O ensino jurídico na Escola do Ressentimento

July 3, 2017 | Autor: P. Oliveira de Al... | Categoria: Ensino Jurídico, Crise do Ensino Jurídico
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O ensino jurídico na Escola do Ressentimento


Philippe Oliveira de Almeida[1]

A Jorge Conrado

"Estamos destruindo todos os padrões intelectuais e estéticos nas
humanidades e ciências sociais, em nome da justiça social". – Harold Bloom

O cientista político italiano Antonio Gramsci notabilizou-se por
defender que a superestrutura político-ideológica (Estado, Direito, Moral,
Religião, Filosofia, Arte, Linguagem etc.), mais que o ópio do povo ou as
flores imaginárias ocultando as algemas da infraestrutura socioeconômica,
representaria um mecanismo para inibir a potencialidade revolucionária do
proletariado. O controle da Paidéia pelas classes dominantes (hegemonia)
asseguraria o consenso passivo da sociedade civil. Assim, para Gramsci, o
combate à exploração burguesa não poderia prescindir de uma crítica da
cultura: a luta de classes se estenderia do porão infraestrutural ao sótão
superestrutural – ou, ainda, da Fábrica à Academia.
O apelo do "marxista das superestruturas" foi ouvido nas
universidades. Nas Ciências do Espírito, o programa de transformação social
de Gramsci traduziu-se na tentativa de desmascarar o caráter elitista,
racista e sexista da tradição judaico-cristã ocidental. A educação
clássica, centrada na leitura de autores canônicos – figuras tão díspares e
infames quanto Homero, Platão, Cícero, Agostinho, Petrarca, Montaigne,
Rousseau –, foi identificada como "mistificação promovida por instituições
burguesas". A autoridade de obras-primas como a Ilíada ou Do Contrato
Social adviria não de pretensos valores intelectuais e estéticos, mas da
operacionalização de tais textos por estruturas e discursos de poder. Logo,
na busca de harmonia social e de remediação de injustiças históricas,
competiria ao acadêmico desconstruir o Cânone Ocidental, fruto de "energias
sociais" e "forças históricas" mobilizadas pelo establishment na luta de
classes. Doravante, as Humanidades deveriam trabalhar pela conquista não da
sabedoria, mas do Estado – e funcionar, como queria o filósofo francês
Michel Foucault, como bisturis ou coquetéis molotov.
A ascensão, na universidade, de bandeiras como a cultural-
materialista, a neo-historicista e a feminista é reflexo da tentativa de
substituir o conceito de studia humanitatis – conjunto, legado pela
tradição latina, de disciplinas adequadas à formação da juventude, e que a
capacitariam para o exercício de sua humanitas por meio da leitura de obras
clássicas – pelo de estudos culturais. Trata-se de mostrar que as
pretensões universalistas da educação clássica, impulsionada por noções
transcendentais como as de Verdade, de Bem e de Beleza, são, em última
instância, máscaras para superdeterminismos de raça, classe e gênero. É
paradigmática, a propósito, a mutação sofrida pela literatura. Escritores
como Henrik Ibsen, Thomas Mann e Virginia Woolf são lidos, hoje, não pela –
inegável! – originalidade de seus trabalhos, mas por seus posicionamentos
em discussões relativas a orientação sexual e questão de gênero. Ademais, a
recente celeuma em torno da revelação de que Günter Grass participara, na
adolescência, da Waffen-SS (tropa de elite do exército do Reich), bem como
o escândalo face à descoberta da colaboração de Rubem Fonseca com o IPES, à
época da Ditadura Militar, são indicativos de que não é o valor estético,
mas a adesão a virtudes morais e cívicas, o principal critério que a
Academia vem empregando para direcionar suas pesquisas. O engajamento
suplantou a contemplação – ou, fazendo alusão a célebre ensaio de Richard
Rorty, Trotski esmagou as orquídeas selvagens.
A referido fenômeno, o crítico literário Harold Bloom atribuiu a
alcunha de Escola do Ressentimento. O termo, que congrega vários
movimentos, aponta para um ensino de literatura que abandona a busca do
Sublime e se deixa pautar pela correção política e por considerações
sociais. A propósito, Bloom é incisivo ao condenar a relativização do
estético e a substituição de autores canônicos (como Dante e Shakespeare)
por representantes literários de minorias oprimidas e grupos vulneráveis
(como Alice Walker). E sentencia o autor: "ler ideologicamente não é ler".
Como Arthur Austin – no livro The Empire Strikes Back: Outsiders and
the Struggle over Legal Education, publicado pela primeira vez em 1998 – já
evidenciou, também o Direito, ramo das Ciências do Espírito, padeceu da
influência de Gramsci. Reagindo à agenda liberal, que, sob a ilusão de um
sistema legal neutro, ocultaria uma realidade opressora e excludente,
diversos juristas mobilizaram-se no sentido de questionar o monopólio da
legitimidade do Direito pelo Estado. Com o fito de subverter a alegada
dominação política do Capital sobre o ensino jurídico tradicional, tais
