O ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO E A EXPERIÊNCIA DA MORTE EM YUKIO MISHIMA

May 22, 2017 | Autor: Rodrigo Araujo | Categoria: Literatura, Yukio Mishima, Morte, Autobiografia
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Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 1

O ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO E A EXPERIÊNCIA DA MORTE EM YUKIO MISHIMA Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) O que pode uma obra literária inscrita num espaço autobiográfico? Quais os limites cambiantes desta entre a história e a memória? É possível pensar a experiência da morte num entre-lugar destes campos limítrofes? Este artigo busca responder a estas três questões a partir de um salto no turbilhão frenético que é a obra do escritor japonês Yukio Mishima, e convida-nos à reflexão, não tão nova, sobre vida e morte. Uma obra, digamos, profunda: existencialmente e esteticamente. Para uma tentativa de resposta às indagações propostas, é necessário pôr em movimento os campos da literatura e da história a fim de dissolver – mesmo que esta palavra traga o risco da simplicidade conjectural – algumas fronteiras e almejar afinidades. Cabe-nos, portanto, outra pergunta: pode um encontro entre literatura e história? É lícito observar que a ponte que vai da obra literária à realidade histórica parece ser mais tênue e complexa do que imaginamos; basta citarmos os invólucros criados pelos formalistas na obra literária, de certo modo “excluindo” o contexto histórico, “nós” que visivelmente passaram a ser desatados desde Georg Lukács (2000) em suas teorizações do assim chamado romance histórico até a sociologia da literatura, com Antonio Candido (2000) como expoente em suas proposições da dimensão social como fator de arte, quando “o externo se torna interno”1 (CANDIDO,

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2000, p. 8) – de Platão a Roland Barthes, vale destacar o exímio percurso da abertura da obra literária para as condições históricas feito por Márcia Gobbi (2004) – sem esquecermos das contribuições teóricas de Mikhail Bakhtin sobre a historicidade do romance e de seu “contato direto com o presente” (GOBBI, 2004, p.51). Se é próprio da história narrar os eventos que aconteceram e, numa cabal síntese, enveredar-se pela busca de vestígios daquilo que foi, de modo objetivo e verdadeiro, ao confrontá-la com a literatura é salutar tomarmos a (nova) proposta de Ligia Chiappini (2000) de problematizar as fronteiras de ambos os campos e direcionarmos o pensamento para o qual tanto história quanto literatura podem ser ficcionais, uma dissolução entre história e ficção onde a “imaginação é mãe tanto da história quanto da poesia” (CHIAPPINI, 2000, p. 28), já que ambas lidam e leem o real. Historiadores, literatos, cineastas, todos, neste ponto de lidarem com o real e de olharem para o passado, põem em jogo a questão da memória. Se tomarmos a memória como um fenômeno socialmente construído (POLLAK, 1992), há, pois, um trabalho de organização para a estruturação da memória. Tanto historiadores como poetas, neste caso, compartilham a tríade: organizar, selecionar, narrar2. Cria-se, portanto, uma ponte que vai da memória ao passado: não foram os poetas na antiguidade, intérpretes de Mnemosýne, deusa da Memória, aqueles que tão bem conheciam o passado por terem “o poder de estar presente no passado” (VERNANT, 1990, p. 109)?

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Abertas as afinidades e entrecruzamentos entre história, literatura e memória, partimos, com os corpus deste trabalho, para aquilo que tencionamos chamar de espaço autobiográfico. Faz-se preciso trazer a teoria do pacto autobiográfico de Philippe Lejeune (2008). A autobiografia, narrativa essencialmente em primeira pessoa que conta a vida do autor, passa, como mostra Lejeune, por uma série de “pactos”, que vão do autobiográfico ao romanesco. Estabelecendo questões de fidelidade e identidade entre autor, narrador e personagem, Lejeune entende que um atestado de ficcionalidade exclui “a possibilidade de autobiografia” (LEJEUNE, 2008, p. 29), mas aponta para o fato da “criação [pelo leitor] de um espaço autobiográfico” (LEJEUNE, 2008, p. 43). Jogando a responsabilidade para o leitor, cabe a este fazer do espaço autobiográfico uma “arquitetura de textos que estabelecem mútua relação” (LEE, 2007, p. 37). Deste modo, os romances de Yukio Mishima aqui analisados não fazem parte do “pacto autobiográfico” estabelecido por Lejeune, mas buscamos justamente mostrar a construção de um espaço onde vida e texto se mesclam, “os textos e a vida, o texto como vida e a vida como texto” (NASCIMENTO, 1999, p. 308). (Auto)biografia, escritas de si ou, para ser mais preciso, tanatobiografia de um escritorsamurai que soube escrever com a espada na luta pela tradição de um país abalado pelo pós-guerra. E ainda: autoficção que quer “parasitar, contaminar, conspurcar a ficção com a hibridização de seus procedimentos de atuação” (AZEVEDO, 2008, p. 46), isto é, com a biografia; pôr o biográfico e o ficcional nos limítrofes.

