O ENSINO DE GRAMÁTICA: MUITO ALÉM DO CONCEITO The Grammar Teaching: far beyond the concept

June 2, 2017 | Autor: Thomas Rocha | Categoria: Grammar, Ensino Língua Portuguesa, Gramática da Língua Portuguesa
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Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636

O ENSINO DE GRAMÁTICA: MUITO ALÉM DO CONCEITO The Grammar Teaching: far beyond the concept

Paulo Marçal MESCKA1 Thomas ROCHA2

RESUMO Promover uma educação de qualidade para nossas crianças é o objetivo fundamental da escola. Para atingir esse objetivo, o ensino deve fomentar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Por isso, cabe ao professor de Língua Portuguesa fazer com que o aluno, como usuário da língua, seja capaz de usar cada vez mais um número maior de recursos da língua, inclusive o uso das diferentes variedades linguísticas, em termos de dialetos e registros, e variedades de modo (oral e escrito). Contudo, não é isso que a escola vem proporcionando aos alunos. Basta analisar os diversos indicadores de qualidade e desempenho dos alunos, seja no Ensino Fundamental, seja no Ensino Médio, para ver que nossas crianças estão saindo da escola sem o domínio adequado da leitura e da escrita. O ensino de gramática, foco central deste projeto de extensão, está, ainda, fortemente dominado pela doutrina gramatical tradicional. Assim, a necessidade de integrar os resultados da pesquisa de iniciação científica com a prática extensionista e a relevância de se estabelecer uma parceria entre os professores do curso de Letras da URI e a comunidade escolar, justificam o projeto de extensão O Ensino de Gramática: muito além do conceito, cujo principal objetivo é trabalhar com os professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental da rede pública, analisando e propondo alternativas científicas adequadas ao ensino de gramática. Os objetivos específicos são: analisar com os professores parceiros o material didático disponível para o ensino de gramática, observando: o que ensinar, para que ensinar, a quem ensinar e como ensinar; propor sugestões metodológicas que contemplem a contextualização gramatical pelo viés dos gêneros textuais; elaborar material didático apropriado para o Ensino Fundamental, usando a gramática reflexiva; e, por fim, publicar pelos recursos virtuais, as alternativas didático-metodológicas elaboradas juntamente com os professores parceiros no projeto. Palavras-chave: Língua portuguesa. Gramática. Ensino de gramática. ABSTRACT Promoting quality education for our children is the primary goal of school. To achieve this goal, education should foment the full development of person, his preparation for the exercise of citizenship and his qualifications for the job. So it is up to the Portuguese Language teacher make the learner as a language user, be able to use an increasingly larger number of language resources, including the use of different linguistic varieties in terms of dialects and registers, and mode varieties (oral and written). However, the school is not providing it to students. Simply to analyse various indicators of quality and student performance, in elementary school either in high school, to see that our children are leaving school without adequate mastery of reading and writing. The 1

Mestre em Língua Portuguesa, Professor do Curso de Letras – URI Erechim, [email protected]. Graduado em Letras pela URI Erechim, ex-bolsista do projeto de extensão, atualmente mestrando do PPGL/PUCRS, [email protected]. 2

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grammar teaching, the central focus of this extension project is still heavily dominated by traditional grammar doctrine. Therefore the need to integrate results of scientific research with practical extension and the importance of establishing a partnership between URI Language teachers and the school community, justify the extension project called The Grammar Teaching: far beyond the concept, whose main goal is to work with Portuguese Language teachers in elementary public school, analyzing and proposing appropriate scientific alternatives to grammar teaching. Specific objectives are: to analyze with partner teachers didactic materials available for grammar teaching, observing: what to teach, for what purpose teach, for whom to teach and how to teach; to propose methodological suggestions that consider the grammatical context from the text genres bias, to develop appropriate didactic materials for elementary school using the reflexive grammar and finally to publish methodological-didactic alternatives on the virtual resources. Keywords: Portuguese Language. Grammar. Grammar Teaching.

