«O Epistolar como modo comunicacional da imprensa de opinião no século XIX»

September 21, 2017 | Autor: Ana Peixinho | Categoria: Journalism, Epistolary research
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«O Epistolar como modo comunicacional da imprensa de opinião no século XIX» Ana Teresa Peixinho Universidade de Coimbra / CEIS20 1. A carta no espaço do jornal: vínculos históricos O papel da carta como um modo de comunicação configurado publicamente e de fundamental ligação ao espaço público mediático tem sido raramente explorado. A carta, com efeito, é muito mais facilmente estudada e analisada como um meio de comunicação adstrito ao privado e raramente a associamos ao espaço público. Num momento em que parece ressurgir a comunicação personalizada, nomeadamente através dos recursos electrónicos (emails, telemóveis, e um sem número de recursos electrónicos), valerá a pena re-situar a importância desta modalidade discursiva no contexto histórico da comunicação de massas, nomeadamente da imprensa, revisitando uma época em que ela se constituía claramente com um modo de comunicação do espaço público. Com efeito, se folhearmos os jornais mais conhecidos do século XIX português, verificamos o considerável espaço ocupado pela carta, enquanto recurso discursivo e textual que proporcionava aos signatários a intervenção pública em áreas que iam desde a Política à Literatura, abarcando grande amplitude temática. Era geralmente a carta, veiculada pela imprensa, que trazia a público posicionamentos, opiniões, através dos quais se alimentavam polémicas de natureza muito heterogénea. O sociólogo Gabriel Tarde, ao explicar a importância do jornalismo na formação da opinião pública no século XIX, perspectiva o jornal como uma carta pública, com importantes funções na modelação de um público e de uma opinião partilhada por grupos cada vez mais alargados. Equivalente a uma conversa amplificada, com origens na correspondência privada, o jornal é entendido como : “une lettre publique, une conversation publique, qui, procédant de la lettre privée, de la conversation privée, devient leur grande régulatrice et leur nourriture la plus abondante, uniforme pour tous dans le monde entier, changeant pour tous profondément d’un jour à l’autre.” (Tarde, 1989: 136).

Também Habermas, referindo-se ao período artesanal da imprensa, sublinha a importância vital do sistema de correspondências privadas para o florescimento do que apelida de “negócio periodístico”: 1

“Surgido del sistema de correspondencias privadas, y auspiciado por ellas durante mucho tiempo, el negocio periodístico estaba en sus comienzos organizado ao modo de la pequeña industria artesana (…)” (Habermas, 2002: 209).

Destas palavras se infere, portanto, a íntima relação genética entre a função primária dos jornais e as correspondências privadas. Importa, ainda, determo-nos nas teorias de Habermas pois, na sua conhecida abordagem à constituição do espaço público (Habermas, 2002), o autor reflecte desenvolvidamente sobre o papel do epistolar na emergência da subjectividade, conceito fulcral da sua teoria. Na verdade, a importância das cartas, exponencialmente desenvolvidas ao longo do século XVIII, encontra as suas raízes mais antigas no século XIV, aquando da organização e consolidação dos então incipientes mercados europeus. Esta necessidade de fazer circular informações e de fazer chegar notícias oportunas aos interessados, vital para os negócios, levou a que a troca de cartas entre os comerciantes se profissionalizasse através de um sistema de correspondências, no qual as notícias passaram também a assumir o papel de mercadorias1. Trata-se, no fundo, de chamar a atenção para uma das funções primeiras que, desde a Antiguidade, as correspondências epistolares assumiram: fontes de informação, meios pelos quais se transmitiam notícias e se mantinham destinatários distantes próximos do desenrolar de acontecimentos. No final do século XIX, Gustave Lanson, no texto introdutório a uma antologia de cartas do século XVII, refere-se precisamente a esta função informativa que subjaz à troca epistolar, desde o antigo Egipto, até Mme de Sévigné – “On s’assurait des correspondants pour savoir ce qui se passait dans le monde.” (Lanson apud Adam, 1998: 37) – e, mais à frente, chega mesmo a comentar a alteração desta prática causada sobretudo pela imprensa moderna, apoiada no telégrafo: “De nos jours, les journaux impriment ce que les lettres particulières contenaient seules autrefois (…)” (Lanson apud Adam, 1998: 38).