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Confissões de uma Máscara (1984) e O Templo do Pavilhão Dourado (1988) são duas obras que mantêm como elo a experiência da morte, a arquidestruição por meio de uma escrita confessional manchada de dor. Com seus personagens, mutuamente em crises existenciais, prontos para o combate – com o outro, mas fundamentalmente consigo mesmo – Mishima lutou contra a vida. Não há niilismo nesta proposição. Tanto Mishima quanto seus personagens, impossibilitados de mudar a realidade a qual desaguava o Japão derrotado pela guerra frente à mudanças drásticas e expondo a então chamada “japonidade” ao Outro, partiram para o ato heroico de experimentar – e até desejar – a morte. Ato que levou o escritor japonês ao limite do código ético seppuko – ato de cravar a brilhante espada no ventre, criando um palco de crueldade ou uma ética da morte. Convém notar que a morte era em si um pedaço da vida para o guerreiro nipônico, “que o guerreiro se confunda com a morte. Outros, camponeses ou citadinos, podem enriquecer, trabalhar, fazer projetos – mas o guerreiro vive sem amanhã, a todo instante atento a ser tudo o que deve ser. Que viva como se já estivesse morto” (PINGUET, 1987, p. 200). São, ainda, suas obras um verdadeiro campo de batalha. 1. FESTIM DA MORTE 1.1 CONFISSÕES Pensar os sentidos da morte foi o ofício de muitos filósofos, desde o nascimento da filosofia ocidental até a contemporaneidade, filósofos que levaram a máxima de Platão de que a morte seria a boa via para filosofar – vale destacar a

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importância do pensamento de Michel de Montaigne, para o qual “filosofar é aprender a morrer” (MONTAIGNE, 2010, p. 59) e de Arthur Schopenhauer, pois à morte “estamos destinados desde o nascimento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 401). Mas é na filosofia insone e pessimista do filósofo romeno Emil Cioran, hiena pessimista (PIVA, 2002), que a morte atinge de modo visceral as estruturas da vida. Na filosofia de Cioran, e aqui tomamos como base o seu primeiro livro em romeno, Sur les cimes du désespoir (1990), o homem é um despedaçado que passou pelo inconveniente de ter nascido, e a existência é um mau gosto e de um sentido inacabado. A tragicidade, nietzscheanamente falando, do homem é ter sido jogado na vida como uma pedra, como pensa Antonin Artaud (1985). A máxima do pensador é que sem sofrimento não há existência e, para ele, tudo ao redor é desespero, agonia, dor e tristeza. O homem, para Cioran, ao desejar e viver com a morte, isto é, viver morrendo, tem duas intenções: destruir o mundo e depois, como se não sobrasse mais nada, destruir a si mesmo. Só assim o homem decaído de uma existência miserável poderá gozar da morte pura e sublime. Com essas premissas, podemos construir um espaço de “afinidade” entre a filosofia de Emil Cioran e a escritura de Mishima, uma aproximação a partir de concepções como sofrimento, decadência, angústia. O romance Confissões de uma Máscara é um córrego de sangue, sofrimento e orgasmos, um palco de crueldade onde a morte chega até a ser posta como personagem na narrativa. Koo-chan, protagonista da diegese, a deseja como se esta

