O ENFRENTAMENTO À TORTURA E A ATUAÇÃO DA OUVIDORIA DO SISTEMA ESTADUAL DE SEGURANÇA PÚBLICA

May 30, 2017 | Autor: Luanna Tomaz | Categoria: Segurança Pública, Ouvidorias, Tortura
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O ENFRENTAMENTO À TORTURA E A ATUAÇÃO DA OUVIDORIA DO SISTEMA ESTADUAL DE SEGURANÇA PÚBLICA1 Luanna Tomaz de Souza2 Aline Cardim3 Diogo de Souza Monteiro 4 Kecya Matos5 Nathália Rangel6

INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo refletir acerca dos mecanismos existentes de enfrentamento à tortura em especial o protagonismo exercido pela Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública no Estado do Pará. Essa temática é de extrema importância e reverbera em ações institucionais público e privadas podendo evidenciar os limites que devem ser superados para que os casos de tortura sejam processados e punidos no Estado e no país de forma geral. O artigo apresenta o resultado de uma pesquisa bibliográfica e empírica na Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública do Estado do Pará sobre as comunicações de tortura recebidas e a apuração das mesmas. Toma-se como ponto de partida um órgão de controle externo de atividade policial marcado pela participação popular e pelo recebimento de denúncias que nem sempre culminam em ações judiciais. A Constituição Federal, de 1988, inclui a proibição da tortura no rol dos direitos e garantias fundamentais, declarando também ser este um ato inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (art. 5º, III e XLIII, CF/88), uma resposta a uma herança autoritária de convivência e institucionalização da prática no país.

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Artigo publicado no livro: OLIVEIRA, Anna Claudia Lins. Segurança Pública e Justiça: Direitos Humanos na Amazônia. Belém: Cromos Editora, 2015, v. 1, p. 227-256.” 2 Doutora pelo Programa Direito Justiça, Justiça e Cidadania no séc. XXI (Universidade de Coimbra). Professora da Universidade Federal do Pará. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA. Email: [email protected] 3 Advogada. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia. 4 Advogado. Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-PA. Ex-Assessor Jurídico da Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social do Pará. 5 Advogada. Assessora Jurídica da Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social do Pará. Secretária do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Pará. E-mail: [email protected]. 6 Advogada. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia.

Presente em toda a história do Brasil, a tortura foi também utilizada em outros países como um exercício de vingança sobre os corpos daqueles que se insurgiam contra o poder e aqueles que o detinham (COIMBRA, 2001, p. 12). Há, no Brasil, relatos do uso da tortura contra povos africanos, indígenas e a todos que eram considerados “perigosos”, com maior destaque para os períodos ditatoriais, de 1937 a 1945 (o “Estado Novo”) e de 1964 a 1985 (a Ditadura Militar). Com a Ditadura Militar, em especial com o Ato Institucional n º 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, a tortura tornou-se uma política clara e sistemática do Estado inquisitorial de obtenção da “verdade”. O Manual de Interrogatório do Gabinete do Ministro do Exército Brasileiro, de 1971, evidencia esse aspecto: O fator que decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que o interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência para que ele se torne um cooperador submisso [...]. Uma agência de contra-informação [sic] não é um tribunal da justiça. Ela existe para obter informações sobre as possibilidades, métodos e intenções de grupos hostis ou subversivos, a fim de proteger o Estado contra seus ataques. Disso se conclui que o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a justiça criminal processá-los; seu objetivo real é obter o máximo possível de informações. Para conseguir isso será necessário, frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência. É assaz importante que isto seja bem entendido por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador não venha a ser inquietado para observar as regras estritas do Direito (COMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS /ALERS, 1998, p. 285).

Conforme Pinheiro (1991, p. 48), os períodos de transição para uma suposta democracia não passaram de períodos de continuidade, sendo aprofundados e enrijecidos os rituais meticulosos do poder. Segundo o autor, para a população pobre e marginalizada, podemos falar de um ininterrupto regime de exceção paralelo, sobrevivente às formas de regime autoritário ou constitucional. Para enfrentar essa herança autoritária, em 1997, a Lei 9.455/97 definiu e criminalizou a tortura em âmbito interno no país. No ano de 1989, o Brasil já havia ratificado a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985) 7, da Organização dos Estados Americanos (OEA), e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) 8, da Organização das Nações Unidas (ONU), em que são previstas a proibição e a exigência de reparação, nestes casos.

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Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991.