Na verdade, se atentarmos na forma dos primeiros jornais, verificamos que grande parte deles eram de tipo epistolar2: quando Théophraste Renaudot lança, em 1631, a sua Gazette, esta apresentava-se como uma súmula de correspondências provindas de diversas cidades estrangeiras, de Paris e da Corte (Mathien, 1995). Michel 1

Habbermas explica: “El tráfico de noticias se desarrolla no solo en relación con las necessidades del tráfico mercantil: las noticias mismas se han convertido en mercancías. La información periodística profesional obedece, por tanto, a las mismas leys del mercado, a cuyo surgimiento debe ella su propria existência.” (Habbermas, 2002: 59). 2 Marie-Ève Thérenty e Alain Vaillant afirmam que a carta é o modelo matricial da imprensa, desde os seus inícios no século XVII até ao século XIX: “Théophraste Renaudot offrait aux lecteurs de sa Gazette l’équivalent de la correspondance diplomatique ; Girardin, lui, écrit une lettre ouverte à son public, diffuse des lettres qu’il reçoit de ses correspondants ou même de ses abonnés ou publie ses propres réponses.” (Thérenty e Vaillant, 2001 : 103).

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Mathien explica que também nos Estados Unidos, no decurso do século XVIII, a imprensa nascente explora a íntima relação com os correios, uma vez que os primeiros editores e jornalistas eram simultaneamente chefes de correio (Mathien, 1995: 36). Mesmo antes do aparecimento dos jornais marcados pela periodicidade, desde o século XIII que circulam, nos grandes centros comerciais europeus, notícias manuscritas, organizadas em forma de correspondências, a que se dava o nome de “avvisi” (Balle, 1997: 73). A circulação destas folhas noticiosas manuscritas conhecem uma expansão considerável no século XVI e adquirem designações variadas – cartas, discursos, relações ou avvisi (Tengarrinha, 1989: 25). Inclusive, o facto de muitos dos primeiros jornais europeus se chamarem ‘mercúrios’ também é sintomático. Em Portugal, desde o século XVII até ao primeiro terço do século XIX, assistiu-se a uma vaga de aparecimento de “mercúrios”, desencadeada pelo Mercúrio Português, fundado em 1663 por António Sousa de Macedo, que se inspirou na realidade dos Países Baixos, onde viveu algum tempo como diplomata (Pena Rodríguez, 1996: 352). 2. O epistolar e a configuração do espaço público Para além desta relação histórica mais imediata, entre a escrita epistolar e a constituição dos primeiros periódicos, existe uma relação muito mais profunda e estruturante entre este modo discursivo e a configuração de um espaço público, no qual os jornais desempenharam, como é sabido, um papel crucial. Retomando o raciocínio de Habermas, percebemos que o século do Iluminismo foi um período fundamental para a constituição do espaço público burguês. Segundo o autor, o século XVIII assistiu ao aparecimento de um conjunto de fenómenos culturais, acompanhados pela emergência de diversos espaços urbanos, que facilitaram a discussão sobre várias questões públicas, inicialmente de âmbito literário e cultural mas que, progressivamente, se foram aproximando do político. O nascimento dos cafés, em Inglaterra e França, o aparecimento dos salões e das curiosas “ruelles”, os museus e teatros instituíram-se, no decurso do século, como espaços sócio-discursivos, propícios à reunião de pessoas esclarecidas e cultas, em que se discutia e se trocavam opiniões. Trata-se, portanto, de um conjunto de estruturas burguesas, em que grupos de indivíduos discutiam, criticavam e escreviam sobre bens literários e culturais: “El sobrepeso de la “ciudad” es apuntado con nuevas instituciones que, con toda su diversidad, tienen en Inglaterra y en Francia idénticas funciones sociales: las casas de café en su época floreciente, entre 1680 y 1730, los salones en la época que media entre la Regencia y la Revolución.” (Habermas, 2002: 70).

