O Ensino da Técnica e seu emprego na pratica educativa: sobre a Autoevanescência e o Talento

June 7, 2017 | Autor: Eduardo Kawamura | Categoria: Teacher Education, Arts Education
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Fronteiras

O Ensino da Técnica e seu emprego na prática educativa: sobre a A u t o e v a n e s c ê n c i a e o Ta l e n t o 1 Kawamura, Eduardo Alessandro (UNICAMP/PUC Campinas) 2 Resumo: Há uma distância que nos separa. Uma distância muitas vezes intimidadora que tende a causar desencontros, incompreensões, resistências. Quando tratamos das práticas educativas, qualquer uma delas, o professor deve ser aquele que dá o primeiro passo, aquele que busca o encontro, que provoca o acolhimento, que traduz sua experiência intelectual, que ampara e subverte a leitura de seus aprendizes. O intento deste artigo, de caráter fenomenológico, é o discutir o ensino da técnica e seu emprego na prática educativa, buscando desvelar algumas de nossas representações sobre o outro, nossas expectativas e formas de agir enquanto professores. Palavras-chave: Pedagogia da Arte. Técnica. Educação estética. Abstract: There is a distance between us. A frequently daunting distance that tends to cause disagreements, misunderstandings, resistances. When we treat educational practices, any of them, the teacher should be the one who takes the first step, aim the convergence, causes the host, reflects their intellectual experience and subverts the reading of his students. The intent of this article, with phenomenological character, is to discuss teaching techniques and their use in educational practice, attempting to uncover some of our representations about each other and about our acting way while professors. Keywords: Pedagogy of the Art. Technique. Aesthetic Education.

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1 Artigo recebido em 31/01/2015 e aceito em 07/06/2015. 2 Pedagogo graduado pela Universidade de Campinas e Mestre em Psicologia pela PUC-Campinas, exerce também a função de pesquisador colaborador nestas duas instituições. Atualmente desenvolve projetos em parceria com escolas públicas, relacionados aos seguintes temas: Psicologia do trabalho, Saúde Mental Relacionada ao Trabalho, Formação Docente, Violência Escolar, Metodologias de Ensino, Alfabetização e Educação pela Arte.

Introdução Tendo como por linguagem Só este abanar ao céu, Vai-se o verso ainda miragem Do recanto onde nasceu... Stéphane Mallarmé, “Leque de Mlle Mallarmé” Quando desembarcou em Paris no final de setembro de 1831, Frédéric Chopin, que não havia completado vinte e um anos de idade, trazia em sua bagagem obras monumentais: dois de seus concertos para piano (Opus 11 e 21), algumas mazurcas e noturnos (obras sem número opus), além de boa parte de seus estudos (Opus 10 e 25). Durante sua infância e adolescência, os jornais poloneses não pouparam elogios ao jovem intérprete e compositor, comparando-o a Mozart e Beethoven - que em algum momento de suas vidas também receberam precocemente o status de “prodígios” ou “gênios”. Nada muito diferente do que aconteceu com alguns de nossos mais notáveis cientistas e artistas. Orson Welles, por exemplo, produziu “Cidadão Keane” (1941) aos vinte e cinco anos de idade; o primeiro manuscrito de “Frankenstein” ficou pronto alguns meses antes de Mary Shelley completar vinte anos; Blaise Pascal e Jean Piaget produziram seus primeiros trabalhos científicos aos dezesseis e aos onze anos de idade, respectivamente; Pablo Picasso pintou seu “Le picador” (1890) aos nove anos. Mas que dádiva divina é essa que faz com que alguns poucos escolhidos pairem sobre a mediocridade do restante dos mortais? Poucos imaginam que Chopin – assim como Mozart e Beethoven – nasceu em uma família composta por músicos; que o pai de Picasso era pintor e desenhista; que Mary Shelley era filha dos filósofos Mary Wollstonecraft e William Godwin; que Orson Welles nasceu em uma família cujo pai havia feito fortuna ao inventar uma lâmpada de carbureto para bicicletas e cuja mãe se tornara uma conhecida pianista; que Blaise Pascal era filho de um matemático e Piaget de um professor universitário. Não estamos fadados à genialidade apenas pelo fato de termos nascido em uma família de artistas e/ou cientistas – não faltam exemplos que provam justamente o contrário –, mas essa é uma condição muito favorável. O fato é que nos acostumamos a notabilizar, contabilizar e referenciar, assim como os milagres, apenas os sucessos. Pouco se discute, porém, a extemporaneidade, as reviravoltas, os motivos, os insucessos e infortúnios destes e de alguns sujeitos não menos notáveis.

