O efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a sua limitação pelo Tribunal Constitucional

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O efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a sua limitação pelo Tribunal Constitucional* RUI TAVARES LANCEIRO**

I. CONSIDERAÇÕES GERAIS 1. O presente estudo incide sobre o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas legais no âmbito da fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade e aborda os poderes de manipulação desse efeito por parte do Tribunal Constitucional. 2. O caminho que vamos trilhar começa por estudar o conceito de efeito repristinatório quando associado à fiscalização da constitucionalidade. Em seguida, debruçar-nos-emos sobre os requisitos que devem estar preenchidos para que uma declaração de inconstitucionalidade produza, de jure, efeitos repristinatórios. Depois, analisaremos a obrigação do Tribunal Constitucional de conhecer dos efeitos das suas declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, bem como a forma como deve conduzir essa sua tarefa. Por fim, estudaremos a restrição do efeito repristinatório por parte do Tribunal Constitucional, os seus pressupostos e os diversos tipos de restrição que tem à sua disposição.

II. O EFEITO REPRISTINATÓRIO DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE a)

CONSIDERAÇÕES GERAIS

3. Começaremos o nosso estudo por definir o conceito de efeito repristinatório, dentro e fora do âmbito da fiscalização da constitucionalidade das leis. Posteriormente, a nossa análise vai incidir sobre os fundamentos do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade. Por fim, tomaremos em consideração alguns casos especiais em que o efeito repristinatório merece referência especial. 4. Para uma correcta compreensão do fenómeno repristinatório como efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória *

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Relatório de mestrado apresentado na disciplina de Direito Constitucional B (subordinada ao tema As sentenças manipulativas do Tribunal Constitucional), da Faculdade de Direito de Lisboa, sob a regência do Prof. Doutor Carlos Blanco de Morais, no ano lectivo 2006/2007. Publicado in As sentenças intermédias da Justiça Constitucional, C. Blanco de Morais (coord.), Lisboa, AAFDL, 2009. Monitor da Faculdade de Direito de Lisboa.

geral, deve começar-se por estudar a figura clássica da repristinação como instituto ligado à sucessão das leis para, posteriormente, verificar se existem semelhanças entre os dois fenómenos ou se, afinal, se trata de institutos distintos. 5. A repristinação é tradicionalmente entendida como a reposição em vigor de uma norma revogada em consequência da cessação de vigência da respectiva norma revogatória1. Para além desta situação, a reposição em vigor de normas revogadas por determinação do legislador também é habitualmente designada como repristinação. Trata-se, assim, de um instituto jurídico enquadrável no domínio da vigência das normas jurídicas e da aplicação da lei no tempo. O artigo 7.º, n.º 4, do Código Civil, estabelece, a este propósito, que “a revogação de norma revogatória não implica que a norma por ela revogada volte a entrar em vigor automaticamente”. A ordem jurídica portuguesa afasta, desta forma, a automaticidade da repristinação de norma não vigente pela revogação da norma que a revogou, assim estabelecendo uma presunção de não repristinação daquela. Trata-se, aliás, de uma decorrência do regime da revogação no sistema jurídico vigente que implica, geralmente, a cessação da produção de efeitos da norma revogada para o futuro, mas não a destruição dos efeitos já produzidos, como o efeito revogatório. Mesmo se a revogação de certo diploma provocar uma lacuna na nova regulação geral da matéria, isso não legitima qualquer repristinação automática de norma revogada anterior, uma vez que está dentro da autonomia do legislador preferir deixar uma determinada matéria fora do âmbito da regulação jurídica, criando lacunas intencionais. No entanto, esta regra não implica a proibição em absoluto do efeito repristinatório, já que o legislador pode optar por dar a um acto normativo efeito repristinatório, tácito ou explícito – que pode estar, ou não, associado a um efeito revogatório. 5. Vimos, assim, o entendimento tradicional relativo à repristinação. É chegado o momento de estudar a ligação entre este instituto e a fiscalização da constitucionalidade. A Constituição, no seu artigo 282.º, n.º 1, estabelece que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma “determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”. No âmbito do presente estudo cabe, então, determinar a razão pela qual o texto constitucional estabelece uma tal regra. Em primeiro lugar, e acima de tudo, o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apresenta-se como uma decorrência do regime desta última. Como é sabido, a Constituição é o fundamento da validade de todos os actos do Estado, constituindo a sua referência paramétrica (cfr. artigo 3.º, n.º 3, da Constituição). Coerentemente, o 1

A. SOUSA PINHEIRO, Repristinação, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, VII, Lisboa: s. n., 1996, p. 234; J. DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e teoria geral, 10.ª edição revista, Coimbra: Almedina, 1999, pp. 300 ss.; F. PIRES DE LIMA / J. ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, I, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1987, pp. 101 ss..

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texto constitucional prevalece incondicionalmente sobre qualquer norma infraconstitucional desde o momento que esta é emitida2. A Constituição é, aliás, a própria base normativa da força jurídica intrínseca de cada norma. Quando uma determinada norma se encontra numa relação de desconformidade com o parâmetro constitucional, vê-se numa situação de invalidade perante a ordem jurídica, que é reconhecida pelo Tribunal Constitucional através da declaração de inconstitucionalidade. A identificação, em concreto, do valor negativo da lei inconstitucional é alvo de acesso debate, oscilando a doutrina entre a anulabilidade, a nulidade ou um tertium genus3. Independentemente da polémica – e até porque a qualificação do desvalor decorre do regime jurídico e não o contrário –, damos por assente que a invalidade da norma inconstitucional afecta todos os efeitos por si produzidos desde o início da desconformidade com a norma-parâmetro. Daqui decorre que os efeitos da declaração de invalidade, regra geral, retroagem até ao momento do início dessa desconformidade, ou seja, ex tunc, ao invés de se produzirem apenas a partir da data da própria declaração4. A norma inconstitucional, devido à sua invalidade, não possui a virtualidade de realizar as funções a que se pretende destinada, não introduzindo quaisquer alterações no ordenamento jurídico. Todos os seus efeitos não transitados em julgado devem ser retroactivamente eliminados, de forma a repor a situação que existiria se a norma nunca tivesse vigorado5. O acórdão que contenha uma decisão de acolhimento do Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização de constitucionalidade não tem, por isso, eficácia constitutiva, mas meramente declarativa dos seus efeitos. 6. Em casos de inconstitucionalidade originária, quando a norma objecto de fiscalização seja desconforme com a norma-parâmetro constitucional ab initio, os efeitos repressivos da declaração de invalidade retroagem ao momento da sua entrada em vigor6, abrangendo todas as suas consequências. Assim sendo, como o efeito revogatório é uma decorrência jurídica da entrada em vigor da norma em questão, o mesmo é necessariamente atingido pela retroactividade da declaração7. A destruição do efeito revogatório também encontra justificação no facto 2

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J. MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, VI, 2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 254. Cfr., a mero título de exemplo, M. REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, I, Lisboa: s. n., 1988, pp. 203 ss.; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, I, 2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 203 ss., em especial, pp. 238 ss., e IDEM, Justiça constitucional, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 194 ss.; R. MEDEIROS, Valores Jurídicos Negativos da Lei Inconstitucional, «O Direito», ano 121.º, 1989, pp. 510 ss. e IDEM, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999, pp. 741-761; A. SALGADO MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 242 ss.. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2003, p. 1016; J. MIRANDA, Manual, VI, p. 254. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, I, p., 239, fala em repor a situação que vigorava antes de aquela norma ter iniciado a sua vigência. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 183-184. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 183-184. R. MEDEIROS, A decisão, p. 652.

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de a inconstitucionalidade da norma a tornar incapaz de alterar o ordenamento jurídico. Neste sentido, a inconstitucionalidade afecta não só a eficácia dispositiva do acto normativo em causa, mas também a sua eficácia revogatória8, tornando a revivescência do complexo normativo revogado pela norma inconstitucional uma decorrência lógica e automática da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral9. Alguns Autores defendem que, por força da sua invalidade, o efeito revogatório nunca se teria produzido ou seria apenas uma aparência, pelo que as normas alegadamente revogadas pela norma inconstitucional nunca teriam verdadeiramente cessado a sua vigência, mantendo-se em vigor10. No entanto, não nos parece que se possa extrair essa conclusão do regime. Caso contrário, como explicar a produção efectiva de alguns efeitos pelas normas inconstitucionais ou a ressalva dos casos julgados? 7. Vimos, assim, que um dos fundamentos para o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade é a eficácia da decisão do Tribunal Constitucional. Nessa medida, este efeito deriva do próprio funcionamento do sistema de fiscalização. No entanto, na nossa opinião, outro fundamento pode ser elencado: o desejo de evitar a abertura de lacunas no tecido normativo. De facto, na ausência de efeito revogatório, a declaração de inconstitucionalidade de norma acarretaria, regra geral, a criação de uma lacuna, lesiva e violadora do princípio da segurança jurídica, especialmente quando associada ao efeito ex tunc da decisão. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a consequente destruição de todos os efeitos da norma inválida (desde que não transitados em julgado) gera um espaço de inexistência de norma jurídica directamente aplicável. Com a repristinação da norma revogada pela declaração de inconstitucionalidade, tenta evitar-se ao máximo a criação de lacunas11. A importância deste fundamento aumentará exponencialmente nos casos em que da destruição da norma inconstitucional sem repristinação resultasse uma situação de inconstitucionalidade por omissão. Assim é, porque o sistema jurídico tem vocação para a plenitude12. 8. Concluímos, assim, que o efeito repristinatório, tal como estabelecido na Constituição, tem dois fundamentos distintos e complementares: a) é uma decorrência do regime geral da fiscalização de inconstitucionalidade abstracta sucessiva e b) obsta à criação de lacunas por eliminação da norma inconstitucional do ordenamento.

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M. GALVÃO TELES, Inconstitucionalidade pretérita, in Nos dez anos da Constituição, Lisboa, INCM, 1986, pp. 341-342, nota 87. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 255; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184. R. MEDEIROS, A decisão, p. 652. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, I, p. 239, e IDEM, Justiça constitucional, II, pp. 184 e 272. C. BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 164-170.

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9. Como bem se percebe pelo que foi dito, a repristinação como efeito da declaração de inconstitucionalidade não corresponde à repristinação clássica. De facto, neste caso não existe intervenção do legislador revogando a norma revogatória ou repondo em vigor a norma revogada. Tão-pouco tem o acórdão do Tribunal Constitucional efeito revogatório ou qualquer expressão de vontade legislativa, mas sim um efeito declarativo da inconstitucionalidade de determinada norma. Uma vez que a norma e todos os seus efeitos são afastados por invalidade, faz sentido a revivescência da anterior manifestação da vontade validamente expressa do legislador: a norma revogada. Assim, o efeito da declaração de inconstitucionalidade não corresponde a uma verdadeira e própria repristinação clássica, mas sim a algo paralelo13, que, por comodidade de expressão e proximidade de efeito, é designada de repristinação. b)

CASOS ESPECIAIS

10. Em determinados casos, o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade merece um estudo especial. 11. Uma dessas situações reporta-se ao caso em que a norma inconstitucional tenha uma relação de especialidade face a um regime geral. Nesse caso, se a norma especial tiver revogado norma especial anterior, a repristinação desta deve ter preferência sobre a expansão do regime geral – é o que resulta da eficácia da declaração de inconstitucionalidade, com a destruição do efeito revogatório, para além de ser esse o caminho indicado pelos cânones interpretativos que nos mandam preferir norma especial a norma geral14. 12. Merece também referência a situação em que a norma repristinanda é remissiva. Nesse caso, o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade da norma revogatória de norma remissiva envolve a revivescência da remissão. Poderá surgir uma questão problemática no caso de a norma remitida tiver cessado a sua vigência entretanto. Nesse caso, não assistimos à extensão do efeito repristinatório também à norma remitida. O que acontece, na realidade, é a apropriação material do conteúdo da norma remitida por parte da norma remissiva, que assim passa a integrar o texto da norma repristinada. Não se trata, por isso, de um alargamento do efeito repristinatório ou de um qualquer efeito multiplicador de repristinação. 13. Questão conceptualmente próxima ocorre quando a norma repristinanda for, ela própria, uma norma repristinatória. Nesse caso, também não se poderá afirmar, verdadeiramente, que se trata de uma extensão do efeito repristinatório. Pura e simplesmente, a revivescência da norma revogada tem como

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A. SOUSA PINHEIRO, Repristinação, p. 235. R. MEDEIROS, A decisão, p. 664.

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consequência a total produção dos seus efeitos: a repristinação da norma objecto da norma repristinanda repristinatória. 14. Uma última questão, próxima do fenómeno que estudamos, ocorre quando a norma declarada inconstitucional seja uma norma interpretativa. Nesse caso, não se pode propriamente falar em efeito repristinatório, desde logo porque a norma interpretativa não teve efeito revogatório em sentido próprio. O que acontece nesse caso é que as diversas interpretações possíveis de um determinado preceito normativo que eram excluídas por essa disposição interpretativa passam a ser admissíveis para o intérprete. Nesse sentido, podem ressurgir normas que pudessem ser interpretativamente extraídas do enunciado, mas que tivessem sido excluídas pela norma interpretativa. Vemos aí um fenómeno próximo do da repristinação

III. REQUISITOS PARA QUE EXISTA EFEITO REPRISTINATÓRIO 15. Após uma abordagem preliminar sobre o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade de uma norma em fiscalização abstracta sucessiva, aprofundaremos o estudo desta figura debruçando-nos sobre os requisitos que devem estar preenchidos para que este efeito se verifique. 16. A repristinação do direito revogado por norma inconstitucional, apesar de constituir uma decorrência normal da declaração de inconstitucionalidade, não ocorre necessariamente em todos os casos. Para que a declaração de inconstitucionalidade produza efeitos repristinatórios, é necessário que se verifiquem três requisitos cumulativos. São eles: a) Tratar-se de um caso de inconstitucionalidade originária; b) A norma inconstitucional ter efeito revogatório; e c) A revivescência da norma revogada ser admissível. O estudo dos requisitos do efeito repristinatório vai permitir-nos analisar os casos normalmente apontados como excepcionais sob um diferente ponto de vista. a)

INCONSTITUCIONALIDADE ORIGINÁRIA

17. A declaração de inconstitucionalidade só poderá produzir efeitos repristinatórios se a invalidade da norma a afectar desde o momento da sua entrada em vigor. De facto, um dos requisitos para que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma acarrete a automática revivescência do complexo normativo por ela revogado é, precisamente, que a invalidade da norma afecte o seu efeito revogatório. Ora, isto só acontece nos casos em que a norma é inconstitucional ab 5

initio. Constata-se, portanto, que o efeito repristinatório apenas se dá em casos de inconstitucionalidade originária e não de inconstitucionalidade superveniente. 18. A letra da Constituição não é suficiente, só por si, para concluirmos pelo afastamento do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade superveniente. Por um lado, pode defender-se que o artigo 282.º, n.º 1, estabelece os efeitos que, regra geral, decorrem da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, fixando o n.º 2 do mesmo preceito um regime especial para a inconstitucionalidade superveniente. Devido ao facto de aí não existir referência ao efeito repristinatório e porque aí se estabelece que a declaração de inconstitucionalidade “só produz efeitos desde a entrada em vigor” da norma constitucional inovatória, poderia concluir-se que, nestes casos, não existe repristinação. No entanto, por outro lado, pode considerar-se que o citado artigo estabelece a repristinação como efeito-regra da declaração de inconstitucionalidade, independentemente da sua natureza – originária ou superveniente – que, não sendo expressamente afastado pelo n.º 2 do mesmo artigo, se deve considerar verificável em ambos os casos de inconstitucionalidade. Nesse sentido, o artigo 282.º, n.º 2, referir-se-ia à destruição dos outros efeitos, que não o repristinatório. 19. Apesar da pouca certeza transmitida pelo texto constitucional, vários Autores rejeitam a possibilidade de repristinação em casos de inconstitucionalidade superveniente15. Alguma doutrina recorre a argumentos históricos relacionados aos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1982, quando foi introduzido o texto actual do artigo 282.º16. Outros argumentos utilizados para afastar o efeito repristinatório nos casos de inconstitucionalidade superveniente são: i) a tendencial desactualização e desadequação da norma repristinável face ao presente, devido à sua antiguidade e ii) a possibilidade violação da igualdade entre as pessoas que ficam sujeitas a regimes diferentes antes e depois da declaração de inconstitucionalidade. Não nos parece que qualquer destas linhas de argumentação seja decisi17 va . De facto, o elemento histórico constituído pelas declarações de voto de 15

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J. MIRANDA, Manual, VI, p. 255; L. NUNES DE ALMEIDA, A justiça constitucional no quadro das funções do Estado. Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, Lisboa: Tribunal Constitucional, 1985, p. 137; IDEM, O Tribunal Constitucional e o conteúdo, a vinculatividade e os efeitos das suas decisões, in Portugal. O sistema político e institucional. 1974-1987, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1989, p. 967. V. CANAS, Introdução às decisões de provimento do Tribunal Constitucional, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 1994, pp. 159-160. Cfr. a declaração de J. MIRANDA nesse sentido: “a repristinação só se prevê relativamente à inconstitucionalidade originária e não à superveniente. Apenas no caso do n.º 1”, disponível no DAR, 2.ª série, n.º 69S, de 20/3/1982, p. 33, também disponível em http://debates.parlamento.pt/catalog.aspx?cid=r3.dar_s2rc . R. MEDEIROS, A decisão, p. 657.

