O Ensino de Geociências: história, evolução, rupturas e desafios

June 7, 2017 | Autor: Filomena Amador | Categoria: Science Education, Education for Sustainable Development, Elearning
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O Ensino de Geociências: história, evolução, rupturas e desafios Filomena Amador [email protected] Departamento de Educação e Ensino a Distância, Universidade Aberta; Instituto de Ciências da Terra – Pólo da Universidade do Porto (Portugal)

1. Introdução Refletir sobre o ensino da Geologia é uma tarefa que se encontra obrigatoriamente associada a dois domínios de investigação: as Geociências como área de conhecimento com um corpo teórico bem definido, e, o domínio da Educação em Ciência. Entre ambas as vertentes existe uma relação intrínseca. Como Khun (1990) refere em obra seminal, A Estrutura das Revoluções Científicas, as comunidades de investigadores partilham paradigmas científicos e fazem uso de uma linguagem comum, porque existe uma comunicação/formação/educação que é orientada para esse objetivo. De igual modo é através do desenvolvimento de competências como por exemplo, o espírito crítico, a criatividade, a capacidade de trabalhar em equipa e muitas outras, que vamos ter indivíduos que um dia poderão ser capazes de desencadear processos que contribuam para a existência de uma mudança paradigmática. Isto é, a Educação está na interdependência da Ciência, mas esta última também necessita que a Educação desempenhe o seu trabalho de uma forma profícua. No presente texto procuraremos ter sempre em consideração esta relação dialógica. Para o efeito tomaremos como referência o caso português, embora este não esteja distante do que foi acontecendo no resto da Europa. Existem alguns eixos evolutivos no ensino das Geociências que consideramos significativos: i) aduzir o interesse do estudo da Geologia do respectivo valor económico de alguns dos seus objectos de estudo; ii) associar, a partir da década de 60, a Geologia às causas ambientais, justificando o respectivo estudo pelo facto de ser a componente abiótica dos ecossistemas; iii) tirar proveito do interesse que determinados assuntos começaram a despertar nos media e na literatura e cinematografia a partir das últimas décadas do século XX; iv) assumir objetivos que visam a promoção de uma Educação para o Desenvolvimento Sustentável,

enfocando as questões de estudo na relação entre a Geologia, o Ambiente e a Sociedade; v) adaptar sucessivamente os discursos didáticos, a modelos oriundos de outras áreas científicas. Serão estes os temas que a seguir abordaremos. 1. Justificar o ensino da Geologia com base no valor económico

Desde a criação das primeiras instituições oficiais dedicadas ao ensino não universitário, no caso português estamos a referir-nos aos primeiros liceus criados em 1836 que a presença da Geologia nos currículos é justificada essencialmente pela necessidade de se conhecerem as riquezas minerais presentes no território nacional. Só durante a década de setenta do século XX é que esta vertente foi atenuada pela emergência de novas problemáticas (Amador, 2008). Os primeiros currículos oficiais atribuíram sempre grande percentagem do tempo previsto de lecionação para a cristalografia e a mineralogia. Em alguns períodos foram mesmo estes os únicos temas a serem estudados. O modo como foram abordados foi essencialmente descritivo. Em Portugal, esta orientação assumiu o seu máximo relevo durante o período da ditadura até à Revolução de Abril de1974, embora no início dos anos setenta se tenha começado a desenhar uma nova reforma educativa que proporcionou a abertura necessária à introdução de outro tipo de conhecimentos. No presente, os recursos naturais continuam a ser um tema presente em todos os programas de Geologia, porém os princípios que estavam subjacente à abordagem anterior, conhecer para melhor explorar e tirar proveito económico, são agora mitigados com a introdução em paralelo de conceitos como a “gestão sustentável” dos recursos. Na prática, nunca se chega a estudar nem a discutir como é possível alcançar a meta da sustentabilidade. O aspeto que acabamos de enunciar constitui a nosso ver um desafio que o ensino da Geologia deve enfrentar no futuro. Distinguir “recursos” de “reservas”, os processos de exploração e os avanços tecnológicos, as flutuações dos preços, o valor de alguns minerais assumem na sociedade moderna, as políticas internacionais, etc. Isto é, estabelecer uma relação entre Geologia e Economia, a um nível básico mas que permita compreender determinadas decisões que são assumidas pelos estados. Este assunto deverá a nosso ver ser abordado através da análise de casos concretos, que permitam

tornar mais evidente a complexidade de interesses que está por detrás do conceito de “gestão sustentável dos recursos minerais”. Com semelhante perspectiva poderíamos também abordar outros tipos de recursos naturais. 2. A Geologia e as causas ambientais

