O Ensino de Matemática e os Livros Didáticos para os anos iniciais do Ensino Fundamental em Escolas do Campo

July 12, 2017 | Autor: Lima Iranete | Categoria: Educação Matemática, Educação do Campo, Livros Didáticos, PNLD, Ensino De Matemática
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O ENSINO DE MATEMÁTICA E OS LIVROS DIDÁTICOS PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL EM ESCOLAS DO CAMPO1 Iranete Lima

Muito se discute sobre a função e a pertinência do livro didático, sendo este recurso exaltado por uns, criticado por alguns e visto como “um mal necessário” por outros, seja lá o que signifique esta expressão. O fato é que os textos didáticos persistem no processo de ensino e resistem ao tempo, configurando-se no recurso privilegiado pela maioria dos professores. Como acentua Pessoa (2009, p.53), “Um dos elementos mais característicos do contexto educacional é o livro didático e, por isso, já se institucionalizou, ou seja, apresentase como algo natural, que “constitui” o processo de educação [...].”. Diversas razões podem ser apontadas para que o livro didático exerça esse protagonismo na atividade do professor. Dentre elas, a facilidade de acesso e as diferentes funções que o livro exerce no processo de ensino. O fortalecimento do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD – que contempla os processos de avaliação, aquisição e distribuição de livros para alunos de escolas públicas, inclusive da educação de jovens e adultos e, mais recentemente os alunos do campo (BRASIL, 2010, 2012, 2013), também pode ser apontado como uma razão contemporânea da difusão dos livros didáticos no cenário da educação brasileira atual. Pessoa (Ibid.) discute o livro didático na perspectiva da formação de professores. Corrêa (2000, p. 13) pondera que o livro é em veículo de circulação que traduz os valores e os comportamentos que se quer ensinar, assumindo, dessa maneira, a função de fonte de pesquisa. Já Munakata (2012) apresenta o livro didático como mercadoria, partindo do pressuposto que “A mercadoria é a síntese, a cristalização de relações sociais entre os seres humanos, mediados por coisas [...]” (Ibid., p. 64). Por sua vez,

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LIMA, Iranete. O ensino de matemática e os livros didáticos para os anos iniciais do ensino fundamental em escolas do campo. In CARVALHO, Gilcinei Teodoro; MARTINS, Maria de Fátima Almeida (Org.). Livro Didático e Educação do Campo. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2014, p. 161-175 [Ver “Nota ao(à) leitor(a)” publicada no final deste texto].

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Tagliani (2011) destaca o papel de mediação que o livro didático exerce nos processos de ensino e aprendizagem, sendo então, um instrumento tanto para o professor quanto para o aluno. Uma reflexão sobre os aspectos supracitados seria mais do que suficiente para construir este capítulo, uma vez que o livro didático se constitui, ao mesmo tempo, em um objeto de consenso e de dissenso entre os atores educacionais e sociais. Porém, mesmo reconhecendo a relevância desse debate, voltamos o nosso olhar para as articulações possíveis entre a Educação Matemática e a Educação do Campo nos livros didáticos destinados aos anos iniciais do ensino fundamental em escolas do campo. Entendemos que esses dois domínios são complementares, na medida em que preconizam a inclusão social e humana, sem perder de vista a especificidade e a realidade de cada aluno, enquanto sujeito educativo de direito.

A educação matemática e o livro didático

O ensino da matemática nas escolas é fator de exclusão escolar e social. Esta afirmativa, posta dessa maneira, pode parecer intempestiva. No entanto, não é difícil encontrar em nossa volta alguém que concordará com ela e se reconhecerá nela. Alguém que tenha abandonado a escola e que atribua à Matemática e ao seu ensino a causa desse abandono. Ou alguém que, mesmo tendo “escapado” da exclusão afirme “detestar a matemática”, embora reconheça sua relevância nas práticas sociais. Os conhecimentos matemáticos e didáticos do professor, a metodologia de ensino adotada e os recursos utilizados na sala de aula, estão, em geral, entre as razões apontadas por essas pessoas. Gueudet e Trouche (2009), Soury-Lavergne e Maschietto (2013) e Trouche (2015) se debruçam sobre o estudo dos recursos utilizados pelo professor bem como sobre o processo de escolha e de utilização individual ou coletiva na escola. Estes