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Nestes espaços discursivos, foi-se construindo uma “república das letras” na qual as redes epistolares assumiram uma dupla importância, não só por se instituírem como meios propícios à afirmação da subjectividade, mas também por serem o suporte de debates de ideias e de trocas de opiniões. Sublinhe-se, aliás, que, segundo a teoria habermasiana, a configuração do espaço público nasce precisamente no seio das relações de pessoas privadas, fundadas na esfera da família e alicerçadas na valorização da subjectividade. Assim, o aparecimento de um novo subgénero literário como a novela epistolar, simbolicamente marcado pela publicação de Pamela do inglês Richardson, em 1740, bem como a valorização de géneros como o diário ou a carta, são sintomas de uma profunda alteração dos hábitos de leitura do público burguês e de uma profícua fusão entre público e privado, responsável, afinal, pela construção do espaço público setecentista3. Ora, a carta, sendo originariamente um género discursivo construído para circular no domínio do privado, funcionou, ao longo de todo o século XVIII e mesmo posteriormente, como um meio de expressão do pensamento e um espaço ideal de debate. Importa, portanto, perceber as motivações da escolha de um modo como o epistolar cuja especificidade se revelou fundamental para dar forma ao debate de ideias e ao pensamento. Recordemos que a carta materializa uma enunciação discursiva, definida em termos de subjectividade, em que o sujeito enunciador integra a superfície textual, através das marcas deícticas. Por outro lado, o principal valor distintivo do género residia no facto de ele se consubstanciar sempre em textos dirigidos, isto é, as cartas são textos escritos para alguém. Subjectividade e dialogismo são, assim, duas das propriedades essenciais do modo epistolar que, na nossa opinião, subjazem à sua utilização tão recorrente. Anne Chamayou é muito clara quando afirma que : “l’importance du choix épistolaire manifeste l’avènement d’une nouvelle manière de penser et d’écrire: celle qui, dans l’acte solitaire de la création, se donne pour obligation de postuler l’autre, interlocuteur, partenaire, destinataire – figure de “correspondance”.” (Chamayou, 1998: 248).

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Para Habermas, “las cartas ajenas no solo se prestan y transcribem; muchos intercambios epistolares están ya de antemano, como muestran en Alemania los ejemplos de Gellert, Gleim y Goethe, previstos para la imprenta. (…) Así se explica a partir de la subjetividad (…) de los intercambios epistolares y de los diarios íntimos el origen del género típico y de la própria disposición literária de ese siglo: la novela burguesa, la descripción psicológica en forma autobiográfica.” (Habermas, 2002: 86).