INTRODUÇÃO Promover uma educação de qualidade para nossas crianças é o objetivo fundamental da escola. Para atingir esse objetivo, o ensino deve fomentar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Por isso, cabe ao professor de Língua Portuguesa empreender ações que repercutam no desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, trabalhando para que ele (o aluno) possa ler e interpretar textos, relacionando-os a outros textos e/ou discursos, contextualizando, debatendo e avaliando posturas e ideias presentes. Segundo Travaglia (2007, p. 58), desenvolver a competência comunicativa é, justamente, fazer com que o aluno, como usuário da língua, seja capaz de usar cada vez mais um número maior de recursos da língua, inclusive o uso das diferentes variedades linguísticas, em termos de dialetos e registros, e variedades de modo (oral e escrito). Ainda, de acordo com o autor, cabe ao professor fornecer ao aluno informação cultural sobre a língua (gramática teórica). Isto quer dizer, fomentar a apropriação de uma metalinguagem básica, desenvolvendo o raciocínio do aluno, para que ele possa aprender a pensar de forma organizada na produção de conhecimento e, assim, fazer ciência. Contudo, não é isso que a escola vem proporcionando aos estudantes. Basta consultar os diversos indicadores de qualidade e desempenho, seja no Ensino Fundamental, seja no Ensino Médio, para ver que nossas crianças estão saindo da escola sem o domínio adequado da leitura e, muito menos, da escrita. O ensino de gramática, foco central deste projeto, está ainda fortemente dominado pela doutrina gramatical tradicional. Insiste-se nas aulas de “gramática” voltadas à mera identificação e classificação de palavras (descontextualizadas, em geral), memorização de definições e de regras, muitas vezes esdrúxulas e repletas de exceções. Os dados obtidos com a pesquisa intitulada “O Ensino de Gramática: uma radiografia”3, desenvolvida com professores de Língua Portuguesa, de 5ª a 8ª séries, das escolas públicas estaduais de Erechim, revelaram que grande parte do tempo destinado à disciplina de Língua Portuguesa, é preenchido com o ensino de gramática. Uma gramática de natureza 3

Projeto de pesquisa de iniciação científica (PIIC URI) desenvolvido pelos autores do presente artigo, no período de agosto de 2011 a julho de 2012. Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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predominantemente normativa e prescritiva, que supervaloriza os aspectos morfológicos e sintáticos, explorando única e exclusivamente o domínio de nomenclaturas e classificações. De fato, a grande maioria dos sujeitos pesquisados (91%), acredita que ensinando regras gramaticais estará ensinando os alunos a ler, escrever e falar melhor. A preocupação com o domínio de regras ortográficas e conteúdos voltados à identificação terminológica de termos gramaticais (classes de palavras e análise sintática) reforça essa ideia. Evidencia-se, portanto, que há, por parte dos professores, a compreensão de que o ensino das regras gramaticais contribuirá, por si só, para o desenvolvimento das habilidades linguísticas dos alunos. Isto revela uma visão distorcida sobre o conceito de língua. A concepção equivocada de que língua e gramática são a mesma coisa e que, por isso mesmo, basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso. Neste sentido, recuperando os resultados obtidos pela pesquisa acima mencionada, o presente projeto tem como problemas norteadores: 1) qual a concepção de gramática que os professores usam? 2) que procedimentos metodológicos são usados no ensino de gramática em sala de aula? e 3) com que objetivos o professor realiza o ensino de gramática de 5ª a 8ª séries? A relevância de se estabelecer uma parceria entre os professores do curso de Letras da URI e a comunidade escola, e a necessidade de integrar os resultados da pesquisa de iniciação científica com a prática extensionista, justificam o projeto de extensão “O Ensino de Gramática: muito além do conceito”, que tem como principal objetivo: trabalhar com os professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental da rede pública, analisando e propondo alternativas científicas adequadas ao ensino de gramática. Além disso, o projeto também se propõe a analisar com os professores parceiros o material didático disponível para o ensino de gramática, observando: o que ensinar, para que ensinar, a quem ensinar e como ensinar; propor sugestões metodológicas que contemplem a contextualização gramatical pelo viés dos gêneros textuais; elaborar material didático apropriado para o Ensino Fundamental, usando a gramática reflexiva; e, por fim, publicar pelos recursos virtuais, as alternativas didático-metodológicas elaboradas juntamente com os professores parceiros no projeto.