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Freud, por exemplo, após o fracasso de suas pesquisas sobre os efeitos terapêuticos da cocaína, publicou suas primeiras obras psicanalíticas aos trinta e sete anos de idade3; Pavlov, um dos mais influentes autores da psicologia do século XX, voltou-se para o estudo dos reflexos condicionais aos cinquenta e dois anos de idade; as obras mais valorizadas de Paul Cézanne datam de um período no qual o pintor já havia completado sessenta anos4; Alfred Hitchcock produziu suas principais obras (“Disque M Para Matar”, “Janela indiscreta”, “Um corpo que cai” e “Psicose”) entre os cinquenta e quatro e sessenta e um anos de idade; Charles Darwin, casado com sua prima de primeiro grau, Emma Wedgwood, e que perdeu três de seus filhos antes que eles completassem dez anos de idade, buscou compreender – para além das maldições impostas ao pecado original – os efeitos da endogamia nas plantas e animais. Não queremos dizer com isso que duvidamos da existência do talento, mas de que não admitimos, com exceção às licenças poéticas, a influência das musas sussurrando nos ouvidos de “escolhidos”. Em geral, é necessário muito trabalho5. Sobre expectativas e realidades: a genialidade em questão A psicologia, desde Freud, no intuito de compreender o processo de desenvolvimento da personalidade e da subjetividade humana, busca desvelar a gênese entre o orgânico e o psíquico, entre “a alma e o corpo”, no qual “o psíquico não poderia se reduzir ao orgânico, nem explicar-se sem ele” (ZAZZO, 2004, p. 41 – nossa tradução). Diante das diversas formas que se seguiram no intuito de tentar desvendar essa questão, indicamos, porém, aquela que destaca a importância do social na constituição dos sujeitos e de sua consubstancialidade ao organismo humano. Neste sentido, compreende-se que a personalidade é composta por diferentes camadas com relações assimétricas e hierárquicas que se desenvolvem na contínua interação social6 diante de um substrato orgânico particular. Em outras palavras, Não podemos dissociar o biológico do social, não porque sejam mutuamente redutíveis, mas porque são tão estreitamente complementares no homem desde o seu nascimento,

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3 O termo “psicanálise”, atribuído a Breuer, surge em 1896. 4 Ver: GALENSON, D. “Old masters and young geniuses: The two life cycles of human creativity”. In: Journal of Applied Economics, Universidad del CEMA. 2009. 5 Recorrendo à famosa frase de Thomas Edison (muitas vezes creditada a Albert Einstein): “O Gênio é um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração” em Harper’s New Monthly Magazine, Vol. 406, Setembro de 1932. 6 Ver: JANET, P. “L’automatisme psychologique”. Paris, Félix Alcan, 1889. Disponível em: http://classiques.uqac.ca/classiques/janet_ pierre/automatisme_psychologique/automatisme.html. Acesso em 12 de dezembro de 2014.

