O \"escândalo\" da sinodalidade

May 25, 2017 | Autor: Moisés Sbardelotto | Categoria: Iglesia Católica, Igreja Católica, Papa Francisco, Amoris Laetitia
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“Nada é tão exigente como o amor. Por isso, ninguém deve temer que o papa Francisco nos convide, com a Amoris Laetitia, a um caminho fácil demais. O caminho não é fácil, mas é cheio de alegria!” Cardeal Christoph Schönborn

O “ESCÂNDALO” DA SINODALIDADE Moisés Sbardelotto *

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esde que foi publicada, a exortação apostólica póssinodal Amoris Laetitia (AL), do papa Francisco, gerou um amplo debate dentro da Igreja. Por um lado, trata-se de um processo necessário e até mesmo desejado pelo próprio pontífice, que não recomenda uma “leitura geral apressada” da exortação, mas sim que as pessoas possam “aprofundar pacientemente uma 50 revista família cristã

parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada circunstância concreta” (Al 7). Por outro lado, contudo, esse debate chega, às vezes, a extremismos e a dicotomias pouco “católicas”, de quem não sabe lidar com a complexidade da vida e do amor humano e não consegue conceber a doutrina da Igreja senão em termos de “preto” e “branco”.

A carta dos cardeais – Em setembro passado, quatro cardeais divulgaram uma carta aberta ao Santo Padre, movidos, segundo eles, por uma “profunda preocupação pastoral”, manifestando a “desorientação de muitos fiéis”, devido principalmente ao capítulo 8 da Amoris Laetitia. Tal capítulo é intitulado Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade e aborda questões como a dos divorciados em

segunda união e sua participação nos sacramentos. O pedido de tais cardeais é que o pontífice “resolva as dúvidas que são causa de desorientação e de confusão”, por isso afirmam ter a intenção de “ajudar o papa a prevenir divisões e contraposições na Igreja, pedindo-lhe que dissipe todas as ambiguidades”. A partir daí, levantam cinco dubia – ou seja, dúvidas – sobre o documento pontifício, contrapondo, teoricamente, o magistério de Francisco ao de São João Paulo II em diversas questões. Os quatro cardeais que publicaram a carta – que agitou, mobilizou e agradou especialmente aos ambientes mais conservadores e intransigentes do catolicismo – são os alemães Walter Brandmüller (ex-presidente do Pontifício Comitê de Ciências Históricas) e Joachim Meisner (arcebispo emérito de Colônia), o estadunidense Raymond Burke (ex-presidente do Tribunal da Signatura Apostólica e atual patrono da Ordem Soberana e Militar de Malta) e o italiano Carlo Caffara (arcebispo emérito de Bolonha). Em uma entrevista ao site da associação Catholic Action, em novembro passado, o cardeal Burke chegou a afirmar, surpreendentemente, que “a Amoris Laetitia não é magistério, porque contém sérias ambiguidades que confundem as pessoas e podem levá-las ao erro e ao pecado grave. Um documento com esses defeitos não pode fazer parte do perene ensinamento da Igreja”. Reações – Como afirmou o veterano vaticanista italiano Marco Politi, o fato de quatro cardeais levantaram-se publicamente e questionarem o magistério pontifício é “um evento absolutamente inédito

muito, são quatro de um grupo enorme que está dando todo o seu apoio ao papa”.

na história moderna do papado”. Segundo o jornalista, esse fato explicita uma “guerra civil” em curso na Igreja, “um confronto que toca a autoridade do pontífice e o seu programa reformador”. Alguns canonistas defenderam que o ato dos cardeais poderia até acarretar a perda do título cardinalício dos envolvidos, como já aconteceu em outros momentos da História. Embora isso revele a gravidade dos fatos, é preciso sopesar alguns possíveis desdobramentos dessa carta, reconhecendo, contudo, a seriedade da iniciativa dos cardeais ao “questionarem” publicamente um pontífice. Comecemos pela quantidade de cardeais: quatro. Embora representativos de uma certa ala da Igreja, o próprio cardeal brasileiro Cláudio Hummes, amigo próximo do papa, afirmou ao site espanhol Religión Digital que “são apenas quatro cardeais. Na Igreja, somos mais de 200. Sem querer relativizar