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assumisse um corpo desejante, como a morte em corpo de uma mulher vestida de branco e com os seios à mostra representada no filme de Ingmar Bergman, Na presença de um palhaço (1997). Aflições, medos, delírios, frenesis, tudo em doses altas, onde viver é um dever, desagradável dever, para pensar como Cioran. Nascido numa manhã de janeiro de 1925, Koo-chan passou a infância sendo criado pela avó, entre os odores da doença e da velhice. A ausência do belo escorre já pelas primeiras linhas – ausência que pode ser evidenciada também nas outras obras – quando se depara com um jovem sujo e abate-lhe o desejo de se transformar naquele moribundo, de ser ele. Logo cedo percebera que a vida não era contos de fadas, começando a mergulhar em fantasias e lutas consigo mesmo, despertava, ao mesmo tempo, o desejo carnal, embora sem compreender – primeiro, a atração pelas calças apertadas do homem sujo transeunte, depois a atração pela figura heroica de um “homem” montado num cavalo como quem enfrentasse a morte, que depois iria descobrir ser Joana d’Arc. Das memórias da infância, podemos aproximar o protagonista, submerso às deficiências do mundo, àquilo que chamou Emil Cioran de origens do mal, ou princípios satânicos do sofrimento: “Como lutar contra a desgraça? Lutando contra nós mesmos: compreendendo que a origem da desgraça se encontra em nosso interior”3 (CIORAN, 1990, p. 119). Carrega, pois, em seu interior todos os sofrimentos do mundo, um combate consigo mesmo e além: combate com os sentidos da vida.

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Da transição da infância para a fase adulta, podemos chamar de movimento de êxtase: de morte e de erotismo. Do sexo à morte, do sangue à carnificina, neste movimento Koo-chan é puro impulso. E o êxtase atinge os cumes quando os mundos, exterior e interior, se mesclam neste movimento – o que aproxima a saturação do protagonista da insatisfação cioraniana. E só mesmo nos cumes deste movimento que podemos extrair a máxima apontada por Darci Kusano (2006, p. 424): “êxtase da morte com a consumação do êxtase erótico”. O Japão ameaçado começava a provocar mudanças na sociedade. Se o amanhã era mesmo incerto, a luz se direcionava para o palco do presente absoluto. Uma casa fechada sob ameaça de ter as portas forjadas, um ovo prestes a quebrar; a vida passou, então, a ser questionada e repensada, inquietações nipônicas derramadas pelas páginas do romance –

ou, para recorrer a uma concepção antropológica,

inquietações documentadas no romance (GEERTZ, 1978) –, e evidenciada no seguinte trecho: Nessa época aprendi a beber e a fumar. Isso quer dizer que aprendi a fazer de conta que fumava e bebia. A guerra produzira uma maturidade estranhamente sentimental em nós. Fez que pensássemos na vida como algo que terminaria abruptamente pelos vinte anos; jamais considerávamos sequer a possibilidade de haver alguma coisa além daqueles poucos anos remanescentes. A vida nos surpreendeu como sendo uma coisa estranhamente volátil (MISHIMA, 1984, p. 86).

Neste período em que o protagonista já se inseria nos bancos da universidade, um ano antes do final da guerra, isto é, 1944, lhe é aflorado o sentimento e experiência da morte, ou, de acordo com o personagem, finalidade da morte. Koo-chan espera pela morte, “ansiava impacientemente pela morte com uma doce expectativa”

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(MISHIMA, 1984, p. 93), deseja-a assim como Cioran a admirava num movimento de êxtase. Esperava o cair das bombas prontas a incendiarem tudo, para que restasse nada mais que ruínas. “Eu suspirava pela grande sensação de alívio que a morte certamente traria se apenas, como um lutador, eu pudesse arrancar o pesado fardo da vida sobre os ombros” (MISHIMA, 1984, p. 93). Eis sua doutrina da morte: “o que eu queria era morrer entre estranhos, tranquilo, sob um céu sem nuvens” (MISHIMA, 1984, p. 100). Como nenhuma bomba foi capaz de realizar seu desejo de nulidade e negação – de si e da vida – Koo-chan é assaltado pelo fracasso. O romance termina com uma cena de valsa4 – um final aberto que deixa muitas interrogações (acerca destes aspectos, cf. ECO, 1991). O leitor, no jogo do texto em que ele próprio joga para ocupar os vazios do texto (cf. ISER, 1979), poderia questionar: seria o seppuko o último ato de Koo-chan, assim como fez Mishima no quartel do Exército cravando a espada no ventre? seria o protagonista o samurai que cometeu o harakiri diante da derrota? Estas perguntas nos direcionam a confissões não apenas de uma máscara, mas também confissões de uma filosofia negativa. Portanto, um personagem que carrega o peso do sofrimento, um romance que roça com a filosofia do pessimismo.