que não é possível observar a vida psíquica se não sob a forma de suas relações recíprocas” (WALLON, 1921 apud ZAZZO, 2004, p. 48– nossa tradução) No intuito de sermos mais didáticos, indicaremos um exemplo. Sabemos que Albert Einstein (1879-1955) possuía em seu cérebro um corpo caloso7 e um córtex pré-frontal8 mais desenvolvidos se comparados com a grande maioria da população, o que, teoricamente, indica-nos um robusto substrato neurológico e uma maior conectividade entre os hemisférios de seu cérebro, justificando, assim, sua capacidade para realizar abstrações extremamente complexas e outras tantas habilidades cognitivas conhecidas. Porém, se Einstein, em sua época, tivesse sido criado por camponeses na área rural de Ulm, sua cidade natal, e não em Munique, como ocorreu de fato, em uma família de industriais produtores de componentes eletrônicos, ele talvez até pudesse ter se tornado um perspicaz agricultor, mas dificilmente teria desenvolvido a “Teoria da Relatividade”. Para revolucionar os conceitos de espaço e tempo, Einstein necessitou não apenas de um cérebro “apropriado”, mas de condições materiais de subsistência (capital econômico), de condições subjetivas para tal alicerçadas sobre sua educação formal, de capital cultural (herança cultural familiar e de classe), social (contatos) e simbólico (prestígio atribuído a outros capitais tornando-os legítimos)9, além do trabalho de inúmeros cientistas que desenvolveram anteriormente conceitos e teorias que foram em parte desenvolvidas ou descartadas pelo físico alemão. A exclusão ou mudança em qualquer desses fatores afetaria sobremaneira o desenvolvimento da personalidade de Einstein e seu virtual sucesso na Física. Somos, então, resultado de uma dialética incessante entre nosso dinâmico aparato biológico individual e o mundo social que nos cerca. Na realidade, o talento é uma feliz coincidência, o bem sucedido encontro de um organismo em sua singularidade com os requisitos mínimos (sociais, culturais e históricos) exigidos por uma determinada área, em uma determinada época. Einstein poderia ter se tornado ator, se assim o desejasse, mas necessitaria – já que não havia em seu histórico familiar e pessoal uma aproximação com as artes cênicas –, de um intenso aprimoramento teórico e prático por

7 O corpo caloso é uma estrutura do cérebro de mamíferos cuja principal função é a de permitir a transferência de informações entre um hemisfério e outro fazendo com que eles atuem harmonicamente. Ver: WEIWEI, M. et al., “The corpus callosum of Albert Einstein‘s brain: another clue to his high intelligence?” Disponível em: http://brain.oxfordjournals.org/content/early/2013/09/24/brain.awt252 8 Ver: FALK, D. et al. “Lepore and Adrianne Noe. The cerebral cortex of Albert Einstein: a description and preliminary analysis of unpublished photographs”. In: Brain, 2012 . Disponível em: http://www.oxfordjournals.org/our_journals/brainj/press_releases/prpaper.pdf 9 Ver: BOURDIEAU, P. “What makes a social class? On the theoretical and practical existence of groups”. In: Berkeley Journal, n. 32, p. 1-49, 1987.