Entretanto, os diversos instrumentos normativos em vigor no Brasil, que visam a proteção do ser humano contra a prática de tortura, não vêm sendo suficientes para evitar a sua continuidade em espaços institucionais, como as polícias, que não conseguiram romper plenamente com seu passado inquisitorial. Diante da complexidade desse fenômeno, a recorrente impunidade aos autores, principalmente quando se trata de agentes do Estado, vem sendo apontada como uma das causas que convergem para a continuidade da tortura no Brasil. O Estado do Pará, embora não possua os maiores índices demográficos do país, é frequentemente apontado como um grave violador de direitos humanos, alcançando o 3º lugar no ranking nacional de denúncias de tortura, conforme apontou o Relatório Final da Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade (MNDH/SEDH, 2004). Segundo ele, das 1.336 denúncias de tortura institucional (praticada por agente do Estado) recebidas por telefone, pelo serviço “SOS Tortura”, 130 foram oriundas do Pará, entre 2001 e 2003. Destes, em apenas 5 casos foram propostas denúncias pelo Ministério Público, e somente 1 processo constava com sentença condenatória (MNDH/SEDH, 2004, p. 67). Embora sejam escassos os dados oficiais sobre as denúncias ou processos em andamento, ou já julgados sobre o crime de tortura, estudos e relatórios de instituições não governamentais, organizações internacionais e pesquisadores autônomos apontam para a confirmação de que a prática de tortura é realizada de forma sistemática no Brasil, e, muitas vezes, aceita socialmente. Em visita realizada ao Brasil, no ano 2000, o Relator Especial da ONU sobre Tortura e outras Formas de Tratamento e Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes, Nigel Rodley, identificou que a tortura é de fato praticada no país de forma “geral e sistemática”. No Estado do Pará, onde o relator realizou visita in loco às delegacias e unidades do sistema prisional foram apresentados cinquenta e dois casos individuais de alegações de tortura ocorridos (NACIONES UNIDAS, 2001, p. 61). O Relatório Sobre Tortura da Pastoral Carcerária (2010) apresentou diversos casos com relatos de tortura ocorridos em vários estados brasileiros, em que, mais uma vez, o Pará teve destaque. Segundo o Relatório (2010, p. 43): A Pastoral Carcerária tem encontrado dificuldades na apuração dos casos principalmente porque as autoridades competentes para este exercício, como os juízes, delegados de polícia e promotores de justiça, demonstram pouca ou nenhuma motivação em apurar, denunciar ou processar os casos de tortura. Com efeito, o corporativismo dos agentes

do Estado tem sido uma grande barreira para a erradicação da tortura no Brasil. A omissão das autoridades do Estado funciona como autorização para a tortura.

Em 2011, o Subcomitê de Prevenção à Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (SPT), órgão das Nações Unidas, realizou visita ao Brasil para fazer vistorias quanto ao tratamento prestado às pessoas privadas de liberdade. O SPT recebeu numerosos e consistentes relatos de tortura e maus-tratos ocorridos no momento da detenção policial, nas instituições penitenciárias e nas instituições para crianças e adolescentes, através de atos descritos como violência gratuita, como forma de punição, para extrair confissões e também como meio de extorsão (NAÇÕES UNIDAS, 2012, p. 16). Luciano Mariz Maia (2006, p. 12) realizou um estudo detalhado sobre o papel do Poder Judiciário para atuar no controle da tortura praticada por agentes do Estado. O autor considera que a tortura é um crime de oportunidade, racional, funcional e eficaz, decorrente de um modelo inquisitorial de investigação. Para ele, a continuidade da tortura no Brasil ocorre porque este é um fenômeno invisível, indizível, insindicável e impunível. Invisível porque ocorre em locais de pouca visibilidade social (penitenciárias, delegacias, etc.); indizível porque são poucas as vítimas ou testemunhas que têm coragem de realizar denúncias e também porque os agentes da tortura jamais irão reconhecer que os atos cometidos contra a vítima configura-se tortura; insindicável porque, mesmo quando são feitas as denúncias, os casos não são devidamente investigados; e impuníveis porque poucos são os casos que chegam ao Judiciário e, mesmo quando chegam, isto não se traduz na devida responsabilização dos acusados. Maria Gorete Marques de Jesus (2010, p. 158) realizou a análise de 57 processos relativos ao crime de tortura na cidade de São Paulo, entre 2000 e 2004, e identificou que a lei brasileira apresenta uma tipificação comum e aberta para a tortura. A Lei permite que as decisões estejam muito atreladas à subjetividade de cada um dos que atuam no sistema policial e judicial. A autora concluiu que: A sentença judicial representa mais do que decisões baseadas na frieza da lei, ela revela um conjunto de fatores que ultrapassa os aspectos técnicos e procedimentais da justiça, resultando muitas vezes na afirmação de diferenças e desigualdades, na manutenção de assimetrias, na manutenção das distâncias sociais e das hierarquias.