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alguns Deputados, embora esclarecedor, não é suficiente para afastar totalmente a possibilidade de efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade superveniente. Os argumentos relacionados com a desactualização e antiguidade da norma repristinável ou com a possibilidade de violação do princípio da igualdade, por seu turno, nada trazem de novo à discussão. De facto, os mesmos argumentos podem ser dirigidos ao efeito repristinatório de uma declaração de inconstitucionalidade originária18. 20. Não fornecendo a letra da Constituição um critério para afastar ou aceitar o efeito repristinatório da inconstitucionalidade superveniente e não sendo os argumentos doutrinários enunciados decisivos, resta-nos analisar os fundamentos do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade para aferir se estes se verificam neste caso. Como explicámos já, um dos fundamentos do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade é o próprio regime da inconstitucionalidade subjacente. Por outras palavras: se a norma é inconstitucional desde a sua entrada em vigor – momento em que se produz o efeito revogatório –, então a supressão de todas as suas consequências e efeitos implica a destruição do seu efeito revogatório. Ora, no caso da inconstitucionalidade superveniente, até ao momento em que se torna inválida, a norma existia já no ordenamento jurídico, de forma perfeitamente válida e conforme com as disposições constitucionais a que deve observância19. Assim, os efeitos produzidos pela norma tornada inconstitucional apenas são suprimidos se ocorridos após o momento em que a norma se torna inválida – normalmente a entrada em vigor da norma constitucional inovatória incompatível. Nem existiria motivo para a destruição dos efeitos anteriores ao início da sua inconstitucionalidade, uma vez que nesse momento a norma seria ainda válida. A sua supressão seria, pois, uma violação dos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade20. Neste caso, devem distinguir-se duas fases. Uma primeira até à entrada em vigor da nova norma constitucional, em que a norma ordinária pré-existente é perfeita e eficaz. Numa segunda fase, já após a entrada em vigor da norma constitucional superveniente, a norma ordinária fica desprovida de fundamento de validade, tornando-se inválida. Como no momento de criação e entrada em vigor da norma ordinária pré-existente esta é plenamente válida, os seus efeitos (nomeadamente o revogatório) encontram-se a salvo da destruição de efeitos derivada da declaração de inconstitucionalidade superveniente21. Este fundamento do efeito repristinatório não se verifica, portanto, no caso da inconstitucionalidade superveniente, afastando a existência de repristinação nestes casos. 18

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Cfr. o seu afastamento em M. REBELO DE SOUSA, O valor jurídico, I, p. 190, nota; R. MEDEIROS, A decisão, p. 657; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 187-188. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 186. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 186-187. M. GALVÃO TELES, Inconstitucionalidade pretérita, pp. 341-342, nota 87.

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21. A argumentação que desenvolvemos para afastar a existência de efeito repristinatório das decisões de declaração de inconstitucionalidade superveniente prende-se com a não verificação de um dos fundamentos desse efeito no caso. Não ignoramos que existe outro fundamento para o efeito repristinatório – o preenchimento da lacuna originada pela declaração de inconstitucionalidade. Sob este prisma de análise, o efeito repristinatório é, de facto, pertinente, pois reduz a possibilidade de surgimento de lacunas como decorrência da declaração de inconstitucionalidade. Com esta base, alguns Autores afirmam não vislumbrar razões para rejeitar a revivescência automática do direito revogado pela norma supervenientemente inconstitucional, que vigoraria, naturalmente, no período posterior à verificação da inconstitucionalidade22, até por analogia com o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição. Não concordamos com esta posição. Na verdade, a existência de efeito repristinatório encontra justificação nos dois fundamentos referidos. Nenhum deles tem primazia sobre o outro – é necessário que ambos estejam presentes, uma vez que ambos se complementam e suportam a produção do efeito repristinatório. O facto de um dos fundamentos se verificar e o outro não é suficiente para afastar a admissibilidade de efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade superveniente. 22. Não negamos que, nos termos da nossa posição, a declaração de inconstitucionalidade superveniente pode redundar na criação de lacunas, o que é contrário ao um dos fundamentos da figura. Mas esse argumento não é decisivo para o afastamento da nossa posição. Na verdade, o mesmo acontece na inconstitucionalidade originária quando os requisitos do efeito repristinatório não são preenchidos. Para além disso, em qualquer caso, perante uma lacuna, os tribunais terão a tarefa integrativa de acordo com o artigo 10.º do CC, podendo mesmo recorrer à norma revogada como inspiração. 23. A nossa linha de argumentação tem como pressuposto que a produção do efeito revogatório se dá no momento de entrada em vigor de lei nova. RUI MEDEIROS, neste contexto, vem distinguir entre as figuras da revogação expressa e da revogação integral de um instituto, por um lado, e a da revogação tácita por incompatibilidade23, por outro. Segundo o Autor, poderia defenderse que este último tipo de revogação é objectivamente diferente das duas primeiras, não sendo, nesse caso, a revogação produzida no momento da entrada em vigor da norma. As razões dessa diferença de regime seriam o facto de, neste caso, existir uma falta de identificação clara e precisa do objecto da revogação; o efeito revogatório seria, assim, produzido pela norma, e não pelo texto legal, o que poderia levar à conclusão de que a revogação não resultaria em abstracto do início de eficácia de uma norma nova. Nesse caso, a revogação deveria ser verifi22 23

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 187-188. R. MEDEIROS, A decisão, pp. 656 ss..

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cada em cada momento pelo aplicador do direito, de onde decorreria a possibilidade de afastamento do efeito revogatório por via de interpretação evolutiva. Teria também de se concluir que a revogação por incompatibilidade equivaleria à simples suspensão da eficácia da lei, pelo que, com a eliminação da norma incompatível, deixaria de existir motivo para a suspensão de eficácia da norma revogada. Esta argumentação, contudo, não procede. Não se nega que a revogação tácita se manifesta primacialmente de forma casuística e no momento da aplicação das leis. Mas retirar desse facto – rectius, da mera constatação desse facto – que a revogação tácita não é uma verdadeira revogação mas uma mera suspensão de eficácia é ir longe demais. Não é por o efeito revogatório implícito tendencialmente apenas se revelar num momento posterior ao da entrada em vigor do acto legislativo que se torna legítimo defender que este não se tenha produzido nesse mesmo momento. A revogação é um fenómeno instantâneo que se dá no momento da entrada em vigor da lei revogatória, mesmo que o intérprete só se aperceba disso posteriormente24. O carácter unitário da figura da revogação e dos seus efeitos não é posto causa por esse facto. 24. O afastamento da repristinação no caso de norma supervenientemente inconstitucional implica também que nunca há repristinação quando se julga inconstitucional uma norma emitida antes da entrada em vigor da actual Constituição25.

b)

EXISTÊNCIA DE EFEITO REVOGATÓRIO DA NORMA DECLARADA INCONSTITUCIONAL b.1)

Considerações gerais

25. Um outro requisito indispensável para que a declaração de inconstitucionalidade tenha efeito repristinatório é a necessidade de que a norma inconstitucional tenha tido efeito revogatório. Como é claro, só existirá revivescência automática do direito revogado por norma declarada inconstitucional se e na medida em que esta tenha tido efectivamente efeito revogatório26, directo ou indirecto. Nos casos em que a norma inconstitucional é inovatória, não tendo afastado regulação anterior, não poderá existir, por natureza, efeito repristinatório, pois não há nada a repristinar27. Só se pode considerar que a norma inconstitucional teve efeito revogatório se vigorava uma regulação que incidisse sobre aquela matéria ou âmbito da vida no momento da entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e cuja vigência esta tenha afastado. 24 25 26

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C. BLANCO DE MORAIS, As leis reforçadas, pp. 352 ss., em especial, p. 353, nota 1339. Cfr., embora com outra fundamentação, A. SOUSA PINHEIRO, Repristinação, p. 235. L. NUNES DE ALMEIDA, A justiça constitucional no quadro das funções do Estado, p. 137; IDEM, O Tribunal Constitucional e o conteúdo, a vinculatividade e os efeitos das suas decisões, p. 967; M. GALVÃO TELES, Inconstitucionalidade pretérita, p. 341-342, nota 87. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 256.

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26. A existência de efeito repristinatório não oferece problemas quando o juízo de inconstitucionalidade incida sobre a totalidade de um diploma (em certos casos de inconstitucionalidade orgânica ou formal, por exemplo) ou sobre a própria norma revogatória. No entanto, nos restantes casos, a determinação do efeito revogatório concreto da norma inconstitucional pode levantar algumas dúvidas e perplexidades. 27. Começamos por analisar a situação em que o diploma que contém a norma inconstitucional tem eficácia revogatória expressa, mas a norma revogatória não é directamente inconstitucional. Para RUI MEDEIROS, neste caso, a existência de efeito repristinatório depende de a inconstitucionalidade de norma dispositiva do diploma acarretar a inconstitucionalidade da norma revogatória, de acordo com as regras gerais sobre invalidade parcial, como no caso em que as normas não viciadas da nova lei não são compatíveis com a norma repristinada. Neste caso, a supressão da norma inconstitucional traria por arrasto a invalidade da norma revogatória e o consequente efeito repristinatório. Ainda segundo o Autor, na dúvida, deve optar-se pela subsistência da norma revogatória e pelo afastamento do efeito repristinatório28. 28. Não concordamos com esta posição. Uma leitura tão restritiva da existência de efeito repristinatório é desconforme com uma leitura adequada da Constituição, desrespeita os fundamentos do próprio efeito repristinatório e redunda na violação da vontade do legislador democrático. Não podemos ignorar que a Constituição estabelece a repristinação do direito revogado como efeito regra da declaração de inconstitucionalidade. Não encontramos, na letra da Constituição, suporte para uma leitura que restrinja esse efeito aos casos em que a norma revogatória – ou o conjunto do diploma – é inconstitucional. O entendimento restritivo não faz sentido especialmente se, depois, temos de tentar encontrar inconstitucionalidades indirectas da norma revogatória criadas pelo “desequilíbrio” causado pela destruição de efeitos da norma dispositiva inconstitucional. Por outro lado, a posição referida, ao dar ao efeito repristinatório um âmbito tão restrito, tem como consequência que os vazios de regulação jurídica criados pela declaração de inconstitucionalidade não são preenchidos pela norma repristinanda, dando origem a lacunas. Ora, desta forma ignora-se que um dos fundamentos do efeito repristinatório é, precisamente, evitar a multiplicação de lacunas não desejadas pelo legislador. E tudo isto devido a uma desconfiança não justificada face ao instituto da repristinação. Para além disso, este entendimento contém uma visão incorrecta do efeito revogatório. O legislador, ao emitir uma nova regulamentação que inclui uma 28

R. MEDEIROS, A decisão, pp. 662 ss.; L.-M. DIEZ-PICAZO, La derogación de la leyes, Madrid: Civitas, 1990, pp. 293 ss..

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norma revogatória expressa, pretende a substituição de um determinado complexo normativo por outro, que pode cobrir total ou parcialmente o anterior. Essa substituição de um regime por outro pressupõe a integralidade da nova regulação. Ora, com a declaração de inconstitucionalidade de uma ou mais normas desse novo regime gera-se um espaço de ausência de regulação normativa – uma lacuna – que não era pretendido pelo legislador quando editou a nova regulação. A completude do novo regime, fundamento da abrangência do efeito revogatório objectivamente pretendido pelo legislador, e a própria malha do ordenamento jurídico são feridas. A criação de uma lacuna indesejada pode ter efeitos bastante gravosos, especialmente porque, se estamos perante uma matéria que era regulada expressamente quer pelo regime revogado, quer pelo novo regime, então trata-se de uma área que o legislador pretende ver regulada devido à sua importância ou delicadeza. O respeito pelo princípio da segurança jurídica leva-nos a procurar uma solução que vá além da integração casuística da lacuna. Especialmente relevantes são as situações em que a norma revogada é compatível com o regime jurídico consagrado no diploma revogatório, depois de expurgada a norma inconstitucional. Nesse caso, pode estabelecer-se uma relação de substituição plena entre a norma inconstitucional e a norma repristinanda. De facto, se a norma inconstitucional regular uma realidade anteriormente coberta por determinada norma expressamente revogada pelo novo regime e se esta não for incompatível com as restantes soluções jurídicas constantes desse novo regime, então podemos inferir que a revogação da referida norma teve por base a eficácia da norma que a substituía, agora declarada inconstitucional. Nesse caso, a entrada em vigor da norma inconstitucional teve como efeito indirecto a supressão de uma norma do ordenamento. Sendo uma das consequências da declaração de inconstitucionalidade a destruição de todos os efeitos que esta produziu – o que inclui, necessariamente, este mesmo efeito revogatório, ainda que indirecto –, então a repristinação da norma revogada unicamente para ser substituída pela norma inconstitucional também deve ser repristinada. Daqui decorre que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma dispositiva terá tendencialmente como efeito, pelo menos, o enfraquecimento da norma revogatória. Num caso como este, não existem razões de fundo para rejeitar o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade. 29. Podemos, por isso, concluir que a declaração de inconstitucionalidade de norma contida em diploma que revoga expressamente o direito anterior, mas cuja norma revogatória não é directamente inconstitucional, terá efeito repristinatório quando se verificar, cumulativamente: i) a existência de uma relação de substituição da norma repristinanda pela norma inconstitucional e ii) a compatibilidade da norma repristinanda com o novo regime. Por um lado, caso não se verifique a existência de uma relação de substituição, não existe nexo revogatório que justifique a repristinação. Por outro lado, se a norma repristinável for incompatível com o novo regime, pode concluir-se 11

que a supressão dos efeitos da norma inconstitucional não foi suficiente para repristinar a norma revogada. 30. Deve ainda ser analisado o caso do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade de norma constante de diploma com efeito revogatório tácito por regulação global da matéria. Neste caso, RUI MEDEIROS assume uma posição próxima da já expressa supra. Como a revogação tácita por regulação global da matéria ocorre quando a norma revogatória é extraível do conjunto da nova regulação e não da relação de incompatibilidade entre duas normas, apenas se a supressão da norma inconstitucional fizer a nova regulação perder a natureza de global é que existiria efeito repristinatório29. Também aqui não concordamos com a posição do Autor, que recorre a argumentos próximos dos antes utilizados. A norma revogatória extraível por interpretação do novo regime não é perfeita se uma das normas que substituía parte do regime revogado desaparece. Mais uma vez, trata-se de uma situação em que o legislador não pretendia a criação de uma lacuna, mas a substituição de um regime por outro. Todos os efeitos da norma inconstitucional devem ser apagados do ordenamento – mesmo os indirectos, como este. Se existir a referida relação de substituição da norma repristinanda pela norma inconstitucional e a primeira não for incompatível com o resto da regulação global da matéria, nem se vê o que se ganharia com o afastamento do efeito repristinatório. 31. Já o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade de norma que possui efeito revogatório tácito não apresenta problemas tão complicados, uma vez que, pela sua natureza, é mais simples estabelecer uma ligação entre norma revogatória e revogada. Neste caso, o efeito repristinatório depende da verificação de dois requisitos: i) que a norma tenha sido efectivamente revogada por ser incompatível com a norma inconstitucional e ii) que o efeito revogatório tenha sido produzido unicamente pela norma inconstitucional. Se os dois requisitos não se verificarem, a supressão da norma inconstitucional não fará desaparecer totalmente a incompatibilidade entre a norma repristinanda e o novo regime, pelo que continua a existir efeito revogatório e não existe repristinação30. 32. Este excurso permite-nos afastar a crítica dirigida ao efeito repristinatório, de acordo com a qual este pode dar origem à repristinação de normas que não se harmonizem com as normas consagradas na lei nova31. De facto, essa situação nunca se verifica. No caso de ter existido revogação expressa, a repristinação da norma incompatível com a regulação não declarada inconstitu29

