidade do respeito pela dignidade humana e para responder às necessidades reais dessa população, o diálogo dos museus locais e dos poderes instituídos deve estabelercer-se sem concessões. [...] “...O museu local usa para isso, com a população, de métodos e meios que lhe são próprios, preservando-se de qualquer ingenrência ou tomada de posição partidária.

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O museu local depende por vezes tão fortemente do poder político localque a sua existência pode ser ameaçada quando muda a maioria; ora toda a empresa museal é por definição perene; devem pois ser encontrados os meios que coloquem o museu ao abrigo dessas flutuações. Isto começa pela definição exacta da sua missão, e pelo posterior reconhecimento pelos poderes instituídos. [...] O poder do qual depende o museu local não é monolítico. segundo os casos , é composto por autarcas,investigadores, funcionários da administração, responsáveis associativos ou sindicatos. O museu local para defender a sua autonomia , a sua responsabilidade, a sua eficácia, deve procurar que a partilha do poder se efectue de forma equitável. [...] A equipa museal tem nestes museus locais uma função determinante. Ela é em particular o garante da sua perenidade, no caso em que a sua estabilidade esteja ssegurada. Os membros devem beneficiar de um estatuto, correspondente á sua responsabilidade e respectivas missões. A eficácia da acção do museu local depende também das relações de confiança e de solidariedade que a equipa conseguir instaurar entre os seus membros.”

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O Pe Fontes chegou a ser pároco da aldeia de Paredes do Rio onde se localizam algumas estruturas do futuro ecomuseu, e alcançou notoriedade pública e mediática com a realização dos chamados Congressos de Medicina Popular de Vilar de Perdizes de que foi o grande organizador e responsável, iniciativa polémica cuja realização recebeu o ano passado ordem de suspensão por parte do bispo de Vila Real.

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Por funcionamento interactivo entende-se aqui a possibilidade de um ou vários operadores poderem intervir e alterar o estado (ligado/desligado) ou o comportamento (acções/programas) de um sistema. Uma assembleia de representantes da comunidade onde se insere o museu, se tem a capacidade de interferir no funcionamento do museu é um bom exemplo de interactividade, integrando essa Assembleia um anel de informação que liga e articula, conjuntamente, os representantes e o museu.

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Abordagem Sistémica e Nova Museologia

1- A teoria dos sistemas como ferramenta auxiliar da nova museologia “Man lives and works inside of systems. His scientific research is exposing the structure of nature’s systems. His technology has produced complex physical systems. But even so, the principles governing the behaviour of systems are not widely understood.” Jay Forrester, Principles of Systems, 1968

1.1- O lugar da Teoria Geral dos Sistemas na ciência, segundo Ludwig von Bertalanffy

Uma das ideias que torna a teoria dos sistemas particularmente interessante para o investigador, é a ideia de ubiquidade dos sistemas. Logo na Introdução, o livro de Ludwig von Bertalanffy General System Theory, (1968) na tradução francesa de 1973, abre com o seguinte título: «Partout autour de nous, des systèmes!». Não julgamos de interesse para a questão que nos importa tratar, seguir o percurso que o pensamento científico descreveu para chegar a este ponto. De passagem, talvez convenha unicamente referir que estes avanços se deveram, por um lado, ao desenvolvimento da investigação em disciplinas como a Biologia e a Cibernética, e por outro a pressões militares e políticas relacionadas com a necessidade de prever e de optimizar o comportamento interdependente de vários sistemas tecnológicos usados na defesa, como por exemplo a regulação automática do disparo e da orientação dos sistemas de mísseis balísticos e de engenhos espaciais tripulados e não-tripulados pelas superpotências, que disputavam, desde o vôo orbital de Yuri Gagarine (1961), a primazia da vanguarda tecnológica. Começando por uma série de observações e de experimentações que por vezes conduziam a resultados bizarrosa, desde cedo se fez sentir a necessidade do desenvolvimento de uma teoria que pudesse servir de base à compreensão e à previsão do comportamento de todo e qualquer sistema. Sobre este ponto, von Bertalanffy escreve, os sublinhados são nossos: “Ainsi il existe des modèles, des principes et des lois, qui s’appliquent aux systèmes généralisés ou à leurs sous-systèmes: ils ne tiennent pas compte de leur espèce particulière, de la nature de leurs éléments et des rélations ou «forces» entre ceux-ci. Le besoin d’une théorie qui s’applique pas à des systèmes d’un type plus ou moins spécial, mais aux principes des systèmes en géneral, est donc légitime. [...] Nous devons rechercher des principes qui s’emploient pour des systèmes en général, sans se préoccuper de leur nature, physique, biologique ou sociologique. Si nous posons ce problème et si nous définissons bien le concept de système, nous constatons qu’il existe des modèles, des lois et des principes qui s’appliquent à des systèmes généralisés; leur espèce particulière, leurs éléments et les «forces» engagées n’interviennent pas. L’apparition de similitudes structurelles ou isomorphismes dans des domaines différents, est une conséquence de l’éxistence de propriétés générales des systèmes. Les principes qui gouvernent le comportement d’êtres intrinsèquement differents se correspondent. Prenons un exemple simple; la loi de la croissance exponentielle peut s’appliquer à certaines cellules bactériennes, à des populations de bactéries, d’animaux ou d’êtres humains et au progrès de la a

A regulação de misseis balísticos

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recherche scientifique, si on mesure celui-ci par le nombre de publications sur la génétique, ou sur les sciences en général. Les êtres en question, bactéries, animaux, hommes ou livres, diffèrent totalement de même que les mécanismes causaux impliqués. Il s’agit néanmoins de la même loi mathématique.”a

Extrapolando as palavras do autor para o campo da museologia, se considerarmos a nova museologia como um ramo das ciências sociais, como nos parece lícito fazer-se, e se a acção do museólogo estiver firmada numa definição clara do conceito de sistema, então será razoável presumir-se que os princípios e/ou leis que validamente se aplicam aos sistemas enquanto tal, sejam também legitimamente aplicados às séries mutuamente relacionadas de elementos e contextos de índole museal, que se prestem a ser perspectivados de acordo com os procedimentos da teoria sistémica. Adquire então aqui importância capital o conceito de sistema, Sem aprofundar muito esta questão, Joël de Rosnay define sistema como “um conjunto de elementos em interacção dinâmica, organizados em função de um objectivo”b. É nossa convicção de que este conceito se aplica com toda a propriedade à ideia de ecomuseu que se encontra subjacente na «definição evolutiva» de Georges Henri Rivière, e a fortiori na ideia de «ecomuseologia integrada» e de «desenvolvimento integrado» de Fernanda Camargo de Almeida-Moro, subjacentes à organização do Ecomuseu do Bairro de S. Cristóvão no Rio de Janeiro e do Ecomuseu de Itaipu, cuja adaptação ao contexto sócio-cultural português e especificamente beirão, preconizamos como referência inspiradora para o ecomuseu do Montemuro-Paiva. Mas antes de avançarmos na determinação e descrição desses isomorfismos comuns aos sistemas, é vital não perder de vista a distinção fundamental entre sistemas fechados e sistemas abertos. Os primeiros correspondem a «sistemas complexos não-organizados», isto é, sistemas que se estudam no âmbito da física clássica, e que se encontram sujeitos às leis do acaso e das probabilidades e da termodinâmica. Os segundos correspodem a «sistemas complexos organizados», ou seja, sistemas que se estudam fundamentalmente em Biologia e nas Ciências Sociais e do comportamento, e que aparecem vinculados aos princípios de equifinalidade e de neguentropia. Vejamos o que Bertalanffy, a este propósto, escreve:

“Ce n’est que depuis quelques années que la physique cherche à s’étendre pour inclure les systèmes ouverts1. Cette théorie a apporté un éclairage nouveau à de nombreux phénomènes obscurs en physique et en biologie et a conduit à des conclusions générales importantes; je n’en mencionnerai que deux. La primière est le principe d’équifinalité. Dans un système fermé l’état final est déterminé de façon univoque par les conditions iniciales; par exemple le mouvement dans le système planetaire, où les positions des planètes au temps t sont déterminées univoquement par leurs positions au temps t0. Ou encore, dans un équilibre chimique, les concentrations finales des réactifs dépendent naturellement des concentrations initiales. Si on change les conditions initiales ou le processus, l’état final sera aussi modifié. Il n’en va pas ainsi dans les systèmes ouverts. Ici, le même état final peut être atteint à partir de conditions initiales différentes ou par des

a

BERTALANFFY, Ludwig von, Théorie Générale des Systèmes, Dunod, Paris, 1973, p 31-32

b

ROSNAY, Joël de, 1975, p. 85

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chemins différents. C’est ce qu’on appelle l’équifinalité; elle a une grande signification pour les phénomènes de régulation biologique. [...] Un autre contraste apparent entre la nature inanimée est ce qu’on appelle quelques fois la contradiction violente entre la dégradation de Lord Kelvin et l’évolution de Darwin, entre la loi de la dissipation en physique et celle de l’évolution en biologie. [...] Mais, sur la base de la théorie des systèmes ouverts la contradiction apparente entre l’entropie et l’évolution disparaît. Dans tous les processus irréversibles l’entropie doit croître. La variation d’entropie dans les systèmes fermés est donc toujours positive; l’ordre est continuellement détruit. Cependant, dans les systèmes ouverts il n’y a pas seulement prodution d’entropie par des processus irréversibles mais aussi une importation d’entropie qui peut être très bien négative. C’est le cas de l’organisme vivant qui reçoit des molécules complexes chargées d’énergie libre. Ainsi les systèmes vivants maintenus en état stable peuvent-ils éviter l’accroissement d’entropie; ils peuvent même évoluer vers des états d’ordre et d’organisation accrus.”a

Desta exposição inicial dos conceitos de equifinalidade e de entropia negativa (ou neguentropia) dos seres vivos, julgamos poder retirar desde já duas implicações de carácter geral de grande relevância para a (nova) museologia. De facto, se nós aceitarmos considerar a museologia como fazendo parte de um processo de regulação biológica de tipo homeoestático, e nomeadamente se considerarmos que a sua razão de ser se relaciona com a salvaguarda não só de objectos inanimados, mas também de contextos sociais ou ecossistemas ambientais nos quais se inserem os seres humanos e os restantes seres vivos em geral, como acontece com a ecomuseologia, então quer isso dizer que seja qual fôr o ponto de partida ou o percurso dessa tentativa de regulação, o mesmo resultado final poderá ser atingido, independentemente das condições iniciais. Esta formulação é sem dúvida estimulante para o trabalho do museólogo. Ela vem confirmar que um museu vivo e integrado no contexto social, não pode ser visto segundo uma perspectiva coisificada. A conservação do património, é uma das manifestações mais inequívocas da criação de neguentropia que tão radicalmente distingue os seres vivos dos seres inanimados, e recebe aí uma justificação inquestionável, de carácter ontológico. Ainda assim, seria um gravíssimo erro pensar-se que a Teoria Geral dos Sistemas cujo postulado von Bertalanffy sustenta, pode fornecer a resposta certa para todas as questões que se oferecem à investigação da complexidade organizada. A teoria dos sistemas não postula mais do que uma explicação de princípio, ou seja, fornece uma explicação ou antevisão dos tipos de comportamento comuns aos sistemas em geral, mas não saberia fornecer uma previsão dos comportamentos específicos deste ou daquele elemento isolado, em particular. Em síntese, von Bertalanffy caracteriza a Teoria Geral dos Sistemas da seguinte forma: La théorie générale des systèmes est donc une science générale de ce qui, jusqu’à présent, était considéré comme un concept vague, brumeux et semi-métaphysique, la «totalité». Dans sa forme élaborée, ce serai une discipline logico-mathématique, en elle-même purement formelle, mais s’appliquant aux diverses sciences empiriques. Pour les sciences qui s’occupent d’«ensembles» organisés elle aurait la même importance que la théorie des probalités pour celles qui s’occupent d’«événements aléatoires»; cette dernière est aussi une discipline mathématique formelle s’appliquant à des domaines très divers comme la thermodynamique, l’expérience biologique et médicale, la génétique, les statistiques de durée de vie pour les assurances, etc.

a

Op. cit., p. 38-39

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Ceci montre les principes de la théorie générale des systèmes: 1) Tendance générale à une intégration des diverses sciences, naturelles et sociales 2) Cette intégration semble être centrée sur une théorie générale des systèmes 3) Cette théorie peut être un moyen important pour atteindre une théorie exacte dans les domaines scientifiques non physiques 4) Développant «verticalement» des principes unificateurs à travers l’univers des sciences individuelles, cette théorie nous rapproche du but: l’unité de la science. 5) Ceci peut conduire à une intégration très utile dans l’enseignement scientifique. Une remarque sur la délimitation de cette théorie semble ici utile. Le terme et le programme de la théorie générale des systèmes furent introduits par l’auteur il y a un certain nombre d’années. Il s’est fait jour cependant qu’un assez grand nombre de chercheurs dans diverses disciplines ont été conduits à des conclusions et des voies d’approche similaires. On peut donc suggérer de conserver ce nom qui est devenu d’utilisation courante, ne serait-ce que comme une étiquette pratique.”a

1.2- Os princípios gerais da abordagem sistémica: Jay Forrester e Joël de Rosnay No fundo, os princípios do funcionamento sistémico fornecem ao investigador uma estrutura de conhecimento, ou melhor, uma fórmula de conceber e de organizar o conhecimento científico. Sobre este aspecto Jay Forrester escreve:

“A structure (or theory) is essential if we are to effectively interrelate and interpret our observations in any field of knowledge. Without an integrating structure, information remains a hodge-pogde of fragments. Without an organizing structure, knowledge is a mere collection of observations, practices and conflicting incidents.”b

Na nova estrutura de integração e de organização do conhecimento assume particular relevância o conceito de feedback ou ciclo de retroacção. Sobre este ponto Joël de Rosnay escreve:

“O funcionamento de base dos sistemas assenta no jogo combinado dos ciclos de retroacção, dos fluxos e dos reservatórios: três noções entre as mais gerais da abordagem sistémica e chaves de aproximação de domínios muito diferentes – da biologia à gestão, da engineering à ecologia. Num sistema onde se efectua uma transformação há entradas e saídas. As entradas resultam da influência do ambiente sobre o sistema, e as saídas da acção do sistema sobre o ambiente. (Entradas e saídas são também denominadas dados e resultados, ou ainda inputs e outputs). As entradas e as saídas são separadas pelo espaço de tempo ou duração: como o antes do depois ou passado do presente. Em todo o ciclo de retroacção (como o seu nome indica), informações sobre os resultados de uma transformação ou de uma acção são novamente enviados para a entrada do sistema sob a forma de dados. Se estes novos dados contribuem para facilitar e acelerar a transformação no mesmo sentido que os resultados precedentes, está-se em presença de de um ciclo positivo (positive feed-back): os seus efeitos são cumulativos. Pelo contrário, se estes novos dados agem em sentido oposto aos resultados anteriores, trata-se de um ciclo negativo (negative a

BERTALANFFY, Ludwig von, Théorie Générale des Systèmes, Dunod, Paris, 1973, p 36-37.

b

FORRESTER, Jay W., Principles of Systems, Massachusetts, 1968, Second Preliminary Edition, 1982

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feed-back). Os seus efeitos estabilizam o sistema. No primeiro caso há crescimento, (ou decrescimento) exponencial. No segundo, manutenção do equilíbrio.”a

Tentando esquematizar, as suas palavras Joël de Rosnay, apresenta o seguinte esquema: Figura nº 1 - Sistema Simples

Entradas Dados Inputs

Saídas Resultados Outputs

SISTEMA

Antes

Depois

Tempo

Figura nº 2 - Sistema Complexo

Retroacção Entradas Dados Inputs

SISTEMA Antes

Saídas Resultados Outputs Depois

Tempo

Os ciclos de retroacção constituem a essência dos modelos de organização complexa. Não são uma invenção da teoria geral dos sistemas, mas o conhecimento dos processos de transformação que os seus ciclos provocam nos sistemas - a Dinâmica dos Sistemas - é de grande importância para todo o investigador cujo objecto de estudo integre sistemas complexos. Para o museólogo, e principalmente para a ecomuseologia, parece-nos evidente a pertinência do conhecimento e da aplicação destes conceitos. Se é verdade que a ecomuseologia se confronta actualmente com uma necessidade imperiosa de se libertar da nostalgia, e assumir-se definitivamente como factor de desenvolvimento socio-económico dos sistemas geo-culturais onde pretende intervir social e culturalmente, então o cerne da questão está precisamente em saber como pode a ecomuseologia contribuir para a obtenção de um determinado efeito social, ou seja, saber como pode o sistema ecomuseu integrar-se numa dinâmica sistémica mais vasta, oferecendo à comunidade um mecanismo controlável de retroacção social, capaz de ajudar a retirar o sistema social em que esta se insere do desconhecimento dos resultados dos processos que sobre ele são exercidos. Interessa portanto ao museólogo inteirar-se sobre a dinâmica dos sistemas. Por exemplo, se numa dada região rural se regista um fenómeno de êxodo para a cidade ou para o estrangeiro, torna-se claro que nos encontramos perante um ciclo de retroacção positiva que se traduz por um efeito de “bola a

ROSNAY, Joël de, O Macroscópio. Para uma visão global, Lisboa, 1977, p. 93

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de neve”, na medida em que cada pessoa que abandona a sua aldeia faz com que se torne mais difícil a vida para quem lá permanece, o que por sua vez leva a que outras pessoas decidam abandoná-la, e por aí adiante, até ao bloqueio total das condições de vida. Este fenómeno tem vindo a assumir proporções dramáticas nas últimas décadas. No nosso país ele é particularmente grave já que as cidades, ou os países, para onde as populações tradicionalmente se dirigem, apresentam problemas terríveis, e não têm capacidade para absorver e integrar todos quantos a elas ou a eles afluem. É que, no mundo urbano regista-se um ciclo equivalente de retroacção positiva que tende para um crescimento exponencial explosivo. Claro que o Estado não pode impedir as populações de se deslocarem no território. Não se pode proibir o êxodo rural. Aquilo que unicamente pode fazer-se é criar uma outra dinâmica exponencial contrária. Podem criar-se condições especiais para encorajar o regresso daqueles que partiram. Podem criar-se estímulos à fixação de novos habitantes que revelem maiores dificuldades de inserção na vida urbana (desempregados, grupos alternativos, ecologistas, artistas desadaptados, etc.). Que tem isto a ver com a museologia, perguntar-se-á? À partida não tem a ver com a museologia, mas tem a ver com a sociedade. Certo é que os poderes central e local se confrontam com a necessidade de introduzir ciclos de retroacção positiva explosiva, para substituir os ciclos de retroacção positiva implosiva, e assim desencadear um novo ciclo de fixação de populações no mundo rural, o que por seu turno fará crescer uma probabilidade maior de se perderem importantes traços da identidade de uma região, destes se adulterarem ou de se esvaziarem de sentido. Aqui entra o museu com a sua tendência fundamental para a manutenção dos equilíbrios. O museu de alguma forma aparece como uma espécie de paraíso de estabilidade. Durante muito tempo, por isso mesmo foi comparado a um mausoléu. Não havia ainda o conhecimento de que a obtenção do equilíbrio é uma actividade fundamentalmente dinâmica. Tal como os animais de sangue quente, em condições normais de funcionamento, mantêm a temperatura do seu corpo dentro de valores muito próximos, independentemente das condições de temperatura exterior, também o museu desenvolveu mecanismos homeostáticos de regulação de temperatura e humidade relativa, concebidos para manterem as suas colecções dentro de condições óptimas de conservação. Em suma, o museu rege-se por uma dinâmica sistémica de retroacção negativa, que tende para um equilíbrio dinâmico. Tal como anteriormente, reproduzimos de Joël de Rosnay um esquema ilustrativo do que temos vindo a dizer: Figura nº 3 - Ciclos de Retroacção Positiva e Negativa

Explosão Partida

Partida

Equilíbrio Partida

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Fim

Bloqueio Tempo

Tempo

Retroacção Positiva o aumento das divergências

Retroacção Negativa a convergência para um fim

Seria extremamente tentador postular aqui uma oposição complementar entre a Escola e o Museu. Aquela como instrumento social de retroacção positiva, na medida em que busca essencialmente alterar as condições de funcionamento do sistema sócio-cultural, este como instrumento social de retroacção negativa, na medida em que busca a manutenção dessas mesmas condições. No ponto seguinte desta rápida abordagem aos conceitos fundamentais da prática sistémica, segundo um trabalho publicado com a chancela da UNESCO, um dos problemas para que mais preocupam os pedagogos, e para a resolução do qual eles invocam a aplicação da abordagem sistémica, é justamente a condução da inovação em educação, o que parece corroborar a ideia de uma vocação exponencial do efeito social da escola, sendo esse efeito induzido e conduzido de acordo com uma perspectiva sistémica da dinâmica dos processos de transformação social.. Seja como fôr, Escola e Museu são dois parceiros fundamentais e inseparáveis da dinâmica social da comunidade, e em ambiente rural ambos constituem os pilares de uma revitalização da sua identidade. Por um lado, a Escola fomenta a mudança necessária da tendência exponencial para o bloqueio da ruralidade, vinculando as novas gerações à frequência do ensino básico obrigatório, alterando comportamentos e desenvolvendo novas capacidades e saberes. Por outro, o Museu, restitui-lhes os valores tradicionais, integrando a mudança social das novas gerações no movimento longo da evolução da identidade colectiva da comunidade rural. No nosso ponto de vista, a ruralidade não deve, ou melhor, não pode, sucumbir. Não consideramos incompatível a manutenção da identidade rural com o desenvolvimento económico e social das regiões rurais. Terá de verificar-se uma adaptação da ruralidade à sociedade pós-industrial, e muitos autores consideram que no futuro o mundo rural será chamado a responder aos imperativos da desconcentração urbana, absorvendo uma população numerosa, desejosa de um retorno qualificado ao ambiente natural, que só um modelo de desenvolvimento integrado das suas regiões poderá garantir. É justamente na preparação desta adaptação, que nós julgamos dever perspectivar-se a função social da ecomuseologia, senão mesmo a sua missão. Mas para obter esse efeito social, o museólogo não pode ignorar a problemática da dinâmica dos sistemas, pois só assim ele poderá desenvolver com rigor modelos globais que somente a adopção de uma “cultura sistémica” poderá garantir.

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2- Um Modelo Sistémico para a Nova Museologia?

“Uma vez que não se trata de construir uma nova instituição, pois que já existe o sistema ou a situação pedagógica, é evidente que toda a acção – quer seja ou não inovadora – toda a transformação, toda a decisão deve ser considerada como uma intervenção no sistema existente.” Guy Berger e Étienne Brunswic, O Educador e a Abordagem Sistémica, Unesco

Também no caso da museologia, a instituição já existe, e seja qua fôr a adaptação ou evolução por que terá de passar, ela partirá de uma intervenção no sistema existente, intervenção essa cuja condução deverá ser assistida e gerida, a partir de uma visão sistémica do museu e da comunidade. Faltam, contudo, estudos sobre a aplicação da abordagem sistémica à (eco)museologia, pelo que decidimos colocar na forma interrogativa o título deste capítulo. De qualquer forma, apesar de não podemos deixar de sentir uma desconfortável sensação de “salto no escuro”, parece-nos válido extrapolar para a museologia, os conceitos, a dinâmica e os modelos usados noutros domínios da aplicação da abordagem sistémica. Não é justamente essa a vantagem da teoria dos sistemas: lidar com similitudes estruturais ou isomorfismos comuns aos sistemas?

2.1- O Museu como sistema de representações

Assim sendo, o museu é como já dissemos um sistema de natureza sócio-cultural. Mas um sistema de quê? Quais são afinal os elementos que o constituem? Não basta dizer que o museu é um meio de comunicação social, como considera o arquitecto paisagista Fernando Pessoa, é preciso determinar a natureza ou o conteúdo específicos da sua comunicação. No nosso ponto de vista, o museu é um sistema sócio-cultural orientado para a exibição de representações materiais e imateriais, organizadas segundo um discurso próprio, com o propósito de exprimir e interpretar as relações de proximidade e afastamento temporal, espacial ou civilizacional, que se verificam entre elas. Aquilo que acabámos de escrever não é evidentemente uma definição. Quantos aspectos fundamentais que caracterizam o museu não ficaram de fora? Mais do que construir uma definição, as nossas palavras pretendem situar a questão num outro plano de entendimento. É que, se se aceitar que o museu é um sistema de representações, então deixa-se de encará-lo apenas como um sistema de objectos. Todo o tipo de experiências perceptivas passam então a ficar aí incluídas: os odores, os sabores, o tacto, o frio, o calor, o eco, a percepção extra-sensorial, as visões místicas, etc.

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Assim sendo, numa perspectiva sistémica as representações, materiais e/ou imateriais, constituem os elementos do museu, cuja conservação, estudo, investigação e restituição dão razão de ser à sua existência como instituição autónoma com relevância social. De acordo com o esquema de Joël de Rosnay a que nos referimos na Introdução (cf Anexo I), sistemicamente o museu clássico poder-se-á esquematizar da seguinte forma: Aspectos Estruturais: 1. Limite: as barreiras que delimitam a área de implantação do museu 2. Elementos: representações materiais e imateriais, director, conservadores, monitores, técnicos, vigilantes, funcionários e visitantes 3. Reservatórios: exposições, reservas/galerias de estudos, biblioteca, mediateca, arquivo, auditório, serviço educativo, loja e restaurante/bar 4. Rede de comunicações: sistemas de detecção de incêndio e intrusão, circuitos internos de televisão, circuito de ar condicionado, circuito eléctrico e telefónico, circuito informático e mediático, sinalética e legendagem, audioguia, ascensores, percursos e canalizações Aspectos Funcionais: 1. Fluxos: quantidades de elementos por unidade de tempo (dia/mês/ano), quantidade de energia, de informação e de visitantes; volume de despesas e receitas; volume de exposições, publicações, colóquios e conferências; volume de aquisições e doações; volume de associados e financiadores 2. Comportas: centros de controlo dos fluxos, director; conservadores responsáveis pelas áreas específicas do museu; portaria; vigilantes 3. Tempos: discrepância entre as diferentes velocidades dos fluxos, conflitos entre os tempos de concepção e impressão de catálogos; concepção e montagem de exposições; observação das peças e leitura das legendas e textos informativos; duração das visitas e cansaço dos visitantes; resistência e usura dos materiais; expurgo e descontaminação 4. Ciclos de retroacção ou retroalimentação: dados sobre os reservatórios, os tempos, as comportas e os fluxos, valores ou estimativas de visitantes; duração da preparação e organização de exposições, da publicação de catálogos; resultados de investigações, inquéritos; estatísticas; relatórios, amostras - estes ciclos podem desencadear uma dinâmica de alteração (retroacção positiva) ou uma dinâmica de regulação e estabilidade (retroacção negativa), consoante a forma como o sistema reage a esses mesmos dados.