pesquisadores

definem

recurso,

no

sentido

mais

amplo,

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como sendo um artefato ou um conjunto de artefatos que pode auxiliar o professor a desempenhar a sua atividade. Dentre os recursos encontram-se os livros didáticos. Pesquisadores da temática do livro didático de Matemática são unânimes quanto à influência que o livro didático exerce na atividade do professor (PITOMBEIRA; LIMA, 2002; SILVA JUNIOR, 2005; SILVA JUNIOR; RÉGNIER, 2007). Tal influência é exercida desde o momento do planejamento, passando pela aula propriamente dita, até o momento em que o professor analisa a produção do aluno. Ela se reflete nas concepções e nos conhecimentos que são mobilizados pelo professor na sala de aula e nos demais momentos de sua atividade professoral. Os resultados dos estudos de Lima (2009) mostram que durante o planejamento das aulas os professores se apoiam fortemente sobre as definições e atividades contidas nos livros. Assim, muitas vezes, o capítulo do livro se transforma, literalmente, na aula do professor porque ele reproduz a organização dos conteúdos, a linguagem utilizada e a sequência de exercícios. Se o aluno faz, por exemplo, um questionamento sobre um determinado conceito, a resposta é eminente: “está no livro” ou “você não leu o livro?”. Por vezes, o principal objetivo do professor para o ensino é “fechar o livro de capa à capa”, trabalhando todos os conteúdos contidos no livro. O que importa nessa concepção de ensino é contemplar os chamados “pré-requisitos” tão cultuados, sobretudo, no ensino matemática, mesmo que o processo de aprendizagem do aluno fique comprometido. Dessa maneira, em vez exercer a função de recurso didático de apoio para o professor, o livro passa a ser o próprio professor e a determinar o currículo que seguramente não é neutro na aprendizagem do aluno. Pesquisas realizadas, em particular no contexto da Didática da Matemática de origem francesa, estudaram os conhecimentos que podem influenciar as escolhas e as decisões do professor (LIMA, 2009). Ter um bom domínio do conteúdo matemático é essencial para o professor, entretanto, ele não é suficiente para garantir o ensino e favorecer a aprendizagem. Dentre outras habilidades, o professor deve ser capaz de construir situações didáticas

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adequadas para ensinar os conceitos matemáticos (BROUSSEAU, 1998), bem como de escolher bons recursos para subsidiar o funcionamento da aula. Nesse momento da atividade o professor é submetido a várias exigências. Como acentua Perrin-Glorian (2002): [...] exigências que vêm da instituição escolar (programas, exames, horário previsto…), do estabelecimento de ensino (tempo da aula, manual escolar, outras classes nas quais leciona, colegas…), necessidades do ensino (avaliação), dos alunos (nível escolar, origem social…) e dele mesmo (sua história, seus próprios conhecimentos sobre o conteúdo que deve ensinar, suas preferências, sua tolerância ao barulho…) (Ibid., p. 221, grifo nosso).

Compreender essas exigências e a reação dos professores diante delas está no centro de interesse da Educação Matemática. Nesse cenário, o professor é concebido como educador matemático. Segundo Lorenzato e Fiorentini (2001), ele é o profissional que educa por meio da Matemática que, por sua vez, não é a finalidade do ensino, mas o meio pelo qual a educação se produz, se constrói e se efetiva na sociedade. Antes da invenção dos números os primórdios precisaram desenvolver métodos para resolver os problemas do cotidiano e para explicar fenômenos do mundo físico e da humanidade. Denota-se, desse modo, que o método não precede a necessidade de resolver problemas, princípio que é ignorado pela maioria dos professores que ensina matemática. Essa reflexão nos remete a ponderar sobre o lugar das dimensões política, social e cultural nas aulas de matemática, sem, contudo, relegar a um plano secundário o conhecimento sistematizado. A pergunta que emerge é: como materializar o ensino de matemática nessa perspectiva? Embora seja amplamente difundido e cortejado por professores e demais profissionais da educação, a implementação desse modelo de ensino ainda representa um grande desafio porque esbarra em questões ligadas à formação do professor, à gestão escolar, aos elaboradores de recursos didáticos, à compreensão da sociedade sobre o papel da escola, dentre outras.