30 31

Aceitando, embora com dúvidas e apenas em certas hipóteses, cfr. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 256. R. MEDEIROS, A decisão, p. 664. R. MEDEIROS, A decisão, pp. 563 ss..

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cional é afastada por não se poder estabelecer uma relação de substituição pura entre a norma declarada inconstitucional e a norma revogada. A mesma conclusão vale, mutatis mutandis, para a revogação tácita por regulação global da matéria. No caso da revogação tácita, a conclusão justifica-se porque se a norma se revela incompatível com o regime que não foi objecto de juízo desfavorável de constitucionalidade, o efeito revogatório continua a existir. Assim, em casos em que a norma revogada seja incongruente ou contraditória face ao novo regime, pura e simplesmente não se verifica a sua repristinação. b.2) A produção de efeito revogatório 33. Para que da declaração de inconstitucionalidade decorra um efeito repristinatório é essencial que o efeito revogatório ocorra efectivamente. Esta afirmação, aparentemente simples, tem implicações não despiciendas. 34. Desde logo, é necessário que o efeito revogatório tenha já ocorrido – o mero efeito revogatório futuro não o justifica. Esta questão pode surgir em casos em que a norma declarada inconstitucional exista e tenha sido publicada, encontrando-se em vacatio legis, não tendo produzido ainda nenhum efeito revogatório (precisamente por se tratar de norma ainda ineficaz)32. A possibilidade de fiscalização abstracta sucessiva de normas durante a sua vacatio legis pode suscitar algumas dúvidas relacionadas com o facto de o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição se referir ao momento de entrada em vigor da norma como referência para a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Nesta linha, RUI MEDEIROS manifesta-se contra essa admissibilidade, argumentando que i) a fiscalização preventiva da constitucionalidade já evitaria a entrada em vigor de normas inconstitucionais; ii) não faria sentido sobrecarregar a jurisdição constitucional com a fiscalização de normas que ainda não produziram efeitos; e iii) o artigo 282.º pressuporia a produção de efeitos da norma fiscalizada33. Não se vê, contudo, por que recusar a possibilidade de fiscalização destas normas34. A norma constitucional citada não fundamenta a limitação do conhecimento pelo Tribunal Constitucional de normas antes da sua entrada em vigor. Para além disso, desta forma consegue evitar-se a entrada em vigor de uma norma inconstitucional, obviando a potenciais consequências jurídicas negativas, especialmente porque os diplomas com grandes períodos de vacatio versam, regra geral, sobre matérias de maior relevância, para que a comunidade estude o novo regime e se adapte à nova regulamentação. Exactamente nesse momento é possível que se descubram inconstitucionalidades até aí ocultas, que tenham passado despercebidas – até porque a fiscalização preventiva tem pra32 33 34

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, I, pp., 229-230. R. MEDEIROS, Valores negativos da lei inconstitucional, p. 535. J. MIRANDA, Manual, VI, pp. 172-173; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, I, pp., 229-230.

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zos reduzidos (cfr. artigo 278.º, n.os 3, 6 e 8, da Constituição). A não se aceitar este “efeito sancionatório preventivo, a título eventual, da fiscalização sucessiva”35, origina-se uma situação em que, perante uma norma inconstitucional, não existiria qualquer forma de reacção, uma vez que a hipótese de fiscalização preventiva estaria esgotada e a concreta ainda não poderia operar. Ora, uma tal situação – a existência de um caso em que a inconstitucionalidade de uma norma não pode ser aferida, por falta de meio jurídico –, não nos parece aceitável face à Constituição. 35. Ainda decorrendo da necessidade de que a norma inconstitucional tenha efeito revogatório para que exista repristinação, deve ser aferido se a norma se encontrava de facto em vigor no momento da revogação. Só nesse caso é que o afastamento de determinada norma do ordenamento jurídico é um efeito da norma inconstitucional. Esta afirmação é especialmente importante porque o legislador poderá, por vezes, incluir nas disposições revogatórias de um regime normas que, por algum motivo, já não se encontravam em vigor, nomeadamente por já terem caducado (v.g., porque o seu objecto se esgotou). Nesse caso, não se pode revivescer a norma, apesar de esta se encontrar elencada na norma revogatória. A actividade interpretativa que conclui pela revogação tácita de determinado regime deve atender igualmente a estas situações em que as normas tidas por revogadas já não vigoravam no momento da entrada em vigor da norma inconstitucional. O mesmo se pode dizer quando a norma supostamente revogada padecia de inexistência jurídica36. Nesse caso, com a entrada em vigor da norma inconstitucional supostamente revogatória, na verdade não se verificou – nem se poderia ter verificado – efeito revogatório, pelo que a norma inexistente nunca poderá ser repristinada. Por fim, também a norma que tenha sido declarada inconstitucional antes da entrada em vigor da norma que a pretendeu revogar não é repristinável. Na realidade, a declaração de inconstitucionalidade tem como efeito a eliminação da norma do ordenamento, sem possibilidade de revivescência, enquanto as normas paramétricas se mantenham iguais.

c)

ADMISSIBILIDADE DA REVIVESCÊNCIA DA NORMA REVOGADA

36. Para que se possa verificar a existência de efeito repristinatório, é imprescindível que a norma revogada não encontre nenhum obstáculo à sua revivescência – ou seja, é necessário que esta seja admissível.

35 36

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, I, p., 230. Por exemplo, quando se trata de um diploma legal não promulgado (cfr. artigo 137.º da Constituição) ou não referendado (cfr. artigo 140.º, n.º 2, da Constituição).

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37. A admissibilidade da repristinação depende dos limites implícitos ou explícitos à vigência da própria norma repristinanda. Como é sabido, um dos efeitos automáticos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma é a repristinação do direito por ela revogado. Este efeito decorre da destruição das consequências da lei inconstitucional. No entanto, este efeito tem como limite a própria norma repristinanda, as condições que lhe subjazem e o ordenamento jurídico. Ou seja, não decorre da declaração de inconstitucionalidade um qualquer efeito novatório ou relegitimador da norma revogada, mas apenas a eliminação do efeito revogatório produzido pela norma inconstitucional – a norma revogada será revivescida nos exactos termos em que vigorava. O Tribunal Constitucional não possui competência para ultrapassar esses limites, restaurando as normas repristinanda para além deles. Trata-se, no fundo, de tentar repor a situação actual hipotética se a norma inconstitucional não tivesse entrado em vigor. Nestes termos, pode ser de concluir que a norma repristinanda sofreu uma qualquer vicissitude no espaço temporal que vai desde a entrada em vigor da norma revogatória inconstitucional até à decisão de declarar a sua inconstitucionalidade. Essa cessação de vigência deve reflectir-se no efeito repristinatório – i.e., este deve ater-se a tais limites. 38. Como exemplo de uma dessas situações, podemos referir a caducidade da norma repristinanda que tenha lugar entre a entrada em vigor da norma inconstitucional e a declaração de inconstitucionalidade porque a lei revogada estabelecia um determinado prazo de vigência ou um termo ou condição final. A norma repristinanda também pode ter caducado por ter perdido o seu objecto ou por os seus pressupostos de aplicação já não se verificarem37. O mesmo tipo de raciocínio também pode ser aplicado quando se encontrar no ordenamento uma outra norma – que não a inconstitucional – que se deva considerar revogatória da norma repristinanda, o que acontecerá, normalmente, através de revogação tácita por incompatibilidade. Nesse caso, deve considerar-se que a norma repristinanda é revogada pela norma posterior à norma revogatória inválida, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade não tem força jurídica para que a repristinação afecte outras normas jurídicas que não as envolvidas na relação entre norma inconstitucional revogatória e norma revogada repristinanda. O princípio da unidade do ordenamento jurídico também sustenta a nossa posição, uma vez que não admite que duas normas desconformes entre si, com o mesmo valor paramétrico, vigorem no mesmo momento. Em ambos os casos, a norma deve ser tida como repristinada durante o período de tempo que medeia a entrada em vigor da norma revogatória inconstitucional e a ocorrência de uma das vicissitudes referidas. Estas são os limites naturais que o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade não pode transpor. 37

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184.

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39. Como resulta facilmente do que se acabou de dizer, a crítica – muitas vezes dirigida ao efeito repristinatório – de que este leva a repor em vigor normas caducas ou incongruentes com o ordenamento jurídico actual não pode proceder. Numa tal situação, pura e simplesmente não há lugar sequer a efeito repristinatório. 40. Como é claro, também não se verifica efeito repristinatório de norma repristinanda entretanto declarada inconstitucional38. Nesse caso, uma das consequências da declaração de inconstitucionalidade da norma revogada é a repristinação da norma que esta, por vez, haja revogado, se os requisitos se verificarem. Assim, se o Tribunal Constitucional não tiver limitado os efeitos da declaração de inconstitucionalidade – da norma revogada ou da norma revogatória –, a norma que poderá vir a ser repristinada será essa norma revogada pela norma repristinável entretanto declarada inconstitucional.

d)

ALEGADAS EXCEPÇÕES AO EFEITO REPRISTINATÓRIO

41. O estudo dos requisitos que devem ser preenchidos para que exista efeito repristinatório permite-nos ver sob outra perspectiva os casos normalmente qualificados como excepções ao efeito repristinatório39. A maioria da doutrina não esclarece se entende que a declaração de inconstitucionalidade não terá efeito repristinatório nestes casos por causa de características da norma revogatória inconstitucional ou da norma revogada. Podemos antecipar que se concluirá que esses casos não constituem verdadeiras excepções, uma vez que a existência ou não de efeito repristinatório em cada um deles deriva apenas dos limites naturais do efeito repristinatório. 42. Um dos casos normalmente referido como uma excepção ao efeito repristinatório é o das leis de vigência pré-definida, em que são incluídas: a lei das grandes opções do plano, a lei do Orçamento de Estado e leis que estabeleçam limites máximos para avales a conceder cada ano pelo Governo [previstas no artigo 161.º, alíneas g) e h), da Constituição]40. Não podemos concordar com a qualificação destes casos como excepções, sobretudo se entendidos de forma absoluta. 43. Desde logo, a referência à lei do Orçamento de Estado deve ser correctamente entendida. É verdade que a maioria dos seus efeitos está temporalmente delimitada, mas não se pode olvidar que existe uma projecção 38 39

40

A. SOUSA PINHEIRO, Repristinação, p. 235. J. MIRANDA, Manual, VI, pp. 254 ss.; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 183 ss.. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 256; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184.

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futura desses mesmos efeitos, para além dos preceitos que surgem amalgamados na sua normação, mas que não têm conexão com o núcleo de lei do Orçamento de Estado – os habitualmente designados “cavaleiros orçamentais”41. Não há motivos para considerar tais preceitos abrangidos por um alegado estatuto excepcional da lei do Orçamento. Assim, a “excepcionalidade” da lei do Orçamento de Estado, em relação ao efeito repristinatório “normal” teria sempre que ser entendido como reportando-se apenas às normas com efeitos temporalmente limitados. A mesma conclusão é aplicável aos restantes actos legislativos de vigência pré-definida – na medida em que comportarem uma projecção futura dos seus efeitos, então a sua alegada excepcionalidade face ao efeito repristinatório não se justifica. 44. Para além disso, mesmo nesses termos, não se pode entender que as leis de vigência pré-definida, à partida, constituam excepções ao efeito repristinatório. Se existir uma norma que altere ou revogue parte do Orçamento de Estado – por exemplo uma lei de Orçamento rectificativo –, durante o período de vigência do mesmo, e essa norma vier a ser declarada inconstitucional, não se vê porque é que a norma revogada não poderá revivescer. Se, por outro lado, se pretende afirmar que, uma vez declarada inconstitucional uma norma da lei de Orçamento de Estado de um ano, não se repristina a norma do Orçamento do ano anterior, não se pode propriamente falar em excepção ao efeito repristinatório. De facto, o que acontece neste caso é a ausência de efeito revogatório – cada lei do Orçamento tem como limite temporal de vigência normal um ano – ou o respeito do efeito repristinatório pelos limites naturais de vigência da lei em causa. Não há nada de excepcional nisso. 45. CARLOS BLANCO DE MORAIS defende que algumas leis de vigência pré-definida podem revivescer, apontando como exemplo as leis orçamentais. Segundo o Autor, se a lei de Orçamento de Estado de um ano for declarada inconstitucional, faz sentido – por motivos de segurança jurídica e interesse público – a repristinação do Orçamento de Estado do ano transacto em regime de duodécimos42. Não concordamos. Tendo a lei do orçamento uma vigência pré-definida, a eventual repristinação da lei orçamental do ano anterior violaria o seu limite de vigência. Não tendo existido verdadeiramente efeito revogatório e vindo o período de vigência da lei do orçamento, não pode ocorrer repristinação, como já vimos.

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42

Sobre esta questão, cfr., por exemplo, C. BLANCO DE MORAIS, As leis reforçadas, pp. 807 ss.; IDEM, Algumas reflexões sobre o valor de normas parasitárias presentes em leis reforçadas pelo procedimento, in Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, Lisboa, 2001, p. 33; T. DUARTE, A lei por detrás do Orçamento, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 523 ss.. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, 184-185.