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meio de escolas de teatro, oficinas, etc. Nunca saberemos ao certo, mas acreditamos que sem isso, Einstein provavelmente não teria passado de um ator medíocre. Não estamos utilizando aqui o termo “mediocridade” em seu sentido pejorativo, como uma falta de mérito, uma “fraqueza do espírito”, mas de uma condição instável e mediana. E devemos ter isso em mente quando tratamos da relação ensino-aprendizagem. A mediocridade é um estágio humano inevitável e universal. Ela, porém, não representa um não-movimento, um cárcere instransponível, muito pelo contrário, a mediocridade perpassa o processo de desenvolvimento do sujeito e de sua personalidade; por mais que nos aprofundemos em determinadas áreas, continuaremos a ser medíocres (ou muito ignorantes) em outras. Neste sentido, saber lidar com o erro, a falha, o fracasso, a frustração, a incompetência, seja talvez a primeira lição que devemos aprender e não a última. Nossa mobilidade intelectual, como nos indica Nietzsche, pressupõe margear o abismo: O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-dohomem - uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiarse e parar. O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele é um “passar” e um “sucumbir” (2014, p. 234). É necessário “passar” e “sucumbir”, e saber que, apesar de avançarmos, nunca chegaremos ao outro lado – apesar das miragens. Além disso, quando tratamos da relação entre ensino e aprendizagem, devemos levar em consideração que cada um de nós já percorreu - com suas próprias pernas, no final das contas - determinada distância nessa “travessia”. Isso significa dizer que diante de nossa “posição geográfica” e a de nossos aprendizes neste a-caminho pode haver a ilusão de uma longitude cuja comunicação pode nos parecer impossível. Este artigo propõe discutir justamente as formas de tratarmos essas distâncias durante nossa própria jornada. Sobre o ensino e a técnica Rancière (2012) compreende que a lógica da relação pedagógica é autoevanescente, ou seja, que o papel atribuído ao mestre se caracteriza pela dependência de uma contínua eliminação de distâncias entre os saberes e o que se ignora. “Na lógica pedagógica, o ignorante não é apenas aquele que ainda ignora o que o mestre sabe. É aquele que não sabe o que ignora nem

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como o saber” (p.13). Cabe ao mestre, então, na avaliação constante entre o que se ignora e o que já se sabe – uma vez que os sujeitos não são passivos e que sua aprendizagem não está restrita ao ambiente, vamos dizer, formal de aprendizado – o complexo, incessante e insubstituível trabalho de transformar um saber ignorado em objeto de saber. O mestre (...) não é apenas aquele que tem o saber ignorado pelo ignorante. É também aquele que sabe como torná-lo objeto de saber, o momento de fazê-lo e que protocolo seguir para isso. Pois, na verdade, não há ignorante que já não saiba um monte de coisas, que não as tenha aprendido sozinho, olhando e ouvindo o que há ao seu redor, observando e repetindo, enganando-se e corrigindo seus erros. (...) O que lhe falta, o que sempre faltará ao aluno (a menos que este também se torne mestre) é o saber da ignorância, o conhecimento da distância exata que separa o saber da ignorância. (RANCIÈRE, 2012, pp. 13-15 – grifo nosso) Neste sentido, complementa Rancière, a ignorância do ignorante não constitui um saber menor, mas uma posição, uma distância que “vai daquilo que ele já sabe àquilo que ele ignora” (p.15). Cabe ao mestre e ao aprendiz o trabalho poético de tradução de suas aventuras intelectuais “para uso dos outros e de contratraduzir as traduções que eles lhe apresentam de suas próprias aventuras” (p.15). Será sobre este complexo processo de “traduções” e “contratraduções” que a pedagogia irá se debruçar. Diante de tantas formas de realizá-las, porém, destacamos o que nos parece mais problemático e fundamental: os “protocolos”, como nos indicou Rancière, ou melhor, a técnica aplicada à ação pedagógica. Antes de tudo, porém, devemos estar atentos aos sentidos da palavra “técnica9” na contemporaneidade. Não se trata de um receituário – próprio do movimento alienador do trabalho no sistema capitalista – de sentido utilitarista e simplista, como um conjunto de regras estáticas definidas a priori, mas, como nos indica Duarte (1994, p.13), de um “domínio consciente e intencional de meios com o objetivo explícito de atingir um fim pré-determinado”. Indo além,

10 Para os antigos gregos, remontando a Heródoto, Platão e Aristóteles, bem resumidamente, a técnica (téchne) representava não apenas um conhecimento prático, com vistas a um objetivo concreto, como também uma simbiose entre poiésis e praksi, entre arte e destreza.