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Os estudos de Skovsmose (2001) e seus colaboradores introduzem a Educação Matemática Crítica, trazendo à tona a relevância das dimensões política e social no ensino de matemática, voltado para o fortalecimento da democracia e para a construção da cidadania. Para tanto, os pesquisadores se apoiam na Pedagogia de Freire (2003), destacando a importância da identificação das realidades sociais vivenciadas pelos alunos e a interlocução do ensino com essas realidades. Refletindo sobre o papel da comunicação no ensino de matemática, Alro e Skovsmose (2006) afirmam: Para que uma sociedade seja uma democracia plena é importante que todos saibam ler e escrever. Como Freire mostrou, literacia pode significar muito mais do que a simples competência de ler e escrever. Literacia pode se referir também à competência para interpretar uma situação como algo que pode ser alterado ou à identificação de mecanismos de repressão. Sendo parte integrante do arcabouço da Educação matemática crítica, a noção de matemacia tem um papel que corresponde à noção de literacia na formulação de Freire2. Assim, as qualidades de aprendizagem de Matemática que particularmente nos interessam são representadas pela matemacia. A matemacia é de grande relevância para a democracia e para o desenvolvimento da cidadania da mesma forma que a literacia. (ALRO; SKOVSMOSE, 2006, p.19)

Analisar o ensino de matemática desse ponto de vista é articular cada vez mais a escola ao processo de construção da cidadania plena pelo aluno. Independentemente da corrente teórico-filosófica e da concepção de ensino que permeiam o pensamento desses autores, merece destaque o status que a Matemática e a Democracia adquirem no termo “matemacia”, sem um se sobrepor ao outro em uma relação dialógica. Assim, é possível pressupor um ensino comprometido, por um lado, com a construção dos conceitos matemáticos e, por outro, com a transformação social. Com efeito,

“Veja Skovsmose (1994, 2005). O termo matemacia é usado aqui com o mesmo significado do termo meteracia usado por D´Ambrósio em vários de seus trabalhos sobre etnomatemática.”. Esta nota faz parte da citação (ALRO; SKOVSMOSE, 2006, p.19). 2

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da interação entre o que é geral e o que é específico não se exclui os conceitos de afirmação e democracia. Esse debate aflora, corporifica-se e personifica a Educação do Campo. A materialização de tais premissas na sala de aula passa necessariamente pelas escolhas didáticas que fazem os professores. Como acentua Margolinas (1993), uma escolha só pode ser efetivada por alguém que está diante de alternativas. Sendo assim, se o professor constrói sua aula com base apenas no livro didático, em alguns casos um único livro, a aula tende a ignorar as especificidades da classe, do aluno e do lugar que ele ocupa na sociedade. Desse modo, o cenário de ensino se traduz em uma realidade genérica de um aluno igualmente genérico. Essa questão complexa requer soluções também complexas, que dependem de vários fatores. Dentre eles destacam-se a elaboração de livros didáticos e os conhecimentos que seus conceptores mobilizam nesse processo de construção. Particularizando esse debate, reportamo-nos ao número expressivo de obras que vêm sendo excluídas do PNLD ao longo dos anos, conforme pode ser verificado nos Guias de Livros Didáticos amplamente difundidos nos meios educacionais. Podemos conjecturar que dentre as causas que justificam esse resultado pode estar a relação que os autores entretêm com os conhecimentos das áreas de conhecimento contempladas na obra, dos sujeitos a quem elas se destinam e de suas realidades. No que concerne aos conteúdos matemáticos, citamos, a título de exemplo, que os conceitos de número, de área, de simetria e de função têm reconhecida relevância para a construção do pensamento matemático do aluno, com evidentes repercussões nas práticas sociais. Uma abordagem incorreta desses conteúdos pode induzir o aluno ao erro e comprometer a aprendizagem de tais conceitos, por vezes, de maneira irreversível, prejudicando sua relação com a Matemática. Um aspecto que permeia essa reflexão diz respeito ao caráter de formação continuada que o livro didático assume por meio do manual do professor. Pessoa (2009), analisando o papel que esse recurso desempenha nas aulas de língua estrangeira, pondera:

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A racionalização do ensino tornou os professores, então, meros aplicadores de programas e pacotes curriculares desenvolvidos por agentes externos. E o que são os livros didáticos nas aulas de língua estrangeira? Eles “são o currículo” [...], isto é, contêm um programa e as habilidades a serem trabalhadas, e servem não apenas como fonte de conteúdo, mas também como fonte de procedimentos, inclusive com manuais que detalham todos os passos do professor. (Ibid., p.55)

Aproximando essa ponderação ao ensino de matemática, acentuamos que em muitos casos o livro tem sido o único meio de formação ao qual o professor tem acesso, o que é agravado pela pouca ou nenhuma formação matemática, sobretudo, dos professores que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental. Mesmo considerando as diversas variáveis que intervêm no processo de formação continuada, não podemos isentar os livros didáticos dessa função e responsabilidade. A indução ao erro é algo inconcebível quando se trata de formar o professor, o que justifica a atenção que o PNLD tem dedicado às orientações para o professor, contidas nos livros didáticos. Avançando neste debate, trazemos alguns elementos da Educação do Campo que em complementaridade com a Educação Matemática nos permite situar nosso pensamento sobre o livro didático para ensinar matemática em escolas do campo.

Educação do campo e o livro didático

Como largamente difundido por estudiosos e militantes, a Educação do Campo emerge das lutas dos movimentos sociais do campo que reivindicam a terra e a educação como direito do camponês. Ela é pensada por e com os povos do campo e se contrapõe à Educação Rural que nega os saberes e a cultura camponesa como fatores relevantes para a emancipação humana (CALDART, 2008; RIBEIRO, 2013). Ancorada na concepção de Educação Popular (FREIRE, 2003), a Educação do Campo

adota

como

premissa

a

valorização

do

conhecimento

de

cada

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sujeito na construção de conhecimentos e de um novo projeto societário. Educação do Campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizada pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas. Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classes) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e formação humana (CALDART, 2012, p. 257).

Como se pode constatar por meio desta definição, a Educação do Campo está profundamente ancorada nas dimensões política, social e humana. Ela se concretiza na contradição e na complementaridade que se estabelecem nas relações e inter-relações entre o urbano e o rural; o campo e a cidade; o universal e o local, o afirmativo e o democrático. Esse movimento dialético nutre as lutas sociais dos povos do campo que anseiam por uma educação de qualidade. Se por um lado reivindica-se o direito à terra, o respeito à cultura camponesa e os direitos democráticos que lhes foram historicamente negados, por outro propõem-se ações afirmativas que lhes restituam esses mesmos direitos. De fato, entendemos que: [...] a Educação do Campo entretém uma relação dialógica com as identidades e os espaços sócio-territoriais e com as práticas e lutas protagonizadas pelos povos do campo. Ela nasce e se fortalece no paradoxo. Por um lado, o êxodo rural, o inchaço urbano, a produção agrícola na perspectiva do agronegócio, o alto índice de analfabetismo e o analfabetismo funcional. Por outro, a mobilização dos movimentos populares, a reivindicação e a luta pelo direito à terra e o fortalecimento da agricultura familiar camponesa (LIMA; FRANCO, 2013, p. 363).