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De qualquer forma, o mesmo efeito seria obtido através da aplicação do artigo 41.º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO)43, que estabelece a possibilidade de prorrogação de vigência da lei do Orçamento. É certo que o preceito não é directamente aplicável, uma vez que esta não é uma das situações enunciadas no artigo 41.º, n.º 1, da LEO, mas sê-lo-ia analogicamente, fornecendo uma solução completa para o problema. 46. Outro dos exemplos apontados pela doutrina de excepções ao efeito repristinatório é o das leis de autorização legislativa44. Porém, não se vê motivo para se excluir a possibilidade de repristinação de norma constante de lei de autorização legislativa revogada por norma inconstitucional, na medida em que exista, de facto, efeito revogatório. Cenário diferente será a situação de esgotamento do limite temporal para o uso da autorização ou a caducidade da autorização, por efeito do artigo 164.º, n.º 4. Nestes casos, a lei de autorização deve ter o mesmo regime das normas caducas e por isso não ser repristinada – mas, repita-se, apenas quando o seu limite temporal foi ultrapassado e por esse motivo. A natureza das leis de autorização legislativa não afasta o efeito repristinatório à partida. Se estes limites temporais não forem ultrapassados, deverá existir repristinação. Caso, após a revogação inconstitucional da lei de autorização, a Assembleia da República tenha legislado de forma válida sobre o assunto, então a norma da lei de autorização revogada, se incompatível com o novo regime, deve ter-se como tacitamente revogada por este, sendo, por isso, apenas repristinável até ao momento da entrada em vigor da nova norma. Trata-se, mais uma vez, do regime geral de que já tratámos, não apresentando especialidade de maior. Por outro lado, se a alegada excepcionalidade diz respeito ao facto de a declaração de inconstitucionalidade de lei de autorização legislativa não comportar efeito repristinatório, aí, mais uma vez, não encontramos motivos para concordar. De facto, das duas uma: ou a lei de autorização legislativa inconstitucional não teve efeito revogatório – não existindo, por isso, efeito repristinatório da respectiva declaração de inconstitucionalidade – ou ocorreu efeito revogatório, caso em que a declaração de inconstitucionalidade deve ter efeito repristinatório. Nada impede que exista uma lei de autorização que revogue lei anterior, caso em que não se perceberia qual seria a excepcionalidade da lei de autorização que justificasse a ausência de efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade. Não é pelo facto de a maioria das leis de autorização não possuir efeito revogatório – de onde decorre a ausência de efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade – que se pode afirmar peremptoriamente que estas leis nunca têm efeito repristinatório.

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44

Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 23/2003, de 2 de Julho, e pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184; J. MIRANDA, Manual, VI, p. 256.

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Como se viu, limitámo-nos a aplicar as regras gerais que expusemos anteriormente. Nada de excepcional, mais uma vez. 47. Também as designadas leis circunstanciais – v.g., as leis de amnistia, os perdões genéricos, as leis relativas a empréstimos e a outras operações de crédito – são tidas como excepções ao efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade45. O mesmo acontece com as leis-medida. Também aqui discordamos deste entendimento. Nestes casos, pode ser feito um raciocínio próximo do exposto a propósito das leis de autorização legislativa. Não podemos nunca esquecer que o fundamento do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade é a destruição do efeito revogatório da norma inconstitucional. Só quando a norma declarada inconstitucional tiver efectivamente revogado – ou tiver sido o fundamento para a revogação de – uma outra norma é que pode existir efeito repristinatório. Na maior parte das vezes, isso não acontece nos casos das leis circunstanciais ou das leis-medida, porque os seus efeitos produzem-se e esgotam-se rapidamente. No entanto, se uma norma de lei circunstancial ou de lei-medida tiver sofrido o efeito revogatório de uma lei inconstitucional e se nada se opuser à sua revivescência, então existirá efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade. Da mesma forma, se uma lei circunstancial ou uma lei-medida tiverem revogado determinado preceito legal, a sua declaração de inconstitucionalidade terá efeito repristinatório nos termos gerais. O que geralmente acontece no caso deste tipo específico de leis é a exclusão do efeito repristinatório porque, na maior parte das vezes, no momento da declaração de inconstitucionalidade o seu objecto já se encontra esgotado, as circunstâncias que a justificavam já não se verificam ou o seu prazo já se encontra prescrito. Nesse caso, como já vimos, não pode existir, por natureza, repristinação da norma, uma vez que os seus efeitos já se encontram esgotados. No entanto, repita-se, por estes motivos, não pela natureza destas leis. A posição assumida no presente texto é próxima da de CARLOS BLANCO DE MORAIS, que defende a revivescência de uma lei medida se a norma declarada inconstitucional assumir uma natureza e um objecto idênticos ou se uma norma declarada inconstitucional tiver sido precedida por uma pluralidade de leis-medida cuja soma cubra total ou parcialmente o seu âmbito e objecto. O Autor ressalva deste efeito as leis puramente singulares cujo objecto já se tenha esgotado numa dada situação jurídica, não fazendo sentido a sua revivescência46.

45 46

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184; J. MIRANDA, Manual, VI, p. 256. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 185.

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IV. DETERMINAÇÃO DA NORMA A REPRISTINAR 48. Ao longo dos próximos parágrafos, estudaremos o dever do Tribunal Constitucional de conhecer os efeitos das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a forma como deve conduzir essa sua tarefa. De seguida, atentaremos na inexistência de fixação de efeito repristinatório por decisão do Tribunal. a)

DEVER DE AVERIGUAÇÃO PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

49. O Tribunal Constitucional não pode ser indiferente aos efeitos, por vezes extremamente gravosos, das suas decisões de provimento em fiscalização abstracta sucessiva. De facto, há já algum tempo que se tem assistido, ao nível do Direito Comparado, a um interesse crescente dos Tribunais Constitucionais pelos efeitos colaterais das suas decisões. Esta preocupação tem como fundamento principal a crescente consciência de que estes efeitos podem ser muito onerosos – quer para os particulares, quer para o interesse público, quer para a comunidade em geral –, podendo mesmo dar origem à violação de princípios constitucionais ou a situações mais graves do que as resultantes da vigência da norma inconstitucional47. A retroactividade plena da declaração de inconstitucionalidade da norma pode ofender vários princípios constitucionais, como o princípio da segurança jurídica, pilar fundamental do Estado de Direito, da proporcionalidade, da igualdade ou da conservação dos actos normativos produzidos pelo legislador democrático e o respeito pela sua vontade48. A eliminação de uma norma do ordenamento dá origem a lacunas e vazios que têm malefícios relacionados com a ausência de regulação e a incerteza que dela decorre e com a destruição dos efeitos por ela provocados. Para além disso, pode comportar a lesão de direitos fundamentais e de interesses públicos constitucionalmente protegidos49. Mesmo quando a questão da criação de lacunas seja ultrapassada pela existência de efeito repristinatório, os efeitos da reposição em vigor do complexo normativo revogado pela norma inconstitucional podem também levantar importantes problemas de segurança jurídica e de igualdade, entre outros. A rigidez subjacente à mera alternativa entre decisões de acolhimento ou rejeição da arguição da inconstitucionalidade revela falhas na salvaguarda destes importantes princípios constitucionais. É na tentativa de evitar, de corrigir ou, pelo menos, de controlar excessos decorrentes da aplicação rigorosa dos efeitos das suas decisões de provimento na esfera jurídica dos cidadãos e dos poderes públicos que os Tribunais Constitucionais têm vindo a recorrer a sentenças manipulativas. Também se pretende, se possível, a conservação de actos jurídicos praticados à luz da norma inválida,

47 48 49

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 248-249. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 248 a 250, 279-280. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 263.

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aproveitando ao máximo as suas componentes não necessariamente afectadas pela inconstitucionalidade50. 50. A Constituição portuguesa, dentro desta linha de preocupação com os efeitos das declarações de inconstitucionalidade, atribui, no seu artigo 282.º, n.º 4, de forma bastante generosa, uma competência ao Tribunal Constitucional de manipulação dos efeitos das suas decisões. Quanto mais que não seja para utilização dos poderes que lhe são conferidos pelo citado preceito constitucional, a maioria da doutrina aceita, pelo menos em certa medida, a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer, a título prévio, das consequências da sua decisão de procedência51. O problema está no reconhecimento de que, de cada vez que pretende emitir uma decisão de procedência, o Tribunal Constitucional tem o dever de conhecer e analisar as consequências dessa decisão. 51. O dever de conhecer das consequências da sua declaração de inconstitucionalidade através de um juízo de antecipação da aplicação da norma advém, desde logo, do próprio artigo 282.º, n.º 4. Este preceito dá oportunidade ao Tribunal de ultrapassar a “rusticidade” das suas decisões, prosseguindo o estabelecimento de decisões equilibradas e proporcionais. Para que isso aconteça, é necessário que o Tribunal, para além da prossecução do princípio da constitucionalidade e do uso de decisões ablativas “a seco”, pondere os diversos princípios constitucionais relevantes e manipule os efeitos dessas mesmas decisões. O dever do Tribunal Constitucional de emissão de decisões ponderadas (em relação ao seu conteúdo) decorre também da sua vinculação à tutela dos princípios constitucionais (que não pode ser seriamente contestada), que abarca todos os aspectos da sua actividade, em especial no domínio da fiscalização da constitucionalidade abstracta sucessiva, quando tem o poder de emitir decisões com força obrigatória geral. A ultrapassagem da “rusticidade” das decisões de simples acolhimento e o respeito pelos princípios constitucionais citados deve ser feita com recurso a juízos de proporcionalidade dos seus efeitos, de forma a encontrar o justo equilíbrio entre a eficácia sancionatória e a projecção do seu conteúdo e dos seus efeitos na ordem jurídica, afastando o seu carácter excessivo ou desnecessariamente oneroso. A verdadeira salvaguarda dos princípios da segurança jurídica, da proporcionalidade, da igualdade ou da conservação dos actos normativos produzidos pelo legislador democrático só poderá ser alcançada através de uma preocupação pelas consequências das decisões da justiça constitucional que se repercuta na possibilidade de uma modulação de efeitos dessas decisões. É preciso encontrar a justa medida que permita a plena operatividade do princípio da prevalência da Constituição e os outros valores jurídicos e interesses públicos

50 51

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp.262-263. Cfr., com uma posição algo diferente, J. MIRANDA, Manual, VI, pp. 256-257.

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também são dignos de especial protecção52. É também através de um juízo de antecipação dos efeitos da decisão inconstitucional que o Tribunal Constitucional se pode opor à repristinação de normas inválidas. Mas se o Tribunal Constitucional se encontra vinculado à prossecução dos diversos princípios constitucionais citados então devemos concluir que a sua decisão de manipular os efeitos das suas decisões é vinculada. Se o poder de restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é um poder vinculado, então aí se encontra a fundamentação para a existência de um dever do Tribunal Constitucional de averiguar qual a repercussão desses mesmos efeitos, nomeadamente do seu efeito repristinatório. Ao admitir o afastamento ou a modelação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, entre eles do efeito repristinatório, o artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, estabelece a necessidade de o Tribunal Constitucional indagar das consequências repressivas da decisão de forma preventiva, ex ante53, através de juízos antecipatórios. Não podem restar dúvidas de que a justiça constitucional não pode ignorar, de forma “cega”54 – os efeitos das suas decisões e de que está constitucionalmente obrigada a conhecê-los, para poder utilizar a competência de restrição de efeitos. Aqui se inclui o dever de aferir da existência de normas repristinandas e dos efeitos da sua aplicação prática, para decidir afastar o efeito repristinatório ou não55. 52. Depois de estabelecermos que o Tribunal Constitucional tem o dever de aferir os efeitos das suas decisões, cabe analisar como controlar o cumprimento pelo Tribunal desse dever e qual será a consequência da sua violação. Esta questão da aferição do respeito, pelo Tribunal, do dever de considerar os efeitos das suas declarações de inconstitucionalidade levanta diversas questões algo complexas, que apenas serão aqui abordadas. O problema de fundo prende-se com o facto de apenas se poder emitir um juízo relativo ao controlo do cumprimento do dever em causa com base nas decisões emitidas pelo Tribunal, uma vez que estas são a exteriorização da actividade jurisdicional neste âmbito. Ora, o facto de o Tribunal não ter mencionado, nem mesmo em obiter dicta, a realização de uma avaliação ou ponderação dos efeitos de determinada decisão, não implica que esse juízo tenha sido feito. Um dos casos em que se poderá afirmar, com segurança, que este dever foi violado ocorre quando se possa concluir que o Tribunal Constitucional violou também o dever de limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Nestes casos verifica-se que o dever de ponderação não foi realizado, pelo menos, de forma correcta, uma vez que, se tivesse sido realizado, o Tribunal teria 52 53 54 55

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 251 e 282. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 282. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 257. De facto, o Tribunal Constitucional já tem conhecido dos efeitos possíveis futuros de uma declaração de inconstitucionalidade para não tomar conhecimento do pedido de fiscalização com fundamento em falta de interesse processual, antecipando a aplicação da restrição dos efeitos da sentença: cfr. Acórdão 73/90.

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restringido os respectivos efeitos. Também se pode concluir pela violação do referido dever de ponderação através da análise da fundamentação da decisão do Tribunal, através de obiter dicta, ou em casos em que deveria esclarecer, de forma não vinculativa, qual a norma repristinada e também não o fez. Nesse sentido, a consequência da violação do dever de conhecimento dos efeitos da declaração será idêntica àquela que se reconheça para a violação do dever de manipulação de efeitos. 53. Não nos parece que se possa dizer que a declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional se torna inválida pela violação do dever de conhecimento das suas consequências56. Em boa verdade, tal violação não poderia afectar a decisão do Tribunal, em si, de declaração da inconstitucionalidade de uma norma. De facto, para melhor compreender esta questão, deve ser feita a distinção entre a declaração de inconstitucionalidade de uma norma e a decisão sobre a manipulação dos efeitos dessa declaração. Essa distinção pode ser feita sempre que, declarando o Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade de uma norma, este tem a possibilidade de manipular os efeitos dessa declaração com base no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição. Nessa perspectiva, a declaração de inconstitucionalidade cujos efeitos não sejam manipulados pelo Tribunal é uma decisão de não manipulação, sendo ainda uma decisão sobre a manipulação de efeitos. Constata-se, assim, que o juízo sobre a violação do dever de conhecimento das consequências da declaração de inconstitucionalidade se coloca num momento posterior ao da análise do mérito dessa declaração, o do estudo dos efeitos da mesma, incidindo sobre a decisão sobre a manipulação de efeitos. O eventual desvalor associado à violação do referido dever recai, pois, apenas sobre a decisão do Tribunal sobre a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Com este enquadramento, pode verificar-se que a análise da violação do dever de conhecimento das consequências das declarações de inconstitucionalidade e dos eventuais vício e desvalor que lhe estejam associados não apresenta especialidade face ao estudo, em geral, da violação do enquadramento normativo das decisões sobre manipulação de efeitos – por exemplo, quando o Tribunal Constitucional restringe os efeitos da declaração de inconstitucionalidade invocando incorrectamente a equidade. As posições que se tomarem nesse domínio valerão também para o problema em presença. De qualquer forma, numa situação como esta, quando muito, poderá ser configurável a hipótese de um recurso para o plenário do Tribunal Constitucional. Independentemente desta reflexão, não seria invulgar a existência de deveres sem sanção no domínio do Direito e até em muito especial, do Direito Constitucional. É o que acontece, por exemplo, quando o Presidente da República deixa passar os prazos constitucionalmente previstos para a promulgação de uma lei (cfr. artigo 136.º, n.os 1, 2 e 4). 56

R. MEDEIROS, A decisão, pp. 738-739.

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b)

INEXISTÊNCIA DE DEVER DE FIXAÇÃO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO

