O encontro interdisciplinar: os efeitos da alteridade e a ética do cuidado

May 31, 2017 | Autor: Livia Santiago | Categoria: Sandor Ferenczi, Saúde Mental, Filosofia Psicanalise, Interdisciplinaridade, Emmanuel Lévinas
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MOREIRA,L.S. O encontro interdisciplinar: os efeitos da alteridade e a ética do cuidado. In: ¿Interdisciplina en la intervención clínica? Obstáculos y desafios. Estratégias y dispositivos. (Orgs) Mariana Camilo e Mariana Cantare1li ed. Buenos Aires : Ediciones Licenciada Laura Bonaparte, 2015, v.II, p. 219-226.

O encontro interdisciplinar: os efeitos da alteridade e a ética do cuidado

Autora: Lívia Santiago Moreira

Por estar em contato direto com o sofrimento humano que interroga o alcance das teorias, a experiência clínica parece indicar que os antigos paradigmas das ciências humanas precisam ser revistos à luz das investigações sobre os sujeitos em conflito com os imperativos da modernidade tardia. O sujeito sobre o qual se debruça a psicanálise é exatamente aquele que foi foracluído da ciência delirante na sua proposta de neutralidade e universalidade. Tal sujeito sofre os efeitos de um perpétuo estranhamento de si mesmo, é agido por forças que desconhece e está à mercê de um acaso que é irredutível ao controle. Tais categorias de universal e de neutralidade são cúmplices da barbárie inerente ao modus operandi do sistema econômico para o qual as vidas humanas rapidamente podem ser consideradas descartáveis. A angústia frente ao indeterminado e a falta de referentes parecem ser tributárias de uma vivência cada vez mais fragmentada e impossível de ser subjetivada, presença maciça do real traumático dos estímulos para os quais não há refúgio nem espera. Passado, presente e futuro se encontram fundidos num amálgama terrorífico, aonde o trabalho do luto e o trabalho do sonho figuram como

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horizonte distante para aqueles que precisam buscar alternativas para uma anestesia psíquica imediata. Como Freud nos indica em 1921, é impossível separar a psicologia individual da psicologia coletiva, com essa premissa, vemos que tanto o saber quanto a prática devem ser construídos a partir de diferentes perspectivas disciplinares, como a Antropologia, a Sociologia, a Medicina, Filosofia, Literatura. Apesar de a proposta interdisciplinar figurar como modelo ideal tanto na Academia quanto nos serviços de saúde, muitos desafios ainda estão colocados no caminho. A possibilidade de inclusão do “saber fazer” e do discurso do outro de campo distinto implica o reconhecimento do limite dentro do seu próprio modelo e uma abertura ao tensionamento promovido pelo encontro com a alteridade. A interdisciplinaridade na rede de atendimento à saúde mental parece dialogar com as questões da clínica da intersubjetividade, que aposta na interação como possibilidade de novos começos, da criação de vias alternativas a partir da experiência com o outro. Desse modo, gostaríamos de fazer o exercício interdisciplinar de pensar a psicanálise com o conceito de rosto desenvolvido por E. Lévinas em Totalidade e Infinito (1961), acreditando que este diálogo com a filosofia possa contribuir para que o impasse do encontro com a alteridade possa transformar-se em potência.

Diante do rosto do outro

Nas elaborações de E.Lévinas em Totalidade e Infinito (1961) a alteridade aparece como algo que antecede o sujeito e o traumatiza, sendo que esse traumatismo será aquilo que, ao mesmo tempo, irá constituir esse sujeito. O outro precede o sujeito, o constitui, o traumatiza e exige dele uma resposta e um trabalho − poderemos entender esse trabalho como exigência de trabalho psíquico de simbolização, elaboração e transformação daquilo que vem desse outro e excede o sujeito. O modelo de intersubjetividade que encontraremos em Lévinas se refere à dimensão da constituição subjetiva que encontra uma “abertura permanente e inevitável ao outro, em sua alteridade que sempre