Relacionar conhecimentos

fenômenos aprofundados

que sobre

a

princípio eles

por

parecem parte

de

antagônicos quem

requer

estabelece

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tais relações. Neste contexto, incluem-se professores, gestores escolares e produtores de recursos didático-pedagógicos, destacando-se o livro didático pelas razões já abordadas. Alguns ponderam que a simples alusão à palavra “campo” e a mera utilização de imagens caricaturais são suficientes para construir um livro para ser utilizado por professores e alunos do campo. Outros supõem que trabalhar com as medidas agrárias ou contar como outrora os pastores contavam suas ovelhas já contempla o campo. Contar indiozinhos que navegam em embarcações no rio também é um cenário que pode ser comumente utilizado para definir o campo. Porém, essa maneira de ensinar reflete uma visão simplista e distorcida sobre os povos do campo que urge ser superada. Para que tais situações se tornem, de fato, eficazes é necessário problematizá-las com a realidade e, para isto, os princípios estruturantes da Educação do Campo precisam ser observados. Reconhecer que o ensino de Matemática pode contribuir com e para a transformação social é, portanto, condição sine qua non para os atores educativos que atuam ou que pretendem atuar no campo.

O livro didático e o PNLD Campo

O PNLD, enquanto política pública, é fruto da reivindicação das organizações sociais que militam pela Educação do Campo e, como tal, deve ser disputada, debatida e aprimorada, com vistas a atender aos anseios da sociedade camponesa. Nessa perspectiva, elaborar um material didático para ensinar matemática nas escolas do campo significa enfrentar os desafios que são inerentes tanto ao Campo quanto à Matemática (LIMA; LIMA, 2013). Neste contexto, o PNLD Campo assume um papel relevante na medida em que atua como um instrumento de controle social e acadêmico dessa produção.

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Em sua primeira edição, o Programa selecionou obras destinadas aos alunos e professores dos anos iniciais do ensino fundamental de escolas multisseriadas, seriadas e por segmento de aprendizagem (BRASIL, 2011). Vários aspectos foram contemplados no processo avaliativo que vão desde os aspectos editoriais, passando pela linguagem utilizada até os aspectos metodológicos e conceituais inerentes a cada área do conhecimento.

Como todo processo em fase de implementação, os critérios para a adesão das editoras e para a avaliação das obras para este público em específico precisam ser aprimorados, mesmo considerando o caminho do amadurecimento trilhado pelo Programa em outras modalidades de ensino. Uma das críticas recorrentes ao PNLD nas suas diversas edições se refere à influência que exerce as matrizes teóricas e metodológicas dos avaliadores que, na visão de alguns, submetem os autores e editores de livros didáticos a adotarem tais matrizes. Sem ter a intenção de invalidar a crítica nem a sua pertinência, ressaltamos que este aspecto não é contemplado nos critérios de exclusão explicitados nos editais do Programa. Para abordar o processo avaliativo do PNLD Campo tomamos como exemplo a exigência da “correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos” (BRASIL, 2011, p. 32), um dos critérios de exclusão, conforme explicitado no edital:

Além dos erros explícitos, devem ser evitadas as induções ao erro e as contradições internas. Ainda que seja didaticamente indicada uma abordagem menos formal e mais intuitiva, no ensino inicial de conceitos abstratos, são injustificáveis conceituações confusas, que possam conduzir a ideias equivocadas ou capazes de gerar dificuldades na aprendizagem posterior dos conceitos (BRASIL, 2011, p.42).

Esse critério é passível de ser pouco dissonante porque o livro didático é um recurso construído com o objetivo de ensinar, embora o conceito de erro seja relativo. Conduzir ou induzir o professor a construir concepções errôneas é um paradoxo que compromete a própria ideia de escola e de ensino. Segundo o Guia do Livro Didático – PNLD Campo 2013, das dezoito coleções