54. Já estabelecemos que existia um dever de averiguação dos efeitos de uma decisão de provimento do Tribunal Constitucional, nomeadamente no que diz respeito ao efeito repristinatório. No entanto, deste dever não se extrai a exigência de que o Tribunal Constitucional indique expressamente que existe efeito repristinatório ou identifique a norma repristinada. Como já vimos, a repristinação é um efeito automático da decisão de inconstitucionalidade e decorre directamente do seu regime57/58. Porém, apesar de a repristinação ser uma consequência automática da declaração de inconstitucionalidade, nada impede que o Tribunal Constitucional, em casos de dúvida, clarifique que esse efeito se verifica in casu e refira qual a norma repristinada59. 55. RUI MEDEIROS defende que o Tribunal Constitucional não tem nem pode reclamar uma competência qualificada neste domínio, baseando-se em argumentos relativos à forte tradição da fiscalização difusa em Portugal e à consequente inexistência de poderes interpretativos vinculativos dos restantes tribunais por parte do Tribunal Constitucional. Sendo a determinação da norma repristinável um problema hermenêutico, deve ser encarado nestes termos, afastando-se a possibilidade de o Tribunal Constitucional fixar, de forma imperativa, qual a norma a repristinar. Assim, mesmo que o Tribunal Constitucional pretenda fixar no acórdão de declaração de inconstitucionalidade qual a norma repristinada, esse juízo não vinculará os tribunais comuns, que poderão entender que outra norma é a repristinada60. Apesar de a solução proposta pelo Autor citado apresentar desvantagens claras do ponto de vista dos princípios da segurança e da certeza jurídicas e economia processual, não podemos deixar de concordar que o Tribunal Consti-

57

58

59 60

O mesmo não acontece, por exemplo, na Áustria, onde o artigo 140.º, n.º 4, da Constituição exige a determinação, pelo Tribunal, da respectiva eficácia repristinatória. Por seu lado, na Alemanha, perante o silêncio da Lei Fundamental de Bona, os juízes de Karlsruhe têm reclamado a competência para definir, em termos imperativos, se há repristinação, com base em argumentos de segurança jurídica. Cfr. W. ZEIDLER, Die Verfassungsrechtsprechung im Rahmen der Staatlichen Funktionen, Bundesverfassungsgericht der Bundesrepublik Deustland, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, pp. 45 ss.; K. SCHAILCH, Das Bundesverfassungsgericht, 3.ª edição, Munique: C. H. Beck, 1994, pp. 34 ss J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1075; L. NUNES DE ALMEIDA, A justiça constitucional, p. 137; R. MEDEIROS, A decisão, p. 666; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 255. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 184, nota 246. R. MEDEIROS, A decisão, pp. 665-666. Contra, V. CANAS, O Tribunal Constitucional: órgão de garantia da segurança jurídica, da equidade e do interesse público de especial relevo, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, 2004, p. 117. O reconhecimento da hipótese de estabelecimento vinculativo da existência de repristinação e de quais as normas repristinadas está relacionado com a questão da vinculatividade das decisões de interpretação conforme do Tribunal Constitucional, uma vez que a determinação da norma a repristinar redunda numa operação de interpretação normativa.

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tucional não possui competência para estabelecer que determinada declaração de inconstitucionalidade tem efeito repristinatório – todas, em princípio o têm – nem para estabelecer imperativamente que uma determinada norma é repristinada – o efeito é automático e independente da determinação do Tribunal. A existência de um dever do Tribunal Constitucional conhecer os efeitos das suas decisões não altera este facto. A operação interpretativa através da qual o tribunal comum determina qual a norma que se aplica a determinado caso concreto – que pode envolver analisar a norma repristinada por determinada declaração de inconstitucionalidade – fica dentro da sua autonomia e independência constitucionalmente protegida. No entanto, se o Tribunal Constitucional indicar que aquela declaração de inconstitucionalidade implica a repristinação de determinada norma, esta indicação – se bem que não vinculativa – cria um forte precedente argumentativo junto dos restantes tribunais e a expectativa na comunidade jurídica de repristinação daquela norma que foi indicada. Parece-nos de admitir, por isso, a existência de um dever de fundamentação acrescido por parte dos tribunais comuns se estes pretenderem afastar-se da indicação fornecida, violando as refereferidas expectativas. 56. Diferente situação será aquela em que o Tribunal Constitucional fixar o afastamento de todos os efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade. Nesse caso, estão os tribunais comuns vinculados a esta fixação de efeitos, não podendo aplicar como critério de decisão a norma cuja respristinação foi afastada. Igualmente distinta será a situação em que o Tribunal Constitucional afastar a repristinação de determinada norma em concreto. Nesse caso, assistimos a uma vinculação dos restantes tribunais equivalente à referida no parágrafo anterior. Certo tribunal até pode considerar que a norma cuja repristinação foi afastada não seria repristinada de qualquer forma (v.g. por não ter sido revogada pela norma declarada inconstitucional ou por o efeito repristinatório não poder operar naquele caso), ou discordar dos motivos que levaram ao afastamento do efeito repristinatório, mas aquilo que não pode fazer é revivescer a norma expressamente afastada na declaração. Pode ser configurada a situação complexa em que o Tribunal Constitucional, na parte decisória, afastou de forma absoluta a produção de efeitos repristinatórios da declaração, percebendo-se em obter dicta que o fez pretendendo afastar apenas uma norma (a norma x, por exemplo), que pensava ser a repristinanda. Será que um tribunal comum que considere que a norma repristinanda será uma outra (a norma y), pode revivescer esta última com base na sua autonomia e na fundamentação do Tribunal Constitucional? Não parece que tal solução seja possível, devido à vinculação dos tribunais comuns à parte decisória do acórdão do Tribunal Constitucional de declaração de inconstitucionalidade. Um tal problema cairá antes na questão dos eventuais vícios da decisão sobre a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 25

57. Existem ainda outras situações em que o Tribunal Constitucional, apesar de não estabelecer a produção de efeito repristinatório (em abstracto ou em relação a norma concreta) pode fazer algo próximo. A Constituição impõe ao Tribunal Constitucional o dever de se preocupar com os efeitos das suas decisões com força obrigatória geral para que possa aferir se deve recorrer à cláusula do artigo 282.º, n.º 4. Ao proceder a essa avaliação, o Tribunal Constitucional pode constatar que a situação decorrente da sua declaração levanta incertezas interpretativas. Se existirem dúvidas fundadas sobre se há lugar a repristinação, quais as normas objecto do efeito repristinatório, a sua vigência, constitucionalidade ou validade, então o Tribunal Constitucional não pode deixar de averiguar esses problemas e de inquirir sobre o seu fundamento. As suas conclusões não podem deixar de se reflectir na decisão, nem que seja sob a forma de obiter dictum. As eventuais considerações tecidas pelo Tribunal Constitucional a este propósito terão sempre um valor equivalente ao de uma decisão interpretativa e não o efeito vinculativo de uma decisão de restrição de efeitos. Mas, de qualquer forma, a pronúncia do Tribunal pode ser bastante eficaz na diminuição do nível de incerteza jurídica derivada da sua declaração uma vez que tem um importante valor persuasivo e cria um precedente argumentativo bastante forte61. 58. Deve, igualmente, ser notado que ocorrem situações em que a decisão do Tribunal Constitucional determina expressamente a repristinação de uma norma. É o que ocorre quando apenas uma norma é repristinável. Se assim for e se o Tribunal Constitucional o declarar, não vemos como se estará a limitar a competência dos tribunais comuns. Também assim será quando apenas duas normas possam vir a ser repristinadas. Nesta situação, afastando o Tribunal Constitucional a repristinação de uma delas, aí sim, acaba por fixar qual é a norma repristinada de forma vinculativa para os tribunais comuns.

V.

RESTRIÇÃO DE EFEITOS REPRISTINATÓRIOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL

59. Depois de estudado o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade, é chegado o momento de atentarmos na possibilidade de o Tribunal Constitucional limitar, restringir ou manipular este efeito através do poder que lhe é concedido pelo artigo 282.º, n.º 4, da Constituição. Abordaremos também os fundamentos dessa limitação de efeitos, bem como os diversos tipos de decisões manipulatórias a que o Tribunal pode recorrer. Estudaremos igualmente a hipótese de o Tribunal emitir decisões interpretativas da norma repristinanda. 61

A propósito de decisões interpretativas, C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, 349-350; R. MEDEIROS, A decisão, pp. 301 ss..

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Em seguida, debruçar-nos-emos sobre os limites da decisão de manipulação de efeitos e faremos uma análise crítica dos resultados possíveis de uma decisão desse género. Por fim, faremos uma abordagem ao procedimento que o Tribunal Constitucional deve empreender após a descoberta de uma norma inconstitucional, para decidir se manipula ou não os efeitos da sua decisão. a)

A

REPRISTINAÇÃO

COMO

EFEITO-TIPO

DA

DECLARAÇÃO

DE

INCONSTITUCIONALIDADE E A SUA LIMITAÇÃO

60. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral tem efeitos prototípicos, tal como é estabelecido logo na letra do artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, que incluem a repristinação da norma ou complexo normativo revogados pela norma inconstitucional, verificados os requisitos já apontados,. Como já referimos, a repristinação da norma revogada por norma inconstitucional tem duas razões de fundo: a) a destruição dos efeitos da norma inconstitucional e b) o preenchimento de vazios normativos criados pela eliminação da mesma. Podemos, assim, dizer que, regra geral, a declaração de inconstitucionalidade acarreta a repristinação da norma revogada pela norma inconstitucional. Também o princípio do respeito pela vontade do legislador democrático, quando validamente expressa, e o princípio do máximo aproveitamento dos actos legislativos apontam nesse sentido. 61. No entanto, a Constituição, no artigo 282.º, n.º 4, autoriza o Tribunal Constitucional a fixar as consequências da declaração de inconstitucionalidade, de forma a alcançar um efeito mais restrito ou menos oneroso do que a eficácia-tipo, quando tal for exigível para evitar que estes propiciem lesões desproporcionadas aos imperativos da protecção da segurança jurídica, da equidade ou a interesse público de especial relevo62. A limitação de efeitos surge como meio de atenuar os riscos da incerteza e insegurança que, de forma paradoxal, acabam por decorrer, por vezes, da declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica63. Repare-se que o Tribunal não está a manipular os efeitos da inconstitucionalidade proprio sensu da norma em questão, como se poderia depreender de uma leitura apressada do preceito constitucional citado. Trata-se, isso sim, da restrição dos efeitos da decisão do Tribunal de provimento. De facto, o Tribunal não está – tal como nunca poderia estar na nossa ordem constitucional – a manipular os efeitos da inconstitucionalidade de uma norma, uma vez que estes estão fixados na Constituição e não são manipuláveis. O que o Tribunal Constitucional está a fazer é a manipular os efeitos da sua declaração de inconstitucionalidade – a sua produção de efeitos, mais concretamente –, limitando, por exemplo, a sua abrangência temporal.

62 63

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 282. R. MEDEIROS, A decisão, p. 661. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 272/86, publicado no D.R. n.º 215, Série I de 18 de Setembro de 1986, pontos 15-16.

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A utilização desta competência pelo Tribunal Constitucional, no exercício dos seu poder conformador, alterando os efeitos normais da declaração de inconstitucionalidade, dá origem às designadas sentenças manipulativas. 62. Um dos efeitos sancionatórios da declaração de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional pode modelar em sentido restritivo é, precisamente, o efeito repristinatório64. A decisão de afastamento do efeito repristinatório é considerada uma modalidade secundária ou colateral de limitação de efeitos uma vez que incide, a título principal, na restrição da eficácia temporal da sentença de acolhimento65. O efeito repristinatório pode ser limitado de forma isolada ou em conjunto com os restantes efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Por um lado, a eliminação ou limitação do carácter retroactivo dos efeitos da declaração implica, naturalmente, na mesma medida, uma restrição do efeito repristinatório. Por outro lado, a eliminação ou limitação apenas do efeito repristinatório não tem repercussões no carácter retroactivo da declaração quanto aos restantes efeitos, nomeadamente quanto à invalidade das situações constituídas à sua sombra. 63. A competência do Tribunal Constitucional permite-lhe restringir o efeito repristinatório, tal como os outros efeitos da declaração, em razão do tempo (v.g., durante o período de tempo ressalvado é mantido o influxo da norma inconstitucional sobre situações jurídicas conexas), da matéria em questão ou das circunstâncias (a cristalização do influxo da norma, em determinado período, abarcará só algumas dessas situações ou casos)66/67. O efeito repristinatório também poderá ser limitado devido a características da própria norma repristinanda em questão, em especial devido à sua invalidade. 64. A operação de restrição do efeito repristinatório da decisão de provimento exige ao Tribunal que determine, prima facie, que os requisitos para que se verifique efeito repristinatório estão preenchidos. Posteriormente, o Tribunal deve averiguar qual a norma repristinanda. Após esta análise, cabe ao Tribunal o estudo da validade ou eficácia da norma e dos efeitos jurídicos e consequências da sua revivescência – quer em relação às situações já ocorridas que ficariam sujeitas à sua regulamentação, quer em relação à sua aplicação in futuro. Se concluir que a repristinação poderá conduzir a situações de violação dos princípios da segurança jurídica, da equidade ou de algum interesse público de especial relevo, o Tribunal deve balancear esses efeitos, de acordo com o princípio da proporcionalidade, face ao princípio fundador da constitucionalidade. É 64 65 66

67

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 281-282 e 316-317. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional II, p. 281, 315-316. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 282; L. NUNES DE ALMEIDA, A Justiça Constitucional, p. 137. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 272/86, publicado no D.R. n.º 215, Série I de 18 de Setembro de 1986, pontos 15-16.

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este último que justifica a sanção da nulidade para os actos que o violem e a reconstituição, dentro do possível da situação que existia antes da aprovação da norma inconstitucional, bem como a eliminação de situações jurídicas criadas ao seu abrigo. A restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional deve ser exercida de acordo com critérios estritos de proporcionalidade que o vinculam de forma absoluta. A decisão de limitação do efeito repristinatório e a medida dessa limitação dependem da existência de um sacrifício desproporcionado da segurança jurídica, da equidade ou de interesse público de excepcional relevo e do grau desse sacrifício. Daqui resulta o carácter vinculado do poder do Tribunal de manipulação de efeitos, uma vez que não se trata de um espaço de absoluta discricionariedade. Como já referimos, estamos perante uma competência do Tribunal Constitucional – um poder-dever. A forma como o Tribunal exerce essa sua competência só pode ser controlada se este fundamentar as suas decisões de forma substantiva, permitindo ao público perceber o porquê de ter decidido de determinada forma. 65. Como já vimos, a regra geral será sempre a existência de efeito repristinatório, se estiverem verificados os requisitos para tal, pelo que a decisão de restrição de efeitos terá sempre consequentemente um carácter excepcional68. Consideramos, pois, que existe um princípio de preferência de repristinação quando os seus requisitos se encontrarem preenchidos. Assim sendo, quando o Tribunal conclui que o efeito repristinatório da declaração deve ser restringido, de acordo com o princípio da proporcionalidade, deve aferir-se se os interesses em causa podem ser salvaguardados sem o afastamento total do efeito repristinatório. De facto, o artigo 282.º, n.º 4, ao admitir o afastamento total da revivescência do direito revogado, consagra implicitamente a possibilidade de restrição apenas parcial do efeito repristinatório69. Esta repristinação parcial pode ocorrer em diversos casos, nomeadamente quando o complexo normativo repristinando englobar duas ou mais normas e o Tribunal decidir afastar a revivescência de apenas uma delas ou quando o efeito repristinatório for restringido em razão do tempo – i.e., a norma revivesce, mas durante um período de tempo restrito.

b)

CRITÉRIOS MATERIAIS PARA O AFASTAMENTO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO

66. Como já referimos, a restrição de efeitos repristinatórios depende, nos termos da Constituição, de uma ponderação feita pelo Tribunal Constitucional entre as consequências nefastas da revivescência da norma em questão face à segurança jurídica, à equidade ou a interesse público de especial relevo (cfr. ar68

69

R. MEDEIROS, A decisão, p. 731. V. CANAS, Introdução às Decisões de Provimento, pp. 197 ss.. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 316-317.