Observa-se que os relatos oriundos de momentos e realidades diferentes convergem à mesma conclusão: a tortura continua sendo aplicada de forma geral e

sistemática no Brasil, sendo que as medidas adotadas até momento não se mostraram eficazes para a erradicação desta prática. Desta forma, compreender a realidade do enfrentamento à tortura no Estado do Pará, a partir das atuações da Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social e do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Estado do Pará, pode contribuir para a transformação deste cenário, conforme será apresentado neste artigo.

1. A OUVIDORIA DO SISTEMA ESTADUAL DE SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL

Um dos mais importantes instrumentos, no Estado, de enfrentamento à violência policial e às práticas de tortura é a Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social. No Brasil, a figura do Ouvidor surgiu no período colonial e tinha por função aplicar a Lei da Metrópole e reportar ao rei de Portugal tudo que acontecia na colônia. Os primeiros ouvidores tinham a missão de representar a administração da justiça real portuguesa, atuando em nome do rei ouvindo reclamações e reivindicações da

população. A figura atual da Ouvidoria, todavia, não se confunde com esta do Brasil Colônia, mas com o sistema de ouvidorias criado na Suécia em 1809, quando se registra a implantação constitucional do ombudsman, que verificaria a observância das leis pelos tribunais (LÍDICE e LIVIANU, 2015).

As ouvidorias, em sua compreensão atual, estabelecem-se como um canal de manifestação do cidadão reafirmando-se como um mecanismo de exercício da cidadania e apoio estratégico às organizações para melhoria de seus serviços. A criação das Ouvidorias Públicas no Brasil, nessa compreensão, só foi possível após o início da abertura democrática. Em 1985 é criada a primeira ouvidoria privada e, em 1986, primeira Ouvidoria Pública do Brasil, na cidade de Curitiba - Paraná, pelo Decreto-Lei n° 215/869. A partir deste momento, o processo de criação de Ouvidorias começou a ser difundido em todo país. Esse processo será ampliado com o advento da Constituição que estabelece expressamente em diversos dispositivos a importância dos

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Maria Lucia Zulzke se tornou ouvidora da empresa Rhodia.

mecanismos de controle e participação do/a cidadão/a na administração pública 10, inclusive em seu artigo primeiro ao estatuir que todo poder emana do povo (LEMOS; MORAES; FERLA; CRUZ, 2010, p. 12-15). A Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública do Pará foi a segunda instituída no país e a primeira criada por lei, através da Lei Estadual n° 5.944, de 02 de fevereiro de 199611. A partir da Lei nº 7.584, de 28 de dezembro de 2011, passou a ser chamada de Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Pará (Ouvidoria do SIEDS). Desde que foi criada, a Ouvidoria sofreu problemas para sua efetivação, sendo que somente em 11 de junho de 1997 a Pastora Luterana Rosa Marga Rothe foi nomeada como a primeira Ouvidora12. Foram também ouvidores: Lélio Railson Dias de Alcântara (2005-2007), Cibele Kuss (2007-2010) e Eliana Fonseca (2011-2015), sendo que apenas as duas últimas foram indicadas pela sociedade civil, mas todos foram eleitos pelo Conselho Estadual de Segurança Pública (CONSEP). Embora a Lei Estadual n° 5.944/96 tenha criado a Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública, sua composição e competência só foram definidas, quando da criação do CONSEP. Este órgão também foi instituído pela mesma lei, motivo pelo qual, na prática, a Ouvidoria foi instalada materialmente somente depois da instalação do CONSEP e da aprovação de seu Regimento Interno, homologado pelos Decretos nº 1.555/96 e nº 0294/03. Assim, a Ouvidoria do SIEDS passa a ser um órgão híbrido, pertencente a esse mesmo “Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social”. Nos termos da Lei nº 7.584, de 28 de dezembro de 2011, art. 12, ela é vinculada administrativamente ao Secretário de Estado de Segurança Pública e Defesa Social e, tecnicamente, ao Conselho Estadual de Segurança Pública – CONSEP, tendo por finalidade promover a valorização dos direitos e dos interesses individuais e coletivos contra atos ilícitos praticados pelos agentes públicos integrantes do Sistema. Assim, é um órgão político-institucionalmente

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Art. 37, §3º: § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. 11 Disponível em: Acesso em: 06 maio 2015. 12 Disponível em: Acesso em: 06 maio 2015.

de controle externo, mas, administrativamente (inclusive em termos de receita e orçamento), ligado à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social. Em realidade, as dificuldades apresentadas pela Ouvidoria se devem as limitações presentes no próprio campo da Segurança Pública, que, segundo Avritezr (2008), foi o último âmbito das políticas públicas a se abrir para instituições participativas, para a incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas. Isso se deve ao fato de ser uma área que lidou historicamente com o sigilo e a concentração de suas ações, além de ser muitas vezes instrumento de controle dos movimentos sociais. Essa ideologia levou a um isolamento das instituições policiais, que se mantiveram atomizadas em seu trabalho e só muito recentemente têm vivenciado e praticado essa relação de colaboração com a população (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2013).