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O que chamamos de técnica moderna não é somente uma ferramenta, um meio diante do qual o homem atual pode ser senhor ou escravo; previamente a tudo isso e acima das atitudes possíveis, essa técnica é um modo decidido de interpretação do mundo que não apenas determina os meios de transporte, a distribuição de alimentos e a indústria de lazer, mas toda a atitude do homem e suas possibilidades. (HEIDEGGER, 1989 apud WERLE, 2011, p. 101). A técnica representa uma práxis contínua, uma atividade pensante do sujeito, “(...) por meio da qual a teoria se integra à prática, ‘mordendo-a” (KONDER, 2003, p.167). Assumimos a necessidade de uma téchne, de um saber que permita ao professor planejar os passos de sua ação educativa, a téchne como uma ação violenta do saber, a poiésis, “um trazer a presença através do saber, do percepcionar e do pensar” (CASTELLO BRANCO, 2009, p. 30). Não basta, por exemplo, ao professor de piano conseguir fazer o aprendiz dedilhar todas as notas da Balada número quatro de Chopin (Opus 52, 1843) a partir de uma partitura de Cortot11. Será também sobre a leitura pessoal realizada pelo aprendiz que o mestre irá atuar, não apenas indicando caminhos, mas subvertendo sua leitura, fazendo-o “sucumbir” e o instigando a “passar”. Não se trata de uma transmissão de conteúdos, mas de uma (re)educação estética contínua ao permitir que o aprendiz reveja sua leitura e revigore sua técnica através de seu próprio espírito vagante e insaciável. Devido à interação permanente entre o meio ambiente e o sujeito, da técnica e da mente, da experiência e do espírito, pode-se dizer até que os termos dessas dualidades nunca são mais que polos teóricos: não existe técnica que não seja penetrada pelo espírito, nem experiência que não seja modelado pela razão e vice-versa (MEYERSON, 1987, p. 86 apud BRASSAC, 2004, p. 5 – nossa tradução) Tudo, então, dependerá de como se utiliza a técnica – a que tentamos ensinar e a que tentamos praticar –, em “manusear com espírito a técnica”, como nos sugere Heidegger (2010, pp.12-16) enquanto “meio e instrumento” e enquanto “forma de descobrimento”. Desta forma,

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11 Alfred Cortot (1877-1962) produziu edições impressas das obras para piano de Chopin, Schumann e Debussy destacando-se pela inclusão de comentários meticulosos em problemas técnicos e questões de interpretação.

as teorias e as práticas não representam a possibilidade de uma prescrição feita sob medida para nossa ação: ela nos atualiza, traz-nos novas perspectivas sobre os problemas que enfrentamos, dá-nos potência. O mestre deve ser capaz de questionar e redimensionar sua ação de acordo com a necessidade, de acordo com os cenários, num continuo movimento do pensamento em sua dialética com a ação, “o pensar age na medida em que pensa12” (Heidegger, 2008, p. 326). Será neste sentido, no intuito de conseguir a máxima aproximação possível de nossas trajetórias individuais, entre os saberes e o que se ignora, que o mestre deverá viabilizar o trabalho de traduções e contratraduções da forma mais sensível e individualizada possível. Resumindo,

A educação nunca começa no vazio, não se forjam reações inteiramente novas nem se concretiza o primeiro impulso. Ao contrário, sempre se parte de formas de comportamento já dadas e acabadas e fala-se da sua mudança, procura-se a sua substituição, mas não o absolutamente novo. Neste sentido, toda a educação é a reeducação do já realizado. Por isso a primeira exigência da educação é o conhecimento absolutamente preciso das formas hereditárias de comportamento, em cuja base será erigido o campo pessoal da experiência. E é aqui que o conhecimento das diferenças individuais se manifesta com força especial. (VIGOTSKI, 2001, p. 428)

Sobre linguagem e distâncias Diante das distâncias interpessoais, ao tratamos do ensino em determinada área profissional, devemos compreender que nossa linguagem operacional pode causar um desconfortável estranhamento para os novatos, diante das variações culturais e históricas que cada área reserva com o tempo, além do hermetismo provocado por nossa especialização.