REVISÃO DA LITERATURA E FUNDAMENTOS TEÓRICOS A partir do momento em que são feitos questionamentos à validade do ensino de gramática, nos moldes tradicionais, efetuado pelas escolas, os professores se veem inseguros e preocupados diante do desafio de se renovar, ou melhor, inovar o ensino de gramática. Muitas vezes, a insegurança é fruto de uma visão equivocada sobre o próprio significado de gramática. O professor de Português precisa saber que existem vários tipos de gramática e, sobretudo, que a competência linguística internalizada (que todos os falantes possuem e que lhes permite utilizar a língua automaticamente para qualquer fim e em qualquer situação), também é um tipo de gramática, a gramática da língua, e está presente em todas as situações de comunicação verbal (falada ou escrita). Saber usar as regras implícitas de uma língua é bem diferente de saber explicitamente quais são as regras. Ou seja, é possível aprender uma língua sem conhecer a gramática com a qual ela á analisada. Como bem lembra Possenti (2000), não existiam gramáticas gregas na época em os grandes pensadores, como Platão e Ésquilo, escreveram suas obras. Seria interessante que ficasse claro que são os gramáticos que consultam os Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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escritores para verificar quais são as regras que eles seguem, e não os escritores que consultam os gramáticos para saber que regras devem seguir. (POSSENTI, 2000, p. 55). Uma vez que o professor de Português compreenda toda a extensão do sentido de gramática, compreenderá, também, a relação do ensino da mesma com o aperfeiçoamento da competência linguística dos alunos. Nesse sentido, Travaglia (2009) propõe que “é preciso estar consciente das opções que fazemos [...] ao estruturar e realizar o ensino de Português para falantes dessa língua, em face dos objetivos que se julgam pertinentes para se dar aulas de uma língua a seus falantes nativos” (p. 11) e alerta que “com frequência, o que fazemos em nossas aulas de Português afasta a língua da vida a que ela serve e se torna algo artificial e sem significado para o aluno” (p. 12). Evidentemente, todos os usos da língua, de qualquer variedade, estão sujeitos à aplicação de regras. Para que sejam atingidos determinados efeitos de sentido são necessárias regras específicas para que as pessoas se entendam mutuamente. No entanto, conforme Antunes (2007), como essas regras são destinadas a regular os usos que as pessoas fazem, nos mais diferentes contextos e com as mais diferentes finalidades, elas não podem ser absolutamente rígidas. “Elas têm que ser funcionais, no sentido de que assumem variações, por conta do que pretendem aqueles que as usam.” (p. 72). Dentro dessa perspectiva, o trabalho com a gramática reflexiva possibilita ao professor uma alternativa para unir os recursos linguísticos que o aluno já domina com aqueles que ele ainda não domina, garantindo um aprendizado eficiente, e levando o aluno à aquisição de novas habilidades linguísticas. De acordo com Travaglia (2009, p. 33) “a gramática reflexiva é a gramática em explicitação”, isto é, representa as atividades de observação e reflexão que levam o usuário a perceber a constituição e o funcionamento da língua, capacitando-o a constituir textos que produzam o efeito de sentido desejado para alcançar determinados objetivos. Partindo, pois, da variedade linguística internalizada de cada falante, cabe ao professor de Português trabalhar no sentido de ampliar a capacidade de uso dessa língua, desenvolvendo a competência comunicativa do aluno por meio de atividades com textos utilizados nas mais diversas situações de interação comunicativa. Assim, parte-se da concepção de linguagem como processo de interação humana, no qual o indivíduo, ao usar a língua, realiza ações, age, atua sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). Segundo o autor, é possível fazer dois tipos de trabalho de gramática reflexiva. O primeiro é representado por atividades que levam o aluno a explicitar, por exemplo, a existência de diferentes classes de palavras; a existência de categorias da língua como tempo, modalidade, voz, gênero, número, pessoa, aspecto e como elas são marcadas e como afetam certos tipos de sentidos; os vários tipos de constituintes da estrutura frasal e a função de cada um em diferentes planos; as diversas regras de construção de unidades da língua tais como as palavras, ou as orações e períodos. Assim, são atividades voltadas ao conhecimento estrutural da língua e ao desenvolvimento do raciocínio do aluno, de maneira que ele possa aprender a pensar de forma organizada na produção de conhecimento e, deste modo, fazer ciência. O autor apresenta, na sequência do texto, uma série de exemplos desse tipo de atividade. O segundo tipo de trabalho de gramática reflexiva, proposto por Travaglia, é constituído por atividades que focalizam essencialmente os efeitos de sentido que os elementos linguísticos podem produzir na interlocução, uma vez que se quer desenvolver a competência comunicativa do aluno e sua progressiva capacidade de realizar a adequação do ato verbal às situações de comunicação. Para a montagem de atividades de gramática reflexiva, Travaglia (2009) dá uma orientação importante ao professor: “sempre comparar as instruções de sentido contidas em recursos Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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alternativos que estão à disposição do usuário da língua para que ele possa escolher ao constituir/construir seu texto em dada situação de interação comunicativa para a consecução de uma dada intenção comunicativa” (p. 150). Considerando a orientação do Prof. Travaglia, é fundamental que o professor de Português elabore atividades que façam o aluno pensar na razão de usar determinado recurso, em determinada situação, para produzir determinado efeito de sentido. Isto fará com que o aluno tenha mais segurança ao utilizar os recursos da língua, e produza seus textos com mais exatidão.