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ultrapassará, por princípio, a nossa possibilidade de recepção, acolhimento e compreensão e que, no entanto, como expressão do sofrimento, nos exige alguma resposta” (Coelho e Figueiredo, 2012. p. 32). A noção de rosto concebida por Lévinas é inquietante. Somos confrontados com a problemática de como seria possível conhecer o outro sem que essa modalidade de interação recaísse no discurso sobre o mesmo, o já estabelecido. O filósofo busca nos mostrar como se dá o encontro do mesmo com a alteridade, enquanto o primeiro é tributário de um modo de relação e de raciocínio solipsista, o segundo impede o fechamento mortífero da unidade totalizante. Diante do rosto do outro nos encontramos frente a uma alteridade radical que nos ultrapassa e desde o início impõe uma assimetria. Buscamos reconhecer no rosto do outro algo com o qual poderemos nos identificar, mas essa identificação, que me faz próximo do outro, não deveria tornar-se uma apreensão totalizante daquele que está à frente − o que seria entendido como uma forma de dominação do outro, uma violência. Lévinas nos diz que, diante do rosto do outro, nos veríamos responsáveis por ele, nos direcionaríamos para esse outro que será sempre mais do que se pode apreender dele por sua assimetria e desproporção às tentativas (narcísicas) de compreensão, promovendo uma abertura em quem o observa e convocando uma resposta a ele. O rosto do outro implica um posicionamento ético, uma capacidade de renúncia aos interesses egoísticos – chamados “bens menores” − em função de um “bem maior”, um bem supremo. A dimensão de escolha frente ao rosto se mantém, contudo, ele convocaria o desejo do “bem maior”, que ultrapassaria os interesses primários das necessidades funcionais. Visando tal “bem maior”, teríamos a capacidade de doação ao outro, às necessidades do outro, nos tornaríamos responsáveis pelo outro. O rosto manteria uma relação do desejo com a lei, tanto um quanto outro no face a face se veriam referenciados para além daquele que está à sua frente. O outro de cada um dos sujeitos, o terceiro da relação seria o responsável pela regulação das ações a que se é convocado a responder frente ao rosto. Dessa forma, aqueles que estão face a face podem se reconhecer à medida que os dois, no presente momento do encontro possuem um futuro que é indeterminado e ultrapassa a capacidade de controle e previsão. O outro se

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torna precioso e indispensável na medida em que sua tradução e perspectiva única do mundo não podem existir sem ele. Novos desafios são colocados para os habitantes de um tempo onde a espacialidade foi reconfigurada e as ofertas identificatórias têm a garantia de duração de uma mercadoria “sem agrotóxicos”. Vemos como a lógica da aceleração do tempo e da globalização dos espaços têm consequências severas para a subjetividade. A consideração ética de responder a esse outro no aqui e agora estaria condicionada à capacidade de se vislumbrar que o tempo continuará, existirá um futuro, mesmo que não se faça mais parte dele. Ou seja, seria em função desse futuro virtualmente infinito que deveríamos nos mover e guiar nossas ações. Mesmo que eu queira satisfazer imediatamente meus desejos − satisfação que se refere a uma noção de unidade do eu − esses desejos precisariam de mais duração, de um tempo futuro onde eles pudessem perdurar. Veríamos assim uma relação paradoxal do desejo com o tempo: as experiências no presente convocam à ação, à necessidade de satisfação imediata do desejo, mas o desejo convocaria também a vontade de duração dessa satisfação, um futuro em que a ação (o existir) pudesse perdurar ─ o que limitaria a intensidade ou os modos de ação neste presente. O “bem supremo” estaria relacionado à essa capacidade de reconhecermos nossa limitação e finitude e assim, agir em vista a possibilitar um momento posterior, criar a possibilidade de um futuro para si e para o outro com quem compartilho o meu presente.

