O elogio dos pequenos nadas

May 30, 2017 | Autor: Aurora Carapinha | Categoria: Garden History
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O elogio dos pequenos nadas. Por serem sinónimos a palavra horto e a palavra jardim incluem, em si, a ideia de encerramento. Por isso, independentemente da matéria e da forma nos quais o limite se concretiza, a sua definição adquire uma dimensão de acto fundacional no momento da inscrição do horto no espaço. A simples vedação de canas entrelaçadas, a sebe viva, o muro inerte, estático limitam protegem, encerram, individualizam, definem e fundam uma diferença num espaço homogéneo. Criam um antes e um depois, ou melhor: instituem um mundo exterior e um mundo interior. O exterior é sinónimo de frenesim, de negócio, de querelas, de massificação, de indiferenciação. É o espaço do tempo curto, fugaz. O mundo interior oferece-se como um lugar e um tempo para a vivência das coisas simples. A vivência do otium, da quietação e de um tempo longo, ritmado pelo compasso da transitoriedade dos sistemas naturais que constroem qualquer horto. Para lá do limite há um espaço que induz à contemplação, que promove a sociabilidade e que representa a relação, o olhar, que uma comunidade, uma família, um indivíduo têm, enquanto ser natural e social, com e sobre o mundo natural e social. A ligação entre aqueles mundos, que não são antagónicos mas complementares, faz-se não só através de cada um de nós que os experimenta e vivencia mas fisicamente através de uma porta. Um fresta entre o real e o onírico que se rasga na cintura que é pertença de ambos. No horto do recreio do Paço dos Henriques, nas Alcáçovas, a porta é simplesmente um vão em cantaria, semelhante a tantas outras. Não é ela, por isso, que anuncia a existência, para lá do muro, de um mundo de uma outra natureza: um mundo de sonho, de desejo, de narrativa alegórica. Um mundo sem tempo. O que anuncia a existência daquele outro espaço e daquele outro tempo é o corpo edificado, a galilé, que irrompe à face do muro caiado: altura, volumetria e cor prenunciam aquele mundo. Marcando a entrada mas, já no interior do espaço, a galilé recebe-nos e introduz-nos no horto de recreio do Paço dos Henriques.

A história das Cazas Grandes, como é denominado o Paço dos Henriques no manuscrito, de 1674, e que André Lourenço e Silva transcreve no presente estudo, é feita como a história de muitas outras casas. É feita de uma sucessão de intervenções que procuram melhorar, ampliar, dignificar o espaço de habitar, as quais falam tanto do gosto do proprietário e /ou do encomendante quanto da conjuntura política e cultural que enquadra as diferentes campanhas. E, se isto é verdade no que se refere ao edifício do paço, adquire maior relevância no que respeita ao horto. Da leitura daquele manuscrito, assim como da rigorosa análise e da cuidadosa interpretação feitas por André Silva sobre a documentação existente e sobre o espaço em estudo, ressalta que, para além de todas as intervenções levadas a cabo para criar o espaço de representação do seu poderio senhorial, os Henriques, entre 1604 e 1633, adquiriram um conjunto de terrenos e habitações na proximidade das Cazas Grandes que lhe possibilitavam não só ampliar e melhorar o paço (e note-se que em 1674 as obras ainda não estavam acabadas como se pode ler no referido documento) mas também nobilita-lo com um jardim. A descrição de 1674 é extremamente eloquente no que se refere a essa nobilitação.

Não nos fala da área do horto. Ou seja: essa nobilitação não é uma questão de dimensão. Também é evidente que se opta por um modelo arcaico. Em pleno século XVII retoma-se o modelo do Paço da Ribeira, em Lisboa. Onde impera uma separação nítida entre o espaço edificado e o horto. Prefere-se a relação de proximidade em vez de se promover a concepção de um todo, onde espaço interior e o espaço exterior se organizam e se articulam como uma unidade. Também os elementos de composição, mencionados no referido manuscrito, nos remetem para as características do espaço do horto de recreio mudéjar. Onde o desenho é definido pelo percurso da água que rega, que define a dimensão e o alinhamento dos canteiros e o desenho dos percursos (aliás é interessante sublinhar que estes são denominados passadiços o que de imediato remete para o facto deles serem sobreelevados em relação aos canteiros, situação também explicável pela necessidade de rega). Também o elenco vegetal mencionado é, em tudo, semelhante ao que encontramos em muitos dos hortos de recreio de quinhentos. Sabendo, agora, a data de construção deste horto, a sua concepção revela-se-nos anacrónica. Como se pode afirmar então que este horto (um modelo arcaico, comum semelhante a tanto outros) é espaço de representação do poder senhorial dos Henriques, dos condes das Alcáçovas?