1.1 RECEBIMENTO DE DENÚNCIAS DE TORTURA POR PARTE DA OUVIDORIA

A Ouvidoria possui um importante papel de controle externo do Sistema de Segurança Pública através do recebimento e monitoramento direto de denúncias de violações de direitos humanos praticadas por profissionais de segurança pública e da articulação com as entidades da sociedade civil e com os órgãos do governo 13. A Ouvidoria encaminha as comunicações recebidas aos órgãos responsáveis pela apuração, acompanha as providências adotadas, cobra soluções e informa as pessoas interessadas. No entanto, ela não possui poderes para investigar e punir. O recebimento das comunicações (denúncias) se dá de forma direta ou indireta, as de fonte direta, em geral, são feitas pessoalmente pelos denunciantes, por telefone, e-mail ou carta, podendo ser a própria vítima, familiares dela ou testemunhas. As denúncias indiretas são recebidas através de documentos ou informes de órgãos governamentais e não governamentais (Tribunal de Justiça do Estado, OAB/PA, Ministério Público, ONGs, movimentos sociais e outros) ou ainda quando a própria Ouvidoria age “de ofício”, abrindo protocolos com base em informações obtidas através de matérias jornalísticas ou sites da internet.

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Os órgãos que compõem o Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Pará são: Polícia Civil (PC), Polícia Militar (PM), Corpo de Bombeiros Militar (CBM), Centro de Perícias Científicas Renato Chaves (CPC), Departamento de Trânsito (DETRAN) e Superintendência do Sistema Penitenciário (SUSIPE),

A partir da informações extraídas dos Relatórios de Atividades da Ouvidoria do SIEDS, foi possível obter o número de comunicações recebidas no órgão que gerou a abertura de protocolos sob a natureza Tortura, entre os anos de 2010 e 2013 (Figura 1). Entretanto, como a Ouvidoria, não é responsável pela investigação dos casos, não se pode afirmar a real ocorrência do crime de tortura em todos os casos comunicados sob esta natureza, uma vez que ainda não foram concluídas as tramitações judiciais dos referidos casos. Figura 1 - Número de comunicações de tortura recebidas na Ouvidoria do SIEDS de 2010 a 2013

Fonte: Relatórios anuais e semestrais da Ouvidoria do SIEDS

Observa-se que, ao longo de quatro anos, somente a Ouvidoria do SIEDS recebeu 73 (setenta e três) comunicações de casos com indícios de tortura. Embora não se possa afirmar a procedência deste crime em todos os casos relatados, isso reflete uma realidade de ações abusivas e excessivas por parte de agentes de segurança pública de forma “sistemática”, como afirmou o Relator da ONU, Sr. Nigel Rodley. O número de denúncias deste crime pode ser ainda maior, considerando que as vítimas ou familiares podem dirigir-se diretamente à Delegacia de Polícia, ao Ministério Público ou outros órgãos de direitos humanos, sem que estas comunicações cheguem à Ouvidoria do SIEDS. As comunicações recebidas na Ouvidoria, especialmente aquelas em que há indicativos de cometimentos de tortura, são encaminhadas às Corregedorias dos órgãos do SIEDS, ao Ministério Público, além de outras medidas de cunho emergencial, a depender de cada caso. A Ouvidoria passa, então, a monitorar e a cobrar dos órgãos

responsáveis pela investigação a sua tramitação de forma célere, tanto na esfera administrativa, quanto na esfera judicial. Mesmo com o acompanhamento dos casos, realizado pela Ouvidoria do SIEDS, as tramitações dos processos ainda ocorrem de maneira muito vagarosa, especialmente na esfera judicial, quando chegam até esta fase, transcorrendo anos até a sua conclusão.