A partir da década de 60 do século XX, com a publicação de várias obras como Silent Spring (1962) de Rachel Carson (1907-1964), assistiu-se a nível mundial a um despertar da consciência ambiental que permitirá olhar para alguns desastres naturais ou mesmo de origem antropogénica de uma forma distinta. Porém, a introdução nos currículos destas problemáticas esteve quase sempre mais associada à Biologia do que à Geologia. Foi com alguma dificuldade que se começaram a introduzir alguns temas, relacionandoos principalmente com aspetos relativos à poluição ambiental. A contaminação de aquíferos, os derrames de hidrocarbonetos em zonas marinhas, os fenómenos de desertificação e a perda de solos produtivos, foram alguns dos assuntos que começaram a ser estudados. Por outro lado, a crise energética eminente que nos anos setenta se anunciava que aconteceria antes do final do milénio, devido ao esgotamento rápido das reservas de petróleo a nível mundial, necessitava que se pensassem em energias “alternativas”. Algumas das opções energéticas que se discutiam à época remetiam para contextos geológicos. Destacamos, em particular a questão da energia nuclear e as intensas polémicas que existiram sobre o armazenamento de produtos resultantes da actividade das centrais nucleares. Contudo, este último tema foi de tal modo politizado e envolveu debates tão intensos que praticamente não chegou a ser introduzido nos currículos portugueses. Com o passar dos anos o próprio conceito de Educação Ambiental (EA) começa a tornar-se mais abrangente principalmente quando na sequência de uma série de reuniões internacionais se começa a fazer referência a modelos de Desenvolvimento Sustentável, suportados em três pilares, ambiente, economia e sociedade, aos quais se juntou depois uma nova dimensão, transversal às restantes três – a educação. Mais tarde, em 2002, na Cimeira de Joanesburgo a UNESCO propôs a Década (2004-2015) da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (EDS).

A partir deste período o conceito de EA passa a ser substituído, com frequência, pelo de EDS o que facilita a integração da Geologia, como disciplina integradora de saberes e capaz de facilmente estabelecer “pontes” com outros domínios científicos. Porém, existe uma área que acaba por ganhar uma dimensão significativa, a conservação do património geológico (Brilha, 2005). O termo “geodiversidade” surgiu, em 1993, no Reino Unido, durante a Conferência de Malvern sobre Conservação Geológica e Paisagística, mas é possível que antes mesmo de este evento ter lugar o termo tenha começado já a ser usado por vários cientistas em contraposição ao termo “biodiversidade”. Gray (2004) admite que os primeiros a usarem o termo tenham sido alguns investigadores australianos ligados à conservação da natureza na região da Tasmânia. Assim, a conservação do património abiótico ganha dimensão nos currículos e discutem-se os valores que justificam a referida conservação. A criação pela UNESCO dos Geoparks também permitiu aprofundar na forma como estes temas podem ser abordados. 3. Mediatização de algumas temáticas geológicas A Geologia tem sido quase sempre capaz de se aproveitar do interesse que alguns assuntos despertam ou despertaram em públicos vastos, para os introduzir nos currículos. O exemplo mais evidente de que nos podemos socorrer tem origem na Paleontologia e está associado aos Dinossauros. Poderemos pensar que é uma situação recente, mas na verdade já no início do século XX na sequência de uma série de importantes descobertas, realizadas nas décadas anteriores verificou-se que esta área adquiriu uma maior dimensão em termos curriculares, que em Portugal só terminou com a entrada em vigor das reformas realizadas já no tempo da ditadura (Amador, 2008). Mais recentemente a cinematografia e a literatura juvenil e infantil ajudaram a recriar um imaginário em torno destes seres, que tem sido usado como motivador e enquadrador de vários assuntos, em particular para um reforço da área da Paleontologia nos programas escolares. Mas a mediatização acontece também em domínios como a Vulcanologia e a Sismologia, onde para além de obras ficcionais têm vindo a ser produzidas séries documentais bem documentadas em termos científicos. Por outro lado, a mediatização de alguns assuntos tem gerado, embora na maior parte dos casos positiva, tem gerado uma tendência para a sobrevalorização de eventos

catastróficos, diria mesmo de uma concepção de catastrofismo generalizado a toda a Geologia, que tem vindo a dificultar a introdução de visões mais uniformitaristas. 4. A Geologia no contexto da Educação para o Desenvolvimento Sustentável