Regressemos à galilé. Onde ficámos. E um mundo novo se desvenda, feito de infinitamente pequenos. Cacos de porcelana Kraak, de faiança portuguesa, covilhetes, copos, taças, fundos de pratos, canudos e canutilhos quadrangulares de cor azul, contas de roseta vítreos, conchas, muitas conchas, fragmentos de quartzito róseo, calcite de cor branca, mármore esverdeado, turmalina de cor negra, escórias de ferro e cobre revestem e desmaterializam toda as estruturas edificadas. Pela técnica do embrechado emprestam a suas cores, os seus brilhos, a sua textura e os seus símbolos ao espaço. Sobre o humilde aparelho de alvenaria esta parafernália de pequenos nadas do nosso mundo e de outros mundo, ainda com a presa fresca, desenham arquitecturas, jogos de composição a partir de modelos tratadísticos, contam a sua história, pela imagética e materialidade que transportam, mas contam também outras histórias. Contam sobretudo a história que o narrador quis celebrar É aqui que reside a inovação que contextualiza cultural e politicamente o modelo arcaico que anteriormente referenciámos. Não é a utilização dos pequenos nadas que é novo. Mas sim a forma extensiva e programática como são usados; Preenchem todas as superfícies, criando uma espacialidade mágica, feérica pelas reverberações que produzem e pelo discurso simbólico que constroem. São os pequenos nadas que constroem o espaço onírico e o espaço de representação e de celebração que o Horto do Paço dos Henriques é. Ou melhor foi. As obras que ocorrem no interior das Cazas Grandes e a aquisição de terrenos nas imediações das mesmas, que desde 1604, os Henriques implementam são também fruto da “corte na aldeia” que o domínio filipino determinou. No interior do país, afastados de Lisboa mas suficientemente perto para saber novas, alguns nobres melhoram as condições de habitabilidade do seu património e fundam uma pequena corte e um modo de vida do qual o espaço jardim faz parte integrante. Com esta atitude procurava-se demonstrar o repúdio à conjuntura vigente à época. É neste processo que se filia o horto do paço das Alcáçovas e, como tal participa num universo histórico e cultural mais vasto do aquele em se enquadra geograficamente.

Para além de serem espaço de habitar, de devaneio, de quietação e de representação dos Condes das Alcáçovas o paço e o horto dos Henriques são também espaços representação de um momento preciso da história de Portugal. Ao proclamar-se os feitos heróicos do 7 º Conde das Alcáçovas, D. Henrique Henriques, nas Guerras da Restauração, perpetuando a sua imagem através de um figura equestre, desenhada com pequenos fragmentos de porcelana, faiança, vidro, conchas, pedra e minério celebra-se, ainda, o renascimento de Portugal no teatro do mundo. A instauração do culto a Nossa Senhora da Conceição na Ermida de S. Jerónimo, a partir de 1680, assim como a Sua presença, pelo menos desde 1674, no nicho que funciona como um pólo de composição do horto, sublinham a dimensão simbólica, evocativa de um momento marcante da História de Portugal que este pequeno horto nas Alcáçovas encerra. Mas, também anuncia. Se o Paço dos Henriques nas Alcáçovas já é conhecido por ter sido o palco de momentos significativos da História de Portugal (1457 os matrimónios de D.Isabel com D. João de Castela e D. Beatriz com D. Fernando de Portugal respectivamente pais de D.Isabel, a Católica e D. Manuel I, e em 1479 assinatura da Tratado de Alcáçovas-Toledo) é no horto de recreio que o protagonismo da vila das Alcáçovas se perpetua. Através dos pequenos nadas que revestem e matizam estruturas edificadas escreve-se um singular capítulo da história de Portugal. E, um pequeno horto de recreio que se oferece como espaço de otium, quietação e vivência de um tempo longo, ganha uma dimensão identitária que o transmuta num espaço tão especial e simbólico As chaves para todas essas leituras encontramo-las no estudo cuidado e rigoroso de André Lourenço e Silva que agora se apresenta ao público. Mais que uma monografia, sobre os Embrechados do Horto e da Ermida do Paço das Alcáçovas, André Silva elabora o bilhete de identidade dos pequenos nadas. Estuda-os ao milímetro, literalmente. Dimensão, proveniência, filiação, composição, estado de conservação, medidas de conservação são dissecadas, estudadas e avaliadas com precisão. A partir das características individuais de cada fragmento, e apoiando-se numa escrita clara, concisa e segura, o autor leva-nos ao conjunto, aos seus significados e contexto. Mais que um documento que contribuiu para a obtenção de um grau académico o presente estudo é o garante de futuro de um pequeno, mas singular, horto de recreio que André Silva soube ler e compreender em todas as suas dobras materiais, temporais e históricas. Abandonemos, então, a galilé. E, avancemos para o interior do horto.

Aurora Carapinha Janeiro de 2012

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