Poderá questionar-se o interesse real desta esquematização estrutural e funcional do museu. Efectivamente, no caso do museu clássico, cujo leque de actividades organizadas não é por princípio muito vasto, e em que normalmente prevalece o ponto de vista do especialista, registando-se fracas interacções entre domínios compartimentados do saber, em termos de investigação interdisciplinar com incidência social, a abordagem sistémica porventura não irá trazer a esse museu, muito mais do que a sua optimização de funcionamento e de administração, na medida em que o acesso permanente aos efeitos e reultados das acções junto do seu público - retroacção social - permite estudá-lo e conhecê-lo melhor, seguir a cada passo a evolução das suas tendências, e portanto garantir o desempenho de um serviço cultural de maior receptividade e/ou de maior relevância social. No caso dos ecomuseus e museus locais que inscrevem no seu programa objectivos de desenvolvimento e participação comunitária, a abordagem sistémica é fundamental, na medida em que coloca

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ao serviço do museólogo e da equipa museal um instrumento poderoso de programação, simulação e avaliação permanente das interacções dos ciclos de retroacção que enformam o funcinamento interno e as repercussões externas destes museus, em territórios que são por vezes vastos e que apresentam complexidades e disparidades inesperadas. Tal como fizemos para o museu clássico, em relação ao ecomuseu, a sua esquematização sistémica, é a seguinte: Aspectos Estruturais: 1. Limite: as fronteiras do território cuja interpretação constitui objecto do ecomuseu 2. Elementos: todo o património material e imaterial, equipa museal, representantes da população, orientadores pedagógicos, estudiosos, técnicos, funcionários colaboradores e utilizadores 3. Reservatórios: instituições públicas, privadas, civis e religiosas da comunidade, colectividades, artesãos, pastores, idosos, população em geral, arquivo, biblioteca, escolas 4. Rede de comunicações: itinerários de descoberta, de observação e de interpretação territorial e patrimonial, viaturas, sistemas de detecção de incêndio e intrusão, sistema eléctrico e telefónico, sinalética e legendagem, canalizações Aspectos Funcionais: 1. Fluxos: quantidades por unidade de tempo (dia/mês/ano), quantidade de energia, de colaboradores e de utilizadores; volume de despesas e receitas; número de exposições, publicações, colóquios e conferências; volume de aquisições e doações; número de associados e financiadores 2. Comportas: centros de controlo dos fluxos, equipa museal; representantes da comunidade, responsáveis dos núcleos; utilizadores 3. Tempos: discrepância entre as diferentes velocidades dos fluxos, conflitos entre a duração e a premência da organização de actividades e exposições; conflitos entre a observação das peças e a leitura das legendas e textos informativos; conflitos entre a duração das visitas e o cansaço dos visitantes; conflitos entre a exposição e usura dos materiais; periodicidade do expurgo, limpeza e descontaminação 4. Ciclos de retroacção ou retroalimentação: dados sobre os reservatórios, os tempos, as comportas e os fluxos, valores ou estimativas de utilizadores; duração das visitas, custos e orçamentos de exposições e actividades, conteúdo de relatórios, estudos e pareceres; resultados de investigações, inquéritos; estatísticas; amostras - estes ciclos podem desencadear uma dinâmica de alteração - morfogénese - (retroacção positiva) ou uma dinâmica de regulação e estabilidade - morfostase - (retroacção negativa), consoante a forma como o sistema reage a esses mesmos dados.

Esta esquematização que acabámos de apresentar, não constitui ainda um modelo que traduza, desenvolva e simule a organização museal. Mais do que um modelo, esta esquematização descreve uma maneira de entender e de combinar aspectos aparentemente desligados da realidade museal. 2.2- A Sociologia dos Sistemas Para constituir-se um modelo sistémico de museu, encarado como sistema sócio-cultural, o museólogo deve recorrer à Sociologia, donde poderá retirar os conceitos e a metodologia necessários para atingir esse fim. Sobre a aplicação da teoria dos sistemas à Sociologia, Walter Buckley, escreve:

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“O moderno enfoque dos sistemas deveria ser particularmente atraente para a Sociologia porque, em resumo, promete desenvolver: 1. Um vocabulário comum, que unifique as diversas disciplinas do «comportamento»; 2. Uma técnica para lidar com a grande e complexa organização; 3. Um enfoque sintético em que não é possível a análise feita aos poucos, em virtude das intrincadas inter-relações das partes, que não podem ser tratadas fora do contexto do todo; 4. Um ponto de vista que chega ao âmago da Sociologia, porque vê o sistema sociocultural em função das rêdes da informação e comunicação; 5. O estudo das relações de preferência ao estudo das «entidades», destacando-se o processo e as probabilidades de transição como base de uma estrutura flexível, com muitos graus de liberdade; 6. Um estudo operacionalmente definível, objectivo, não antropomórfico da intencionalidade, do comportamento do sistema de busca de metas, dos processos cognitivos simbólicos, da consciência e da autopercepção, da emergência sociocultural e da dinâmica em geral.”a

Grandes promessas que segundo o autor poderão ser alcançadas através do conceito de modelo sociológico de sistema adaptativo. Não basta portanto enumerar estruturas e funções de um museu para construir um modelo. É necessário introduzir aí as outras variáveis que possibilitam estudar “o comportamento do sistema de busca de metas, dos processos cognitivos simbólicos, da consciência e da autopercepção, da emergência sociocultural e da dinâmica em geral.” b Opositor da teoria do equilíbrio em Sociologia, que considera mecânica e “incapaz de lidar com fenómenos transitórios e de prever as consequências das mudanças súbitas”c, o autor, apoiando-se em Karl Deutsch, refere-se ao papel da realimentação nos sistemas socioculturais, assim:

“Para ter uma «autodirecção» eficaz, um sistema sociocultural precisa continuar a receber um fluxo pleno de três espécies de informação: (1) informação do mundo exterior; (2) informação do passado, com grande amplitude de revocação e recombinação; e (3) informação acêrca de si mesmo e das suas partes. Três espécies de realimentação que se utilizam dêsse tipos de informação, incluem: (1) busca de metas – realimentação de novos dados externos carregados para a rêde do sistema, cujos canais operacionais permanecem inalterados; (2) aprendizagem – realimentação de novos dados externos para a mudança dos próprios canais operadores, isto é, mudança de estrutura do sistema; e (3) consciência ou autopercepção – realimentação de novos dados internos por via de mensagens secundárias, atinentes a mudanças no estado das partes do próprio sistema. Essas mensagens secundárias servem de símbolos ou rótulos internos para as mudanças de estado dentro da rêde. Finalmente, podem reconhecer-se quatro ordens sucessivamente mais elevedas de intenções: (1) a busca da satisfação imediata; (2) a autopreservação, que às vezes requer o afastamento da primeira; (3) a preservação do grupo; e (4) a preservação de um processo de busca de metas além de qualquer grupo. Essas ordens de intenção, naturalmente, requerem ordens sucessivamente mais elevadas de rêdes de realimentação.”d

a

BUCKLEY, Walter, A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas, Editôra Cultrix, S. Paulo, 1971, p.66

b

Ibidem

c

Op. cit., p. 89

d

Ibidem

85

Neste trecho, julgamos descobrir importantes contributos para a determinação de uma metodologia sistémica de dotar o museu de uma “autodirecção eficaz”, ou seja, a partir destes pressupostos, o museólogo é capaz de retirar os pré-requisitos necessários para a definição e correcção permanentes da política museal. Nesta ordem de ideias, ele fica a saber que, devido à natureza adaptativa dos sistemas sócioculturais, todo e qualquer modelo perene que se pretenda conceber, deverá instalar mecanismos e processos que assegurem a sua própria evolução, ou seja, deverá integrar e assimilar um fluxo contínuo de informações conducente à evolução estrutural do próprio sistema. De passagem, não podemos deixar de assinalar as consonâncias que esta postura apresenta relativamente ao projecto ecomuseológico, tal como aparece esboçado na Definição Evolutiva de Ecomuseu de Georges Henri Rivière. Confirma-se também que como sistema sociocultural, o (eco)museu integrado, deve equipar-se de circuitos que recebam e assimilem informações do exterior (território/comunidade), informações do passado (história/património) e informações acerca de si mesmo (simulação/avaliação). Para além da instalação de tais circuitos de informação, interessa ao museólogo ter presente que a definição dos objectivos museais (busca de metas) deverá processar-se, a partir de dados que são carregados no sistema a partir do exterior, na condição desses dados não modificarem o sistema. Isto é importante pois aqui reside a fundamentação sistémica da autonomia e independência do museu, relativamente aos poderes que poderiam afectar o seu funcionamento e a sua estruturação. Autonomia que por seu turno não significa uma abstracção relativamente ao exterior, uma vez que, como sistema sóciocultural aberto e adaptativo, na concepção de museu integrado está de antemão inscrita a sua acomodação aos condicionalismos ou coerções externos, o que implica necessariamente a modificação das suas estruturas operadoras, como resultado de um processo de (aprendizagem) fundamental e permanente. No entanto, essas mudanças estruturais não fariam sentido, se a equipa museal não fosse capaz de assimilar, paralelamente, os dados internos do próprio sistema: as mensagens secundárias que traçam a auto-representação do próprio sistema (consciência ou autopercepção). Com base nestes dados informativos, o sistema sócio-cultural adaptativo pode desenvolver projectos de funcionamento, em quatro níveis de intenções progressivamente mais elaborados: 1. 2. 3. 4.

Busca de satisfação imediata Autopreservação Preservação do grupo Preservação de um processo de busca de metas além de qualquer grupo

No caso do (eco)museu integrado, consideramos que o seu nível de intenções deverá compreender os níveis 2, 3 e 4, em virtude deste se definir, a um tempo, como organização perene, autónoma e inserida na comunidade, o que implica a definição de uma estratégia de médio e longo prazo. Em síntese, qualquer modelo sistémico que pretenda constituir-se como ferramenta de mediação entre uma determinada realidade sócio-cultural e uma organização institucional específica, deverá

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compreender mecanismos de retroacção que facilitem e possibilitem a sua integração na globalidade social, sendo que, e este não deixa de ser um dos aspectos mais curiosos, assume maior importância as repercussões desses mecanismos no sistema por eles formado, do que as particularidades estruturais e funcionais do próprio sistema no momento inicial. Por acção dos princípios de equifinalidade - obtenção dos mesmo resultados independentemente das condições iniciais - e de multifinalidade - obtenção de resultados diversos a partir de condições iniciais semelhantes, não existe determinismo das condições iniciais sistema, face às expectativas do seu desenvolvimento final, se de facto o sistema tiver a capacidade de mapear a realidade exterior e interior, (re)organizando-se a partir de uma dialéctica entre mudança estrutural e conservação de metas, isto é, evoluindo em direcção a um fim. Por isso, a concepção dos modelos sistémicos de âmbito sócio-cultural requer a inclusão de dois ciclos processuais alternantes: a morfostase e a morfogénese. Sobre estes conceitos o autor escreve: “O primeiro se refere aos processos das trocas entre o sistema complexo e o meio, que tendem a preservar ou manter a forma, a organização ou o estado de um sistema. A morfogênese se refere aos processos que tendem a elaborar ou mudar a forma, a estrutura ou o estado de um sistema. Os processos homeostáticos em organismos e o ritual dos sistemas socioculturais são exemplos de «morfostase»; a evolução biológica, a aprendizagem e o desenvolvimento societal são exemplos de «morfogênese».”a

O mesmo que é dizer, que os processos de morfostase decorrem do funcionamento de ciclos de retroacção negativa e os processos de morfogénese decorrem de ciclos de retroacção positiva. Para a museologia se poder posicionar e intervir nos processos sociais, de acordo com metas correctamente estabelecidas e com efeitos sociais determinados, é importante que o museólogo possa ter um conhecimento mínimo destes mesmos processos. Só assim o museu poderá constituir-se como sede de mapeamento e intervenção social. Antes de partirmos para a formulação de um modelo passível de aplicação à (eco)museologia, não podemos deixar de transcrever da obra que temos vindo a analisar, um excerto que descreve de forma clara e simples um exemplo de processo morfogénico, aquele que precisamente mais interessa considerar em períodos de transição e transformação social, como julgamos acontecer presentemente:

“Um fazendeiro abre uma fazenda num lugar num lugar qualquer, escolhido ao acaso, de uma planície homogênea. Atraídos pelo exemplo, outros fazendeiros o imitam. Alguém abre uma loja de ferragens, outro, uma venda, e, aos poucos cresce uma aldeia. A aldeia facilita a oferta de produtos no mercado e atrai novas fazendas. O aumento da actividade e da população exige o desenvolvimento da indústria e a aldeia se transmuda em cidade.”b

2.3- Um modelo sistémico de (eco)museu integrado

a

Op. cit., p. 92-93

b

Op. cit., p. 93-94

87

Pensamos, a partir de agora, ser possível traçar um modelo sistémico aplicável à museologia integrada. Um modelo que a ser válido, além de fornecer um apoio importante para a gestão museal, poderá ser útil para a programação das actividades, bem como para a avaliação do desempenho. Partindo da Definição Evolutiva de Ecomuseu, o modelo que propomos é o seguinte:

Input/Output 





Input 



 Output

Conselho Museal

 Secção de Restituição

‡ Secção de Recepção

‡ Conselho de Interacção Comunitária

 Secção de Ateliers

 Secção de Inventário e Tratamento

 Secção de Reservas

‡ Secção de Investigação e Restauro



Conselho de Formação

Input 

 Output





Input/Output 

Antes de descrever e testar o modelo, é necessário legendá-lo. Vejamos o significado que atribuímos aos seus símbolos e ícones: Legenda do Modelo nº 1 Símbolo/Ícone

Significado

Sistema Subsistema

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Secção Secções a criar Fluxos Retroacção Fluxos a criar