12 Heidegger, ao se centrar na discussão sobre arte e a poesia, bem como a técnica e a ciência, dimensiona a ação produtiva dos homens como modo de realização de sua própria existência, tanto na relação do homem consigo mesmo quanto com a natureza, que para além de um problema especificamente econômico, remete-nos a uma atitude fundamental do ser humano, de amplitude histórica. Sob a perspectiva do pensamento, que pressupõe uma existência, um ser, encontramos a categoria da representação, que exprime a projeção do homem como pensamento diante dos entes. A representação não consiste numa forma de passividade, mas num determinado projetar humano que demanda uma pretensão de controle sobre o que ele mesmo projeta orientado pelo que está à sua presença, numa atitude de “avançar”.

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O efeito de estranhamento ocorre desautomatizando-se a linguagem: a linguagem habitua-se a representar certos fatos segundo determinadas leis de combinação, mediante fórmulas fixas. De repente, um autor, para descrever-nos algo que talvez já vimos e conhecemos de longa data, emprega as palavras (ou outros tipos de signo que se vale) de modo diferente, e nossa primeira reação se traduz numa sensação de expatriamento, numa quase incapacidade de reconhecer o objeto efeito esse devido à organização ambígua da mensagem em relação ao código (ECO, 1997, p. 64) Quando, por exemplo, utilizamos determinados termos próprios das artes cênicas em nossas salas de aula (“narratologia”, “teatro isabelino”, “pós-dramático”, “beckettiano”, “performativo”, “didascália”, “epítase”, etc.), isso não representa grande novidade para quem está habituado com a área, mas para quem se inicia nela estes termos podem simplesmente não representar nada ou vir carregados de outros sentidos. As palavras não são autoexplicativas. Elas são generalizações inundadas de sentido pela cultura e pela história, mas que muitas vezes não está acessível a todos. É necessário conhecer minimamente quem foi Samuel Beckett para que possamos começar a compreender o que significa a frase “fulano é um ator beckettiano”. Isso parece simples, mas, muitas vezes, é por conta dessas lacunas entre nosso discurso e a compreensão de nossos ouvintes que podemos acabar nos tornando incompreensíveis. Isso ocorre porque cada profissão, cada área do conhecimento, durante sua história, vai dinamicamente (re)criando de forma transpessoal, um “idioma”, um gênero próprio, certa quantidade de termos e expressões que vão se tornando comuns e que devem ser adquiridas pelo aprendiz. Além disso, somos tomados pela lógica das generalizações e sínteses, que podem até fazer bastante sentido para nós, mas que podem tornar nosso discurso cada vez mais hermético para os outsiders. Indicar numa frase, por exemplo, que a “arte é uma questão retórica sem retórica13”, faz com que o aprendiz tenha um trabalho duplo: tentar compreender o sentido do excerto e tentar (re)conectá-lo ao restante da frase e do pensamento. Se há a necessidade de aproximação, de se diminuir uma distância muito grande entre os interlocutores, há também a necessidade de se readequar o discurso, torná-lo mais “palatável”.

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13 Ver o ensaio sobre Denis Devlin em: BECKETT, Samuel. Disjecta. Londres: Calder, 2001.

Conclusão O gênio, como diria Simone de Beauvoir, talvez seja realmente uma loucura do talento14, os desvarios de uma produção que está longe de ser infinitamente qualificada. O talento é algo vivo, em desenvolvimento, em crise, em superação, que depende de nossas características orgânicas e das formas com que incorporamos e expomos a história e a cultura que nos cerca. A técnica nos dá potência, permitindo o contraste, a assimilação, o desequilíbrio, a subversão e a revolução. Ela nos aproxima e nos permite criar uma simbiose e uma síntese. Mas para ensiná-la e para praticá-la é necessário revigorar o espírito, criar um constante descontentamento. O professor deve ser um instigador, aquele que provoca o desconforto e promove o acolhimento. É aquele sujeito capaz de traduzir e contratraduzir seu a-caminho de forma inteligível e de propor uma caminhada rumo ao desassossego.

14 Ver: BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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