OBJETIVOS Objetivo Geral: − Trabalhar com os professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental das escolas públicas de Erechim e região, analisando e propondo alternativas científicas adequadas ao ensino de gramática. Objetivos Específicos: − Analisar com os professores parceiros o material didático disponível para o ensino de gramática, observando: o que ensinar, para que ensinar, a quem ensinar e como ensinar; −

Propor sugestões metodológicas que contemplem a contextualização gramatical pelo viés dos gêneros textuais;



Elaborar material didático apropriado para o Ensino Fundamental usando a gramática reflexiva;



Publicar pelos recursos virtuais, as alternativas didático-metodológicas elaboradas juntamente com os professores parceiros no projeto.

MATERIAL E MÉTODOS Na fase inicial deste projeto, o bolsista realizou a leitura e o fichamento de obras que tratam das concepções do ensino de gramática, que buscam um tratamento mais científico das atividades de linguagem, que oferecem reflexões sobre a língua portuguesa na escola e, sobretudo, que apresentam sugestões de práticas docentes visando à formação de alunos leitores e produtores de textos. Entre as obras lidas e fichadas podem-se citar as seguintes: Muito além da Gramática de Irandé Antunes, Dramática da língua portuguesa e Gramática pedagógica do português brasileiro de Marcos Bagno, Língua e Liberdade de Celso Pedro Luft, Gramática na Escola de Maria Helena de Moura Neves, Por que (não) ensinar Gramática na escola de Sírio Possenti, Sofrendo a Gramática de Mário Perini, Gramática e Interação de Luiz Carlos Travaglia, Ensino de gramática: descrição e uso de Silvia Rodrigues Vieira, Nova gramática do português brasileiro de Ataliba Castilho, entre outras. Tais leituras foram essenciais para a preparação técnica do bolsista e serviram de subsídio para as atividades seguintes da ação extensionista. Posteriormente, em conjunto com a 15ª Coordenadoria Regional de Educação – CRE e com as direções das escolas públicas de Erechim e região, estabeleceu-se contato com os professores Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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parceiros e definiu-se um cronograma de encontros. O primeiro encontro ocorreu em maio/2013, com o propósito de apresentar o projeto, seus objetivos e traçar as linhas gerais sob as quais se pautariam o estudo, análise e desenvolvimento das alternativas didático-metodológicas. Seguiram-se mais três encontros, um em junho/2013 e outros dois no mês de julho/2013. Os encontros pautaram-se por discussões teóricas, com vistas à consolidação de conceitos e concepções essenciais, e por práticas pedagógicas mais significativas e produtivas, tanto do ponto de vista do desenvolvimento das capacidades do aluno, como do ponto de vista de inserção do aluno no grupo social onde ele exerce sua condição política de pessoa e de cidadão.

RESULTADOS E DISCUSSÃO No primeiro encontro com o grupo de professores parceiros, foram apresentados os principais resultados obtidos através da pesquisa “O Ensino de Gramática: uma radiografia” com o intuito de promover o debate e, ao mesmo tempo, permitir que os professores tenham uma dimensão mais apropriada da realidade na qual estão/estamos inseridos. De maneira geral, os dados da referida pesquisa evidenciaram concepções e práticas presentes no ensino de gramática na escola, que se configuram numa série de equívocos: 1 - língua e gramática são a mesma coisa; 2 - basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso; 3 - explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática; 4 - a norma prestigiada é a única linguisticamente válida; 5 - toda atuação verbal tem que se pautar pela norma prestigiada; 6 - o respaldo para a aceitação de um novo padrão gramatical está prioritariamente nos manuais de gramáticas.