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Estas especificidades do modo epistolar permitem-nos, em parte, perceber os motivos da escolha da carta como forma propícia à discussão científica, ao debate e ao diálogo filosófico. No entanto, na perspectiva de alguns autores, mesmo no decurso desse iluminado século XVIII, configurou-se um discurso crítico sobre o epistolar que desvalorizava as suas aptidões filosóficas, remetendo-o para as margens de um sistema literário muito hierarquizado. Na perspectiva de José Luís Diaz (Diaz, 1998: 13-35), por exemplo, o “fenómeno Sévigné” marcou a primeira grande revolução das práticas epistolares, ao projectar a carta na sua dimensão mundana e socializante, facto que terá contribuído, em parte, para a sua desvalorização enquanto discurso pensante. Na verdade, a partir da publicação das cartas de Mme de Sévigné, assiste-se a três fenómenos interessantes, no âmbito das práticas epistolares: por um lado, a escrita de cartas é liberalizada, tornando-se acessível a todos aqueles que soubessem escrever, mesmo não pertencendo ao mundo dos literatos; por outro lado, e decorrente deste, a carta começa progressivamente a transpor as fronteiras do mundo da literatura, instituindo-se cada vez mais como uma prática eminentemente informativa; finalmente, a ideia de que o epistolar é um domínio privilegiadamente feminino, reservado às mulheres e facilmente moldável às suas sensibilidade e superficialidade recolhe muitos consensos. Como consequência, a carta passou a ser vista pela crítica setecentista como um domínio incompatível com a expressão do pensamento racional, pouco próprio ao desenvolvimento de um raciocínio sério e profundo, antes propícia à expressão sincera, espontânea e natural dos sentimentos e das emoções (Diaz, 1998: 13-16). Parece-nos importante salientar este aspecto do discurso crítico sobre o epistolar, até porque aparentemente ele contradiz a perspectiva habermasiana que, como vimos, entende o registo epistolar na sua dupla dimensão socializante e pensante. O próprio Habermas reconhece que a carta, ao longo da centúria de setecentos, foi muitas vezes considerada como “estampa da alma”, “visita da alma”, “escrita com sangue do coração” (Habermas, 2002: 86). Apesar disso, insiste, na sua teoria da construção do espaço público, na importância das redes epistolares para a construção de espaços discursivos que, a par com os cafés e os salões, alimentavam o debate e a discussão pública. Ora, na nossa opinião, parece-nos inquestionável que a escolha de uma forma como a carta, para plasmar ideias, alimentar debates e expor pensamentos, é sempre sintoma da valorização de uma postura discursiva orientada para o outro, pautada pela intersubjectividade e pelo dialogismo. 5

Por outro lado, se pensarmos em nomes como os de Voltaire, autor das célebres Lettres Philosophiques, de Diderot que escreveu entre 1749 e 1751 as Lettre sur les aveugles e Lettre sur les sourds et muets, de Rousseau, autor da Lettre à d’Alembert sur les spectacles datada de 1758, ou de John Locke que publicou em 1689 a Letter on Tolerance, perceberemos que o epistolar é o meio ideal para resgatar a agilidade do pensamento e do raciocínio “sans tomber dans les pesanteurs de «la» pensée.” (Diaz, 1998: 33). Acreditamos, assim, que a dinâmica epistolar que atravessou todo o século XVIII, tanto no domínio da ficção, com a criação do romance epistolar, como no domínio do debate de ideias, é claramente um sintoma da alteração das práticas discursivas públicas, cujo nascimento do espaço público burguês, tal como o define Habermas, é uma das principais consequências. Estes dados sobre os primeiros passos da História da Imprensa ilustram bem não só de que forma a epistolaridade marcou a organização e a forma dos primeiros jornais, tendo inclusive constituído um dos instrumentos de construção do espaço público, mas também como, ao longo de toda a centúria de setecentos, os jornais se abriram à publicação de cartas de variados tipos: cartas de correspondentes, editoriais em forma de carta, cartas dos leitores, cartas abertas, etc. De facto, podemos afirmar que a carta é o produto de um tipo de escrita decorrente da distância entre os sujeitos do processo comunicativo, pois é precisamente o hiato espacio-temporal entre emissor e receptor que desencadeia a escrita epistolar. Nada mais natural, então, num período em que, por razões de ordem económica e comercial, a informação se torna um bem precioso, que as correspondências tivessem funcionado como meios de fazer circular notícias e informações, assumindo-se como os primórdios ancestrais do jornalismo. Ora, se pensarmos que, ainda no início do século XIX, antes do aparecimento do telégrafo e dos enviados especiais, os jornais contavam com as correspondências, enviadas de diversas partes do país, para dar conta de informações locais, perceberemos que essa função de fonte de informação, assumida nos primórdios pelas correspondências, ainda se mantém, no decurso do século XIX. 3. O jornalismo de opinião no século XIX Afastando-nos agora dos fundamentos históricos que explicam de certa forma a proximidade entre o modo epistolar e a formação do jornal, tentaremos perceber o papel das cartas no contexto do jornalismo oitocentista, num período em que a imprensa dava 6