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tigo 282.º, n.º 4) e a criação de uma lacuna como resultado do afastamento do efeito repristinatório. Analisaremos de seguida cada um destes critérios. b.1) SEGURANÇA JURÍDICA 67. Apesar de a declaração de inconstitucionalidade de uma norma contribuir para o reequilíbrio do sistema jurídico, a verdade é que, como já vimos, pode conduzir a situações em que é, ela própria, factor de incerteza70. O efeito ex tunc da decisão desestabiliza situações jurídicas formadas à sombra da norma inconstitucional, de uma forma que pode levar a uma perturbação desproporcional e, logo, inaceitável, de interesses públicos ou privados constitucionalmente protegidos. 68. Vários motivos podem justificar o afastamento do efeito repristinatório com base neste critério. O Tribunal Constitucional pode, designadamente, fundar a sua decisão nas consequências da submissão da realidade fáctica existente no quadro da norma inconstitucional ao regime da norma repristinanda ou nas consequências da aplicação da norma para o futuro. Em relação ao primeiro ponto, o Tribunal deve analisar a eventual violação das legítimas expectativas dos cidadãos, a imposição (retroactiva) de sanções ou sacrifícios injustificados e o desrespeito pelas situações jurídicas individuais estabilizadas. Todas as pessoas devem poder prever, dentro dos limites do razoável, as consequências (jurídicas) das suas condutas. Se a aplicação da norma repristinanda ao passado conduzir a resultados jurídicos imprevisíveis e desproporcionados para os sujeitos, então a repristinação, pelo menos durante o período em que a norma inconstitucional foi aplicada, deve ser afastada. Em relação à aplicação da norma repristinanda para o futuro, o Tribunal deverá atentar no facto de a sua aplicação conduzir a situações em que o cidadão é confrontado com consequências jurídicas das suas acções que sejam razoavelmente imprevisíveis ou desproporcionadas ou a situações de dúvida ou incerteza. É importante que a ordem jurídica forneça aos cidadãos a possibilidade de organizarem a sua vida de acordo com critérios de previsibilidade e estabilidade de forma suficientemente razoável para que estes possam representar as consequências normativas possíveis das suas acções71. b.2) EQUIDADE 69. A equidade é tradicionalmente reconduzida a uma ideia de “justiça do caso concreto”, de alguma forma abrindo caminho para considerações específi70 71

Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 308/93, de 20 de Abril. C C. BLANCO DE MORAIS, Segurança jurídica e justiça constitucional, RFDUL, vol. XLI, n.º 2, 2000, p. 621

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cas de um determinado circunstancialismo e assim alterando as consequências da aplicação directa do Direito. A equidade permite ao Tribunal Constitucional recorrer a critérios de razoabilidade ou de bom senso, que se afastam da aplicação estrita da norma jurídica em geral. Permite uma análise mais casuística e circunstancial que permite afastar a aplicação da norma repristinanda em determinados casos. 70. Quando analisa as consequências do efeito repristinatório de uma declaração de inconstitucionalidade sobre este prisma, o Tribunal Constitucional pode atender ao resultado da aplicação da norma repristinanda à realidade fáctica e jurídica formada ao abrigo da norma inconstitucional e aferir da existência de resultados iníquos dessa aplicação. Da mesma forma, se a aplicação da norma repristinanda levar a resultados desrazoáveis no futuro, no geral ou em relação a determinados casos concretos (v.g., de sacrifício injusto ou desrazoável de interesses atendíveis), o Tribunal deve afastar a repristinação. b.3) INTERESSE PÚBLICO DE ESPECIAL RELEVO 71. Por fim, o artigo 282.º, n.º 4, prevê a restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade em casos em que estes efeitos contendam com “interesse público de especial relevo” – relacionados com ou relevantes ao níveis dos fins ou tarefas do Estado. Trata-se de uma situação em que se confrontam e devem ser balanceados dois interesses públicos: por um lado, o princípio da constitucionalidade, que exige a total destruição dos efeitos da norma inconstitucional; por outro, determinado interesse público que será afectado pelos efeitos de uma declaração “seca” de inconstitucionalidade. 72. À partida, deve ser feita uma chamada de atenção. Quando a Constituição refere “interesse público de especial relevo” neste contexto, não pretende transformar o Tribunal Constitucional em órgão de decisão ou ponderação politica de interesses que apenas cabe ao decisor político democraticamente legitimado. Tal seria, aliás, desconforme com os princípios do Estado de Direito democrático e da separação de poderes72. A ponderação feita pelo Tribunal só poderá basear-se, neste sentido, em motivos estritamente jurídicos, ou seja, na protecção de fins ou valores protegidos pela Constituição. A restrição, em determinado caso, de efeitos com esta base terá, assim, de encontrar fundamentação sempre num determinado princípio constitucional. Nestes termos, o Tribunal Constitucional não poderá recorrer ao afastamento do efeito repristinatório porque discorda politicamente da solução normativa contida na norma repristinanda por um qualquer motivo ou porque a considera

72

Cfr. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 290 ss.; R. MEDEIROS, A decisão, p. 661.

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inadequada ou inconveniente. O juízo de adequação ou conveniência é político e como tal reservado ao legislador democrático73. Verificando-se os requisitos descritos supra e verificando-se que a norma revogada é repristinável, o Tribunal apenas a pode afastar com base numa motivação estritamente jurídica74. Cabe assim ao Tribunal Constitucional aferir se algum interesse jurídico público é violado pela norma repristinanda ou pela sua execução ou aplicação, de forma a balancear essa violação com a possibilidade de afastamento da repristinação e consequente criação de uma lacuna jurídica. 73. É chegado o momento de analisar a questão da possibilidade de apreciação da inconstitucionalidade da norma repristinanda. De facto, é neste enquadramento que deve ser analisada a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer a título prévio, através de um juízo de antecipação, dos vícios – e, em especial, da constitucionalidade – da norma repristinanda. Afirmamos, desde logo, que não podemos concordar com a posição que, aceitando a possibilidade de controlo da validade da norma repristinanda75, parece autonomizar este processo daquele que decorre dos motivos enunciados no artigo 282.º, n.º 4 – segurança jurídica, equidade, interesse público de especial relevo76. O citado preceito apenas atribui competência ao Tribunal Constitucional para restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com base naquelas razões específicas. Se aceitamos a possibilidade de afastamento da revivescência de norma repristinanda por causa da sua invalidade, então devemos fundá-la numa das razões enunciadas no preceito constitucional. Em caso de invalidade da norma repristinanda, é identificável um interesse público – a validade e constitucionalidade das leis – que se opõe à aplicação estrita do princípio da constitucionalidade, no sentido da total destruição dos efeitos produzidos pela norma inconstitucional. Trata-se, aliás, de uma situação curiosa em que se confrontam duas vertentes diferentes do princípio da constitucionalidade. c)

O CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA REPRISTINANDA

74. Já estabelecemos que o Tribunal Constitucional deve controlar a norma repristinanda e os seus efeitos para que possa afastar a repristinação quando esteja em causa a segurança jurídica, a equidade ou interesse público de especial relevo. Mas poderá controlar oficiosamente a constitucionalidade das normas repristinandas? E controlando, poderá declará-las inconstitucionais?

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75

76

R. MEDEIROS, A decisão, pp. 661 e 738-739. Cfr. em sentido contrário, V. CANAS, Introdução às Decisões de Provimento, 158-159. Cfr. também J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1017. Cfr., por exemplo, R. MEDEIROS, A decisão, 734 ss., especial 736-737; L. NUNES DE ALMEIDA, A Justiça Constitucional, p. 137. Cfr. Acórdão n.º 56/84. Cfr. também C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 317.

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75. Começaremos por referir que não é admissível que, controlando o Tribunal Constitucional a validade da norma repristinanda, a declare inconstitucional com força obrigatória geral, por força do princípio do pedido, expresso no artigo 51.º, n.º 5, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro77/78, que impede o Tribunal Constitucional de apreciar oficiosamente a validade de normas não impugnadas no pedido de fiscalização formulado79. Só assim não será se o autor do processo de fiscalização tiver pedido a fiscalização da norma repristinanda a título subsidiário ou cumulativo80. O Tribunal Constitucional não é competente para declarar inconstitucional a norma repristinanda81, tal como é incompetente para o fazer oficiosamente em relação à validade de normas não impugnadas – trata-se da aplicação correcta do princípio do pedido. No entanto, o Tribunal é competente para conhecer e examinar, a título prévio, através de um juízo de antecipação, a inconstitucionalidade da norma repristinanda, dentro do âmbito da aplicação do artigo 282.º, n.º 4, para efeitos de afastar a sua repristinação82/83, desde logo porque, como já dissemos, a constitucionalidade das leis é um interesse público de especial relevo. Se o Tribunal concluir que a norma repristinanda é inconstitucional, encontra-se, então, vinculado a decidir no sentido do afastamento do efeito repristinatório da decisão de inconstitucionalidade. 76. A posição adoptada é criticada por alguma doutrina. Por um lado, é acusada de resultar de uma leitura rígida do princípio do pedido84. Argumenta-se que a não aceitação da declaração de inconstitucionalidade da norma repristinanda, nestes termos, seria incongruente com o instituto da fiscalização da constitucionalidade das normas em si. Isto, porque, a ser assim, poderia resultar do processo de fiscalização a aplicação de uma norma que, para além de ser mais antiga, seria ainda inconstitucional85. 77

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Trata-se da a Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, alterada pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro. J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª edição, Coimbra: Almedina, 1993, p. 1040. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 316; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.1017. A. SOUSA PINHEIRO, Repristinação, p. 237; R. MEDEIROS, A decisão, p. 667; C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 316. Cfr. também o Acórdão 103/87, D.R. n.º 103, Série I de 1987-05-06, Acórdão 452/95. Pelo contrário a Corte Costituzionale – o Tribunal Constitucional italiano – já se declarou expressamente competente; cfr. Decisão n.º 107/1974 da Corte Costituzionale, disponível em http://www.cortecostituzionale.it/. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 56/84. Cfr. também C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 317. L. NUNES DE Almeida, O Tribunal Constitucional português, p. 138; J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição, pp. 1042-1043; A. ARAÚJO /J. P. CARDOSO DA COSTA, Relatório português, in III Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha, Guatemala, Novembro de 1999, pp. 56 ss.. J. MIRANDA, Manual, VI, pp. 256-257. J. MIRANDA, Manual, VI, pp. 256-257.

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Segundo uma outra posição doutrinária, existiria um pedido subsidiário implícito de fiscalização da constitucionalidade da norma repristinanda no pedido de fiscalização da norma principal86. Nesse sentido, o pedido deveria ser encarado não só abrangendo a norma especificada, mas abarcando também a norma que revogara. 77. Estas objecções não procedem. Por um lado, a primeira crítica parece confundir o conhecimento, por parte do Tribunal, da constitucionalidade da norma repristinanda com a competência para a declaração de inconstitucionalidade. Ora, uma tal confusão não é admissível. A primeira não implica necessariamente a segunda e a exclusão da admissibilidade da última não impossibilita a primeira. De facto, o Tribunal pode e deve conhecer da constitucionalidade da norma repristinanda, mas para efeitos do afastamento da sua repristinação e não para a declarar inconstitucional com força obrigatória geral87. 78. A segunda objecção, parte do princípio de que se poderia presumir a existência desse pedido implícito. Ora, não nos parece que se trate de uma presunção que possa existir88. A vontade dos autores do pedido de fiscalização nesse sentido não está demonstrada nem é facilmente demonstrável89, até porque, por vezes, o que o autor pretende é, precisamente, a repristinação. Para além disso, os conteúdos normativos dos dois preceitos podem ser totalmente diferentes ou mesmo contrários, sendo que a única coisa que liga as duas normas é a relação de sucessão no tempo. A fiscalização da constitucionalidade sucessiva de normas depende, como bem se sabe, de um pedido no qual a norma cuja constitucionalidade deve ser controlada deve estar correctamente identificada, na ausência desta, não há fiscalização90. Se o autor do pedido não identificar a norma repristinanda no pedido, não se vê como extrair um qualquer pedido implícito de controlo. 79. A distinção que fizemos entre afastamento do efeito repristinatório e declaração da inconstitucionalidade da norma repristinanda também é alvo de críticas. Argumenta-se, por exemplo, que, em ambos os casos – declaração de inconstitucionalidade e afastamento do efeito repristinatório –, a consequência relevante para o que aqui analisamos (o facto de a norma não ser repristinada) é equivalente91. Não podemos concordar com esta posição. Existem diferenças de fundo entre as duas figuras, às quais não podemos ser indiferentes92. A declaração de 86 87 88 89 90 91 92

J. MIRANDA, Manual, VI, pp. 256-257. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1017. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 318. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 318. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 318. R. MEDEIROS, A decisão, pp. 670 ss.. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 316.

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inconstitucionalidade com força obrigatória geral tem um peso e um valor de destruição da norma e de todos os seus efeitos que não ocorre (nem pode ocorrer) no caso da decisão de não repristinação. Com a decisão de preclusão da repristinação evita-se apenas que a norma repristinanda volte a vigorar – de resto, esta mantém-se no ordenamento, podendo ser reposta em vigor posteriormente, pelo legislador93. Para além disso, se neste âmbito se declarasse a inconstitucionalidade da norma repristinanda com força obrigatória geral, o resultado seria a destruição de todos os efeitos por ela produzidos, o que incluiria o seu próprio efeito revogatório resultando na repristinação da norma revogada pela norma repristinanda inconstitucional. Não se pode, pois, afirmar que o efeito de ambas as figuras é equivalente94. Outras diferenças subsistem. Como já vimos, o controlo pelo Tribunal Constitucional das consequências das suas decisões, nomeadamente da constitucionalidade da norma repristinanda, é um dever oficioso imposto constitucionalmente que se enquadra num momento posterior ao da conclusão pela inconstitucionalidade da norma fiscalizada. Não faz sentido, por isso, ver aqui uma violação do princípio do pedido95. De qualquer modo, nunca faria sentido afastar a possibilidade de decisão de não repristinação só com base nos motivos enunciados. Não seria aceitável que o Tribunal pudesse afastar a repristinação por motivos estritos de segurança, de equidade ou de interesse público e não pelo facto de a norma ser inconstitucional, até porque existe um interesse público na constitucionalidade das leis. Caso contrário, uma norma repristinanda que acarretasse grave prejuízo para o Tesouro podia ver a sua repristinação afastada mas uma norma inconstitucional não. Existindo um interesse público na constitucionalidade das leis – especialmente das leis em vigor – e existindo a possibilidade de afastamento da repristinação de uma norma com base em motivos de interesse público de especial relevo, então parece-nos clara a competência do Tribunal Constitucional para decidir a não repristinação por inconstitucionalidade da norma repristinanda. 80. De acordo com uma outra posição doutrinária, a restrição dos efeitos motivada pela inconstitucionalidade da norma repristinada não é possível porque redundaria num alargamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e não numa restrição96. Não se compreende como uma tal concepção poderia proceder. O artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, determina a fixação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e não da norma inconstitucional, sendo que um desses

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C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 319; R. MEDEIROS, A decisão, p. 670. Em sentido contrário, R. MEDEIROS, A decisão, p. 669. R. MEDEIROS, A decisão, p. 670. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 258.