Como se pode ver, a gramática, nesta concepção, é particularizada e não abarca toda a realidade da língua, contemplando apenas aqueles usos considerados aceitáveis na ótica da língua prestigiada socialmente. Trata-se de uma visão reducionista que “na hora de entender ou de escrever um texto mais complexo, ‘o saber gramática’ se mostra, irremediavelmente, insuficiente” (ANTUNES, 2007, p. 22). Dessa maneira, propôs-se um olhar diferente sobre a gramática, um olhar respaldado pela investigação científica, de modo que se possa, assim, definir objetivos de ensino mais relevantes e consistentes. Para orientar os estudos e as proposições de alternativas didático-metodológicas nos encontros subsequentes, alguns princípios norteadores para que o ensino de Língua Portuguesa seja bem sucedido foram discutidos, e aqui são elencados de maneira sucinta, reforçados com citações do professor Sírio Possenti (2000): 1º O papel da escola é ensinar língua padrão Ou seja, a escola deve criar condições para que o português padrão seja aprendido, permitindo aos menos favorecidos socialmente o domínio adequado da escrita e da leitura. Ler e escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino da Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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língua. Portanto, seu lugar privilegiado, embora não exclusivo, é a própria sala de aula. (POSSENTI, 2000, p. 20). 2º Damos aula de que a quem? O professor deve ter uma concepção clara do que seja uma língua e do que seja uma criança, um ser humano, e como se dá seu aprendizado. Todos podemos ver diariamente que as crianças são bem sucedidas no aprendizado das regras necessárias para falar. A maior evidência disso é que falam. Se as línguas são sistemas complexos e as crianças as aprendem, de uma coisa podemos ter certeza: elas não são incapazes. (POSSENTI, 2000, p. 21-22). 3º Não há línguas fáceis ou difíceis Principalmente a partir das contribuições da Antropologia e da Etnolinguística, hoje se sabe que todas as línguas possuem estruturas complexas, que variam de acordo com fatores internos ou externos, mas que servem perfeitamente às culturas nas quais estão inseridas. Aliás, pode-se afirmar que a linguagem produz a cultura e a linguagem é produzida pela cultura. Portanto, há que se falar em línguas diferentes, não em línguas inferiores ou superiores às outras. 4º Todos os que falam sabem falar Às vezes o óbvio tem que ser dito, porque não nos damos conta de certas coisas que acontecem cotidianamente ao nosso redor. Todos os que falam sabem falar uma língua e saber falar uma língua é conhecer uma gramática. No dia em as escolas se dessem conta de que estão ensinando aos alunos o que eles já sabem, e que é em grande parte por isso que falta tempo para ensinar o que não sabem, poderia ocorrer uma verdadeira revolução. (POSSENTI, 2000, p. 32). 5º Não existem línguas uniformes De fato, não existem línguas onde todos falem da mesma forma. A variedade social se reflete na variedade linguística. A língua varia de acordo com fatores internos e externos. 6º Não existem línguas imutáveis Todas as línguas mudam com o tempo e a escola não deveria ter como única referência a literatura antiga, clássica, para o ensino da língua. É preciso reconhecer a mutabilidade da língua. Haveria certamente muitas vantagens no ensino de português se a escola propusesse como padrão ideal de língua a ser atingido pelos alunos a escrita dos jornais ou dos textos científicos, ao invés de ter como modelo a literatura antiga. (POSSENTI, 2000, p. 41). 7º Língua não se ensina, aprende-se Não se aprende a língua através de exercícios, mas sim através de práticas constantes e efetivas. Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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Como aprendemos a falar? Falando e ouvindo. Como aprenderemos a escrever? Escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e reescrevendo, e tendo nossos textos lidos e comentados muitas vezes, com uma frequência semelhante à frequência da fala e das correções da fala. (POSSENTI, 2000, p. 48). 8º Sabemos o que os alunos ainda não sabem? “O que já é sabido não precisa ser ensinado” (POSSENTI, 2000, p. 50). Realmente, a escola muitas vezes não se dá conta disto e acaba por ensinar uma língua que os alunos conhecem, porém fazendo de conta que eles não a conhecem. O ideal seria focar o ensino nas coisas que os alunos ainda não sabem, mas para isso é preciso reconhecer o que sabem. 9º Ensinar língua ou ensinar gramática? Saber usar as regras implícitas de uma língua é bem diferente de saber explicitamente quais são as regras. Ou seja, é possível aprender uma língua sem conhecer a gramática com a qual ela á analisada. Como bem lembra Possenti (2000), não existiam gramáticas gregas na época em que os grandes pensadores, como Platão e Ésquilo, escreveram suas obras. Seria interessante que ficasse claro que são os gramáticos que consultam os escritores para verificar quais são as regras que eles seguem, e não os escritores que consultam os gramáticos para saber que regras devem seguir. (POSSENTI, 2000, p. 55). Nos encontros seguintes, trabalhou-se com a leitura e discussão do texto “Ensino de classes de palavras: entre a estrutura, o discurso e o texto” (BASTOS; LIMA; SANTOS, 2012) que traz reflexões sobre o ensino de língua numa perspectiva sociodiscursiva, com base na análise da prática de um professor de ensino médio em relação ao ensino de uma categoria gramatical: o pronome. As autoras do texto partem do pressuposto de que um ensino mais significativo de língua, a partir do estudo das classes gramaticais, deve privilegiar o conhecimento de como cada classe de palavras atua na organização e produção de textos, contribuindo para ampliar a compreensão e produção textual do aluno em diferentes gêneros textuais, além de lhe assegurar a exploração das diversas possibilidades combinatórias das palavras na construção de sentido do texto. O debate girou em torno da necessidade de colocar o TEXTO como o centro do ensino. Para que isso seja possível é imprescindível reconhecer que nenhuma ação da linguagem acontece fora da textualidade. Em outras palavras, todo enunciado (que porta sempre uma função comunicativa) apresenta necessariamente a característica da textualidade, materializado em determinado gênero textual. Assim, a concepção de língua como um código que deve ser dominado pelo falante, centrando o ensino no domínio de regras, a partir de atividades de identificação e classificação, dá lugar à concepção de língua como interação, como trabalho empreendido pelos falantes, centrando o ensino de gramática no domínio e no uso dos vários recursos da língua, nas diversas situações de interação social:

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LÍNGUA = CÓDIGO X

Decorar regras

LÍNGUA = INTERAÇÃO (atividade discursiva)

X

Domínio e uso dos vários recursos da língua

Nesta perspectiva, o objetivo do trabalho didático da linguagem passa a ser a formação do leitor e produtor de textos, de modo que o ensino de gramática só faz sentido se: 1º Estiver a serviço da produção de textos orais e escritos; 2º Permitir a exploração das possibilidades significativas dos diferentes recursos linguísticos de que dispõe a língua, e das condições de uso dessa língua. Isso porque, não há texto sem gramática e não há como se comunicar sem ser por meio de textos. Após o debate, que permitiu que todos se manifestassem e expusessem seus pontos de vista, seguiram-se as atividades práticas de análise de textos, dos mais diversos gêneros e dos mais diversos temas. Para exemplificar, inseriu-se a seguir dois tópicos trabalhados nos encontros. O primeiro, extraído de Antunes (2003), apresenta uma charge, seguida de uma análise produzida por um aluno:

Escreveu o aluno: “No primeiro balão a palavra teto é núcleo do sujeito. Ainda no balão, há uma oração subordinada adjetiva restritiva. No segundo balão a palavra teto é substantivo. Ainda no segundo balão, há uma oração subordinada completiva nominal.” E acrescentou: “o teto: objeto direto / para: preposição / Presidente, Ministros e Parlamentares: Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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sujeito / Pai: sujeito / o que: artigo e preposição / é teto: objeto direto”. Pode-se observar que o aluno do exemplo abandonou o âmbito do sentido, da comunicação, da interação. O aluno deixou de lado o caráter polemizador do texto, implicado nas situações contrastantes e expresso nos diferentes usos (sentidos) da palavra TETO, embrenhou-se na teia das nomenclaturas e classificações, perdendo a oportunidade de realizar o encontro com as pretensões do autor. Por outro lado, o exemplo que se segue, extraído de Castilho e Elias (2012), procura explorar as propriedades textuais do substantivo, demonstrando que a construção do texto depende muito dos substantivos, dada sua propriedade semântica básica de referenciar:

Observe que no último quadrinho, o referente a constituição é novo no texto, mas a sua ativação se dá de forma assentada em um quadro cujos elementos (mandato, cargo vitalício, votos, impeachment) remetem-nos ao mundo da política e dos políticos. Trata-se de atividades de ensino de gramática focadas na forma de atuar usando a língua. Sem maiores preocupações com a classificação dos elementos linguísticos e o ensino da nomenclatura que consubstancia essa classificação. Aqui, mais uma vez, evidencia-se a concepção de linguagem como forma ou processo de interação humana. A metodologia que permeia essas atividades consiste basicamente em perguntar quais seriam as alternativas de recursos linguísticos a serem utilizados; comparar os efeitos de sentido que podem produzir em dada situação de interação comunicativa; e comparar os efeitos de sentido que um recurso ou diferentes recursos podem produzir em diferentes situações de interação comunicativa.

CONCLUSÃO A Universidade não é uma ilha, não está isolada da comunidade da qual faz parte. Assim, é fundamental que os laços entre Universidade e Sociedade sejam cada vez mais fortes. Neste sentido, os projetos de extensão são essenciais para esse processo de interação. No momento em que professores das escolas públicas da região aceitaram o desafio de refletir sobre suas práticas cotidianas e, conjuntamente com o professor orientador e o bolsista do presente projeto, empreenderam ações para desenvolver alternativas didático-metodológicas adequadas ao ensino de gramática, pode-se afirmar que o conhecimento científico produzido nas universidades atinge seu objetivo primordial: beneficiar a comunidade e promover o desenvolvimento regional. Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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De fato, de acordo com Neves (2010), a delimitação do que deve ser ensinado ou exercitado pelo professor de Português em sala de aula decorre do entendimento que ele tem do que seja a gramática da língua. Em outras palavras, a concepção de língua e de gramática está intimamente relacionada à práxis do professor, de modo que o conteúdo, a abordagem, a explicação, os exercícios propostos, enfim, todo o arcabouço de recursos de que o professor se utiliza para ministrar suas aulas está, em grande parte, associado à compreensão teórica da disciplina. Por isso, considerando a complexidade do processo pedagógico, compete ao professor o cuidado de estar constantemente refletindo e avaliando conceitos fundamentais, objetivos, procedimentos e resultados, de forma a direcionar todas as ações à grande meta de ampliar as competências linguísticas dos alunos. Geralmente, quando se fala em gramática, ou mais especificamente, no ensino de gramática, a polêmica se instala, os ânimos se acirram e as opiniões se multiplicam. A polêmica, a discussão, a falta de unanimidade são, obviamente, bem-vindas e imprescindíveis para o desenvolvimento científico em qualquer área do conhecimento humano. No entanto, visões equivocadas, distorcidas e incoerentes são extremamente nocivas e improdutivas para que ocorra um ensino-aprendizagem significativo. A língua faz parte de nossa constituição humana, de nossa identidade cultural, histórica e social. É por meio da língua que nos socializamos, que interagimos, que nos sentimos pertencentes a um grupo, a uma comunidade. O professor de Português precisa saber que existem vários tipos de gramática e, sobretudo, que a competência linguística internalizada (que todos os falantes possuem e que lhes permite utilizar a língua automaticamente para qualquer fim e em qualquer situação), também é um tipo de gramática, a gramática da língua, e está presente em todas as situações de comunicação verbal (falada ou escrita). Partindo, pois, da variedade linguística internalizada de cada falante, cabe ao professor de Português trabalhar no sentido de ampliar a capacidade de uso dessa língua, desenvolvendo a competência comunicativa do aluno por meio de atividades com textos utilizados nas mais diversas situações de interação comunicativa. Assim, parte-se da concepção de linguagem como processo de interação humana, no qual o indivíduo, ao usar a língua, atua sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). Enfim, de acordo com Possenti (2000), é preciso fazer com que o ensino de português deixe de ser visto como a transmissão de conteúdos prontos, e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções. O ensino deve subordinar-se à aprendizagem, e o presente projeto tem conseguido, efetivamente, contribuir com esse processo. Considerando a boa receptividade por parte dos professores parceiros, bem como, dos resultados positivos das práticas e atividades aplicadas em sala de aula, o presente projeto apresenta perspectivas de continuidade e, inclusive ampliação, pois mais professores se mostraram interessados em participar do projeto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. (Série Aula; 1). ______________. Muito além da Gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. (Estratégias de ensino; 5). Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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Vivências. Vol. 10, N.18: p. 185-196, Maio/2014

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