Vaticanista italiano Marco Politi

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CNBB

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Convite à comunhão – Já em relação ao conteúdo das “dúvidas”, desde o início, antes mesmo dessa carta, o papa Francisco já havia reconhecido que a Amoris Laetitia havia levantado algumas críticas. Por isso indicou como “guia” de leitura a apresentação feita na Sala de Imprensa da Santa Sé pelo cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena (Áustria). Ao apresentar a exortação, Schönborn afirmou que a frase-guia da Amoris Laetitia se encontra no número 297: “Trata-se de integrar a todos”. Para o prelado austríaco, essa é “uma compreensão fundamental do Evangelho: nós todos precisamos de misericórdia!”. Schönborn também indica o número 300 como resposta a quaisquer dúvidas sobre como proceder a partir de agora, por exemplo, com os divorciados em segunda união. Lá, o papa escreve: “Se se levar em conta a variedade inumerável de situações concretas (…), é compreensível que não se devia esperar do sínodo ou desta exortação uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares”. Para o “acompanhamento pastoral” de tais casos, “a lógica da integração é a chave” (Al 299). O silêncio do papa – Enquanto isso, o papa Francisco não se manifestou oficialmente sobre a carta dos quatro cardeais. Mas também nem seria necessário, como aponta o padre jesuíta Antonio Spadaro,

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LUCINEY MARTINS

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Dom Cláudio Hummes cardeal arcebispo emérito de São Paulo (SP)

diretor da revista La Civiltà Cattolica. Em artigo publicado no site da rede CNN, Spadaro afirma que as questões levantadas pelos cardeais já haviam surgido durante o sínodo, e “todas as respostas necessárias já foram dadas, e mais de uma vez (…). Portanto, eu acredito que uma consciência em dúvida pode facilmente encontrar todas as respostas que busca, se as busca com sinceridade”. Ou seja, as respostas às questões dos cardeais já se encontram na própria Amoris Laetitia, que não é uma mera “opinião pessoal” do papa, mas sim o fruto maduro de um longo caminho sinodal, de uma ampla reflexão que envolveu nada menos do que dois sínodos dos bispos, em 2014 e 2015, que reuniram centenas de padres sinodais de todo o mundo, além de dois questionários enviados a todas as dioceses do mundo como preparação prévia a tais eventos por parte de toda a Igreja e, por fim, a redação final do papa Francisco, em colaboração com a Secretaria do Sínodo e dos órgãos responsáveis da Santa Sé, como a própria Congregação para a Doutrina da Fé. 52 revista família cristã

O próprio pontífice reconhece esse trabalho a várias mãos no número 297 da Amoris Laetitia: “Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas ‘irregulares’, os padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento”. Não se trata da “obra de um homem só”, embora traga todo o peso de uma assinatura papal, mas sim de uma obra propriamente “eclesial”, no seu sentido mais pleno. Em entrevista à revista belga Tertio em dezembro passado, Francisco disse: “É curioso: tudo o que está na Amoris laetitia foi aprovado no sínodo por mais de dois terços dos padres”. Portanto, o papa não está sozinho. O presidente da Conferência dos Bispos da Grécia, dom Fragkiskos Papamanolis, por exemplo, respondeu aos quatro cardeais também com uma carta aberta. Nela, o bispo ironiza: “Vê-se que o Espírito Santo inspira somente a vocês e não ao vigário de Cristo e nem mesmo aos bispos reunidos em sínodo”. Já o patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, principal bispo da Igreja Ortodoxa, em artigo publi-

cado no jornal L’Osservatore Romano de dezembro passado, afirmou que, diante dos “inúmeros comentários e avaliações” sobre o documento, “é importante observar que a Amoris Laetitia recorda, acima de tudo e em primeiro lugar, a misericórdia e a compaixão de Deus, e não apenas as normas morais e as regras canônicas dos homens”. E até mesmo a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) expressou “inteira comunhão com o papa Francisco, além de adesão firme aos seus ensinamentos e testemunho profético”, como afirma uma nota oficial publicada em dezembro passado. “Temos convicção de que é necessário continuar a renovação conciliar que Francisco coordena na Igreja, em fidelidade ao Evangelho”, ressaltam. Deus é amor – Questionar a Amoris Laetitia, portanto, não é apenas questionar o pontífice, mas é também questionar todo esse caminho de sinodalidade da Igreja e de colegialidade entre os bispos do mundo inteiro – ou, em termos mais teológicos, é questionar a própria ação do Espírito Santo, que guia a Igreja no hoje da história. Ao contrário, como disse dom Schönborn, o papa Francisco confia na alegria do amor. “E o amor sabe encontrar o caminho. É a bússola que nos indica a estrada. Ele é a meta e o próprio caminho, porque Deus é o amor, e porque o amor é de Deus. Nada é tão exigente como o amor. Por isso, ninguém deve temer que o papa Francisco nos convide, com a Amoris Laetitia, a um caminho fácil demais. O caminho não é fácil, mas é cheio de alegria!”. * Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário).

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