O ESPANTO E A PRODUÇÃO DE CEGUEIRA

August 29, 2017 | Autor: Christoph Fikenscher | Categoria: Architecture, Brazilian Studies, Urban Studies
Share Embed


Descrição do Produto

O ESPANTO E A PRODUÇÃO DE CEGUEIRA Christoph Fikenscher

Ferreira Gullar disse numa entrevista que escrevia poesia a partir do espanto, que poesia sem nascer no espanto não prestava; mas talvez passar pelo espanto seja, de qualquer forma, uma experiência na origem da necessidade de pensar e escrever.

Uma visita a Amargosa - a certa Amargosa que está sendo feita, des-feita, mal-feita - causa espanto, não somente pelas desrazões à vista, mas principalmente por elas não serem vistas já, não serem contadas já, pelo espanto que causam. Talvez se possa afirmar que a UFRB, em colaboração com o Forum de Combate à Violência, organizou dois encontros em Amargosa para que o espanto pela morte de Maria Vitória ficasse vivo, para que produzisse reacção; a urgência e a dificuldade da reacção deriva do fato dessa violência ser institucionalizada, morar dentro da instituição que pela lei detém o monopólio da violência: o risco é faltarem os anticorpos não só nas instituições mas na sociedade toda. O monopólio da violência armada por parte da polícia não é o único monopólio de violência legítima das instituições - se exercitada conforme letra e espírito da lei: planejar a alteração da ordem do território construindo cidades e infra-estrutura significa exercitar um monopólio de violência necessária à vida social. Mas esta violência precisa-se legitimar cada vez que atua, deve exibir razões, justificar medida e escala, ficar aberta a modificações na sua articulação.

Depois de ter escutado a história da morte de Maria Vitória e ter recebido o convite para participar do encontro sobre combate à violência, tentei me aproximar de Amargosa primeiro de longe, com a ajuda de textos sobre a história da cidade e da região; ao final, para conhecer melhor extensão e distribuição dos jardins que valeram à cidade o nome de Cidade Jardim, procurei localizá-los na imagem do satélite. E foi nesse instante que chegou o espanto, ainda sob forma de suspeita de espanto: na entrada da cidade (pela estrada que liga Amargosa a Santo Antônio de Jesus) apareceu uma grande mancha clara, a mais clara e extensa de todo o mapa, com repartição em muitas unidades ao longo de linhas retas. A resolução da imagem não permitiu identificar claramente as estruturas, a geometria fazia pensar em indústria ou campo militar - a primeira opção ainda possível, mesmo sendo fora de escala, a segunda muito improvável. A realidade, porém, foi outra: aquela organização do espaço corresponde a um novo conjunto habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida - e o espanto concretizou-se, obrigando a abandonar a ambivalência das suspeitas. Qual ideia de justiça social levou a conceber esse bairro daquela forma e naquele lugar? A forma: uma espécie de condomínio fechado feito de centenas de casas iguais, alinhadas ao longo de ruas perfeitamente retas - impedindo a individualização do espaço, e sem lugar coberto para outras funções como lojas e outros serviços. O lugar: no início da cidade, a mais de meia hora de caminho do centro, ao lado de outro pequeno conjunto habitacional construído com recursos do governo federal, que fica no bairro da Catiara (onde Maria Vitória vivia e foi morta), com moradores de baixa renda. A lógica espacial é coerente, concentrar as famílias de baixa renda em lugar afastado do centro (mas, em lugar plano e privilegiado central se permitiu a construção de uma fábrica). A coerência desta lógica é injusta, injustificável, violenta e potencialmente criadora de mais violência; o conceito de inclusão social está ao centro do discurso oficial mas a casa do beneficiado encontra-se segregada na periferia do espaço urbano. O poder executor desta lógica a nível local se atreve até a abusar cinicamente do antigo nome de Cidade Jardim conferido a Amargosa em razão da qualidade e quantidade de jardins públicos, chamando esse loteamento de Lotamento Cidade Jardim sem ampliar à periferia (nem agora nem na ocasião da construção dos bairros vizinhos) o espaçamento de jardins que ritma o centro antigo da cidade e a sua vida na rua. (1)