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efeitos é o repristinatório. Se este é afastado, então há uma restrição dos efeitos da declaração97.

d)

TIPOS DE LIMITAÇÃO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO

81. A decisão, por parte do Tribunal Constitucional, de restringir os efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pode assumir várias modalidades. Essas modalidades abrangem: a) O afastamento total do efeito repristinatório; b) O afastamento parcial do efeito repristinatório: i) Em razão do tempo; ii) Em razão das normas repristinandas; iii) Em razão do âmbito de aplicação da norma repristinanda. É claro que o Tribunal Constitucional tem a possibilidade de experimentar diversas combinações de tipos de afastamento parcial da repristinação, de forma a alcançar a decisão que melhor conjugue a protecção dos valores enunciados no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, e o princípio da constitucionalidade. d.1)

Afastamento total do efeito repristinatório

82. Por um lado, o Tribunal Constitucional pode optar por afastar totalmente o efeito repristinatório, impedindo a revivescência da norma repristinanda como efeito automático da declaração de inconstitucionalidade. Trata-se de situações em que a consequência da aplicação da norma repristinanda é tão gravosa que leva o Tribunal a preferir criar uma lacuna na ordem jurídica. Como já referimos, caso o Tribunal Constitucional conclua que a repristinação não é desejável tendo em conta os critérios expressos no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, a exclusão total do efeito repristinatório deve ser considerada como absolutamente excepcional – devido ao que denominámos princípio de preferência de repristinação, que obriga o Tribunal a favorecer a repristinação parcial neste caso. Se possível, o Tribunal deve aferir se a restrição parcial do efeito repristinatório será suficiente para salvaguardar os interesses em questão. No entanto, podem existir situações em que a repristinação parcial não é possível, como quando as consequências indesejáveis da repristinação derivam do conjunto das normas repristinandas ou quando a norma a afastar apresentar uma relação de interdependência com o resto do complexo normativo repristinando de uma forma que o esvazia de conteúdo sem a norma repristinanda em causa.

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C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 318-319.

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d.2) Afastamento parcial do efeito repristinatório 83. O Tribunal Constitucional, após a sua operação de avaliação das consequências da sua declaração de inconstitucionalidade, pode concluir que a limitação apenas parcial do efeito repristinatório é suficiente para salvaguardar os interesses em causa. A limitação parcial pode ter vários pontos de referência, como a aplicação temporal da norma repristinanda, o afastamento de apenas algumas normas repristinandas ou a manipulação do seu âmbito de aplicação. d.2.1) Afastamento parcial em razão do tempo 84. Uma das possibilidades à disposição do Tribunal Constitucional é a restrição do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade ratione temporis, limitando a duração da repristinação da norma – da sua vigência –, tendo em conta um determinado ponto de referência, sem manipular o seu conteúdo material. A manipulação, nesse sentido, pode incidir sobre o momento em que a norma revivesce ou o momento até ao qual a norma é repristinada. Em relação ao primeiro momento – a partir do qual a norma repristinanda revivesce –, o Tribunal pode optar por determinar que os efeitos da declaração em geral, ou o efeito repristinatório em particular, apenas se produzirão a partir da sua publicação, dando à decisão de inconstitucionalidade eficácia ex nunc, ou preferir outro momento temporal para determinar a revivescência da norma revogada. As várias hipóteses que se apresentam ao Tribunal Constitucional são: a) Atribuir eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, relegando a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade – incluindo o efeito repristinatório – para o momento da publicação da decisão; b) Restringir apenas o início da produção de eficácia repristinatória até à publicação da declaração, o que implica que os restantes efeitos da declaração se produzem, mas que passa a existir uma lacuna entre a entrada em vigor da norma inconstitucional e a publicação do acórdão do Tribunal Constitucional – só após esta data a norma repristinanda revivesce; c) Restringir o início da produção de eficácia repristinatória (ou do conjunto dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade) até um momento depois da entrada em vigor da norma inconstitucional mas antes da publicação da declaração – o que constitui uma espécie de media via entre as situações descritas anteriormente; se antes desse momento, existe uma lacuna, depois do mesmo, a norma é repristinada; d) Relegar o início da produção de eficácia repristinatória para momento posterior ao da publicação da declaração de inconstitucionalidade.

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85. As situações descritas nas alíneas a) e b) não são surpreendentes. O Tribunal, ponderados os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pode pretender ressalvar os efeitos – na sua totalidade ou apenas alguns – produzidos pela norma inconstitucional, ou pode concluir pela pouca importância da criação de uma lacuna para o passado, quando comparada com o presente, por exemplo. 86. Já vimos que, nas situações descritas nas alíneas a) e b), o ponto de referência para o início de produção de efeito repristinatório é a publicação da declaração de inconstitucionalidade. No entanto, o Tribunal também pode optar por restringir ratione temporis o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade tendo outro ponto de referência, que pode tomar a forma de uma data concreta ou da ocorrência de um determinado facto – trata-se, no fundo, da fixação de um termo inicial. Esta decisão pode ser motivada por ser importante tomar em consideração determinado ponto temporal diferente da entrada em vigor da norma inconstitucional ou da publicação da declaração de inconstitucionalidade, por diversas situações. Nas situações até agora descritas, os efeitos da norma inconstitucional são preservados por força da decisão de restrição de efeitos do Tribunal Constitucional, vindo a ser substituídos pela norma repristinanda após a publicação da declaração ou a ocorrência do facto escolhido pelo Tribunal. 87. A situação descrita na alínea d) será consideravelmente mais controversa. Trata-se da possibilidade de o Tribunal optar por adiar a repristinação para um momento posterior ao da publicação da declaração de inconstitucionalidade. O Tribunal pode acreditar, nomeadamente, que o legislador vá actuar imediatamente, substituindo a norma inconstitucional, mas queira, ainda assim, precaver-se no caso de essa regulação não ocorrer. Também se pode verificar uma situação em que a criação de uma lacuna no momento imediato não seja particularmente grave, mas a possibilidade de que esse vazio de regulação jurídica se arraste no tempo seja particularmente grave. Não duvidamos que a doutrina que rejeita a possibilidade de o Tribunal estabelecer a produção de efeitos da inconstitucionalidade para o futuro se sentirá tentada a não aceitar também esta possibilidade. No entanto, parece-nos que existem algumas diferenças entre a aceitação em abstracto desta possibilidade e o diferimento para o futuro apenas da repristinação. Estas diferenças poderão ser suficientes para a defesa da admissibilidade desta última. De facto, neste último caso, a norma continua a ser declarada inconstitucional e todos os seus efeitos (com a excepção do revogatório) continuam a ser retroactivamente destruídos. A norma declarada inconstitucional não continua a vigorar para além da declaração de inconstitucionalidade. Apenas o efeito repristinatório da declaração – que corresponde à destruição do efeito revogatório da norma inconstitucional – é adiado no tempo para momento posterior. Nesse sentido, continuamos no âmbito da manipulação dos efeitos da decisão do Tribunal. 38

88. Uma outra forma de manipulação do efeito repristinatório ratione temporis consiste na admissibilidade de fixação, pelo Tribunal Constitucional, do período de revivescência da norma, findo o qual o efeito repristinatório cessa e a norma deixa de vigorar – ou seja, a norma é repristinada apenas durante um certo período de tempo98. Sendo que o efeito repristinatório ordinário de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral implica a revivescência da norma revogada pela norma inconstitucional sem limites temporais, a imposição de um prazo máximo de vigência é também, nesse sentido, uma restrição aos efeitos da declaração e, como tal, admissível. O prazo a que nos referimos pode reportar-se: a) A um momento durante a vigência da norma inconstitucional – entre a sua entrada em vigor e a publicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral; b) Ao momento da publicação da declaração de inconstitucionalidade; c) A um momento posterior à publicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. 89. Os períodos de referência enunciados nas alíneas a) e b) não levantam problemas de maior. O Tribunal Constitucional pode concluir, da sua apreciação das consequências da repristinação, que a existência de uma lacuna é mais gravosa num determinado momento do passado ou que a compressão dos princípios da segurança jurídica ou da equidade ou de interesse público de especial relevo só alcançam importância suficiente para motivar o afastamento da repristinação a partir de determinado ponto temporal. Também pode acontecer que a norma repristinanda se tenha tornado supervenientemente inconstitucional durante esse período. 90. Menos consensual será a hipótese colocada na alínea c): a possibilidade de o Tribunal estabelecer um prazo máximo de vigência para a norma repristinada que se projecta no futuro. A verdade é que a fixação deste prazo pode ter várias justificações possíveis relacionadas com o facto de, apesar de a solução consagrada na norma repristinada ser melhor do que a abertura de uma lacuna no ordenamento, a sua aplicação sem limitação temporal poder acarretar, a prazo, a violação dos princípios da segurança jurídica e da equidade ou de interesse público de especial relevo, como acontecerá quando a norma repristinanda tender para a inconstitucionalidade. O Tribunal Constitucional consegue, desta forma, evitar a criação imediata de uma lacuna e prevenir, ao mesmo tempo, os riscos ou os inconvenientes que poderão advir da aplicação de norma repristinanda por tempo indeterminado. Neste caso, a norma repristinada acaba por ser utilizada pelo Tribunal para re-

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C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 277-278 e 319-320.

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gular temporária e transitoriamente determinada matéria enquanto não existe intervenção do legislador, evitando a criação de lacunas99. A fixação de um prazo máximo de vigência pode ser também utilizada pelo Tribunal Constitucional para comunicar uma mensagem ou apelo ao legislador, para que este intervenha regulando ex novo aquela matéria. A liberdade do legislador é respeitada – tal como não poderia deixar de ser –, uma vez que este não fica vinculado a agir de determinada forma. Se o legislador optar por não seguir o entendimento do Tribunal, o resultado é a criação de uma lacuna no final do período de vigência da norma repristinada. O Tribunal, no respeito pelas suas competências, tenta persuadir o legislador a actuar de determinada forma – suprindo essa lacuna potencial. 91. A admissibilidade desta solução – bem como da possibilidade de remeter a produção do efeito repristinatório para o futuro – não será inteiramente pacífica. Desde logo, poder-se-ia argumentar que o Tribunal Constitucional, ao fixar o período de vigência da norma repristinanda, estaria a entrar no domínio reservado ao poder legislativo, violando o princípio da separação de poderes100. Outra crítica possível prende-se com o princípio da tipicidade dos actos legislativos e, em particular, com o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, que proíbe que a lei confira a actos não legislativos o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar preceitos legais101. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional, ao fixar o prazo de vigência de uma norma, estaria a actuar em violação deste preceito constitucional. 92. As críticas referidas não procedem. Como já vimos, um dos efeitos ordinários da declaração de inconstitucionalidade é a repristinação da norma revogada pela norma inconstitucional. A revivescência desta norma acarreta a sua vigência sem limitações temporais. Assim sendo, a fixação de um prazo de vigência para a norma repristinada deve ser considerada uma limitação ao efeito repristinatório, assumindo a natureza de uma decisão de restrição dos efeitos ordinários da declaração de inconstitucionalidade. Não se pode ver a imposição de um prazo máximo de vigência para a norma repristinada como uma usurpação de poderes pelo Tribunal Constitucional. Por um lado, o Tribunal não actua como autor da norma – esta é a norma revogada pela norma inconstitucional que é repristinada. Por outro, deve sublinhar-se que a fixação de um período máximo de vigência pelo Tribunal se baseia em critérios estritos de constitucionalidade e juridicidade e não de adequação política

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Ao nível do Direito Comparado, é de referir que o Tribunal Constitucional alemão tem a possibilidade de regular emitir regulações temporárias. Cfr. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, pp. 277 ss.. O fundamento dessa posição passaria por considerar que a fixação do período de vigência de um diploma legal é um dos poderes tipicamente reservados ao legislador. C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 319

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ou social da norma em questão. Desta forma, não se pode confundir a actuação do Tribunal nestes termos com o âmbito de actuação do legislador. Não se pode deixar de concluir que a fixação de um período máximo de vigência para as normas repristinadas, neste sentido, não passa da repristinação parcial com base no critério qualitativo da temporalidade102. d.2.2) Afastamento parcial em razão da norma 93. É também possível que a restrição dos efeitos repristinatórios incida sobre o próprio complexo normativo repristinado, ou seja, que o Tribunal manipule o efeito repristinatório de forma a aceitá-lo em relação a determinadas normas repristinandas e a afastá-lo em relação a outras. Como é bom de perceber, este género de manipulação só poderá acontecer quando o efeito repristinatório incide sobre duas ou mais normas, por exemplo, quando engloba um diploma, ou um preceito que se possa decompor interpretativamente em várias normas. A admissibilidade de uma manipulação deste género é confirmada pela letra da Constituição que, no artigo 282.º, n.º 1, refere que o objecto da repristinação abrange as normas e não os preceitos ou os diplomas legais. Nestes casos, o Tribunal pode optar por excluir o efeito repristinatório em relação a determinado segmento normativo autónomo, dando-se a revivescência do restante conteúdo normativo do preceito ou diploma. Esta exclusão pode incidir sobre um determinado preceito ou secção de um preceito – levando à redução efectiva do texto do complexo normativo repristinando – ou sobre um segmento normativo ideal de diploma ou preceito. 94. A possibilidade de o Tribunal rejeitar a repristinação de parte das normas repristinandas abre a porta a algum nível de manipulação do complexo normativo que revivesce. Nesse sentido, pode por vezes descobrir-se uma componente aditiva numa decisão de restrição do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade, quando a norma ou conjunto de normas não repristinadas restringem a titularidade ou o exercício de um direito ou subtraem da sujeição a um dever determinado grupo de pessoas, sem motivo materialmente atendível. A componente aditiva não é criada pela decisão do Tribunal, mas decorre da ampliação do âmbito de aplicação de uma norma decorrente da decisão de excluir a revivescência de parte do complexo normativo repristinando. Deve, mais uma vez, chamar-se a atenção, no entanto, para que os critérios utilizados nesta manipulação devem ser estritamente jurídicos e não políticos ou de conveniência. Os critérios formulados pela doutrina para a admissibilidade da declaração de inconstitucionalidade parcial poderão ser aplicados ao raciocínio que deve ser feito pelo Tribunal neste domínio. d.2.3) Afastamento parcial em razão do âmbito de aplicação 102

C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 319-320

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95. Por fim, o Tribunal Constitucional pode também optar por restringir o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade, de forma a salvaguardar algumas situações, casos concretos ou grupos de pessoas da aplicação da norma repristinanda, ou seja, a manipular o âmbito de aplicação da norma repristinanda. Esta forma de manipulação dos efeitos pode tomar as mais variadas formas, como a salvaguarda dos processos judiciais pendentes ou a não aplicação a um determinado grupo de pessoas. Esta salvaguarda de situações deve ser objectivamente justificada tendo em conta os critérios expressos no artigo 282.º, n.º 4. d.2.4) Combinação de tipos de afastamento parcial 96. O Tribunal Constitucional, ao manipular o efeito repristinatório, pode combinar os diversos tipos de limitação de efeitos, ou seja, podem existir casos em que a restrição ratione temporis também pode ser só parcial, no sentido quantitativo – parte do complexo normativo repristinando é afastado – ou qualitativo – o seu âmbito de aplicação103. A possibilidade de manipulação do efeito repristinatório dá ao Tribunal um vasto leque de opções para que possa, perante uma norma repristinanda, manipulá-la de forma a garantir a salvaguarda da segurança jurídica, da equidade, os diversos interesses públicos de especial relevo – nomeadamente a constitucionalidade e a validade das leis, ao mesmo tempo que prossegue o princípio da constitucionalidade, na vertente da destruição dos efeitos de norma inconstitucional. e)