intelectuais procuraram demonstrar como o pensamento jurídico, de Cícero a
Jhering, restaria irremediavelmente comprometido com uma perspectiva
patriarcal e etnocêntrica. Nesse sentido, a definição clássica de justiça
(como vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe é devido)
apenas acobertaria a natureza do fenômeno jurídico como conveniência do
mais forte, tal como apresentada na Antiguidade por Trasímaco. Nessa
esteira, o Direito, em sua integralidade, não seria mais que um epifenômeno
do comando do Macho Adulto Branco sobre o resto da população. Seu caráter
analítico, racional, linear, geral e abstrato – isto é, suas pretensões
universalistas – apenas ilustraria o horror do europeu à diferença e à
diversidade.
Desse modo, caberia ao jurista desmascarar o sistema de opressão e
violência política subjacente ao Direito institucionalizado – ou, na
singular imagem aventada por Foucault, expor as manchas de sangue nos
códigos. Com efeito, modelos tão distintos quanto o Direito Achado na Rua
(Roberto Lyra Filho), o Pluralismo Jurídico (Antônio Carlos Wolkmer) e os
Critical Legal Studies (Roberto Mangabeira Unger) aproximam-se pela
insistência no caráter ideológico e estratégico das decisões judiciais e
pela rejeição ao pensamento jurídico clássico, que, sob o simulacro da
legitimidade, encobriria o exercício da força coativa. A relevância de
Ulpiano, Irnério, Tomás de Aquino e Savigny decorreria, tão-só, da sintonia
de suas respectivas doutrinas com os aparelhos repressivos contemporâneos a
elas. O Ocidente, herdeiro do Corpus Iuris Civilis, teria se transformado
em uma Civilização de Códigos, contaminado por uma racionalização formal-
normativa e por uma visão potestativa do direito. Ora, da mesma maneira
como, nas Humanidades em geral, a Escola do Ressentimento vem tentando
imolar o Cânone Ocidental em honra ao politicamente correto, no âmbito do
ensino jurídico os outsiders atuam no sentido de desvalorizar a herança
deixada pelo Direito Romano. Com esse intuito, referidos autores
contrapõem, a um ordenamento jurídico codificado e sistematizado, formas
alternativas – leia-se: tribais – de resolução de conflitos e de justiça
comunitária.
"Direito é política!" – com este adágio, a Escola do Ressentimento
pretende convocar a participação de advogados, promotores e juízes nas
invasões bárbaras que, numa suposta era pós-moderna, finalmente
desmantelariam a sociedade de classes. Abordagens engajadas - marxistas, ou
pós-estruturalistas, ou historicistas, ou feministas – se apresentariam
como alternativa à utopia de uma compreensão JURÍDICA do fenômeno jurídico.
O texto legal deveria ser interpretado à luz, não de uma idéia de justiça
"abstrata", mas de fundamentos ideológicos "concretos".
Se o positivismo jurídico intentava reduzir o Direito à técnica, a
Escola do Ressentimento ameaça limitá-lo à dominação. No frigir dos ovos,
tanto um quanto outro rejeitam a dimensão sapiencial e prudencial do
Direito. Ao minar a diferença entre decisões judiciais e políticas
públicas, a Escola do Ressentimento nega a validade da multisecular
tentativa de transcender, no exercício de dizer o Direito (juris dicere),
as parcialidades e as contingências históricas, e captar, sob os auspícios
de Têmis, valores absolutos que permitam iluminar o conflito. A
judicialização da política (quer dizer, a politização da justiça) é a
conseqüência imediata de tal relativismo.
Portanto, a solução para a crise nas relações entre o sistema
judicial e o sistema político deverá, necessariamente, passar por uma
revalorização dos autores clássicos (muitos deles, europeus homens brancos
mortos, juristas ou não) que, no curso da história do Ocidente, trabalharam
para traduzir o princípio eterno do Justo na esfera temporal. Como Harold
Bloom afirmou, certa feita, "pressão social e modismos jornalísticos
conseguem obscurecer, por algum tempo, os padrões do esplendor estético, da
força intelectual e da sapiência, mas Obras Datadas jamais sobrevivem", e
"a mente sempre volta às suas próprias necessidades de beleza, verdade,
discernimento". Há que se evitar que o Direito seja instrumentalizado pela
ideologia. Se o ensino jurídico, na Escola do Ressentimento, procurou
diluir o contrafático da legitimidade no fato do poder, faz-se necessário,
hoje, preservar a autonomia do Direito em face da ação política. Semelhante
meta só será atingida quando nós, os tardios, reassumirmos plenamente a
filiação à tradição romanística e compreendermos que o núcleo de um
ordenamento jurídico não é a força, mas a sabedoria secular.
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[1] Doutorando em Filosofia do Direito pela Faculdade Direito da UFMG.
Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Bacharel em
Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
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