2. O COMITÊ ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA DO PARÁ Um dos principais objetivos que as Nações Unidas propuseram-se a perseguir, desde a sua fundação, foi de erradicar a prática da tortura. A partir de tal finalidade, a Convenção contra a Tortura e outras penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) criou, em seu art. 17, o Comitê Contra a Tortura, cujos objetivos são, precisamente, os de garantir a observância e a aplicação do disposto na Convenção pelos Estados membros, seus destinatários. O art. 17, I, da Convenção afirma que: Constituir-se-á um Comitê contra a Tortura (doravante denominado o "Comitê"), que desempenhará as funções descritas adiante. O Comitê será composto por dez peritos de elevada reputação moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos, os quais exercerão suas funções a título pessoal. Os peritos serão eleitos pelos Estados-partes, levando em conta uma distribuição geográfica equitativa e a utilidade da participação de algumas pessoas com experiência jurídica.

O Comitê Contra a Tortura tem como competência apreciar as queixas individuais ou interestaduais, ou seja, deve analisar queixas apresentadas por Estados Partes ou particulares contra um Estado que tenha reconhecido a competência do Comitê para tal efeito. Logo, conforme apresentado no seu art. 20, o Comitê deve instaurar inquérito em caso de suspeita bem fundamentada da prática sistemática da tortura no território de um Estado Parte. O Brasil assinou esta Convenção, em 1989 e, de acordo com o documento internacional, deveria entregar no ano seguinte, ou seja, em 1990, um relatório sobre a tortura no país. Porém, somente dez anos depois (2000) apresentou tal relatório, sem qualquer discussão e sem o conhecimento das entidades de direitos humanos do país. Em 2001, o Brasil foi, pela primeira vez em sua história, chamado a comparecer diante do Comitê Contra a Tortura da ONU, sediado em Genebra e, durante o encontro, uma série de temas foram tratados, dentre eles: as limitações da Lei 9.140/95 (que reconhece como

mortas pessoas desaparecidas por participação em atividades políticas no período de 1961 a 1979); casos de tortura em dependências policiais federais e estaduais, em presídios, assim como torturas que vêm ocorrendo hoje em quartéis das Forças Armadas; e várias questões relacionadas ao funcionamento de diferentes dependências policiais e prisionais, cujo cotidiano fere as leis vigentes em nosso país. Através do Decreto Presidencial, de 26 de junho de 2006, foi, finalmente, criado no Brasil o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o qual é formado por especialistas, ministérios públicos, órgãos do governo federal e organizações nacionais de Direitos Humanos que atuam no combate a esse grave delito. Uma das competências indicadas ao Comitê Nacional é a de apoiar a criação de comitês ou comissões assemelhadas na esfera estadual para monitoramento e avaliação das ações locais. No Estado do Pará, a criação do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura foi de iniciativa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB/PA) e da Sociedade Paraense de Defesa aos Direitos Humanos (SDDH) junto ao CONSEP, sendo aprovado em novembro de 2010, por meio da Resolução nº 159/2010CONSEP, cuja responsabilidade é planejar, coordenar, acompanhar e avaliar as questões relativas à prevenção e ao combate à tortura. Com a Resolução nº 159/2010, o CONSEP aprovou a Adesão do Sistema de Segurança Pública do Pará à Campanha Permanente de Prevenção e o Combate à Tortura no Brasil, tendo como matriz o Plano de Ações Integradas para a Prevenção e o Combate à Tortura do Brasil – PAICT, coordenado a nível federal pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. O principal foco do Comitê no Estado do Pará é a elaboração de propostas que visem a capacitação dos agentes para o recebimento dos casos, bem como as orientações necessárias para o direcionamento das demandas. É atribuído, também, ao Comitê Estadual, a realização de campanhas informativas sobre a prevenção e o combate à tortura, de forma ampla e intensa em todo o Estado, e ainda efetivar visitas de monitoramento e fiscalização a locais de privação de liberdade, elaborando relatórios e recomendações aos órgãos responsáveis pela tomada de medidas. O Comitê Estadual é composto pelos seguintes órgãos e instituições: Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará; Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social; Polícia Civil; Polícia Militar; Corpo de Bombeiros Militar; Superintendência do Sistema Penitenciário; Centro de Perícias Científicas “Renato Chaves”; Departamento de Trânsito; Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos; Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará;

Assembleia Legislativa do Estado; Universidade Federal do Pará; Ouvidoria do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social. Desde o início das atividades do Comitê Estadual, em 2011, este não possui sede ou funcionários/as próprios/as, funcionando na Ouvidoria do SIEDS o que não lhe confere grande autonomia. Em verdade, importante seria se ambos os órgãos possuíssem condições de funcionamento complementando suas ações visto que órgãos são primordiais no combate à tortura, enquanto a Ouvidoria atua no controle externo do Sistema Estadual de Segurança Pública, priorizando o combate às violações perpetradas pelos agentes de segurança, entre elas a tortura, o Comitê Estadual avalia, acompanha e subsidia a execução do Plano de Ações Integradas para a Prevenção e o Combate à Tortura do Brasil no Estado do Pará, além de acompanhar a atuação dos mecanismos preventivos da tortura no Estado, avaliando seu desempenho e colaborando para o aprimoramento de suas funções.