1.2 O TEMPLO O desejo da morte, flatter la mort, também tem lugar privilegiado na narrativa do outro expressivo romance de Yukio Mishima, O Templo do Pavilhão Dourado (1988),

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que, também tendo a guerra como pano de fundo, apresenta um dos mais enigmáticos personagens da biografia do escritor: Mizoguchi. A narrativa autodiegética penetra no descontentamento da realidade e fuga, que só se dará com o que chamaremos de arquitetura da destruição. Poderemos, assim, ler o romance por dois aspectos: antes e depois da presença do Templo Dourado na vida do protagonista. Nascido em uma cidade litorânea do Japão, Mizoguchi narra, como Koo-chan, suas memórias da infância, que compreendem o período antes de entrar para a vida monástica. Na infância, sempre ouvira do pai sobre o Templo Dourado como uma espécie de paraíso, isto é, neste período se dá a ideia que o protagonista cria do Templo, um ideal de belo e sublime. A mãe era o oposto da ideia que fazia do Templo: tresloucada, maltrapilha, ausente de beleza e de baixa condição social, mas, como gerado de um farrapo humano, o próprio Mizoguchi tinha sua deficiência no mundo: ser gago. Sua gagueira representa não só a dicotomia feio-belo como apresenta a atmosfera da monstruosidade que é sua vida já desde a infância. É lícito observar que, para o protagonista, constituem o belo o mundo exterior e o Templo Dourado, ou a ideia que tinha, como se a beleza fosse um objeto que se pudesse tocar; o feio era representado por ele e pela mãe, e mais: é como se o Templo Dourado fosse a mediação entre o belo e o feio. A ótica turva do personagem assim expõe os pares antagônicos: O que é tão horrível em vísceras expostas? Por que cobrimos os olhos, aterrorizados, quando vemos as tripas de um ser humano? Por que as pessoas ficam tão chocadas ao ver o sangue jorrando? Por que os intestinos

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Após a morte do pai, decide ingressar na vida monástica, o que chamamos aqui de segunda fase do personagem; nesta fase pode-se observar em Mizoguchi uma mescla de amargura e obsessão de morte. O mesmo desejo de nulidade presente em Koo-chan pode ser observado em Mizoguchi, digamos, de modo mais visceral: “Tornou-se meu sonho secreto que toda Kioto fosse envolvida em chamas” (MISHIMA, 1988, p.46). O ingresso na universidade tem papel fundamental, assim como para Koo-chan, para elaborar sua tese da arquitetura da destruição, onde “viver e destruir eram a mesma coisa” (MISHIMA, 1988, p.107): se o Templo Dourado lhe aparecia como uma mediação entre ele e o mundo, entre ele e a vida, era preciso destruí-lo. Destruir o Templo para poder viver será sua tese. A ideia de incendiar o Templo, uma tese incendiária, está muito próxima da concepção apocalíptica de Cioran sobre, a partir da concepção de solidão cósmica, incendiar o mundo; eliminar o Templo é, com um golpe cioraniano, eliminar a existência. Mizoguchi, aqui, pode concordar com a concepção de Cioran de que só se alcança o nada pela morte. Nadificar-se, de acordo com a máxima de Cioran (1990, p. 63): “quereria eu explodir, afundar, me decompor”5. Como Kioto parecia intacta aos bombardeios, e como nenhuma bomba não iria cair sobre o Templo, como desejava Mizoguchi, o plano era incendiá-lo. “Coisas mortas como seres humanos não podem ser erradicados; coisas indestrutíveis como o Templo Dourado podem ser destruídas” (MISHIMA, 1988, p. 181).