Já antes fizemos referência à integração da Geologia na EDS, porém julgamos importante aprofundar este tema e introduzir outras dimensões. Na Declaração de Paris (2008), que marcou o lançamento mundial do Ano Internacional do Planeta Terra (AIPT), evento integrado da Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável, são destacados aspectos relativos à sustentabilidade, sendo claramente enfatizado que “qualquer discussão profunda acerca de desenvolvimento sustentável global do ‘Sistema Terra’ requer dados e conhecimentos científicos”, assim, como a nível geral se advoga a promoção de uma maior consciencialização “sobre a estrutura, evolução, beleza e diversidade do Sistema Terra e das suas culturas inscritas nas paisagens, ...” (Amador, 2012). Durante o período em que decorreu este evento procurou-se interessar e consciencializar o público em geral e os decisores políticos para uma efetiva aplicação do conhecimento na posse da comunidade geocientífica, permitindo, entre outros objetivos, reduzir os riscos para a sociedade causados pelos desastres naturais ou provocados pelo ser humano, descobrir novos recursos naturais e torná-los utilizáveis de forma sustentada (AIPT, 2008). Subjaz a estes objectivos a ideia que a solução dos atuais problemas não passa apenas por aspetos técnicos, mas exige ao mesmo tempo alteração de atitudes, de comportamentos e de valorizações face a uma sociedade industrial e demasiado focada no consumo, requerendo a participação dos governos, instituições, empresas e da sociedade, enquanto coletivo e de cada um de nós individualmente (Amador et al., 2012). Se por um lado estes eventos procuram apontar vias de trabalho, a verdade é que as ciências, em termos das suas práticas investigativas, têm revelado algumas dificuldades em adaptarem-se aos problemas emergentes, derivados da transição para a sustentabilidade (Amador, 2010). Motivo que justificou o aparecimento nas últimas duas décadas de uma nova área de investigação, com carácter transdisciplinar, que estuda as complexas relações entre natureza e sociedade, designada por Ciência para a

Sustentabilidade (Sustainability Science). Como princípios orientadores valoriza-se a ideia de ser urgente produzir conhecimento que possa ser aplicado em situações que exijam tomadas de decisão com vista à procura de um desenvolvimento sustentável, sendo o referido conhecimento produzido, de forma desejável, em parcerias que incluam académicos, assim como aqueles que o podem colocar em prática. Isto é, estamos perante linhas investigativas orientadas por problemas concretos que colocam em diálogo cientistas com populações afectadas por problemas específicos, mas que não se esgotam em projectos de investigação aplicada (Amador, 2010). Mais do que uma nova área autónoma as Ciências para a Sustentabilidade pretendem centrar-se nas interacções dinâmicas entre natureza e sociedade, isto é, como é que as mudanças sociais afectam o ambiente e, em simultâneo, como é que o ambiente contribui para mudanças na sociedade (Clark e Dickson, 2003). Numa perspectiva mais metodológica é possível afirmar que esta área privilegia a produção de conhecimentos potencialmente importantes para suportarem processos de tomada de decisão. Esta mudança deverá também implicar a necessidade da existência de um novo paradigma

que

reflita

a

complexidade

e

o

carácter

multidimensional

do

Desenvolvimento Sustentável, o qual resultaria da própria evolução da Ciência (Martens, 2006). Esta deixaria de se assumir, por exemplo, como académica e monodisciplinar para evoluir no sentido da trans e interdisciplinaridade, passando os cientistas a assumirem outras responsabilidades para além da produção do próprio conhecimento. Esta definição remete directamente para as implicações que estas novas abordagens devem ter nos currículos escolares, não esquecendo também que se torna premente incluir/reforçar nos programas conceitos e temas de sustentabilidade, que permitam aos actuais alunos, futuros investigadores, políticos, sociólogos, etc., assumirem uma cidadania activa (Amador, 2010). Tendo ainda presente que, no futuro, o sucesso dos investigadores estará provavelmente associado ao facto de possuírem algumas das competências que são privilegiadas na Ciência para a Sustentabilidade, em particular a capacidade para estabelecerem relações entre áreas distintas, fazendo uso de um conjunto alargado de conhecimentos e de técnicas. A esta exigência deve ainda acrescentar-se a necessidade de formação em filosofia e ética, áreas fundamentais no âmbito da Ciência para a Sustentabilidade.