Elementos: peças



Elementos: representações



Elementos: sujeitos, competências e legislação



Tempos



Comportas



Depósitos



Informações e opiniões



Estudos e projectos

Analisando o diagrama, basicamente, ele representa um modelo abstracto, organizado a partir de um sistema aberto que prevê duas entradas, duas saídas e duas entradas e saídas simultâneas que se encontram assinaladas com setas mais espessas. Com o ícone , representamos a porta por onde dão entrada as representações materiais e conteúdos imateriais. Pelas portas assinaladas com o ícone

 dão

entrada sujeitos, competências e legislação nacional e internacional (conselho museal: museólogos, investigadores, recomendações do MINOM, código deontológico do ICOM, Lei do Património Cultural, contactos com outros museus e organismos afins supra-regionais; Conselho de Formação: formadores, formandos e estagiários) de acordo com o enquadramento definido nos Estatutos. Pela porta assinalada com o ícone

 dão entrada informações e pareceres sobre a região onde se encontra

inserido o museu. Relativamente às saídas, pela porta assinalada com o ícone

 saem por exibição, depósito ou

devolução, as colecções e representações museais. Pela porta de saída, assinalada com o ícone  saem estudos e projectos de desenvolvimento comunitário, concebidos em parceria com instituições ou organizações locais, com as quais tenha sido previamente celebrado protocolos de interacção. Pelas portas assinaladas com o ícone  dão saída, da mesma forma, sujeitos, competências e legislação esta-

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tutária do museu (Conselho Museal: representantes institucionais; Conselho de Formação: técnicos do Património e animadores culturais) Quanto à sua estrutura e funcionalidade, gostaríamos de realçar alguns aspectos:

1. O circuito museal propriamente dito, trespassa transversalmente (no sentido não-hierarquizante do termo) o modelo e aparece no diagrama assinalado com setas de espessura média, descrevendo a trajectória normal de recepção, inventariação, tratamento (limpeza e descontaminação), investigação (datação, atribuição de autoria, avaliação, etc.) pequeno restauro e exibição, depósito ou devoluçãoa, ou entrada em reserva. 2. Paralelamente a esse circuito, um fluxo fundamental (de sentido hierarquizante), aparece bem vincado no modelo, assinalado com setas de maior espessura, como eixo aglutinante que integra e mobiliza as partes, através de uma repartição lógica dos conhecimentos museológicos, divididos em termos de definição da política museal (pólo de gestão) e de desenvolvimento da acção pedagógica (pólo de formação). 3. No centro, constituindo o coração ou motor do modelo, situamos um subsistema altamente sensível e complexo, onde são mapeadas todas as interacções externas, representadas com setas de espessura média, e internas, comsetas de espessura fina, e donde devem partir, ou ser ratificadas, , por decisão colegial, todas as decisões em reunião periódica do conselho museal, composto pela equipa museal e por representantes da comunidade local. 4. De salientar ainda, que, observando o sentido das setas, para o Conselho Museal são canalizadas informações provenientes das várias secções (primado da aprendizagem) e não no sentido inverso (primado da estabilidade) como resultado do princípio fundamental da teoria sociológica da informação segundo o qual só perduram os sistemas que evoluem a partir do conhecimento das coerções externas e dos condicionalismos internos. 5. Os elementos representados a tracejado no diagrama, correspondem a sectores cuja criação, numa fase inicial, não consideramos imprescindível, uma vez que na perspectiva da museologia integrada a primeira função do museu não é certamente a de “encafuar objectos nas Reservas”, e, por outro lado, porque a criação de Ateliers, pelo grande interesse comunitário de que se reveste, consideramos dever partir de uma vontade e empenhamento prévia e claramente demonstrados pela população-alvo. Só assim, se poderão evitar erros e frustrações como os que testemunhámos no Ecomuseu do Seixal, e já discutimos.

Como modelo abstracto, este diagrama não discrimina espaços - estruturas físicas - ou estipula tempos - fenómenos de duração. Limita-se a estabelecer relações e a fomentar interacções entre as principais funções museais, numa óptica de interpretação das novas tendências - desconcentração, integração - e dos novos valores - participação, co-responsabilização. Em parte, este modelo inspira-se nos princípios e práticas de gestão e organização escolar. Seria tentador estabelecer um paralelo entre o Conselho Museal e o Conselho Directivo das Escolas, e entre o Conselho de Interacção Comunitária e o Conselho Pedagógico, ou entre o Conselho de Formação e o Conselho de Grupo/Disciplina, das mesmas. Apesar de caricatural, num e noutro caso encontramo-nos perante três instâncias distintas de um mesmo sistema sócio-cultural, sendo que, da primeira, “emanam” formas de conhecimento especializado - paradigma da concepção - na segunda se “constrói” uma plataforma de legitimidade e responsabilidade partilhadas - paradigma da criação/ participação - e na terceira se “materializam” os objectivos perduráveis - paradigma da acção. a

No nosso ponto de vista pode justificar-se a devolução das peças à origem, mediante uma contrpartida financeira pelas intervenções de restauro e de avaliação e investigação que o museu viesse a fazer sobre elas. Posteriormente, referir-nos-emos a este aspecto mais pormenorizadamente

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Estas três instâncias, constituem a Tríade que polariza e encaminha o sistema, assegurando a sua continuidade e contiguidade adaptativas, evoluindo em função não das mudanças aparentes da envolvente sócio-cultural, mas sim da interpretação sistemicamente apoiadas - o mapeamento - que a organização sócio-cultural aberta à retroacção e interacção sociais, faz à luz da teoria dos sistemas. Antes de finalizar a descrição analítica do modelo, talvez interesse referir os passos seguidos desde a análise da Definição Evolutiva de Ecomuseu até à solução apresentada. Do texto de Georges Henri Rivière, com relação ao conceito de ecomuseu retirámos os seguintes elementos estruturais: Ecomuseu é: •

Um instrumento

Função sócio-cultural

C. Interacção



Um espelho

Captação de representações

S. Recepção



Uma expressão do homem e da natureza

Restituição de representações S. Restituição



Uma interpretação do território

Criação de novas representações

S. Ateliers



Um conservatório

Preservação e Restauro

S. Restauro



Um laboratório

Investigação e Estudo

S. Investigação



Uma escola

Formação

C. Formação

Tratando-se de um modelo genérico, a sua aplicação à prática dará necessariamente azo à génese e ao desenvolvimento de protótipos museais muito diferentes, como resultado da assimilação e interpretação que cada (eco)museu integrado fará das diversidades e disparidades do contexto em que se encontra inserido. Sobre este aspecto que se relaciona com a concepção e desenvolvimento de cada projecto museológico específico, nesta fase, não nos iremos pronunciar. Estamos convictos de que, no essencial, apesar de carecer de um maior aperfeiçoamento e aprofundamento, este modelo é suficentemente dinâmico para que, depois de aplicado, pudesse sofrer as alterações estruturais ou funcionais necessárias ao seu próprio desenvolvimento. No entanto, a sua validação depende, em última análise, de dois factores: a sua capacidade de adaptação às premissas do projecto museológico e os resultados obtidos, por fim, na prova de fogo da experiência.

2.4- Abordagem sistémica e investigação interdisciplinar Antes de entrarmos no projecto meseológico, importa recordar, porém, que a abordagem sistémica constitui uma metodologia particularmente atraente para promover a investigação interdisciplinar. No caso da (eco)museologia, esse aspecto é de grande relevância, uma vez que a investigação museal se concentra fundamentalmente no estudo de objectos culturais e/ou contextos sociais, o que implica a análise e caracterização dos factos, sob perspectivas e ramos do conhecimento que podem ser muito díspares.

91

Para relacionar os contributos e as conclusões das diversas disciplinas ou ciências e dos diferentes métodos e técnicas de investigação e possibilitar a génese de uma visão global e integrada do objecto e do seu contexto, o museólogo/investigador tem, então, vantagem em recorrer à abordagem sistémica, como metodologia de integração de conhecimentos separados, inauguradora de um movimento de unificação do saber. É o que acontece em ecomuseologia, por exemplo, com a interpretação do território e o estudo das relações entre o Homem e a Natureza em determinada comunidade, no espaço e no tempo. Claro que, em teoria, o trabalho de investigação de cada especialidade envolvida nestes estudos, deveria naturalmente ficar a cargo, ou pelo menos ser acompanhado, por especialistas das respectivas disciplinas. Mas chegado o momento da síntese, todas as contribuições e conclusões devem ser sistemicamente maquetizadas, da mesma forma como o museu no seu funcionamento mapeia a realidade sócio-cultural a que pertence. Ao museólogo compete, portanto, promover e facilitar esse processo. Só assim, na organização de exposições sobre temas como estes, poderá haver uma garantia de que determinados aspectos da realidade aí representada, não obliteraram outros de relevância equivalente, como resultado de uma programação ou investigação deficiente. Seria, no entanto, fastidioso agora projectar, em abstracto, regras e procedimentos específicos de uma investigação adaptada à nova museologia. Em vez disso, preferimos desenvolver esses aspectos, inserindo-os na concepção do projecto museológico do Ecomuseu do Montemuro-Paiva.

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Notas do 2º Capítulo 1

Sobre este conceito Bertalanffy escreve: “Tout organisme vivant est essentiellement un système ouvert. Il se maintient dans un flux sortant continuels, une génération et une destruction de composants; il ne connaît pas tant qu’il est en vie, d’équilibre chimique et thermodynamique mais il est maintenu dans ce qu’on appelle un état stable qui s’en distingue totalement. C’est le processus chimique interne des cellules qui est l’essence même de ce phénomène fondamental de la vie qu’on appelle métabolisme. Qu’en est-il? Evidemment les formulations conventionnelles de la physique ne s’appliquent pas, en principe, à l’organisme vivant considéré comme un système ouvert en état stable; il nous faut en outre supposer que beaucoup des caractéristiques des systèmes vivants, qui semblent paradoxales faces aux lois de la physique, sont une conséquence de ce fait”. Op. cit. p. 38

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Projecto Museológico

Interessa-nos o povo porque nêle se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que êles se resolvam terminarão cuidados e interêsses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção. Agostinho da Silva Considerações, 1944

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1- Estudo sistémico da região “Para construirem as paisagens e os universos culturais que elas representam, no devir infindável dos séculos, dos milénios, os homens mesmo isolados uns dos outros utilizaram processos mentais semelhantes, e fizeram entrar nas suas cosmogonias e especulações metafísicas, a terra, o ar, a água e o fogo; o sol e a lua; o firmamento que os cobre à noite com uma poalha sem fim de pequenos luzeiros: o romper do dia e o cair da noite; a luz e as sombras, as variações do Tempo ao longo do ano e também o dia e a noite; as cores e a sua ausência; a criança ou o filhote de bicho que nascem e gritam a vida, e o cadáver que, de súbito, deixou de ser a pessoa ou animal animados.” Arqto Fernando Pessoa, Museologia de Interpretação da Paisagem, 1994

Após lermos estas palavras, não restam dúvidas de que uma das mais importantes inovações da museologia nas últimas décadas, partiu precisamente da consciencialização das potencialidades e virtualidades museográficas do território, como elemento susceptível de interpretação museológica, isto é, como elemento passível de ser abordado e explorado a partir das técnicas e das regras que caracterizam a investigação interdisciplinar e o discurso expositivo. No entanto, maior dificuldade é difícil de conceber-se! A quantidade e disparidade de elementos que o território nos oferece, a globalidade das relações espácio-temporais que nele se entretecem e a complexidade que o seu estudo implica, são argumentos bastantes para refrear entusiasmos e adesões fáceis.

1.1- Reconhecimento do Território Porventura, mais do que qualquer outro objecto museal, o estudo do território exige a observação de uma metodologia onde se cruzam e se confrontam contributos de várias disciplinas, sendo as mais correntes a Geografia, a Geologia, a História, a Arqueologia, a Biologia, a Ecologia, a Botânica e a Zoologia, cada qual desenvolvendo-se em torno de objectos e métodos distintos, e apresentando, no seu relacionamento mútuo, certas áreas de atrito.

A problemática da definição do território O primeiro problema em relação ao estudo do território surge, aliás, logo de imediato, na sua definição e delimitação. Que critérios deverão prevalecer? Sobre este aspecto, Jean-Pierre Gestin, conservador dos museus do Parque Natural Regional de Armorique, França, diz:

“On le devine ici, rien ne se dérobe plus facilement à une approche objective que la définition de territoire. On l’a vu, dans l’espace les territoires s’emboitent les uns dans les autres comme les poupées gigognes; dans le temps, ils varient en fonction des transgressions de frontières entre autres, ils interfèrent entre eux, et si l’on tente de les définir par des paramêtres tels que

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géologie, climat, habitat, costume, langue, pratiques agricoles, danse, opinions politiques et réligieuses.. il será souvent difficile pour ne pas dire impossible de faire coïncider entre elles les differentes frontières. En fait, si la notion d’identité se trouve intimement liée à celle de territoire, encore faut-il savoir de quel type de territoire il est question.”a

Por esta breve passagem se vê, como a questão da definição do território se pode tornar bloqueadora. É sempre possível estabelecer divisões mais restritas dentro de divisões mais vastas, sendo inconcebível a existência de um território cujas fronteiras naturais, culturais, administrativas ou político-sociais coincidam entre si, e se mantenham assim ao longo dos tempos. Como sair deste impasse? Quanto a nós, a postura mais honesta consiste em assumir inteiramente a subjectividade de qualquer definição de território e, consequentemente, a subjectividade da sua delimitação. Todas as decisões que se possam tomar nesse domínio, encontram-se, à partida, irremediavelmente datadas, e como tal a melhor opção do museólogo é a de liminarmente recusar introduzir fórmulas artifíciais que desemboquem numa delimitação desajustada do território do (eco)museu, e que possam de alguma maneira impor aí divisões, amputações ou estrangulamentos prejudiciais aos equilíbrios naturais, culturais, sociais ou mesmo políticos. Sendo assim, nós consideramos que se é certo o ecomuseu estar condenado a evoluir, como afirma Georges Henri Rivière, então, também a definição do território onde este se insere, da mesma forma, deverá fazê-lo. Por isso, a proposta que apresentamos aqui, é uma proposta provisória, fruto dos condicionalismos do seu tempo: considerar as fronteiras do Ecomuseu do Montemuro-Paiva coincidentes com as fronteiras do Município de Castro Daire. A razão porque o fazemos, decorre do facto de pensarmos que as fronteiras administrativas preenchem bem a função de delimitação provisória do território, porque de um modo geral se referem a unidades estáveis e reconhecidas que, se encaradas dinamicamente, por resultarem da interacção do homem com a natureza, reflectem a «conjugação possível» do maior número de traços unificadores, além de deixarem em aberto a possibilidade de uma reformulação, visto assumirem frontalmente a sua vertente convencional. Quer isto dizer, que não faz sentido delimitar um território sem previamente conhecê-lo, estudá-lo e, em última análise, “sentí-lo e reconhecê-lo” como elemento representativo de uma identidade simultaneamente material e simbólica. Em ambiente rural, cremos que a definição do território concebida em função das divisões administrativas de âmbito regional - Concelhos - e local - Freguesias - constitui uma fórmula particularmente adequada, quando se não verifica a presença de outro tipo de fronteiras previamente definidas, como acontece quando deparamos com um Parque ou uma Reserva Natural.