Entre os loteamentos do programa Minha Casa Minha Vida/PAC II e a parte do bairro Catiara autoconstruída aparece o teto de uma construção alongada atrás de um alto muro que a circunda: o canteiro de obras de uma creche que está sendo ultimada. No pátio central alguém sonhou mal com re-

miniscências de templo e de anfiteatro grego, espalhando desencontrados elementos de concreto - vigas, colunas, cornisas ,sem razão estética nem estrutural, para iniciar as crianças na escola brutalista (de brutal, não de béton brut), a dominante escola da arquitectura institucional; as salas de aulas com pé direito extremamente baixo oferecem plena vista do muro a curta distância das janelas, além de uma estreita faixa de céu - outra violência institucional, esta vez no espaço interior, que combina um discurso de inclusão social com a construção de espaços arquitectónicos que lembram prisões (ou fábricas), o que constitui crime contra a infância. E, exactamente como as prisões, também esses projetos são desenhados no centro do poder para serem construídos em todo o território nacional sem consideração alguma das características locais. Em Amargosa se pode observar exemplarmente como a desconsideração e destruição das diferenças são conaturais do inteiro sistema de poder, político e financeiro, do país: num ângulo do Jardim Lourival Monte, orgulho da cidade por ser, em extensão e desenho, único no interior da Bahia, se ergue o prédio da agência do Banco do Brasil, construído conforme modelo nacional das agências do banco, desprezando o conjunto histórico formado pelo jardim, a igreja e as casas antigas. Esta desconsideração sistemática das diferenças cresceu com a industrialização do país cuja lógica normativa foi estendida sem reserva dos bens de consumo à urbanística e à arquitectura (a primeira agência do Banco do Brasil em Amargosa guardava ainda relação com o estilo local, inserindo-se na sequência das casas vizinhas). O prédio da atual agência fala verdade: as instituições podem cometer impunemente assalto perene à dignidade de uma cidade (enquanto que só o assalto à agência por uma banda criminosa organizada às margens da sociedade é percebido como tal).

Tantas são as razões visíveis de espanto em Amargosa; a mais profunda, porém, é a falta de espanto na sociedade que, de fato, legitima a violência institucional. A criança que cresce com um muro como horizonte será com alta probabilidade um adulto cego à violência dos muros, interiorizando a organização segregacionista dos espaços; ele dará, talvez, sua contribuição à construção de muros, pelo menos ao redor da própria casa. (2)

O verdadeiro espanto enche quem se depara com a triunfante (re)produção da cegueira que inibe a capacidade de resistência à violência sistémica. (A dificuldade de eludir essa violência percebeu-se mesmo no espaçamento do encontro: a mesa dos professores ao centro, a família de Maria Vitória de um lado, um pequeno vazio e depois os estudantes no fundo, o único representante do poder público presente, um vereador, defronte à família. Existe não só uma geometria da distribuição dos corpos, mas também uma geometria das linguagens, e muitas vezes as suas directrizes coincidem. Acontece também que a nossa voz se mede com os espaços, habita-os como os nossos pés conhecem a planta da nossa casa; quando vi a família sentada na sala da antiga estação do trem, sede do encontro da UFRB, não pude evitar imaginar, acima desses corpos e olhares perdidos, a medida do teto da casa na que moram, que não deve ser diferente da casa onde foi morta Maria Vitória e que tinha visto passando na rua pela manhã. Da minha posição na mesa central senti uma dupla vergonha, pelo espaço em demasia ao redor da família e pelo alcance da minha voz (e da minha linguagem), talvez à medida de uma aula para estudantes, mas sem destino em relação a essa família. Deveríamos aprender a acolher às condições do outro, para um convite, feito com as melhores intenções, não se transformar numa armadilha; não esquecer que a característica principal das armadilhas é a assimetria das relações que nelas se entrecruzam. O esquecimento da assimetria é condição para a reprodução da cegueira, da nossa cegueira.)

Este artigo foi escrito em ocasião da mesa redonda “Infância e Violência” organizada pela UFRB, Amargosa BA em 23.10.2014 e apresentado ao Forum de Combate à Violência

Sobre o autor: Christoph Fikenscher conduz pesquisas sobre o espaço urbano (relações de poder, memória coletiva) e a paisagem entre Europa e Brasil.

(1) As formas de organização do espaço (urbano) na relação com a demanda e a falta de justiça - processos de produção de injustiça construída - poderiam ser analisadas dentro do campo teórico esboçado pelo conceito de justiça espacial, termo proposto por Edward W. Soja a partir dos trabalhos de Foucault e Henri Lefebvre (Direito à Cidade). (2) Deve ser considerada a funcionalidade do medo na segregação espacial; a este respeito talvez seja interessante retomar a linha de reflexão à base da obra La construcción del miedo y la perdida de lo público de Antoni Muntadas.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.