grandes saltos quantitativos e qualitativos, no sentido da sua autonomização e especificação. Deste modo, não surpreende que, em pleno século XIX, com o incremento e a massificação do jornalismo, se assista a uma mais fácil divulgação deste tipo de texto, assumindo os jornais o papel de fora de discussão e debate, em que as cartas constituíam peças cruciais. É sabido que, a partir de meados do século XVIII, e com muito maior incidência no século XIX, a imprensa passa a desempenhar importantes funções na dinâmica de debate da esfera pública, assumindo o papel anteriormente reservado aos cafés e salões. Como defende Habermas, a disseminação da imprensa no século XVIII foi fundamental, como vimos, para a formação de um debate público crítico e para o consequente desenvolvimento de uma esfera pública. Acompanhando o movimento dos cafés, salões e teatros, apareceram, no século XVIII, jornais de crítica cultural e semanários morais, peças chave da ilustração pública, que debatiam e discutiam temas de literatura e de arte, prolongando, até na sua forma dialogal, as discussões que saiam dos novos espaços sócio-discursivos e, simultaneamente, alimentando essas mesmas discussões (Habermas, 2002: 78-80). Se nos cingirmos ao contexto nacional, perceberemos o importante papel desempenhado pelos jornais, desde o início do século, no amplo debate desencadeado pela Revolução Liberal, episódio simbólico que marca o início de um inflamado período de discussão política pública: “Após a Revolução de 1820 verificou-se uma eclosão da imprensa de opinião que ajudou a configurar um espaço público burguês. O estilo efusivo e interventor que caracteriza a época é protagonizado em dois pilares: o da eloquência parlamentar e o jornalismo.” (Correia, 1998:90).

De facto, com a entrada das ideias liberais no nosso país, a que não é alheio o importante papel dos nossos intelectuais e políticos exilados, o jornalismo sofre a sua primeira grande transformação, passando a assumir-se como o principal meio do debate de ideias, da propagação de opiniões e da instrução cívica popular. Apesar de o analfabetismo atingir percentagens assustadoras4, facto que reduz o nível de influência 4

Maria de Lourdes Lima dos Santos defende que, apesar das taxas de analfabetismo, o jornal ultrapassa, desde o início do século, o poder de divulgação do livro: “A imprensa, cujo impacto sobre a opinião pública, as lutas liberais e o exílio tinham ajudado a entender, era um veículo privilegiado para assegurar uma audiência tão larga quanto o permitia a baixa alfabetização do País. De qualquer modo, seria mais fácil para um analfabeto encontrar alguém que lhe lesse um jornal do que alguém que lhe lesse um livro; mais fácil seria também comprar um jornal à volta de 50 réis do que um livro à volta de 300 réis.” (Santos, 1985: 147).

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pública dos jornais, e embora a liberdade de imprensa estivesse longe ainda de ser um bem adquirido, devido sobretudo à forte instabilidade política que caracterizou a primeira metade do século, o certo é que a imprensa revolucionária marcou decisivamente o panorama jornalístico português, transformando o jornal num bem público, com forte impacto na opinião e na instrução públicas. Sem nos querermos alongar em considerações históricas, parece-nos fundamental sublinhar o aparecimento de um jornalismo de opinião, fruto do conturbado período revolucionário e pós-revolucionário, pois acreditamos que, ao longo de todo o século XIX, os jornais portugueses dificilmente perderão estas características de empenhamento, de defesa de opiniões, de luta por ideais políticos. Embora reconheçamos, seguindo a maioria dos autores, que o aparecimento do Diário de Notícias, em 1865, marca o início da fase industrial da imprensa, julgamos que, ao longo de todo o século, a imprensa em Portugal manterá muitas das características inflamadas deste primeiro período revolucionário. Bastará para o ilustrarmos perceber o tipo de polémicas travadas pelos nossos intelectuais/jornalistas, em momentos cruciais da História do país, como o Ultimato inglês ou os movimentos operário e republicano; pensarmos na colaboração da maioria dos nossos escritores / jornalistas; no papel que a imprensa desempenhou nas querelas literárias como a Questão Coimbrã ou as Conferências do Casino. Quer isto dizer, portanto, que, embora a partir de meados da década de sessenta, com o aparecimento do Diário de Notícias, jornal popular e barato, o jornalismo português tenha cedido a certos constrangimentos decorrentes da modernização da imprensa, ocorridos um pouco por toda a Europa, o certo é que a presença, no espaço do jornal, de um certo tipo de textos de opinião, a presença da Literatura e o recurso a uma linguagem efusivamente empenhada permanecem durante muito tempo a marcar a prática jornalística oitocentista. Por outro lado, o facto de termos recuado até à fase do jornalismo romântico, herdeiro da Revolução Liberal, prende-se com a relação que pretendemos sublinhar entre epistolaridade e jornalismo de opinião. A concepção de um jornalismo politicamente empenhado, ao serviço de ideais e de causas públicas, propicia naturalmente o recurso a uma linguagem apaixonada, altamente subjectiva, em que predomina a opinião sobre os factos, características que explicam, em parte, a importância que o discurso epistolar assume no quadro dos discursos jornalísticos do século. Sendo a carta um texto altamente subjectivo e pessoal, revelando ao nível