2.1 A PROPOSTA DE CRIAÇÃO DO MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

Com a promulgação, pelo Brasil, do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura da ONU, em 2007 (Decreto nº 6.085), o país comprometeu-se a criar, em âmbito interno, mecanismos encarregados de prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, tornando a matéria, além de extremamente relevante, um compromisso internacional de primeira grandeza. O Protocolo Facultativo faz referência também à criação de mecanismos estabelecidos através de unidades descentralizadas, ou seja, os mecanismos preventivos estaduais, visando dar efetividade e coordenação às ações de prevenção e combate à tortura em todo o país, tornando-se essencial no caso do Brasil devido sua complexidade e dimensão territorial. A partir da abertura deste debate, os Estados da federação iniciaram o processo de construção de mecanismos de prevenção à tortura, com fundamento no Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura. Os Estados de Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco e Rio de Janeiro são exemplos de locais onde já foram promulgadas leis instituindo os Mecanismos Preventivos Estaduais, outros estados estão em fase de elaboração legislativa.

Com a aprovação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por meio da Lei 12.847/2013, os debates acerca da responsabilidade dos Estados da federação nas ações de prevenção à tortura passaram a ser intensificados. Assim, a aprovação, pelo Estado do Pará, do seu próprio órgão de prevenção e combate à tortura, nos moldes do referido Protocolo internacional, é fundamental para que sejam aprofundadas as ações de enfrentamento à tortura no Estado, por meio de um mecanismo provido de estrutura e condições para atuar na prevenção à tortura. Em dezembro de 2013, o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Pará encaminhou ao CONSEP a proposta de criação do Mecanismo Estadual, por meio de um Anteprojeto de Lei Estadual. De acordo com a proposta apresentada, o Mecanismo Estadual será um órgão composto por uma equipe de 6 (seis) membros, sendo pessoas de áreas profissionais diversas que atuem e tenham experiência na defesa, garantia e promoção dos direitos humanos, preferencialmente no tema de prevenção e combate à tortura. Os membros do Mecanismo Estadual teriam mandato fixo, com independência na sua atuação sendo garantida a inviolabilidade dos posicionamentos adotados no exercício de suas funções. Estariam garantidos, também, os recursos orçamentários, financeiros, materiais e humanos para o exercício de seus mandatos, bem como o livre acesso a todos os lugares de privação de liberdade no Estado, independentemente de aviso prévio, além de outras garantias. De acordo com o Anteprojeto de Lei apresentado ao CONSEP, será competência do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura: realizar visitas periódicas a pessoas privadas de liberdade; requisitar das autoridades competentes a instauração de procedimento criminal e administrativo; construir e manter banco de dados sobre alegações de práticas de tortura, denúncias criminais, sentenças judiciais e acórdãos condenatórios ou absolutórios relacionados à prática de tortura no Estado; construir e manter cadastro sobre sistema prisional, sistema socioeducativo, rede de manicômios e rede de abrigos do Estado; articulação com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; elaboração de relatórios sistematizados visando à prevenção da tortura no Estado do Pará, dentre outras competências. A criação do Mecanismo Estadual revela-se como um passo qualitativo essencial para o enfrentamento à tortura no Estado do Pará, sem olvidar a importante atuação da Ouvidoria do SIEDS e do Comitê Estadual, contudo, até o presente momento o projeto não foi apresentado a Assembleia Legislativa.