5. Adaptação a sucessivos discursos didáticos No decurso das últimas décadas a Geologia tem sido capaz de se adaptar a diversas perspectivas de ensino. Quer por imposição de organismos nacionais que tutelam a área da Educação, quer pela emergência de uma comunidade de investigadores no domínio do Ensino da Geologia a qual tem vindo a fornecer contributos significativos para que ocorram mudanças na praxis. O ensino por transmissão, com ênfase na aquisição de conceitos, tem sido provavelmente a orientação que mais marcou o ensino da Geologia, assim como o de outras ciências. Porém, a partir dos anos setenta vai emergir o ensino por descoberta, traduzido numa valorização da compreensão dos processos científicos. Pese embora todas as críticas que no presente possam ser formuladas sobre esta perspectiva, a verdade é que permitiu abrir caminho nos currículos para a inserção de outro tipo de atividades. Anos mais parte foi a perspectiva de ensino por mudança conceptual que ganhou relevo, suportada em grande parte nos inúmeros trabalhos de investigação que foram realizados com o objectivo de identificar as concepções alternativas dos alunos. Os resultados da aplicação dos vários modelos de intervenção que à época foram propostos não revelaram possuírem o potencial que se esperava. Porém, não foi esta a única razão que fez surgir o ensino por pesquisa (Cachapuz, Praia e Jorge, 2002). A ele também estão associados os princípios da perspetiva CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente). Nota final A maior parte das mudanças que têm vindo a ocorrer nos discursos didáticos tem tido origem em outros domínios disciplinares, principalmente na Física. Porém, a Geologia tem conseguido sempre adaptar as suas especificidades às diversas orientações. O facto de ser uma Ciência que é ao mesmo tempo causal, no sentido em que visa atingir a explicação de objectos e processos geológicos através deste tipo de argumentação, e, em simultâneo histórica permite-lhe abordar os assuntos a partir de pontos de vistas diferentes sem nunca colocar em causa o rigor da construção do saber. Referências bibliográficas

AIPT, (2008) - Planeta Terra – Ciências da Terra para a Sociedade, Comité Português para o Ano Internacional do Planeta Terra – 2008, Comissão Nacional da UNESCO, disponível online: http://www.igcp.org.pt/aipt/ (acesso a 22/02/2015). Amador, F., 2008, “O Ensino da Geologia nas escolas portuguesas, durante o século XIX e a primeira metade do século XX: reformas curriculares e manuais escolares” em Terrae Didatica, vol. 3, nº 1, pp. 4-17. Amador, F. (2010), “Repensar os Programas de Geologia do Ensino Secundário, no âmbito da Ciência para a Sustentabilidade (Sustainability Science)”, em Cotelo Neiva, J.M., Ribeiro, A., Mendes Victor, Noronha, F. E Ramalho, M. (coord.), Ciências Geológicas: Ensino, Investigação e sua História, Geologia Clássica, Vol. I, Capítulo VII, Lisboa, Associação Portuguesa de Geólogos e Sociedade Geológica de Portugal, pp. 537-544. Amador, F., Vasconcelos, C., Silva, E., Torres, J., 2012. “As Ciências da Terra nos currículos do Ensino Básico. Um estudo comparativo realizado com base numa amostra de países” em Estrela, Teresa et al., Revisitar os Estudos Curriculares. Onde estamos e para onde vamos? Lisboa: EDUCA/Secção Portuguesa da AFIRSE. ISBN: 978-9898272-14-0 Brilha, J. (2005). Património Geológico e Geoconservação: a Conservação da Natureza na sua Vertente Geológica. Viseu: Palimage. Cachapuz, A., Praia, J. e Jorge, M. (2002). Ciência, Educação em Ciência e Ensino das Ciências. Lisboa, Ministério da Educação. Clark, W.C. and Dickson, N-M. (2003) Sustainability science: The emerging research program”, Proceedings of the National Academy of Science of the United States of America, 100(14), 8049-8061. Gray, M. (2004). Geodiversity. Valuing and conserving abiotic nature. West Sussex, John Wiley & Sons. Khun, T. (1990). La estructura de las revoluciones científicas. México, Fondo de Cultura Económica. Martens, P. (2006) Sustainability: science or fiction? Sustainability: Science, Practise, & Policy, 2, 1, 36 – 41.

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