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Depois de derrubar o Templo, cogitava o nadificar-se, e isto se daria pelas vias do suicídio, tendo comprado veneno e um canivete: “fiquei tão contente com eles que não pude deixar de me perguntar se não era assim que se sentia um homem que comprou uma casa nova e faz planos para o futuro” (MISHIMA, 1988, p. 222). Era preciso correr para a morte, “correr leva ao fim e descansar também leva ao fim. A morte parece ser o descanso definitivo” (MISHIMA, 1988, p. 228). Empilhando uns fardos de palha por cima de um colchão e um mosquiteiro diante de uma estátua do Templo, Mizoguchi executa seu plano incendiando aquele templo de uma beleza que lhe parecia insuperável, restava-lhe agora (re)nascer pelas chamas. Sentado, observando a dança de chamas, ironicamente acende um cigarro, confirmando sua doutrina de chamas. “Sentia-me como um homem que se senta para fumar depois de terminar um trabalho. Eu queria viver” (MISHIMA, 1988, p. 242). Os verbos sentir e querer, no pretérito perfeito, denunciam a ânsia do personagem pela realização do seu plano, de desmanchar-se pela destruição e pelo fogo. O final aberto, assim como em Confissões, joga a dúvida para o leitor: será que Mizoguchi, assim como observado no desfecho de Koo-chan, também levou o harakiri ao limite? Conclui-se, assim, que Confissões e Templo são dois romances em que a morte figura na vida, tanatobiografias que se edificam sobre ruínas, para lembrar a tese de Maurice Blanchot de que “a literatura se edifica sobre suas ruínas” (BLANCHOT, 1997, p. 297). Se é o próprio Blanchot que diz que “nas palavras, ela [a morte] é a

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única possibilidade de seus sentidos” (BLANCHOT, 1997, p. 312), pondo, assim, morte e literatura em diálogo, a literatura seria, então, um direito à morte. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os romances selecionados como corpus deste trabalho, ao recorrerem à memória, organizando os acontecimentos a serem narrados, documentam uma cultura – salientando a tese de Roy Wagner (2010) de que todo artista é um etnógrafo – na apropriação do passado como “experiência única” (GOBBI, 2004, p. 55); ao escreverem o Japão derrubado pela Segunda Guerra Mundial, assim como o impacto social pelas mudanças socioeconômicas pós-1945, que marcaram a ocidentalização japonesa, a escritura mishimiana flerta com a história. Autoficção que pode servir de fonte, documento e além. Escritas do eu – écriture du moi, segundo a teoria de Georges Gusdorf (1991) – resultando “na construção de uma imagem de si mesmo” (ALBERTI, 1991, p. 12), que querem confessar e dizer tudo, “dizer tudo sobre si próprio, tentando esgotar o texto finito e inexaurível do corpo singular”6 (NASCIMENTO, 1999, p. 310). Se a experiência da morte nas páginas dos dois romances são frutos do horror da guerra e da incapacidade de viver em uma realidade em ruínas, poderíamos atribuir-lhes o estatuto de literatura de testemunho, tão solidificado na literatura do holocausto? Diante do horror, Mishima, o escritor-samurai, preparou seus personagens (como a si próprio), para uma morte-protesto cheia de gritos de desespero – ou, de certo modo, um exercício de admiração da morte – na tentativa de

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dizer: basta! Se a espada é o instrumento de libertação para o samurai japonês que pratica o seppuko, a palavra é o instrumento de Mishima para a revolução, que se dá na e pela cultura.

NOTAS FINAIS Grifos do autor. Selecionar os fragmentos para narrar requer uma discussão sobre o esquecimento, que pode ser amplamente vista em POLLAK (1989; 1992), SELIGMANN-SILVA (2003), RICOEUR (2008) 3 “Comment combattre le malheur? En nous combattrant nous-mêmes: en comprenant que la source du malheur se trouve en nous”. 4 Na adaptação fílmica de quatro obras de Mishima, Mishima: uma vida em quatro capítulos (1985), de Paul Schrader, com produção de Coppola e George Lucas, trechos do romance são contados lado a lado de momentos da vida de Yukio Mishima para ilustrar o caráter “autobiográfico” do romance. 5 “Je voudrais exploser, couler, me décomposer”. 6 Grifos do autor. 1 2

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