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discursivo a presença das marcas deícticas, ela é, portanto, propícia à exposição de ideias e à defesa de opiniões. 4. As sedutoras propriedades do modo epistolar O recurso ao modo epistolar como forma de intervenção pública é recorrente também noutros contextos políticos e noutros países: em pleno século XIX, o recurso à carta aberta é muito frequente, nomeadamente em escritores célebres, como Émile Zola que publica, em 1898, a conhecida carta J’accuse a qual, embora dirigida ao Presidente da República, se destinava a ser lida por todo o povo francês. Também Michael Warner, na obra The Letters of the Republic, em que demonstra o importante papel da imprensa na consolidação de uma esfera pública norte-americana, no século XVIII, refere o espaço relevante ocupado pela carta panfleto no debate público sobre questões legislativas e políticas: “In the colonial period by far the most popular genres for political debate were the epistolary pamphlet and the dialogue.” (Warner, 1995: 40).

Sublinhe-se, nesta afirmação, o facto de o modo epistolar concorrer, neste contexto, com um género como o diálogo, cujas similitudes integram a essencialidade do modo discursivo epistolar: o dialogismo inerente à carta está, na nossa opinião, intimamente ligado à sua utilização como forma discursiva de intervenção pública, nomeadamente em debates e polémicas. Esta funcionalidade do género decorre naturalmente da ambivalência da carta e da sua extrema maleabilidade: a carta é uma forma textual híbrida e muito permeável, capaz de absorver um leque de temas e de assuntos muito lato, bem como de assumir funções diversificadas. Como afirma Ninna Nevala “letter is often a mixture of different topics: it may include personal, familiar subjects, as well as business reports and new stories (…) The letter as a genre could be, and still can be, a combination of elements from various other genres.” (Nevala e Palander-Collin, 2005: 2).

Deste modo, não surpreende que, em pleno século XIX, com o incremento e a massificação do jornalismo, se assista a uma mais fácil divulgação deste tipo de texto, assumindo os jornais o papel de fora de discussão e debate, em que as cartas constituíam peças cruciais como veículos de opinião. Embora a divisão entre jornalismo informativo e jornalismo opinativo ainda não se tivesse consubstanciado claramente, pelo menos na imprensa portuguesa, em parte devido à indeterminação genológica que afectava os textos jornalísticos, a carta surge, nesta centúria, como um tipo textual