A ética do cuidado

Aqui daremos foco à modalidade de traumatismo que foi inaugurada por Sándor Ferenczi, psicanalista da primeira geração que ousou retomar a primeira construção freudiana acerca da realidade do trauma e do aparelho psíquico como efeito de um encontro, sempre traumático, com o outro. De acordo com Ferenczi, o trauma estaria ligado a um desmentido, à recusa de reconhecimento por parte de um adulto daquilo que a criança teria vivido ou experimentado. Haveria uma “confusão de línguas” entre os adultos e as crianças, onde um fala a linguagem da paixão e outro só entende a linguagem

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da ternura. O adulto agride quando impõe sua vontade sobre a criança e abusa de sua vulnerabilidade. Contudo, essa violência se tornaria especialmente traumática no momento em que a criança recorre a um adulto pra compreender e dar sentido ao que ocorreu e não é acolhida, lhe é negado o reconhecimento do que se passou. A consequência dessa operação é o desmentido do próprio sujeito, que não mais confia nos seus sentimentos e nos outros. A intensidade do trauma torna necessário o mecanismo defensivo da cisão, uma parte da personalidade irá se desenvolver rapidamente para cuidar da outra, às custas de um anestesiamento, ela tudo sabe, mas nada sente. O reconhecimento da vivência do outro e da impossibilidade de sua tradução completa é fundamental para que esse sujeito possa ter lugar. A ética do cuidado viria no sentido de oferecer um lugar de hospedagem para esse outro que fala uma língua diferente da minha e me coloca em contato com minha própria estrangeiridade. Entretanto, para que seja possível sentir com o outro, reconhecendo a singularidade de sua experiência, é necessário poder acolher aquelas próprias que são disruptivas, caso contrário, os mecanismos defensivos que visam proteger a integridade egoica irão atuar para evitar seu colapso. A consequência dessa necessidade de defesa é a recusa do outro e da possibilidade de reconhecê-lo. Um círculo se fecha, então, trazendo complicações para as possíveis saídas que não sejam outricidas. Pensamos que será através da lógica do desmentido – figura que é descrita a partir do discurso da perversão que reconhece e sabe sobre a estrutura, mas mesmo assim continua a operar segundo os ditames da produção da violência do mesmo ─ que poderemos pensar quais seriam as estratégias de resistência às formas engessadas e programadas de construção de subjetividades. Percebemos aqui como a ética do cuidado se afina à proposta de uma responsabilidade frente ao rosto do outro, que nos propõe Lévinas.

Do reconhecimento de si para o reconhecimento do outro

A prática clínica demonstra que o que insiste em ser obliterado nos discursos e saberes hegemônicos é o reconhecimento de sua própria limitação, falta ali a ideia de que toda a segurança construída pela ciência falocêntrica

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aponta para uma insuficiência de ordem intransponível, fratura em uma totalidade que é, a todo tempo, reafirmada através da força e da eliminação dos indícios de sua falência ─ seja pelo sintoma ou pela impossibilidade do trabalho interdisciplinar. Talvez a estrutura do abismo da não comunicabilidade entre as disciplinas seja reforçada a partir do momento em que a impotência de um sistema de pensamento torna necessária a criação de uma nova oposição, a emergência de uma outridade que poderá ser diminuída ou excluída. Não é possível reconhecer o “rosto do outro”, como nos indica Lévinas, porque seria necessário reconhecer em si esse outro que nunca poderá ser englobado totalmente, perceber como o estranho é familiar (Unheimlich). Contudo, uma alternativa à violência do isolamento mortífero e ao apagamento do sujeito na indiferenciação parece despontar. Reconhecer a vulnerabilidade do outro é possível através do reconhecimento da própria vulnerabilidade. O desamparo, assim, aparece como solo comum capaz de unir os sujeitos em uma “comunidade de destino”, em oposição à comunidade de origem que se quer soberana, pura e invulnerável (Cf.GONDAR,2012). Pensamos que a partir do momento em que os saberes puderem pisar no mesmo solo instável juntos que a construção de um horizonte construído coletivamente, acima dos interesses egoísticos possa surgir. A resposta ao outro é um cuidado a si, a atenção à prática é um elogio à teoria. Assim, diante do rosto do outro veríamos a nós mesmos resgatados da solidão absoluta que surge frente à constatação que somos finitos e precários, carentes de novos discursos que possam encantar esse mundo que insiste em perder o sentido.

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O observador do mundo: a noção de clivagem em

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Autora: Lívia Santiago Moreira Doutoranda em História e Teoria Literária (UNICAMP-2015). Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2014). Formada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). Professora do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Braz Cubas- SP.

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