a

In, Musées et Sociétés. Actes du colloque national musées et sociétés, 1991, Mulhouse-Ungersheim, p. 119-120

97

Além do mais, segundo opinião do Profor Amorim Girão, Castro Daire constitui o centro de atracção do Montemuro, quando diz que “Exceptuando uma pequena parte de Arouca, e de Lamego, distribui-se o Montemuro pelos três concelhos de Cinfãis (sic), Resende e sobretudo pelo de Castro Daire, cuja linha divisória corresponde aproximadamente à cumeada da serra; mas só esta última sede concelhia pela sua situação geográfica relativamente ao conjunto montanhoso, pode dizer-se que constitue verdadeiro centro de atracção regional.”a Mas para lá dos aspectos teóricos, o critério de definição e delimitação territorial que propomos tem ainda, no nosso ponto de vista, as seguintes vantagens práticas:

1. Resolve o problema da delimitação do teritório, sem abrir uma discussão pública ou política com grandes probabilidades de tornar-se estéril 2. Nomeia automaticamente interlocutores e responsáveis públicos locais: Câmaras Municipais, Freguesias e Paróquias. 3. Descentraliza o museu local integrando-o mais profundamente na região 4. Permite facilmente uma redefinição do seu território, uma vez que assume frontalmente o seu carácter convencional

Delimitado o território, o passo seguinte consiste em estudá-lo e caracterizá-lo, e as obras onde encontrámos referências mais directas sobre esta matéria, foram as seguintes:

• Dicionário Coreográfico de Portugal Continental e Insular - entradas Castro Daire e Montemuro

• Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno • Aristides de Amorim Girão, Montemuro: A mais Desconhecida Serra de Portugal • António de Brum Ferreira, Planaltos e Montanhas da Beira • Alberto Correia, Alexandre Alves e João Inês Vaz, Castro Daire - Monografia

Aspectos Geográficos, Geomorfológicos, Hidrográficos e Biológicos

O Concelho de Castro Daire localiza-se na Beira Alta, Distrito de Viseu, e ocupa uma extensão de 376,25 km2 que apresenta uma paisagem de características eminentemente rurais. (fig. nº 1) Trata-se de um território em termos orográficos acidentado, de feição planáltica generalizada, donde se destacam como acidentes mais notáveis o profundo vale do rio Paiva e o imponente bloco da Serra do Montemuro, cujos cimos são também aplanados. (fig. nº 2) Sobre o relevo do Montemuro, António de Brum Ferreira, escreve:

a

GIRÂO, Aristides de Amorim, Montemuro: A Mais Desconhecida Serra de Portugal, Coimbra, 1940, p. 137

98

“A Serra do Montemuro tem uma configuração dissimétrica na direcção norte-sul, sugerindo um balanceamento para o Douro. A vertente sul é muito íngreme, por vezes sem nenhum patamar intermédio entre o cimo da serra e o fundo vale do Paiva, o que equivale a uma descida da ordem dos mil metros e um declive médio de 18%. A vertente norte tem um declive nitidamente mais fraco, da ordem de 6 a 7%, antes de chegar propriamente a o vale do Douro, cujas vertentes se iniciam, por via de regrta, a uma altitude de 500-600 m. menos notável é a dissimetria leste-oeste, mas a descida do lado ocidental é mais imponente do que a do lado oriental.”a

Em relação à forma como o vale do rio Paiva atravessa o Concelho, o mesmo autor escreve:

“A jusante de Castro Daire, ao entrar no sector das montanhas ocidentais, o perfil longitudinal do Paiva apresenta uma importante ruptura de declive, fazendo baixar o seu leito de 460 para 300 m, numa distância de 7 km (declive médio de 2,3%). No entanto, tal como sucedia em Fráguas, este abrupto é compósito, sendo de salientar um patamar intermédio entre 360 e 390 metros de altitude, separado por degraus bem marcados, tanto a jusante como a montante. Esta ruptura de declive corresponde a uma mancha granítica emergento do complexo xisto-grauváquico, que o Paiva atravessa desde 2 km a montante de Castro Daire.”b

Estes acidentes do relevo encontram-se intimamente relacionados com a evolução geomorfológica que Carlos Alberto Medeiros do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, caracteriza assim:

“... A disposição actual das massas de relevo resulta das deformações duma superfície de erosão, que costuma datar-se do Paleogénico, ou seja, do início do Terciário, era geológica que se iniciou há 65 milhões de anos. Essa superfície foi deslocada por um acidente tectónico, que passa pela vertente oriental do da serra de Montemuro e se prolonga, para sul, pelas do maciço da Gralheira (serra da Freita, S. Macário e outras) e da serra do Caramulo (aliás, este acidente é muito mais extenso e constitui uma longa cicatriz da crusta terrestre, entre Verin, na Espanha, e Penacova.”c

Esta fractura já em 1940 havia sido estudada pelo Prof. Amorim Girão em O Montemuro, A Mais Desconhecida Serra de Portugal, onde defende a tese hoje reconhecida de que a fractura que

a

FERREIRA, António de Brum, Planaltos e Montanhas do Norte da Beira, Estudo de Geomorfologia, Lisboa, INIC, 1978, p. 241-243.

b

Op. cit, p.247

c

In AA.VV, Castro Daire, Câmara Municipal de Castro Daire, 1986, p. 13-14

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rasga na direccção de NNE-SSW desde Verin, na Galiza, todo o maciço Galaico-Duriense, se prolonga para sul do Douro, formando o limite oriental da serra do Montemuro, por onde corre o Rio Balsemão, e prolongando-se para sul, obrigando o rio Paiva a inflectir o seu curso para Sul, frente à Ermida, e continuando pela serra de S. Macário, vale do rio Sul e serra do Caramulo, para ir deter-se junto a Penacova, às portas do Mondego. (fig. nº 3) Um dos efeitos mais visíveis desta fractura, prende-se com o aparecimento de importantes Estações Termais, ao longo do seu trajecto: Chaves, Pedras Salgadas, Carvalhal e S. Pedro do Sul. Outros aspectos há que constituem referência importante relativamente à caracterização geomorfológica do território montemurano, que as figuras seguintes evidenciam: o alinhamento particular do Montemuro em relação às serras que o circundam (fig. nº 4); a sólida constituição geológica dos terrenos (fig. nº 5) e a apreciável área ocupada pelos terrenos acima de 1.000 metros, só ultrapassada pelos da serra da Estrela, como o Prof. Amorim Girão explica:

“Se exceptuarmos a serra da Estrela, com os seus 1.993 metros de altitude, nenhuma outra formação montanhosa do nosso país tem a importância do Montemuro, não só a Sul, mas mesmo ao Norte do Douro. A sua altura máxima é de 1.382 metros. Há ao Norte do Douro algumas serras que ultrapassam esta cota: Gerez (1.561 m.), Peneda (1.415 m.) e Marão (1.415 m.), porém, a primeira destas não é só portuguesa e, nas duas restantes, a curva de nível de 1.200 metros encerra extensões reduzidas. No Montemuro cerca de 25 quilómetros quadrados ficam acima desta cota.”a

Relacionada com a sua importância orográfica, na opinião do mesmo autor, outros factores há de destaque que resultam da simbiose do vale do Paiva com a serra do Montemuro:



A extraordinária beleza paisagística das encostas que dominam o Concelho



A importância do Montemuro como agente condensador que faz com que o rio Paiva seja o afluente da margem sul mais caudaloso do Douro, apesar de não ser o mais extenso

Começando pela primeira, que justificou a criação na serra do Montemuro e no rio Paiva de duas zonas de protecção paisagística e ambiental, a que nos referiremos posteriormente - Zona Natural da Serra de Montemuro-Bigorne e do Rio Paiva, de protecção a biótopos do Programa Corine da Comunidade Europeia - junto apresentamos uma relação de tipologias e locais com interesse, em termos de interpretação física do território:



Formações Rochosas: Talegreb, Fraga da Moira Encantada

a

GIRÂO, Aristides de Amorim, Montemuro: A Mais Desconhecida Serra de Portugal, Coimbra, 1940, p. 25

b

Sobre este nome Amorim Girão diz: “Termo local que é uma corrupção de telégrafo. Aí funcionou, com efeito, um telégrafo, no tempo da telegrafia por sinalização óptica.”

100

• Aspectos do Relevo: Serra das Têtas, Alagoa de D. Joãoa, Várzea de Reriz, Veiga de Campo Benfeito

• Beleza Paisagística: Queda de Água da Pombeira, Portas de Montemuro, Poço dos Molgos.

• Vegetação Notável: Carvalha do Presépio •

Recursos Naturais Especiais: Águas Termais



Biomas



Biótopos

Sobre o maciço do Montemuro, Amorim Girão conclui:

1. “O Montemuro é, no conjunto do Maciço Galaico-Duriense, uma forma de relêvo rejuvenescida. 2. As duas principais linhas de alturas do Montemuro coincidem na orientação: uma, com a linha de fractura que, do bôrdo oriental do Caramulo, pelos vales de Ribamá e Sul, e, ao Norte, pelo vale do Corgo e Veiga de Chaves, se estende até à Galiza, e outra com os enrugamentos hercínicos da Península. 3. Há vales de fractura no Montemuro, sendo particularmente nítido o do Bestança. 4. A erosão fluvial está pouco adiantada 5. Fenómenos de nivação podem observar-se na Alagoa

Como acabámos de ver, é o relevo desta importante serra produto de múltiplas causas, que actuaram ao longo das idades geológicas e actuam ainda, esculpindo píncaros e rasgando mais profundamente os vales. Nela se encontra matéria com que exemplificar a acção dos mais variados agentes geomorfológicos , e por isso o Montemuro é uma das formações montanhosas do nosso país mais cheias de interesse e mais dignas de uma visita por parte de geógrafos e e estudantes de geografia.”b

Relativamente aos aspectos biológicos, de acordo com o Programa CORINE1 da Comunidade Europeia (Decisão 85/338/CEE do Conselho de Ministros da CEE, de 27-6-85) a serra de Montemuro/Bigorne é classificada no Projecto Biótopos2 com o código C12600143 da Comissão de Coordenação da Região Centro e Norte, ocupando uma área de 21,850 ha, cujas motivações de proteccção são: Carácter botânico (geral); Zoológico (geral); Presença de espécies “raras”; Presença de espécies “vulneráveis”; Presença de espécies “em perigo” de extinção; Importância geológica e/ou geomorfológica; e Sítio de interesse Ornitológico para a CEE. Além da serra de Montemuro/Bigorne, também o rio Paiva (fig. nº 6) está abrangido pelas disposições do Programa CORINE, aparece aí classificado no Projecto Biótopos com o código C11600180 da Comissão de Coordenação da Região Centro e Norte, ocupando uma área de 1,550 ha, e tendo como motivação de protecção: Habitats/Comunidades/Ecossistemas; Zoológico (geral e mamífe-

a

Acumulação de depósitos por nivação (“conjunto de fenómenos que transformam a superfície nas regiões onde as neves desempenham um grande papel, sem serem as neves eternas que dão os glaciares”)

b

GIRÂO, Aristides de Amorim, Montemuro: A Mais Desconhecida Serra de Portugal, Coimbra, 1940, p.44 e 45

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ros); Presença de espécies “vulneráveis”; Presença de espécies endémicas; Interesse natural e paisagístico geral. No Anexo II, juntamos a documentação e legislação disponíveis sobre esta matéria. Gostaríamos a este propósito de salientar que no nosso ponto de vista, a temática da conservação da natureza deve interessar a museologia, pois o aproveitamento das potencialidades museográficas do território e do património natural poderão constituir um incentivo inestimável à difusão das medidas de protecção ambiental, fornecendo ao mesmo tempo um importantíssimo estímulo ao desenvolvimento de programas de educação ambiental e também apoiando a recolha e apresentação de informações colhidas no terreno, integrando-as no contexto histórico, cultural e social das comunidades humanas. Aliás, se observarmos o modelo padrão de registo de Sítios (Anexo II: Programa CORINE, Projecto Biótopos, p. 13) adoptado pelo grupo responsável pela implementação do Projecto Biótopos em Portugal, verificamos que a sua concepção e organização obedece a critérios e métodos de inventariação equivalentes aos praticados pela museologia. Relativamente à cobertura vegetal, as plantas da região podem agrupar-se em oito categorias, da maneira que se segue: Tipos de Plantas Infestantes