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propício à elaboração de pensamentos em construção e à inserção, no espaço do jornal, de vozes externas portadoras de opiniões. É sabido que, a partir de meados do século XVIII, e com muito maior incidência no século XIX, a imprensa passa a desempenhar importantes funções na dinâmica de debate da esfera pública, assumindo o papel anteriormente reservado aos cafés e salões. Como defende Habermas, a disseminação da imprensa no século XVIII foi fundamental para a formação de um debate público crítico e para o consequente desenvolvimento de uma esfera pública (Habermas, 2002). Coube, no entanto, aos intelectuais do século XVIII reinventar o papel e a função da carta, contornando a rigidez normativa em que o género havia caído no século precedente. A carta aberta é precisamente um dos tipos impulsionados nesta centúria, em que um conjunto de homens de letras souberam diversificar as práticas epistolares. Além da tónica opinativa, sublimada pelo modo epistolar, a utilização da carta em contexto jornalístico permite aos textos ganharem dimensão pública, potenciarem os poderes retóricos e, consequentemente, a força persuasiva. Tendo em conta a dinâmica comunicativa inerente ao género, em que, como já dissemos, a presença do receptor / destinatário adquire uma acuidade especial, o uso da carta em contexto jornalístico potencia a proximidade entre o jornal e o seu público, pois transporta para o domínio público um conjunto de estratégias discursivas típicas da comunicação privada. Este aspecto é, aliás, ainda actual, se pensarmos no peso que a rubrica «Correio dos Leitores» assume em diversos jornais contemporâneos, ou mesmo na ainda frequente utilização da carta aberta por diversos opinion makers do nosso espaço público. Podemos, assim, afirmar que o uso jornalístico da carta insufla o discurso do jornal de um conjunto de vozes outras, conferindo-lhe espessura e polifonia e, sobretudo, inaugurando um espaço textual em que as fronteiras de género se atenuam, e em que se esbatem os limites entre o público e o privado, o discurso oficial e o familiar, criando um campo de sedução para o leitor. Numa época em que a definição dos géneros jornalísticos era ainda muito incipiente, a carta funcionava como um espaço discursivo plurifuncional, polimorfo, adequando-se facilmente a uma vasta gama de assuntos. Daqui decorre outro aspecto relacionado com a utilização do epistolar em contexto jornalístico e que se prende com o carácter literário do nosso jornalismo, tributário, em parte, da íntima relação entre os homens de letras e o espaço discursivo dos jornais. A carta, ao contrário de géneros mais tradicionalmente ligados ao jornalismo, assume-se como um espaço discursivo de liberdade, a partir do qual o 10

escritor / jornalista pode potenciar todos os recursos estilísticos, criando um estilo pessoal e muito próprio, aproximando-se dos seus leitores, convocados para o discurso pela instauração da comunicação epistolar. A epistolaridade será, portanto, a estratégia discursiva para a afirmação de um estilo individual, no seio de um espaço discursivo plural e colectivo. Não é por acaso que diversos escritores jornalistas recorreram a este modo discursivo, dos quais Eça de Queirós é o exemplo paradigmático, conferindo forma epistolar à maior parte da sua extensa colaboração com a imprensa. Um pouco à semelhança do panfleto, a carta aberta toma geralmente uma estrutura argumentativa e um tom persuasivo e o epistológrafo pretende, neste caso, alcançar o seu público, fazendo com que este tome uma decisão, assuma um pensamento, partilhe uma determinada opinião. Deste modo, a carta aberta tem um importante valor perlocutório, pois visa interferir no comportamento do seu destinatário, incitando-o a uma acção ou a uma tomada de posição. A carta aberta constitui-se como uma espécie de forum, onde toda a comunidade leitora é convidada a participar, sendo investida das funções de destinatária. A escolha de uma forma, qualquer que ela seja, nunca é uma questão ideologicamente inocente ou asséptica: sempre que um autor decida optar pela forma epistolar, para, por exemplo, desenvolver um raciocínio crítico sobre uma questão de teoria ou história literária, essa opção deve fazer-nos reflectir, e levar-nos a procurar as motivações que estiveram na base da sua escolha. Por outras palavras, a epistolaridade deve oferecer um conjunto de características formais e discursivas, particularmente interessantes, para que a carta tenha sido, tantas vezes ao longo da sua história, o género discursivo de eleição de muitos intelectuais para desenvolverem raciocínios críticos, porem em prática a crítica literária, explicarem muitas das suas escolhas técnicoliterárias, dissertarem sobre os temas mais variados, desde a religião à política, passando pela arte, pela cultura ou pela filosofia. O certo é que a adopção desta forma para promover o debate de pontos de vista e para conseguir a persuasão do destinatário / leitor, ao nível da relação entre autor / leitor, representa inúmeras vantagens, alterando definitivamente a atitude do sujeito que escreve face ao assunto, face ao outro e face a ele mesmo. No entanto, do ponto de vista do conteúdo, em nada se distingue de outros géneros discursivos, podendo-se dissertar sobre os mesmos temas e assuntos, quer num artigo académico tradicional, quer num ensaio ou numa carta.

