O EMPIRISMO E SUA IMAGEM

May 25, 2017 | Autor: Guilherme Bandeira | Categoria: Empiricism
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O empirismo e sua imagem “Um grande filósofo é aquele que cria novos conceitos: esses conceitos ultrapassam as dualidades do pensamento ordinário e, ao mesmo tempo, dão às coisas uma verdade nova, uma distribuição nova, um recorte extraordinário.”(Deleuze, Bergsonismo, trad. Luiz B. L. Orlandi, São Paulo, Ed. 34, 1999, p. 125).

No começo da década de 1970, o professor e historiador da filosofia François Châtelet convidou alguns colegas para ajudá-lo a compor sua Histoire de la philosophie, uma coleção de pequenos ensaios sobre os cânones da filosofia, que abrangeria o período longo desde a Grécia clássica até a contemporaneidade. Gilles Deleuze foi o responsável pelo o capítulo sobre David Hume, como parte do volume dedicado ao século das luzes1. Châtelet obviamente não o escolheu ao acaso. Deleuze havia publicado, duas décadas antes, Empirismo e Subjetividade, seu ensaio sobre a natureza humana segundo Hume, onde apresentou não só uma leitura rigorosa do filósofo escocês - em grande parte trabalhando dentro dos moldes gueroultianos, compondo um verdadeiro retrato conceitual - como também inseriu sua monografia duplamente no debate sempre espinhoso da história da filosofia. Duplamente, pois ao mesmo tempo nos mostra o grande deslocamento feito por Hume na filosofia do século XVIII, que veio substituir o tradicional problema de erro pelo problema do delírio ou ilusão, Deleuze acusa a tradição de sua própria época, isto é, pós-kantiana, de não prestar atenção aos “outros segredos” do empirismo. Como disse décadas mais tarde em O que é a Filosofia?, escrito com Félix Guatarri, “encontraremos Kant muitos desses traços herdados de Hume, mas ao preço de uma profunda mutação num novo platô ou segundo uma outra imagem”2.

1

François Chatelêt (org.), Histoire de la philosophie, t. IV. Les Lumières XVIIIe siècle. Paris: Hachette, “col. Pluriel”, 1972, pp. 65-78. No Brasil, este artigo faz na coleção de escritos de Deleuze intitulada A Ilha Deserta e Outros Textos. Textos e entrevistas (1953-1974). (org.) David Lapoujade, trad. Luis B. L. Orlandi, Ed. Iluminuras, São Paulo, 2006, pp. 211-221.

2

Deleuze & Guatarri, O Que é Filosofia?, p. 66.

Se a filosofia é a arte de criar conceitos, esta criação só é possível se conseguir criar uma nova imagem do pensamento. Para isso, a questão posta e desenvolvida pelos conceitos deve forçar suficientemente a “natureza das coisas” a ponto de ser capaz de desmontar paralelamente as ilusões e dualidades que o pensamento ordinário respaldava. Em quais dualidades o empirismo fora amarrado pela tradição? Haveria ou não nas ideias alguma coisa que não esteja nos sentidos ou no sensível? Haveria ou não ideias inatas, a priori? Assim que “a história da filosofia mais ou menos absorveu, digeriu o empirismo”3. Foi para escapar dessa história da filosofia mal digerida que Deleuze intitulou sua monografia de Empirismo e Subjetividade, pois, para ele, a grande questão do empirismo não é tanto sua crítica ao inatismo, mas sim na complicada e sutil passagem do espírito para sujeito, ou, em suas palavras, como o espírito devém um sujeito. Todo seu esforço foi voltado para mostrar que o problema da filosofia do empirismo não se resumia à uma relação de inversão com o racionalismo. Suas questões eram outras e buscavam estudar “as condições de legitimidade das práticas desse mundo empírico que é, de fato, o nosso”4. A filosofia do empirismo?/que não está preocupada com manutenção ou com a origem de um saber seguro, mas como, no dado, e não na experiência, se dá a constituição do sujeito5. Deleuze nos mostra que, se fizermos história da filosofia como deve ser feito, ou seja, se acompanharmos até o fim o desenvolvimento da questão formulada pelo empirismo6, notaremos que o preço que pagamos ao comprá-lo da tradição kantiana foi alto, pois tenderíamos a não enxergar nesta filosofia qualquer problema relativo a constituição da subjetividade. Reduzi-lo somente à crítica às ideias inatas é de uma simplicidade atroz, pois o problema do sujeito no empirismo é ignorado: o sujeito nos é apresentado e pressuposto como um plano inerte, receptáculo passivo que receberia e 3

Deleuze, Hume, em A Ilha Deserta e Outros Textos, p. 211.