Medicinais

Plantas Ecológicas

Plantas Agrícolas

Ornamentais

Plantas

Caracterização (segundo João Gonçalves Lopes) São as plantas normalmente exóticas, herbáceas ou lenhosas que, pelo seu desenvolvimento galopante, acabam por se assenhorear de grandes espaços onde vivem, com manifesto prejuízo para as espécies locais. Citamos, por exemplo, Ailanto, Acácia, Austrália, Chorão da Praia, Erva da Fortuna, Escalracho, Eucalipto, Galinsoga, Jacinto da Água, etc., para só citar algumas exóticas, por sinal muito perigosas para a flora autóctone. São as plantas (ervas, arbustos, ou árvores) que proporcionam elementos de cura, ou alívio, ao homem, quer directamente, quer através da extracção de sais, hidratos, essências, etc., por farmacopeias, ervanárias, etc. Muitas plantas são esotéricas e o seu uso e aplicação remontam às mais antigas civilizações do planeta (Grécia, Roma, Egipto, Maias, Astecas, Incas, Celtas, Guanches ...). As plantas medicinais podem ser naturais ou estrangeiras, e as suas propriedades podem ser benignas ou malignas, tudo depende do tipo de medicina usada (Quimioterapia, Fitoterapia, Alopatia ou Homeopatia). Citamos, por exemplo, Coca, Dedaleira, Dormideira, Erva Cidreira, Erva Moura, Erva da Tinta, Estramónio, Ginseng, Mary-Juana, Norça Preta, Uva de Cão, Urtigas, etc São as espécies que servem, normalmente, para evitar a erosão dos solos de montanha ou do litoral, mantendo a matriz dos terrenos e fixando as espécies mais vulneráveis à erosão e desgaste dos seus habitats, especialmente depois das remoções mecânicas das serras, incêndios, etc. Citamos, como exemplo, boragíneas, cistíneas, compostas, gramíneas, labiadas, leguminosas (carqueja, giestas, piorno, tojo), rosáceas (potentila, silvas), umbelíferas, urzes, etc. As plantas formam grandes comunidades onde vivem de harmonia com as suas afinidades com vista ao trabalho que lhes está destinado superiormente. São todas e quaisquer espécies utilizadas para alimento do homem ou animais, normalmente cultivadas em larga escala, modernamente com ajuda de grandes instrumentos agrícolas. Podemos citar as árvores de fruto, cereais, colzas, fenos, forragens, girassol, milho maês, sorgo, etc. São todas as plantas, de pequeno ou grande porte, espermatófitas ou pteridófitas, cujo fim é adornar ou enfeitar os lugares onde se plantaram (jardins, parques, ruas, avenidas, vasos), ou se destinam a plantas de corte para fins vários (ramos, palmas, buquês, coroas, etc.). É importante conhecer as espécies que nos rodeiam, para depois respeitar as que vivem em plena natureza, tratando-as pelos nomes científicos ou vernáculos, distinguindo as famílias, géneros e espécies, suas características, etc. Pode tratar-se de espécies de ar livre ou de estufa fria ou quente, para espécies equatoriais e tropicais (Avencas, Bananeiras, Borracheiras, Buganvíleas, Ciclamens, Croton, Dioneias, Nepentes, Orquídeas, Pândano, Sarracénia, Strelitsia, Victoria Regia e V. Amazonia, etc.). São todas as espécies cujos os frutos servem de alimento à ornifauna ou às aves aladas, em

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Ornifáunicas

Plantas Artesanais

Plantas Melíferas

geral granívoras e frutívoras, tais como as gramíneas e as produtoras de frutos bacáceos, drupáceos e pomóideos (Erva Moura, Erva Tinta, Uva Cão, Rebenta Bois, Norça Preta; Amoras das Silvas, Cratego, Pilriteiro, Mostageiro Cinorródão, Sorveira, etc.). Em sentido mais amplo, podemos indicar os frutos do Carvalho, Azinheira, Loureiro Real, Azereiro, Azevinho, etc. São todas as espécies que se utilizam no fabrico ou confecção de objectos de artesanato, a nível local ou regional, por vezes em regime semi-industrial. Citamos, por exemplo, Acácias, Austrália, Bunho, Canas, Ervas Tintureiras (Fitolaca, Sumagre, Cártamo), Esparto, Junça, Junco, Madeiras leves para a construção de tamancos, instrumentos musicais, cachimbos (Salgueiro, Amieiro, Choupo, Azinheira, Carvalho, Vidoeiro), palha usada para chapéus, Salgueiro, e Vimes usados para fazer cestos e cestas diversas com as suas vergônceas, casca das Silvas para confeccionar as cestas teigas (Alvite, Beselga, etc.), etc. Madeiras exóticas. São todas aquelas que servem de pasto ou alimento ao gado apícola, com vista a fornecer um excelente mel que é dos melhores alimentos e remédios para o homem, em substituição do açúcar refinado. As plantas melíferas constituem um mundo especial e só as abelhas saberão dizer qual é exactamente, porque tudo depende da região, época do ano e necessidade ocasional. Citam-se algumas espécies, como exemplo, boragíneas, cistíneas, compostas, gramíneas, labiadas, rosáceas, urzes, etc. São importantes as árvores de fruto (citrinos, pomóideas) e os cereais, que acumulam enormes quantidades de energia solar. Daí o grande valor nutritivo e medicinal do Mel natural. As abelhas ainda são muito úteis para a polinização das árvores de fruto (pomares).

Para encerrar o assunto, interessa referir que, em Amorim Girão, 1940, a vegetação arbórea do Montemuro e do rio Paiva, se encontrava assim comparativamente distribuída (fig. nº 7): Quanto às espécies arbustivas, o mesmo autor identificou e distribuiu os elementos mais re-

Fig. nº 7

presentivos da flora montemurana, da seguinte forma: Principais espécies arbustivas do Montemuro Designação Vulgar Piorno Amarelo Piorna, giesta Piorno Bravo Tojo Codeço Urze, Urgueira Sargaço branco Erva

Designação Científica Retama sphaerocarpa Genista Lusitanica Ulex nanus Adenocarpus complicatus Erica umbellata Citus monspeliensis Nardus stricta

Localização Encostas viradas a nascente “ Portas do Montemuro Zonas mais elevadas Codeçal, Codeçais Alagoa de D. João

Identificação de áreas de observação e protecção da natureza Mediante os aspectos e os elementos já mencionados, o museólogo auxiliado pela abordagem sistémica é chamado a conceber um plano de estruturação do território, com vista a proceder ao seu aproveitamento museológico. Trata-se aqui de encontrar as vias que conduzam a um plano coerente de interpretação do território, através da criação de uma rede de Itinerários e Sítios. No nosso ponto de vista, a designação destes elementos museográficos deve, tanto quanto possível, reger-se por critérios de interdisciplinaridade ou mesmo transdisciplinaridade, perspectivando uma articulação global entre itinerários e sítios. Mais do que propriamente atender aos casos notáveis do território, a sua interpretação museal deve sublinhar as transições, as mudanças e as interacções das 103

diversidade e dos particularismos, associando-os na busca de relações não somente exclusivas do plano biofísico (património natural), mas integrando também o próprio plano histórico-cultural. Importa, para tanto, começar por dividir o território em áreas diferenciadas. Alberto Correia, no seu estudo sobre o Concelho Castro Daire distingue três áreas morfológicas fundamentais. São elas:

Áreas Morfológicas do Concelho de Castro Daire Designação Serra do Montemuro

Localização Norte e Noroeste do Concelho

Vale do rio Paiva

Sul e Sudoeste do Concelho

Beira-Serra

Este, Nordeste e Sudeste do Concelho

Caracterização Zona de grandes altitudes. Relevos de cristas aplanadas. Fundura achatada de grandes veigas. Dureza do clima, exiguidade de solos aráveis, povoamento reduzido A jusante do rio Paivó: encostas íngremes e verdes, policultura intensa até às cotas intermédias, criação de gados nos sítios mais elevados. Grande densidade populacional Prolongamento do Planalto de Viseu. Colinas cortadas por Ribeiros. Vales extensos e amplos. Região dividida a meio pelo rio Paiva. Zona de explorações agrícolas mais extensas

Na nossa proposta de estruturação do território, definimos dentro destas áreas diferentes agrupamentos de organização temática, recordêmo-los:

Formações Rochosas: Talegre, Fraga da Moira Encantada Aspectos do Relevo: Serra das Têtas, Alagoa de D. João, Várzea de Reriz, Vale da Seara, Beleza Paisagística: Queda de Água da Pombeira, Portas de Montemuro, Poço dos Molgos. Vegetação Notável: Carvalha do Presépio Recursos Naturais Especiais: Águas Termais do Carvalhal Biomas: Biótopos:

Da sua conjugação, resulta a seguinte estruturação provisória:

Estrutura de Interpretação Territorial do Concelho de Castro Daire Zonas Serra do Montemuro (bioma)

Rio Paiva (bioma)

Beira-Serra Castro Daire

Sítios Portas de Montemuro Alagoa de D. João Veiga de Cotelo Queda da Pombeira Várzea de Reriz Poço dos Molgos Termas do Carvalhal Serra das Têtas Carvalha do Presépio

Justificação Beleza paisagística Fenómenos de nivação Aspectos do Relevo Beleza Paisagística Aspectos do relevo Beleza Paisagística Recursos Naturais Especiais Beleza Paisagística Vegetação Notável

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Núcleos *

Itinerários * * *

* * * * *

Com estes elementos, é já possível criar-se nexos e contrastes suficientemente significativos, em termos de interpretação do território. Todavia, se é verdade que do ponto de vista da ecomuseologia a necessidade de assinalar as relações entre as comunidades humanas e o território, constitui uma preocupação sempre presente, então unicamente após se ter procedido à caracterização do património e da comunidade poder-se-á definir uma estrutura museal integral. Ficam, portanto, desde já assinalados estes agrupamentos. Posteriormente, quando nos debruçarmos sobre os elementos do Património e da Comunidade, uniremos todas as «pontas do novelo», criando uma estrutura global de interpretação do território, no sentido mais abrangente do termo. À margem desta estruturação, mas relacionada intimamente com toda a problemática do território, sua definição, preservação, estudo e interpretação, é necessário dizer que os valores ambientais e patrimoniais em causa neste território, (fig. nº 8) no nosso ponto de vista, justificam a elevação do grau de protecção ambiental e cultural de que a Serra do Montemuro e o Vale do rio Paiva actualmente disfrutam. Aliás, a figura jurídica de Área Natural que se pode descobrir no Artigo 65º do Regulamento do PDM de Castro Daire, não aparece assim designada na legislação, sendo que no DL 69/90 de 2 de Março do Ministério do Planeamento e da Administração do Território, que regulamenta a elaboração de PDM’s, a fórmula mais aproximada que aí se encontra é a de Espaço Cultural e Natural, como se pode ler no Artigo 28º, sobre “Uso dominante do solo”, quando diz, na alínea g):

“Espaços culturais e naturais, nos quais se privilegiam a protecção dos recursos naturais ou culturais e a salvaguarda dos valores paisagísticos, arqueológicos, arquitectónicos e urbanísticos.”a

A este assunto voltaremos, a propósito da Programação do Ecomuseu do Montemuro-Paiva. Desde já, porém, todo um conjunto de auxiliares de interpretação do território e da paisagem, deverá ficar estabelecido, a saber:

1. Sinalética, 2. Painéis informativos, 3. Folhetos de orientação e exploração, 4. Jogos, fichas e roteiros de educação ambiental, 5. Fichas de inventariação de espécimes e sítios 6. Guias de observação de aves 7. Modelos de Herbários, Kits de Mineralogia, 8. Infra-estruturas de apoio

a

In, Diário da República nº 51, de 2 de Março de 1990, p. 886. (Cf Anexo III)

105

1.2- Reconhecimento do Património Histórico-Cultural

“A terra entendida como o ambiente físico que rodeia o homem ou onde ele próprio assenta a sua existência constitui sempre ora um universo passivo, ora dinamicamente resistente, todavia estímulo perene para a capacidade de acção do mesmo homem. E este inteligentemente interfere adaptando-se numa atitude superior à natureza do ambiente ou reage forçando a natureza, humildando-a às vezes tão generosamente que mais parece ser ela a serví-lo. Na verdade a vida do homem como grupo social, comunidade define-se como um desafio que perseverantemente atravessa a história parecendo resultar positivo em benefício da homem o saldo deste combate de demiurgos, uma herança lentamente sedimentada e transmitida depois, com autenticidade, de geração em geração. É esta herança de interesse social que se designa património cultural, amplo quadro de tradições que tocam os domínios do matetrial e do espiritual a que também se chama cultura.”a

Levantamento de categorias No Concelho de Castro Daire, o Património Cultural é vasto e diversificado. Através de consulta bibliográfica - Monografia de Castro Daire - reconhecimento no terreno e contacto com elementos da população, para melhor o caracterizarmos, entendemos começar por proceder a uma identificação das principais categorias patrimoniais, inserindo-as em macro conjuntos aglutinantes, que designamos por sistemas patrimoniais e dividindo-as em micro unidades exemplares que designamos por elementos patrimoniais:

Grelha de Classificação Sistémica do Património Cultural do Concelho de Castro Daire Sistemas Patrimoniais História Ocupação do Território Actividades Económicas Tradicionais Tecnologias e Tradicionais Traje Religiosidade Popular Arte Popular Património Imaterial Arte sacra Colecções Particulares Arquitectura Civil

Categorias Patrimoniais Achados Arqueológicos, Gravuras Rupestres, Castros, Romanização, Inquirições, Forais Aglomerados urbanos, Habitação tradicional, Pelourinhos, Espigueiros, Moinhos, Pisão, Eiras, Socalcos, Poldras, Pontes e Caminhos Agricultura, Pecuária e Pastorícia. Transumância. Slivicultura, Resinagem e Serração. Feiras. Alfaias agrícolas, Carros de bois, Aprestos de Gados. Canteiros. Ferreiros. Capinteiros. Cantoneiros. Olaria. Cestaria (de verga e breza). Fiação e Tecelagem (ciclos do linho e da lã). Pisoagem. Tamancaria. Latoaria. Campaínhas e Chocalhos. Capuchas. Croças. Pulainos. Capuchos. Chapéus de Palha. Tamancos Ferrados Festas e Romarias (festa do Orago). Peregrinações (Srª dos Remédios e Srª da Lapa). Exvotos (Cujó). Alminhas. Cruzes de Homem Morto. Cruzeiros e Calvários Cerâmica de Ribolhos. Ornamentações de alfaias (jugo, chavelha). Cartelas (sobre as torsas de portas e linteis de janelas). Representações Antropomórficas (Cotelo). Ornamentações várias. Cancioneiro Popular Lendas, crenças e profecias Arquitectura religiosa; Imaginária; Talha; Pintura; Alfaias litúrgicas; Paramentaria Casa-Museu do Gafanhão Paço dos Aguilares, Casa da Cerca, Casa do Abade de Reriz, Casa do Comdor Oliveira Baptista

Associada a cada categoria discriminada, descobrimos, por seu turno, um vasto manancial de instrumentos, conhecimentos, técnicas e ritos que tomados em conjunto descrevem e integram o quadro tradicional de referências materiais e imateriais inerentes ao sistema geo-cultural em causa.