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Esta alteração prende-se, seguindo o raciocínio de Anne Bower, a propriedades formais do discurso epistolar a que já fizemos referência, nomeadamente à sua carga subjectiva, ao seu carácter dialógico e fragmentário e à sua polifonia, características estas que representam, na opinião da autora, um meio de fuga à escrita alienante, combativa e pouco atractiva do artigo argumentativo tradicional. Conclui a autora que: “Letters in critical writing provide sites of response where “buckling” is possible – in the sense of connecting to texts, to concepts, to people. (…) Thus, letters, as a form of personal writing, although offering the writerly self opportunities for intimacy and engagement, can promise neither. Still, use of the form, at some level, manifests awareness of distance and lack of different kinds of connections and implies the desire to bridge that distance, to make a connection, to have one’s mind changed, to mix up private and public forums, break boundaries.” (Bower, 1997: 180-181).

5. Em jeito de conclusão Na verdade, a modalidade discursiva da carta predispõe-na a funcionar como suporte de textos ensaísticos, de natureza diversificada como perceberam muitos jornalistas / escritores do século XIX. Prova disso é que assistimos, não raras vezes, à transformação de certas cartas privadas em textos abertos, dirigidos a comunidades mais ou menos alargadas, pertencentes ao domínio público, sob a forma de prefácios, posfácios ou panfletos. Nesta perspectiva, a carta é um espaço de liberdade e de polémica – porque, na sua ambiguidade, liberta dos espartilhos estilístico-formais que afectam outros géneros; é um espaço textual que se presta à expressão de opiniões e ao debate, e que, aproximando-se do leitor, gera um espaço dialógico de interacção, em que o sujeito escritor passa um testemunho, dirige mensagens, tentando agir directamente sobre a opinião e a cognição do seu interlocutor. Fá-lo sem constrangimentos, pois a própria forma epistolar confere-lhe a liberdade para poder recorrer a um estilo simples e coloquial, dando-lhe a possibilidade de aproximar o seu discurso da fluidez da conversa quotidiana; para além deste aspecto, o autor goza de uma outra liberdade que advém do carácter fragmentário do discurso epistolar: pode desenvolver um raciocínio nómada e errante, longe de estar totalmente encerrado, um raciocínio em curso e com um carácter aberto. Considere-se ainda, no que a este aspecto diz respeito, que a questão da carta pública está intimamente associada à importância da imprensa, sobretudo a partir do século XIX, altura em que o jornal se transforma, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista técnico. Na verdade, sendo os jornais o medium que suporta a divulgação de cartas desta natureza, para compreendermos e contextualizarmos a sua utilização e o 12

seu poder persuasivo, há que ter em conta que a imprensa é um meio com muitos mais receptores que destinatários e é sobretudo um meio com uma força institucional e social muito forte. A revisitação histórica que fizemos aponta projectivamente para um sem-número de potencialidades do tema colocado na actualidade. Entre elas, está o possível paralelismo entre as redes epistolares oitocentistas e a profusão das opiniões nos actuais blogs do século XXI, cujo funcionamento e propriedades revivificam de certa forma a dinâmica epistolar dos séculos anteriores. Mas o que a nossa análise demonstra são as dimensões comunicacionais e políticas que historicamente configuraram a carta como elemento do espaço público mediático. Como no passado, qualquer análise do presente deverá ter em conta essas mesmas dimensões, sob pena de correr o risco de privatizar excessivamente um modo de comunicação que, pautando-se pela ambivalência e maleabilidade, mantém uma fortíssima capacidade de utilização como forma discursiva de intervenção pública.

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