3. OS CASOS DE TORTURA REGISTRADOS

Foi realizada uma pesquisa específica na Ouvidoria do SIEDS acerca das comunicações recebidas no ano de 2011. Neste ano, o órgão recebeu 676 comunicações, as quais geraram 655 protocolos. Destaca-se que, deste número, 107 (16,34%) foram abertos através de fonte direta, ou seja, comunicações pessoais e 548 (83,66%) de fonte indireta, como mídia escrita e televisada, portarias publicadas e extraídas do Diário Oficial do Estado (DOE)14 e através de vias institucionais. Dos 655 protocolos abertos na Ouvidoria do SIEDS no ano de 2011, 19 foram relativos à prática de tortura. Quanto ao perfil das vítimas registradas nos protocolos abertos, este não é simples de ser identificado, em razão de que, conforme observado, muitos casos chegaram através de jornais, Diário Oficial do Estado e outros documentos em que as informações sobre as vítimas, na maioria das vezes, não são contempladas. Entre todos os protocolos abertos em 2011, foi possível a identificação com maior precisão, apenas do gênero das vítimas, sendo que em 407 (78,88%) dos casos são homens e 109 (21,12%) são mulheres; quanto à raça, em 639 (97,54%) casos, esta não foi informada. Segundo o Relatório Final da Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade (MNDH/SEDH, 2004), as vítimas de tortura são, em maioria, pessoas pobres, jovens, negras, em situação de privação de liberdade ou suspeitas de cometimento de crime. Para Pinheiro (1998, p. 7): A polícia e outras instituições do sistema criminal tendem a atuar como guardas-fronteira (a comparação é de Aryeh Neir), protegendo as elites dos pobres, e a violência policial e tortura continuam asseguradas pela impunidade porque justamente dirigida contra as “classes perigosas” e raramente afetando a vida das classes afluentes. Não é outro o quadro que apresentam as novas democracias latino-americanas, todas marcadas pelo arbítrio policial.

As maiores incidências da prática de tortura ocorrem nos locais de privação de liberdade, como delegacias, penitenciárias, centros de recuperação, hospitais de custódia, dentre outros. Isto é facilitado pela situação de dominação já instaurada, e que resulta na dificuldade de coleta de provas contra o perpetrador, pois, muitas vezes, os agentes da tortura são as únicas testemunhas do fato. 14

Não é mais realizada este tipo de comunicação desde 2012.

Quanto aos agentes de segurança pública, indicados como envolvidos nos protocolos abertos pela Ouvidoria do SIEDS, no ano de 2011, observa-se a seguinte distribuição: Polícia Civil (340), Polícia Militar (247), SUSIPE (102), CPC Renato Chaves (02), DETRAN (03) e Corpo dos Bombeiros (01). Vale ressaltar que o número de agentes comunicados é superior ao número de protocolos abertos, em razão de que, em um único protocolo, poderá constar o envolvimento de mais de um agente ou de agentes de instituições diferentes. Em relação às comunicações de tortura recebidas em 2011, dos 19 casos, 7 foram supostamente praticados por policiais civis, 4 por policiais militares, 4 por agentes da SUSIPE e 4 por policiais civis e militares em ação conjunta. Dos casos supostamente praticados por policiais militares, segundo informações repassadas pela Corregedoria da Polícia Militar, foram gerados 4 procedimentos administrativos (3 Sindicâncias e 1 Inquérito Policial Militar) sendo que em nenhuma das denúncias investigadas foi detectada a prática de tortura. A Corregedoria da Polícia Civil informa que dos 19 casos, foram gerados 2 Inquéritos e 4 Procedimentos Administrativos, sem informação sobre a conclusão dos procedimentos. É importante registrar a grande dificuldade de obtenção de dados quanto à prática de tortura no Estado. Nos relatórios institucionais das Corregedorias, de 2011 a 2014, sequer foram mencionados casos de tortura. Além disso, há uma grande dificuldade de se obter informações quanto à apuração desses casos e à produção de provas no âmbito judicial. O Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941) estabelece, em seu Título VII, as provas em espécie a serem observadas em matéria de instrução do processo penal. Nos termos do Código de Processo Penal, art.158, todo crime que deixa vestígios exige exame de corpo de delito realizado através de perícia. Alberto Filho (2011) define perícia como a diligência realizada como meio de prova, com a finalidade de apurar tecnicamente um fato, objetivando a instrução de um procedimento. Depreende-se disso que a perícia é um meio de prova baseada em conhecimentos técnicos científicos para determinação de fatos contidos no processo penal. Parise e Arteiro (2010) trazem um ensinamento interessante sobre esse tipo de prova. Segundo eles, etimologicamente, o termo perícia significa habilidade, saber, característica que, com o decorrer do tempo, passou a diferenciar a ação ou investigação praticada por alguém usando seu saber altamente especializado.

Vale ressaltar que é atribuída grande importância a esse meio de prova, tanto que o art. 158 do Código de Processo Penal (CPP) determina que, quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo delito, que é uma forma de perícia, sendo que nem mesmo a confissão do acusado pode suprimir a sua falta. 15 Dos 19 casos denunciados à Ouvidoria do SIEDS em apenas 10 foram encontrados laudos periciais no CPC Renato Chaves e nenhum constatou a prática de tortura. Em 4 (quatro), a resposta ao quesito “Há vestígios de tortura” foi prejudicado. Em um destes os casos16, o periciando informa que foi colocado em um formigueiro na mata por policiais militares sendo constatados: Esquimoses de coloração vermelhas localizadas nas regiões escapulares direito e esquerda. Papulas e hiperemia nas regiões abdominal e crural direito sugestivas de picadas de insetos. Pequena ferida contusa, aberta localizada na região parietal esquerda.