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Grelha de Caracterização Sistémica do Património Cultural do Concelho de Castro Daire Categorias Patrimoniais Achados Arqueológicos Gravuras Rupestres Época Castreja Romanização Inquirições Forais Carta de Privilégio Carta de Privilégio Numeramento Condado Habitação Tradicional

Espigueiros Palheiras Moinhos

Pisão Poldras

Cales Pontes Pelourinhos Alfaias agrícolas Carros de bois Aprestos de Gados Transumância Olaria Cestaria Tecelagem Coroças e chapéus Tamancaria

Elementos Patrimoniais Megalitismo: Mamoas da Ouvida, Mamoas de Almofala Antelas de Monteias, Idade do Bronze: Molde de machado de Vila Boa (Mões); Molde de terminais de Torques (Póvoa); Depósito de fundidor com Moldes e Torques de Baiões Gravuras da Fonte da Pedra (Picão) Castro da Maga; Castro de S. Lourenço; Castro de Cabril; Três inscrições em Lamas de Moledo; Ara de Castro Daire; Moeda romana (Denário de prata) de Mões; Minas Romanas (?) de Farejinhas/Covas; Vias romanas; Muro (?) Afonso III (sec. XIII) Henriquino (perdido); Manuelino (1513) D. Dinis 1295 Reinado de D. Manuel I (1517) Reinado de D. Manuel I (1527) Reinado de Filipe II (1º conde D. António de Ataíde) Casa de granito (ou xisto) de dois pisos e telhado de colmo (ou lousa). Piso superior: cozinha, sala e quarto, piso inferior: curral ou loja. Acesso à habitação por uma escadaria de granito (balcão) que dá para uma varanda (patim) muitas vezes coberta por uma alpendre. Encontram-se também muitas varandas de madeira, onde se põem a secar espigas e feijões. Ou canastros. Armazenagem de espigas de milho. Várias tipologias Construções de pedra ou madeira junto aos campos. Servem para guardar alfaias ou canas de milho ou feno Uma das marcas mais importantes do património etnográfico construído. Existem às dezenas ao longo do rio Paiva e dos seu afluentes. Grande parte está abandonada ou em ruína. Existe um levantamento feito pelo Exmo Sr. Samuel, proprietário de um estabelecimento de comércio de artesanato, que é um entusiástico defensor do património Na Fonte Branca (Picão) existem 2 pisões Um deles descrito por Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, como maior pisão português. Em ruína Sistema de atravessamento pedonal fluvial, por meio de blocos de granito implantados verticalmente no leito do rio, por vezes formando açudes. Existem ainda no rio Paiva e Paivó. Não se encontram protegidos, e por isso há cinco ou seis anos uma destas construções foi desmantelada. Sistema característico de partilha de águas, espécie de”comporta” de levada Ponte Pedrinha (medieval ou romana); Ponte velha de Reconcos (Romana) Mões, Campo Benfeito e Rossão Arado radial; jugo; molhelhas; grade; corço ou zorra; enxada; sachola; sacho; gancha, gadanho; foice; podoa; machada; mangual; ancinho; gadanha Puxado por junta de vacas. Sebes de galhos e carvalho servem de resguardo Coleiras com campaínhs, guizos e chocalhos; enfeites, Três rebanhos movimentados em 1986 de 17 durante o início dos anos 70 Ribolhos: roda de oleiro baixa; tripeça, esquinote, fanadoiro e scanadita; talhas, panelas, caçoilas, cafeteiras, assadores, alguidares, figuras; soenga. Verga ou madeira rachada: cesto, cesta; Faca podoa, abrideiras e furadores Breza de palha de centeio: breza, giga, canastro, cesto Teares de dois liços, cardagem da lã; fiação lã e linho; bragal; linho ou estopa: camisa, lençois, almofadas, toalhas, colchas; lã: tecidos grosseiros, calças, casacos e capuchas, cobertores, mantas De junco: coroças, croças, palhocas; tranças, cabeção; polainos, capuchos chapéus: palha de centeio; copa e abas Madeira de amieiro, sola pregada; meias de lã (5 agulhas)

A escassez de tempo não nos permitiu concluir esta sistematização, ficando no entanto uma primeira exemplificação desta metodologia. Infelizmente, não está ao nosso alcance descrever aqui cada uma destas categorias, embora nos tenhamos sobre elas previamente debruçado. Se tivéssemos possobilidade de fazê-lo, começaríamos por a

CORREIA, Alberto, Etnografia. A Terra e o Homem, in Castro Daire, CMCD,1986, p. 121

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enumerar, dentro de cada categoria referida, os elementos patrimoniais que a integram, registando as imagens, terminologias, funções e simbologia a eles associada na cosmogonia, mentalidade e organização socio-económica local, iniciando um registo museológico que consideramos dever constituir, por assim dizer, «trabalho de rotina» de qualquer Museu Municipal, como processo de descentralização, de aceleração e de simplificação do processo de inventariação patrimonial do próprio país. Para o efeito, torna-se imprescindível definir um modelo de ficha de inventário, adaptado à especificidade patrimonial das regiões. Sobre este aspecto, para os ecomuseus nacionais que estão projectados para as áreas protegidas, o arqto paisagista Fernando Pessoa sugere a utilização, de um modelo derivado do que é usado no Museu das Artes e Tradições Populares de Paris, modelo esse que transcrevemos de seguida: Parque / Reserva INVENTÁRIO DE PEÇAS MUSEOGRÁFICAS

Nº Inventário __________________________ Nº Regis. Central ______________________ Aqusição __________________________________________________________________ Local _____________________________________________ Data ____________________ Designação _________________________________________________________________ Sinónimos _________________________________________________________________ Descrição __________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Material ______________________________________ Dimensões ___________________ Época de fabrico _____________________________________________________________ Observações ________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ O Responsável _________________________

Trata-se de um modelo simples, de fácil preenchimento e consulta, à partida apropriado para o registo de representações que podem assumir características muito diferentes, como as que poderão dar entrada num ecomuseu. Só lamentamos, a inexistência de um espaço para colocar uma fotografia. Julgamos que não seria mal empregue o esforço de introduzir uma alteração pontual ao arranjo gráfico da ficha, por forma a ganhar um espaço para justapor a imagem da peça, utilizando-se o verso da ficha 108

para grafar os dados relativos ao campo “Observações”, que por esse motivo verá a sua extensão substancialmente aumentada, o que também poderá ser nalguns casos interessante, permitindo a inclusão de dados que doutra forma nesta ficha não poderiam ser registados, figurando no fim o espaço para a assinatura de “O Responsável”. Algo cujo efeito final, pudesse ser aproximadamente este: INVENTÁRIO DE PEÇAS MUSEOGRÁFICAS Nº Inventário ________________________________ Nº Regis. Central ____________________________

Fotografia/

Aqusição ___________________________________

Desenho

Local ______________________________________ Data _______________________________________ Designação _________________________________________________________________ Sinónimos _________________________________________________________________ Descrição __________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ Material ______________________________________ Dimensões ___________________ Época de fabrico _____________________________________________________________ --------------------------------------------------------------------------------------------------- verso -Observações ________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ O Responsável _________________________

Interessa neste momento dizer que esta ficha deverá servir não só para inventariar objectos, mas também todos os elementos ou representações do património natural que se integrem no espólio do museu. Se na nossa proposta de classificação não referimos categorias patrimoniais biofísicas, foi unicamente para evitar a redundância, uma vez que na secção anterior, nos termos já amplamente referido ao território como sede do património natural.

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Antes de terminarmos a caracterização tipológica do património cultural do Concelho, é importante ter-se presente que, como sistema aberto que é, o património cultural do município não se restringe ao universo das peças e dos valores patrimoniais que ele abriga. Ao longo dos tempos, importantes perdas se têm paulatinamente produzido, quer devido a causas naturais (derrube da Carvalha do Presépio) quer devido à acção do ser humano (invasões francesas), por deliberada intenção ou por negligência e incúria (Pisão da Ermida). Quanto património não se terá irremediavelmente perdido? Quanto património se não continua a perder ou a transferir? Desde os mais notáveis e valiosos exemplares da arte sacra local, como por exemplo o Báculo de cobre dourado do séc. XIII e a Mitra do séc. XIV que outrora pertenceram ao Mosteiro da Ermida do Paiva, em exposição no MNAA, até ao caso das poldrasa do Rio Paiva, junto à Carvalha do Presépio, passando pela Ara de Castro Daire, em exposição no Museu Arqueológico do Carmo e pela Cruz Processional do séc. XIV, em exposição no Museu Grão Vasco, quantas peças valiosíssimas se não têm perdido, vendido ou mesmo furtado, nas últimas décadas? No Anexo IV, apresentamos um levantamento iconográfico sucinto de algumas das peças mais valiosas da arte sacra local, com especial destaque para a imaginária de calcário policromado, que nos pareceu verdadeiramente notável. Consideramos, pois, que além de, paulatinamente, registar o património existente, deveria o ecomuseu interessar-se por investigar o património local que se perdeu ou transferiu, recuperando-o senão materialmente, pelo menos simbolicamente, sempre que a realização de exposições e/ou estudos o exigirem. E claro está que, se o ecomuseu viesse a oferecer as garantias necessárias de segurança, conservação e exibição, julgamos que haveria toda a legitimidade para reivindicar o regresso de todas, ou parte, dessas peças.

Património classificado, deslocado e protegido

A partir da Primeira República, acompanhando a tendência então iniciada de valorização do património regional, em muitos casos ao abandono desde a extinção das ordens religiosas e da Casa

a

Engenhoso sistema de construção que permite o atravessamento dos rios através da implantação na vertical de blocos de granito de dimensão considerável nas zonas de menor profundidade, por forma a pertimitir o seu atravessamento a sêco, saltando de pedra em pedra.

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do Infantado, o Concelho de Castro Daire ingressou nesse movimento, que ainda hoje prossegue, como se pode verificar, pela lista do Património Arqueológico e Arquitectónico Classificado que a seguir reproduzimos:

Património Classificado do Concelho de Castro Daire Monumento Matriz da Ermida Pelourinho de Campo Benfeito Pelourinho de Rossão Pelourinho de Mões Pelourinho de Castro Daire Pelourinho de Alva Inscrição num Penedo de Lamas de Moledo Capela de S. Sebastião Capela das Carrancas Casa da Cerca Matriz de Castro Daire Castro da Cabeça de Mouros

Freguesia Ermida Gosende Rossão Mões Castro Daire Alva Lamas de Moledo Castro Daire Castro Daire Castro Daire Castro Daire Cabril

Data da Classificação 1916 1933 1933 1933 1933 1933 1953 1961 1982 1982 1993 Processo em curso

Quanto ao Património deslocado, os exemplos que conhecemos pela literatura publicada, são muito provavelmente uma sombra daquilo que se verifica na realidade. Como referimos anteriormente, deverá ser uma das missões do ecomuseu velar pela sua pesquisa e localização, e bater-se pela sua devolução ao Concelho. Património Concelhio Deslocado (museus) Peças Báculo do Séc. XIII Mitra do Séc. XIV Cruz Processional do Séc. XIII Ara de Castro Daire Pisão da Ermida

Localização Original Ermida do Paiva Ermida do Paiva Ermida do Paiva Ponte Pedrinha Ponte da Ermida

Localização Actual Museu Nacional de Arte Antiga Museu Nacional de Arte Antiga Museu de Grão Vascoa Museu Arqueológico do Carmo Museu Etnográfico de Viseub

Quanto ao património protegido, o PDM de Castro Daire estabelece um certo grau de protecção aos seguintes espaços concelhios:

Património Protegido pelo PDM Espaços de Recursos Naturais Espaços Culturais Imóveis Reserva Ecológica Nacional REN* Centro Histórico de Castro Daire Monumentos Nacionais Reserva Agrícola Nacional RAN* Área das Termas do Carvalhal Imóveis de Interesse Público Áreas Naturais** Áreas Florestais** Legenda - * Zonas de protecção imperativa; ** Zonas de protecção preferencial (ver planta do PDM)

a

Localização indicada por Aarão de Lacerda em O Templo das Siglas, 1919, p. 69

b

CORREIA, Alberto, Etnografia, a Terra e o Homem. In, Castro Daire, CMCD, 1985, p. 173

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Não nos parecem suficentes as garantias de protecção ambiental e cultural consagradas no PDM. Discordamos da atribuição de um grau de protecção superior dado à REN e à RAN relativamente às Áreas Naturais do Montemuro e do Paiva, nichos de importantes biótopos. Existem condições e capacidade legal para se propor a classificação destas áreas como Reserva Natural ou Parque Natural, reconhecendo-as como parte integrante do Património Natural Nacional, como se pode ler nos Artigos 2º, 3º, 4º, 6º e 7º do Decreto-Lei nº 19/93 de 23 de Janeiro, do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais, que juntamos no Anexo II.