4

Idem.

5

“Essencialmente, o empirismo não coloca o problema de uma origem do espírito, mas o problema de uma constituição do sujeito.” (grifo). Deleuze, Empirismo e Subjetividade, p. 22.

6

“Basta-nos saber que o empirismo é definível, que ele somente se define pela posição de um problema preciso e pela apresentação das condições desse problema.” Idem, p. 129.

processaria os dados que adviriam de seus sentidos. Era mais ou menos dessa forma que não só a filosofia, através da fenomenologia, como também as ciências humanas francesas, principalmente a psicologia, olhavam criticamente para o empirismo7. Outro resultado dessa má história da filosofia, a tradição se acostumou a amarrar o empirismo ao problema do conhecimento, na medida em que sempre fora apresentado como a “teoria segundo a qual o conhecimento não só nasce como também deriva da experiência” 8. Quando, na verdade, nem o conhecimento, mas sim a prática, nem a experiência, mas sim o dado, são importantes para o empirismo. O conhecimento só é importante apenas como um meio para a prática, pois, a teoria, antes de Kant racionalizá-la e transformá-la em um tribunal da razão, ainda era vista como inquérito, cuja origem remete à Bacon, que sempre esteve vinculada ao questionamento da legitimidade de questões familiares da vida ordinária. Além disso, no empirismo, experiência possui dois sentidos e nenhum deles é constitutivo. Experiência pode significar, em um primeiro sentido, “a coleção de percepções distintas” 9 , mas neste caso não é a experiência, mas sim efeitos dos princípios da natureza humana, como o princípio de associação, que permitem ao sujeito inclusive ultrapassar a experiência - a experiência me mostrou que o sol nascerá amanhã, sei que César morreu em março, por exemplo. Ou também, em um segundo sentido, experiência pode significar “as diversas conjunções dos objetos do passado”10, sentido que tampouco diz respeito às minhas simples percepções, mas sim aos mesmo princípios que governam as relações que estabeleço entre os termos, sendo-lhes portanto exteriores. Em ambos os casos, a experiência não constitui nenhum 7

Bento Prado Jr., comentando “belo livro que Deleuze consagrou a David Hume”, diz que “o texto de Deleuze é evidentemente polêmico. Ao estabelecer assim os pólos da história da psicologia, ele briga com a tradição então dominante do pensamento francês, do intelectualismo do fim do século passado até a fenomenologia dos anos 40 e 50, que sempre fizeram do empirismo o outro da boa psicologia.” Bento Prado Jr., Hume, Freud, Skinner (Em torno de um parágrafo de Gilles Deleuze), em Alguns Ensaios: filosofia, literatura, psicanálise, p. 30. Para uma análise precisa da maneira como a fenomenologia lia o empirismo humeano, ver Gérard Lebrun, David Hume no álbum de família de Husserl, em A Filosofia e Sua Históra, pp. 253-273.

8

Deleuze, Empirismo e Subjetividade, p. 129.

9

Idem.

10

Idem.

conhecimento, mas sim é efeito de princípios que constituem precisamente a natureza humana. Foi armado dessa verdadeira reversão da imagem do pensamento que Deleuze pôde anunciar uma das grandes originalidades de Hume, que provém da veemência com que afirma: as relações são exteriores aos seus termos. O empirismo sempre lutara a favor da exterioridade das relações, mas foi Hume quem a desenvolveu de uma forma mais acabada. Se as ideias? não contém nada além do que me é dado pelas impressões sensíveis é porque as relações são exteriores e distintas de seus termos. Se, quando vejo o retrato de João, penso em seu filho, José, o faço pelo princípio dito de associação – semelhança - e seria um esforço inútil buscar na própria ideia de João qualquer relação com José. Se é estabelecida a semelhança entre um e outro é apenas porque as relações, feitas a partir de princípios associativos da natureza humana, permitem tal operação, e não pelos termos em si11. É pela exterioridade das relações em relação aos termos que Deleuze poderá traçar a verdadeira dualidade no empirismo de Hume. Por um lado, seu atomismo que “mostra como as ideias ou impressões sensíveis remetem a mínima punctuais que produzem o espaço e o tempo”12. É o que Deleuze chama de física do espírito, dados da experiência formado por impressões e ideias elementares, um fluxo sensível de percepções. Por outro lado, o associacionismo, ou lógica das relações, “que mostra como se estabelecem relações entre esses termos, sempre exteriores a esses termos e dependendo de outros princípios” 13 . É pelos princípios de associação que podemos passar de uma ideia a outra, inferir e ultrapassar a experiência pelo dado. Foi assim que Hume conseguiu escapar de qualquer problema quanto à gênese do conhecimento, que buscaria, no mundo dito “real”, uma causa exterior para nossas percepções. Também são estranhas à sua filosofia problemas tradicionais relacionados a um juízo de atribuição e seus correlatos, da gênese psicológica a uma dedução transcendental. Para Hume, uma tal investigação das causas é sentida como desmesura 11