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inscritas apenas duas foram aprovadas pelo Programa. O número de obras excluídas indica que ainda temos um longo caminho a percorrer no processo de elaboração de obras didáticas destinadas aos alunos de escolas do campo. O desafio se amplia quando nos deparamos com a imensidão do território geográfico brasileiro. Sua extensão continental, a diversidade étnico-racial e sociocultural, seus meios de produção e ciclos produtivos. Essas são apenas algumas das dimensões a serem consideradas pelo ensino escolar e, consequentemente, na elaboração de livros didáticos. São dimensões que colocam em “xeque” o modelo adotado pelo PNLD, e pelo PNLD Campo em particular, quando propõe a construção de livros para serem utilizados nacionalmente, por alunos do ‘Oiapoque ao Chuí’. As referências ao uso da terra, aos modos de vida e às lutas sociais que representam cada campo e cada diversidade são, em geral, trabalhadas precariamente nas obras. Este é um ponto de inflexão que demanda uma discussão mais aprofundada.

Considerações finais

Neste capítulo refletimos sobre os livros didáticos destinados ao ensino nas escolas do campo, a partir das premissas da Educação Matemática e da Educação do Campo. Essa reflexão não só aponta caminhos para o ensino de matemática em escolas do campo, como ao mesmo tempo abre novos questionamentos sobre essa temática focada na política da avaliação de livros didáticos do PNLD Campo. Em que medida os livros didáticos avaliados pelo Programa levam em consideração os saberes construídos pelos povos do campo e a sua diversidade? De que maneira os princípios da Educação do Campo são incorporados nos processos de elaboração e avaliação das obras? Como a Matemática, dentre outras áreas de conhecimento é trabalhada, tendo em vista o aluno para o qual se destina? Reconhecendo a atualidade e a relevância do tema, um dos cinco eixos discutidos na Oficina de Planejamento

realizada

pelo

Fórum Nacional de

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Educação do Campo (FONEC), em junho de 2013, foi a “Produção de Material DidáticoPedagógico para as Escolas do Campo”. Na ocasião, muito se debateu sobre a pertinência ou não do PNLD Campo, sua concepção, execução e critérios de avaliação, bem como o processo de distribuição nacionalmente. No documento síntese produzido por pesquisadores, professores e militantes dos movimentos sociais que participaram do Fórum, emergem princípios e procedimentos que foram considerados fundamentais para a produção de recursos didático-pedagógicos do e para o campo. Dentre eles destacamos os seguintes: Pautar-se na tríade “Campo-Educação-Políticas Públicas”, conforme o significado pelo qual se sustenta este conceito no âmbito das discussões inerentes à Educação do Campo; Pautar-se pelos princípios da Educação do Campo em diferentes linguagens para contemplar crianças, infanto-juvenis, jovens, adultos e idosos; Pautar-se pela perspectiva da integração de saberes; Pautar-se pelo trabalho como princípio educativo; Pautar-se pela pesquisa como princípio educativo; Vincular-se à realidade do campo, sem confinar-se a ela; Resgatar e valorizar as histórias das lutas dos sujeitos do campo – agricultores familiares camponeses; Ter correção conceitual; Estabelecer relação dialética, isto é, sem subordinação, entre: universallocal, campo-cidade ou urbano-rural, saber científico-saber popular, entre outras relações profícuas nos processos de criação humana; Articular-se dialogicamente com a formação de professores. (FONEC, 2013, p. 9)

Neste cenário, a produção de recursos pelos sujeitos do campo que têm experiência e acúmulo sobre o Movimento por uma Educação do Campo requer a valorização e a valoração que lhe tem sido historicamente negada. Esse é, portanto, um tema instigante que merece ser revisitado e pesquisado com a finalidade de aprimorar o processo de produção de livros didáticos para serem utilizados por professores e alunos de escolas do campo, com vistas a contribuir, efetivamente, para a aprendizagem, a construção da cidadania e a transformação social.

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Nota ao(à) leitor(a) Considerando a necessidade de revisão textual no artigo publicado em Carvalho e Martins (2014)i, a versão anterior deve ser substituída pela atual. A autora i

CARVALHO, Gilcinei Teodoro; MARTINS, Maria de Fátima Almeida (Org.). Livro Didático e Educação do Campo. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2014. (ISBN 987-85-8007-081-1)

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