Núcleos de preservação, investigação e reabilitação patrimonial

Para completarmos o reconhecimento patrimónial do Concelho de Castro Daire, importa identificar as categorias patrimoniais cuja sobrevivência se encontra mais ameaçada. Em termos geográficos, a área globalmente mais vulnerável é justamente a que corresponde à Serra do Montemuro, cujas aldeias apresentam populações mais envelhecidas. Aí encontra-se em risco a manutenção das características urbanísticas, arquitectónicas e construtivas tradicionais. Começam aos poucos a rarear as casas de granito. Começa a ser posto de lado o modelo tradicional de casa de dois pisos. Começa a generalizar-se o emprego de telha nas coberturas. A construção recorre aos materiais industriais. Casas mais antigas ou abandonadas, ruem pouco a pouco. Outras passam a ser unicamente utilizadas no piso térreo pelo gado. Fora das aldeias, ou junto a elas, é particularmente constrangedor o espectáculo de degradação em que se encontra a maior parte das moinhos de toda a região. Substituídos cada vez mais pela moagem mecanizada, estes exemplares vão sendo esquecidos, e entram em ruína. Além do mais, a construção de mini-hídricas no rio Paiva (Rio dos Homens) e nalguns dos seus afluentes (Ribra de Moura Morta, junto à Ermida, fig. nº 9), têm contribuido para uma diminuição drástica do caudal dos cursos de água, diminuição essa que inviabiliza o seu funcionamento. Neste particular, e na perspectiva de desenvolvimento integrado que o PDM defende para a região, consideramos que as mini-hídricas deveriam ser concebidas não somente em função dos requisitos da modernização do Concelho (produção de electricidade, criação de reservas estratégicas, projectos de irrigação, etc.) mas igualmente em função dos requisitos da preservação e reabilitação do património tradicional. Isto é, a elaboração dos projectos das mini-hídricas deveriam ser precedidos de um estudo global não só de impacte ambiental, mas também de impacte patrimonial e mormente sempre que fosse tecnicamente possível, os PDM’s deveriam estipular a obrigatoriedade da construção de condutas até ao moinho mais próximo, por forma a viabilizar o seu funcionamento ou eventual musealização. Disseminados por todo o concelho ao longo dos cursos de água, muitos dos moinhos da região, por isso se encontram ao abandono, injustificada que está a sua utilização tradicional. Relativamente à sua reabilitação, nós consideramos que existem quatro núcleos de moinhos sobre os quais deveriam ser elaborados projectos de reutilização e de musealização. 112

Nesta perspectiva, os moinhos a reabilitar deverão obedecer aos seguintes requisitos:



Verificarem-se condições para a sua reutilização tradicional regular



Serem cedidos para utilização do ecomuseu, como contrapartida da sua recuperação



Poderem converter-se em estruturas de apoio territorial (reservatórios e redes de comunicação)



Localizarem-se ou integrarem itinerários ou núcleos museológicos

Dos quatro núcleos de moinhos que já referimos (figs, nº 10, 11, 12 e 13), relacionados com as três Áreas Morfológicas do Concelho de Castro Daire, consideramos que deveria ser objecto de aproveitamento museal, alguns dos moinhos mais significativos, como em seguida se apresenta: Moinhos a Reabilitar Área Morfológica Núcleo Motivo Assistência Tutela

Vale do Paiva Ermida Vila Franca Musealização Utilização tradicional Freguesia Paróquia Proprietário/Ecomuseu Ecomuseu

Beira-Serra Monteiras Apoio territorial

Serra do Montemuro Gosende Musealização

Freguesia Ecomuseu

Paróquia Ecomuseu

Um levantamento e uma avaliação actualizados do estado de conservação dos moinhos, já existe. Quanto às outras estruturas tecnológicas e agrícolas tradicionais, como por exemplo os pisões, no nosso reconhecimento detectámos quatro (figs. nº 14, 15, 16 e 17), como a seguir se mostra: Localização Mezio Fonte Branca Fonte Branca Ermida

Pisões do Concelho de Castro Daire Estado de Conservação Proprietário Boa Centro de Artesanato Má Presidente da Freguesia do Picão Razoável Srª Luzia Almeida Costa Ruína -

Utilização Esporádica Desactivado Arrecadação de cereal -

Em relação aos pisões, é nossa proposta reabilitar o Pisão da Fonte Branca e o da Ermida, nos seguintes termos: Pisões a Reabilitar Área Morfológica Núcleo Motivo Assistência Tutela

Vale do Paiva Ermida Musealização Freguseia Ecomuseu

Serra do Montemuro Fonte Branca Musealização Proprietário Ecomuseu

Cada um destes núcleos deverá constituir-se, na condição de que exista um responsável local pela sua manutenção e dinamização. A forma de institucionalizar esse regime é uma questão sensível e quase sempre polémica. Quanto a nós, a melhor forma de fazê-lo, passa, como defendemos na Introdução, pela adopção de critérios de organização de alguma maneira decalcados da tradição comunitária. Como tal, na ausência de proprietário, deixaríamos ao critério das Paróquias e das Freguesias, a designação dos responsáveis por cada intervenção. Caberá sempre ao museólogo-programador, conduzir a negociação das atribuições e os compromissos de cada reponsável, bem como avaliar as condições 113

que a comunidade oferece, para, em função delas, decidir se o projecto deverá ou não avançar de imediato, ou se será preferível aguardar algum tempo mais, até ficarem preenchidos todos os requisitos de segurança, conservação e dinamização das instalações e dos investimentos esfectuados. Além dos moinhos, do pisão e de outros exemplares do património etnográfico, núcleos museológicos de diferente natureza deverão constituir-se no território concelhio, com o propósito de preservar e reabilitar o seu património e contribuir para o desenvolvimento socio-económico da comunidade, à medida que estudos de pormenor e recursos forem sendo reunidos. A lista provisória é a seguinte: Núcleos Museológicos do Ecomuseu do Montemuro-Paiva Designação Núcleo-Sede Núcleo da Ermida Núcleo das Portas de Montemuro Núcleo de Picão Núcleo de Gosende Núcleo do Carvalhal Núcleo da Carvalha do Presépio Núcleo de Ribolhos Núcleo de Lamas de Moledo Núcleo de Cujó Núcelo da Queda da Pombeira Núcleo de Mões

Descrição Núcleo síntese do território e da comunidade. Exposições permanentes e temporárias. Adminstração, gestão e interacção Núcleo Românico. Exposição permanente da história do monumento. Exposições temporárias Núcleo Paisagístico, geomorfológico e arqueológico.. Itinerário pedonal Núcleo Etnográfico e arqueológico Núcleo Etnográfico, Ititnerário automóvel Núcleo Geomorfológico e medicinal Núcleo Botânico. Núcleo de Arte Popular Núcleo Arqueológico

Função Coordenação de actividades e programas

Localização Castro Daire

Culturais, litúrgicas e comunitárias Observação do território Museu in sítu. Pousada Regional Artesanato Museu de sítio

Vale do Paiva Montemuro

Museu de sítio

Vale do Paiva

Artesanato

Vale do Paiva Beira-Serra

Museu de sítio

Núcleo Etnográfico e de Arte Popular Núcleo Paisagístico e geomorfológico. Ponto de partida de um itinerário pedonal Núcleo Urbano. Ponto de partida de um itinerário automóvel

Montemuro Montemuro Beira-Serra

«Museu-Igreja» Observação do território Observação do património

Beira-Serra Montemuro Vale do Paiva

Um dossier sobre cada um destes núcleos patrimoniais deverá ser organizado. Nele deverão figurar as estruturas e as actividades passíveis de dinamização, bem como ser elaborado um programa específico de reutilização para cada uma das estruturas reabilitadas, a apresentar ao arquitecto. A médio prazo, porém, o projecto do ecomuseu não poderia ficar por aqui. Ideal era que em cada paróquia e/ou freguesia mobilizassem sectores da comunidade, no sentido de se constituirem aí outros tantos núcleos ou associações de defesa do património, independentemente de tal implicar o recurso a novas musealizações ou reutilizações. O museólogo-programador não deverá deixar-se levar pela tentação de criar espectáculo, e sobretudo não lhe deverá unicamente interessar a preservação do património material. Também os bens imateriais e os bens fungíveis lhe devem interessar, e neste particular, reunimos no Anexo V, um levantamento sobre o Cancioneiro Popular da região do MontemuroPaiva, retirado de José Leite de Vasconcelos.

114

Pode. portanto, em função dos resultados que viessem a ser obtidos pelo programa de arranque e consolidação do ecomuseu, perfeitamente postular-se a conveniência de expandir este quadro provisório, à medida que os resultados viessem a confirmar a implantação comunitária do ecomuseu. Sobre estes aspectos trataremos mais detalhadamente na fase de programação, enriquecidos já com a caracterização que, no plano imediato, é possível fazer-se da comunidade local.

115

1.3- Reconhecimento da Comunidade

Tal como sucede com o território, também a definição de uma comunidade não se trata de uma questão pacífica. Certamente que o estabelecimento de divisões e barreiras relativamente às outras comunidades com que coexiste no espaço, e de que procede no tempo, é também aqui fruto de arbitrariedades e de convencionalismos fundamentalmente subjectivos. Contudo, existe profundamente enraízada na consciência colectiva uma percepção identitária dinâmica, que em termos de psicologia de grupos funciona como élan vital necessário à estruturação e consolidação das tensões sociais e dos laços de solidariedade, imprescindíveis à manutenção de toda e qualquer empresa humana. É portanto em torno dessa percepção dinâmica da identidade comunitária que o museólogoprogramador deverá posicionar-se, consolidando uma postura activa mas neutral, centrada sempre na perspectiva de promover a inserção social da museologia, como forma de valorização cultural e viabilização económica dessa mesma comunidade. É a partir deste emaranhado social, deste torvelinho de tensões e de solidariedades, que se irão tecer as linhas da acção e da função social do ecomuseu. É neste tabuleiro, que a partida da ecomuseologia integrada se ganha ou se perde, e por isso é fundamental ao museólogo-programador conhecer bem a comunidade-alvo da sua intervenção. Para o efeito, no ponto que se segue, apresentamos alguns dados estatísticos referentes à comunidade em questão, recolhidos da Monografia de Castro Daire, publicada em 1986, e completados por outros valores mais actualizados, retirados do censo de 1991, que recolhemos no Instituto Nacional de Estatística - INE.

Estudo sociológico e económico da população

Na Monografia de Castro Daire, Carlos Alberto Medeiros, investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, sobre a evolução demográfica do Concelho de Castro Daire escreve o seguinte:

“A evolução demográfica registada a partir do final do século passado, tomando como base os dados que constam dos sucessivos censos, exprimem-se através dos seguintes números.”a

a

MEDEIROS, Carlos Alberto, Relance sobre as Características Geográficas. In, Castro Daire, 1985, p. 16

116

Anos 1890 1900 1911 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1981 1991

Evolução Demográfica Nº habitantes 19.292 20.827 22.409 21.849 23.200 24.545 26.656 25.031 21.276 20.411 18.156a

Para se poder visualizar melhor a variação destes valores, convertêmo-los para gráfico de barras, do que resulta o seguinte aspecto:

Evolução Demográfica do Concelho de Castro Daire 30.000 25.000 20.000 15.000 10.000 5.000 0

1890

1900

1911

1920

1930

1940

1950

1960

1970

1981

1991

Como se pode verificar, a evolução do número de habitantes do Concelho nos últimos cem anos, sofreu uma forte variação, registando, até meados do nosso século, uma tendência de crescimento, unicamente contrariada de forma passageira no 2º decénio, período que correspondeu à forte emigração para o Brasil dos primeiros anos da década, à Grande Guerra e aos surtos de gripe pneumónica. A partir de 1950, essa tendência inverte-se, passando o número de habitantes a sofrer um acentuado decréscimo que se tem vindo a confirmar até ao presente, com os valores actuais abaixo do nível

a

Dados do último censo recolhidos por nós no INE

117

dos do final do século passado, não se verificando, a tendência de crescimento comum aos valores médios do resto do país para a mesma época, causados pela quebra da emigração e pelo regresso de centenas de milhares de residentes nas antigas colónias. Mas como se distribui a população pelo espaço concelhio? O quadro seguinte, retirado da Monografia de Castro Daire, permite-nos avaliá-lo, tomando como base a variação do número de habitantes por freguesia, de acordo com os dados de 1981:

Distribuição da População por Freguesias Freguesias Áreas (ha) Habit. (1981) Almofala 1875 547 Alva 987 630 Cabril 2192 757 Castro Daire 3243 4140 Cujó 826 551 Ermida 893 476 Ester 1157 425 Gafanhão 776 269 Gosende 2057 994 Mamouros 895 639 Mezio 1162 545 Mões 4533 2524 Moledo 4383 2046 Monteiras 2167 769 Moura Morta 999 174 Parada de Ester 2898 1041 Pepim 1268 495 Picão 674 418 Pinheiro 1903 1111 Reriz 1692 1010 Ribolhos 232 362 S. Joaninho 813 488 Concelho de Castro Daire 37.625 20.411

: Áreas (ha)

Habit. (1981)

100000 10000 1000 100 10

Freguesias

118

Concelho de Castro Daire

Ribolhos

Pinheiro

Pepim

Moura Morta

Moledo

Mezio

Gosende

Ester

Cujó

Cabril

Almofala

1

Da combinação destes valores resulta a seguinte Densidade Populacional, por Freguesia: Freguesias Almofala Alva Cabril Castro Daire Cujó Ermida Ester Gafanhão Gosende Mamouros Mezio Mões Moledo Monteiras Moura Morta Parada de Ester Pepim Picão Pinheiro Reriz Ribolhos S. Joaninho Concelho de Castro Daire

Densidade Pop. (hab/km2)
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