“Natureza humana significa que o que é universal ou constante no espírito humano não é jamais tal ou qual ideia como termo, mas somente maneiras de passar de uma idéia particular a outra.” Deleuze, Hume, em A Ilha Deserta e Outros Textos, p. 213.

12

Idem, p. 212.

13

Idem.

do nosso desejo de conhecer. No começo do Tratado da Natureza Humana, Hume já nos alerta que “não há nada tão necessário, para um verdadeiro filósofo, como a moderação do desejo excessivo de procurar causas; ele deve sentir-se satisfeito ao fundamentar uma determinada doutrina em um número suficiente de experimentos, se perceber que um exame mais prolongado o levaria a especulações obscuras e incertas. Nesse caso, sua investigação seria muito mais bem empregada no exame dos efeitos do que no das causas de seu princípio”. O problema de Hume não é o problema das causas, mas o do “funcionamento das relações como efeitos dessas causas e das condições práticas desse funcionamento”14. Por isso soa tão estranha a proposição que descreve o empirismo como a teoria segundo a qual o conhecimento deriva da experiência. Conviria, argumenta Deleuze, utilizarmos a palavra “dado”. Pois, se o dado opera no campo do atomismo como uma coleção de ideias e impressões da experiência, um fluxo sem princípio interno de estruturação e por isso mesmo atomizado, ele também diz respeito ao associacionismo, pois, através de princípios associativos, os dados são estruturados em relações exteriores às próprias ideias. De um lado, os poderes ocultos da Natureza, de outro, os princípios da natureza humana. O acordo dessas duas “instancias”, entre a Natureza e a natureza humana, só será possível pela finalidade que existe na aliança entre nossa coleção de ideias e a associação entre elas, entre o sujeito e o dado, mas realizado ao longo de um devir da subjetividade. O empirismo de Hume nunca esteve tão longe da crítica kantiana. Em Kant, há o a priori, há o transcendental, as relações dependem da própria natureza das coisas que já supõem uma síntese dos fenômenos - como fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que a das relações. Em Hume, tudo se passa na imaginação e, se ultrapassamos o dado, só o fazemos a partir de princípios da natureza humana e não da natureza das coisas15. 14

15

David Hume, Tratado da Natureza Humana, Livro I, Parte I, Seção 4, p. 37.

(...) em Kant as relações dependem da natureza das coisas no sentido de que, como fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é mesma que a das relações. Eis por que o criticismo não é um empirismo. As implicações do problema assim invertido são as seguintes: há o a priori, isto é, deve-se reconhecer uma imaginação produtiva, uma atividade transcendental (...). Em Hume, como em Kant, os princípios do conhecimento não derivam da experiência. Mas, em Hume, nada no pensamento ultrapassa a imaginação, nada é transcendental, pois esses princípios são apenas princípios de nossa natureza, pois eles tornam possível uma experiência sem que ao mesmo tempo tornem necessários objetos para essa própria experiência.” Deleuze, Empirismo e Subjetividade, p. 134.

Pode parecer pouco, mas foi com essa nova imagem do pensamento que David Hume terminou de liquidar as “três ideias terminais da metafísica”: Deus, Eu, e o Mundo. Foi esse o gênio do empirismo, uma criação de conceitos “em estado selvagem, que falam em nome de uma coerência que não é sua, nem a de Deus, nem a do Eu, mas de uma coerência sempre por vir, em desequilíbrio relativamente a ela própria”16, como disse Deleuze em outra ocasião. Se ficamos decepcionados, foi porque compreendemos mal o problema. O que Deleuze encontrou tanto em Hume, como também Bergson e Proust, foi senão isto: “elementos profundos de uma nova imagem do pensamento”17. Há algo no que dizem e o fazem?/dizem de forma extraordinária que pensar não significa não é o que acreditamos que seja. Eis que eles nos propõem uma outra ideia, toda uma nova imagem. Tudo isso para concluirmos que

“a filosofia carece de

empirismo”18.

16

Deleuze, Nietzsche e a imagem do pensamento, em A Ilha Deserta e Outros Textos, p. 182.

17

Idem, p. 180.

18

Idem.

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