Em que pese toda a descrição, o laudo pericial não atesta o cometimento de tortura. Isso demonstra a dificuldade da perícia médico-legal em aferir esta prática mesmo diante de todo um arcabouço legal, tais como o Protocolo de Istambul (1999) ou Manual Para a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis; The Torture Reporting Handbook (2000); Orientações para a produção da prova em casos de tortura e Protocolo Brasileiro – Perícia Forense no Crime de Tortura (2005). Ao longo do tempo, em realidade, os Centros de Perícia Científica foram órgãos atrelados às polícias civis, pactuando da mesma lógica do sistema de segurança pública. Sua autonomia foi, inclusive, uma das Recomendações do Relator Especial Contra a Tortura (2001). No Pará, em 2000, foi instituída a Autarquia Estadual Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, sendo a primeira do Brasil com total autonomia para coordenar, disciplinar e executar a atividade pericial civil e criminal no Estado. A autonomia é recente e o CPC ainda integra o Sistema de Segurança Pública, o que ainda lhe confere pressões corporativas. Além disso, estes documentos destacam a necessidade de uma perícia com estrutura necessária para suas investigações, capacitação de seus membros e procedimentos, como a ausência de agentes de segurança pública durante a coleta de provas.

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A exceção a essa regra é prevista no art.167 do CPP: Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá supri-lhe a falta. 16 Laudo A, sendo preservado o sigilo do caso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A destituição do governo autoritário não garantiu plenamente a democracia no país. De acordo com Pinheiro (1991, p. 45), as “instituições de violência” – como a tortura, o racismo, os aparelhos repressivos – não são transformadas pelas transições, mesmo depois de firmadas constituições democráticas. Estas instituições continuam a exercer papel relevante para a reprodução da dominação hierárquica em sociedades extremamente desiguais, como é o caso do Brasil. Apesar da inegável existência da prática de tortura, de forma sistemática, nas estruturas do Estado brasileiro, há em curso um processo de “invisibilização” da vítima deste crime, o que é constatado pela dificuldade na produção de provas, pela atuação ineficiente dos órgãos administrativos e judiciais na apuração dos fatos e punição dos agentes, e até mesmo pelo tratamento do tema como algo meramente histórico, remetido aos períodos ditatoriais. A ratificação pelo Estado brasileiro dos principais tratados internacionais sobre direitos humanos, demonstra que há um esforço para a instauração de uma real democracia, sendo este um novo momento para o direito brasileiro. Para Cançado Trindade (1997, p. 20), o direito internacional dos direitos humanos é essencialmente de um direito de proteção, marcado por uma lógica própria e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos e não dos Estados. Entretanto, a afirmação ou a ampliação de direitos, no campo normativo, não pode ser vista como algo suficiente para que se acabem as desigualdades reais existentes. Segundo Comparato (1989, p. 50-51): [...] a ampliação das declarações de direitos, mais o esforço e a criação de novas garantias da liberdade individual, não lograrão expandir o efetivo respeito aos direitos humanos além do círculo populacional onde ele já existe, desde há muito, e que é o meio de classes possuidoras e das pessoas de raça branca. A desigualdade econômica e a desarticulação social atingiram tal nível, neste país, que a própria comunicação jurídica se torna impossível entre os dois Brasil: o que vive acima e o que vegeta abaixo da linha da pobreza.

A realidade do Pará é preocupante. São poucos os dados disponíveis, há insipiente formação dos agentes de segurança sobre o tema, faltam instrumentos importantes, como o mecanismo estadual de enfrentamento à tortura, e aqueles existentes funcionam com grandes dificuldades, como o Comitê Estadual de Enfrentamento à Tortura e a Ouvidoria

do SIEDS. Esta última foi um passo fundamental para a cultura da transparência no país que mais recentemente teve como expressão a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, todavia, não conseguiu impactar o âmbito da segurança pública, historicamente arredio a participação social e fechado em si mesmo. É preciso romper com esta realidade para que possamos, efetivamente, dizer que a prática da tortura não é mais tolerada em nosso Estado. Para tanto, faz-se necessário ampliar o funcionamento dos mecanismos de controle social da atividade estatal, fortalecer as estruturas disponíveis de enfretamento a tortura, além de se garantir maior transparência no acesso as informações.

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