DECISÃO INTERPRETATIVA DA NORMA REPRISTINANDA

97. Por fim, o Tribunal Constitucional, no uso da sua competência de manipulação dos efeitos das suas declarações de inconstitucionalidade, pode igualmente recorrer à emissão de uma decisão de não exclusão do efeito repristinatório, por força da sua interpretação da norma repristinanda. De facto, o Tribunal pode considerar que a protecção dos valores enunciados no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, é assegurada por uma interpretação da norma repristinanda em conformidade com a Constituição, que enuncia. Nesse caso, também em aplicação do princípio da preferência de repristinação, o Tribunal não emite uma decisão de exclusão do efeito repristinatório, mas de interpretação da norma repristinanda. Ora, a decisão em que o Tribunal Constitucional se limite a indicar a forma como acha que a norma repristinada deve ser interpretada para que se salvaguardem os valores expressos no artigo 282.º, n.º 4, não tem o efeito vinculativo de uma decisão de restrição de efeitos. A Constituição apenas lhe dá competência para emitir decisões vinculativas em relação à limitação dos efeitos da 103

L. NUNES DE ALMEIDA, A justiça constitucional, p. 137; IDEM, O Tribunal Constitucional português, pp. 970-971.

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declaração de inconstitucionalidade, não para a interpretação da norma repristinanda. O Tribunal não pode impor a sua interpretação como única perante as outras instâncias judiciais – a sua decisão só é juridicamente vinculativa quando e na medida em que restringirem os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Nesse sentido, a decisão interpretativa de não restrição do efeito repristinatório terá o mesmo valor de uma decisão de não provimento interpretativa em fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade. A decisão em que o Tribunal Constitucional declara, obiter dictum, que uma determinada interpretação da norma repristinanda é inconstitucional, apesar de não vinculativa, cria um precedente argumentativo, com importante força persuasiva junto dos restantes tribunais e efeito dissuasor em relação a decisões judiciais que a contrariem104. Fixa-se, assim, uma orientação para a interpretação da norma – sem que se transforme em interpretação única e vinculativa. 98. E se o Tribunal Constitucional condicionar a repristinação da norma a uma determinada interpretação? Por outras palavras: o que dizer de uma decisão em que o Tribunal determine que a norma é repristinada apenas quando interpretada de determinada forma? Estaremos perante uma decisão interpretativa vinculativa do Tribunal Constitucional? A resposta que nos parece mais correcta é aquela que fará depender a admissibilidade de uma tal decisão da situação em causa. Se, de facto, a interpretação do Tribunal Constitucional for a única possível cujo conteúdo seja conforme com os critérios do artigo 282.º, n.º 4, então não se poderá dizer que existiu uma violação da autonomia dos restantes tribunais. Tirando esta situação, e de uma forma geral, a utilização de uma decisão com este conteúdo para impor uma determinada interpretação, à partida, será inadmissível e, como tal, não pode ser considerada vinculativa.

f)

OS LIMITES DA MANIPULAÇÃO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO

99. Certas situações são tradicionalmente apontadas pela doutrina como limites à restrição de efeitos105, sendo que algumas delas têm especial importância para a limitação de efeito repristinatório, merecendo, por isso, especial referência. Os limites que tradicionalmente são apontados são: a) A restrição de efeitos de declaração de inconstitucionalidade de norma violadora de direito “absolutos” – os referidos no artigo 19.º, n.º 6, da Constituição – uma vez que, alegadamente, estes nunca podem ser suspensos;

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Cfr. em relação à decisão de não provimento interpretativa em fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade C. BLANCO DE MORAIS, Justiça constitucional, II, p. 349-350. J. MIRANDA, Manual, VI, p. 270-271.

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b)

c)

d) e)

A violação do princípio da igualdade, por tratamento discriminatório de situações ou pessoas que deviam ser tratadas da mesma forma (cfr. artigo 13.º, n.º 1, da Constituição); A limitação de efeitos em razão do território de norma constante de convenção internacional e de lei reservada aos órgãos de soberania106, por violação do princípio da estrutura unitária do Estado e da igualdade; O diferimento para o futuro da produção de efeitos, por violação do princípio da constitucionalidade107; A limitação dos efeitos quanto a normas inexistentes.

100.Se o primeiro limite nos levanta sérias reservas, pelo menos se formulado de uma forma tão geral, por falta de suporte constitucional, entre outros, concordamos inteiramente com os limites enunciados nas alíneas b) e c). A manipulação de efeitos por parte do Tribunal Constitucional nunca pode legitimar a introdução de situações de violação do princípio da igualdade. Concordamos também tendencialmente com o limite expresso na alínea d). Não podemos deixar de concordar também com o limite descrito na alínea e), uma vez que não é admissível a ressalva do efeito revogatório de uma norma inexistente, devido à sua falta absoluta de legitimidade de introduzir alterações na ordem jurídica.

g)

OS RESULTADOS DA MANIPULAÇÃO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO

101. A manipulação do efeito repristinatório de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pode conduzir a uma variedade de resultados possíveis, no sentido de determinação do regime jurídico aplicável resultante dessa manipulação. À partida, de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral sem manipulação de efeitos, apenas podem resultar dois cenários: ou a) os requisitos para existir efeito repristinatório estão preenchidos, e a norma repristinanda revivesce, passando a vigorar no lugar da norma inconstitucional, ou b) esses requisitos não se encontram preenchidos, não existe revivescência de nenhuma norma e da declaração resulta uma lacuna no tecido normativo. Com a manipulação de efeito repristinatório existem outras hipóteses a considerar. De facto, da decisão do Tribunal pode resultar, a título exemplificativo: a) A abertura de uma lacuna, se o Tribunal afastar totalmente o efeito repristinatório e não existir regulação alternativa da matéria;

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J. MIRANDA referia-se no texto original à categoria das “leis gerais da República”, desaparecida do texto constitucional após a revisão de 2004. Cremos que o mesmo espírito de salvaguarda da unidade territorial se pode encontrar na nova categoria de “lei reservada aos órgãos de soberania”. Cfr. também M. REBELO DE SOUSA, O valor jurídico, I, pp. 261-262.

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b) A aplicação do regime geral actualmente em vigor, se o Tribunal afastar totalmente o efeito repristinatório de norma especial; c) A abertura de lacunas parciais em razão do tempo, matéria ou âmbito de aplicação, dependendo da decisão de afastamento parcial do efeito repristinatório; d) A aplicação dos efeitos da norma inconstitucional até determinado momento (normalmente a publicação da decisão) e a revivescência da norma revogada a partir desse momento; e) A regulação temporária da matéria, se o Tribunal estabelecer um período máximo de vigência para a norma repristinanda; f) A revivescência de complexo normativo repristinando constitucionalmente conforme, expurgado pelo Tribunal de alguns dos seus elementos. 102. Alguns destes resultados implicam que a decisão de limitação de efeito repristinatório empreste legitimidade a alguns efeitos produzidos pela norma inconstitucional, que passam a ser efeitos da decisão de manipulação e não mais efeitos da norma inconstitucional (porque se o fossem, teriam que ser destruídos). 103. Surgem também situações em que existe uma (pelo menos) aparente sobreposição temporal da aplicação de regimes jurídicos – da norma inconstitucional (ressalvados pela decisão) e da norma repristinada (decorrente da decisão). Dependendo da manipulação que o Tribunal aplicar, pode acontecer que os efeitos da norma inconstitucional salvaguardados pela decisão de restrição de efeitos convivam lado a lado com efeitos da norma repristinada. Não é que se possa dizer, em sentido próprio, que as duas normas estejam em vigor ao mesmo tempo, mas sim que alguns efeitos da norma inconstitucional são ressalvados pela decisão do Tribunal Constitucional, nela encontrando a legitimidade e o fundamento de validade, sobrevivendo, por isso, à aplicação da norma repristinada. Visto por este ponto de vista, não se pode afirmar que os dois regimes legais convivam no tempo enquanto tal, mas apenas enquanto efeitos da decisão de inconstitucionalidade. 104. Nesse sentido, a decisão de restrição de efeitos tem uma eficácia constitutiva. De facto, quando o Tribunal Constitucional decide afastar o efeito repristinatório de forma total, ressalva o efeito revogatório da norma inconstitucional como efeito putativo do acto legislativo inválido. A revogação, assim sendo, deixa de ter como base normativa a norma inconstitucional para passar a encontrar legitimidade na decisão do Tribunal de restrição de efeitos. Temos assim uma decisão do Tribunal Constitucional que tem força revogatória (ou de convalidação da revogação feita por norma inválida).

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105. Uma outra situação interessante ocorre quando o Tribunal decide restringir a eficácia da declaração de inconstitucionalidade para que esta valha apenas ex nunc, mas não afastando o efeito repristinatório após a publicação do acórdão. Nesse caso, podemos encontrar uma situação em que a norma declarada inconstitucional vê os seus efeitos preservados até à publicação da declaração, sendo substituída pela norma repristinada que passa a vigorar a partir desse momento108. Trata-se de uma situação que apresenta proximidades evidentes com o eventual efeito repristinatório da inconstitucionalidade superveniente – em ambos os casos existe um período de tempo em que os efeitos da norma declarada inconstitucional permanecem intocados, sendo posteriormente substituídos pela norma repristinanda. Esta proximidade poderia ser usada como argumento para sustentar a existência de efeito repristinatório também da inconstitucionalidade superveniente. No entanto, uma tal linha argumentativa não é procedente. Existe uma diferença evidente e substancial entre as duas situações que justifica a discrepância de regimes. Enquanto num caso – o da inconstitucionalidade originária – o efeito revogatório produzido pela norma inconstitucional é inválido e deve ser, em princípio, destruído, no outro o efeito revogatório é perfeitamente válido. O facto de a eficácia da invalidade do efeito revogatório poder ser enfraquecida ou adiada por decisão do Tribunal Constitucional não pode fazer olvidar esta diferença. 106. A decisão de afastamento do efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade é um fenómeno interessante no domínio do Direito Constitucional porque, neste caso, vemos o Tribunal Constitucional a afastar a vigência de uma norma com base em critério que não de estrita constitucionalidade. No entanto, esta situação não redunda na transformação do Tribunal num órgão para-legislativo. Esta possibilidade de afastamento da vigência de uma norma – a repristinanda –, com força obrigatória geral, por motivos que podem não estar relacionados com a sua estrita constitucionalidade, é justificada pela competência atribuída pela Constituição ao Tribunal Constitucional para controlar os efeitos da sua decisão. Assim, o Tribunal não está propriamente a actuar num âmbito estranho às suas atribuições de primeira linha – o controlo da constitucionalidade dos actos normativos – mas sim a controlar as consequências das suas decisões. Para além disso, este controlo só se pode basear em estritos critérios jurídicos e nunca, recordamos, políticos. Existe também a situação em que o Tribunal Constitucional, tendo concluído pela inconstitucionalidade da norma repristinanda, decide afastar o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade. Neste caso temos uma decisão do Tribunal Constitucional de controlo da constitucionalidade, que não origina a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas 108

É um fenómeno que se aproxima do regime austríaco de afastamento das normas inconstitucionais. Cfr. P. OBERNDORFER, A justiça constitucional no quadro das funções estaduais. Relatório do Tribunal Constitucional da Áustria, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, pp. 1022 ss..

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apenas a sua não revivescência – com a consequente manutenção de todos os seus efeitos passados. Estamos, por isso, perto de uma decisão de inconstitucionalidade que tem um valor jurídico equivalente a uma revogação da norma – tal como acontece no sistema jurídico austríaco. 107. Como temos vindo a comprovar, esta manipulação pode também dar origem a situações extremamente complexas e que, paradoxalmente, podem gerar insegurança jurídica. Assim, o Tribunal deve tomar especial atenção quando decide pela manipulação de efeitos, fazer um controlo estrito da proporcionalidade da decisão que vai ser adoptada. h)

O PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL APÓS A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA NORMA

108. Em jeito de conclusão, descobre-se, assim, um processo de averiguação e de decisão por parte do Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização da constitucionalidade sucessiva abstracta. Após a descoberta da inconstitucionalidade da norma, cabe ao Tribunal Constitucional averiguar se existe ou não norma repristinável – se a sua decisão terá, em princípio, efeito repristinatório. Para isso terá que percorrer o caminho descrito: a) Em primeiro lugar, aferir se a norma inconstitucional teve efectivamente efeito revogatório ou se era meramente inovatória; b) Depois, se a norma não encontra obstáculos à sua revivescência – ou seja, se não se encontra caduca ou se não existe uma outra norma no ordenamento da qual se possa retirar a sua revogação (provavelmente tácita por incompatibilidade); c) No momento seguinte, deve o Tribunal Constitucional indagar da validade da norma repristinanda e aferir quais seriam os seus efeitos. A constitucionalidade da norma, originária ou superveniente, em momento anterior ou posterior da revogação, deve ser aferida nesta fase. Os efeitos da aplicação da norma repristinanda devem ser confrontados com a segurança jurídica, a equidade ou interesse público de especial relevo. As eventuais consequências nefastas da repristinação em face destes princípios devem ser posteriormente ponderadas face à hipótese de criação de uma lacuna; d) O Tribunal decide, ou não, manipular o efeito repristinatório.

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Í N D I C E

I. CONSIDERAÇÕES GERAIS II. O EFEITO REPRISTINATÓRIO DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE a. CONSIDERAÇÕES GERAIS b. CASOS ESPECIAIS III. REQUISITOS PARA QUE EXISTA EFEITO REPRISTINATÓRIO a. INCONSTITUCIONALIDADE ORIGINÁRIA b. EXISTÊNCIA DE EFEITO REVOGATÓRIO DA NORMA DECLARADA INCONSTITUCIONAL b.1) Considerações Gerais b.2) A produção efectiva de efeito revogatório c. ADMISSIBILIDADE DA REVIVESCÊNCIA DA NORMA REVOGADA d. ALEGADAS EXCEPÇÕES AO EFEITO REPRISTINATÓRIO IV. DETERMINAÇÃO DA NORMA A REPRISTINAR V. RESTRIÇÃO DE EFEITOS REPRISTINATÓRIOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL a. A REPRISTINAÇÃO COMO EFEITO-TIPO DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE E A SUA LIMITAÇÃO

b. CRITÉRIOS MATERIAIS PARA O AFASTAMENTO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO b.1) Segurança Jurídica b.2) Equidade b.3) Interesse Público de Especial Relevo c. O CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA RESPRISTINANDA d. TIPOS DE LIMITAÇÃO DO EFEITO RESPRISTINATÓRIO d.1) Afastamento Total do Efeito repristinatório d.2) Afastamento Parcial do Efeito repristinatório d.2.1.) Afastamento Parcial em Razão do Tempo d.2.2.) Afastamento Parcial em Razão da Norma d.2.3.) Afastamento Parcial em Razão do Âmbito de Aplicação d.2.4.) Combinação de Tipos de Afastamento Parcial e. DECISÃO INTERPETATIVA DA NORMA REPRISTINANDA f. OS LIMITES DA MANIPULAÇÃO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO 50

g. OS RESULTADOS DA MANIPULAÇÃO DO EFEITO REPRISTINATÓRIO h. O PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL APÓS A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA NORMA BIBLIOGRAFIA

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