O ESPAÇO DA AUTONOMIA (NÃO-INTERVENÇÃO) NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICOECONÔMICA

August 26, 2017 | Autor: A. Godoy Dotta | Categoria: Education, Educación, Educação
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O ESPAÇO DA AUTONOMIA (NÃO-INTERVENÇÃO) NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICOECONÔMICA LOPES Andréa Roloff – PPGE/PUCPR – UniBrasil [email protected] DOTTA, Alexandre Godoy – PPGE/PUCPR – UniBrasil [email protected] GABARDO, Emerson – PPGD/PUCPR – UFPR [email protected] Eixo Temático: História da Educação Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Este artigo pretende relatar a pesquisa desenvolvida sobre o espaço da autonomia entendida como “não-intervenção” no processo de construção da universidade brasileira. Para o atingimento do seu escopo e também para uma análise da problemática contemporânea, utiliza o enfoque histórico-econômico sem, todavia, descuidar-se da identificação dos conceitos fundamentais a respeito do tema. A abordagem escolhida agrega a contribuição de descrever e analisar a construção da autonomia no caso concreto. Como referenciais teóricos fundamentais o trabalho contou principalmente com CHAUI (2001, 2003), CUNHA (2007a; 2007b, 2007c), FÁVERO (2006), LAMPERT (1999), LE GOFF (1989), PIMENTA e ANASTASIOU (2002) e TRINDADE (1999, 2004). Inicialmente o texto procura apresentar uma descrição da criação das instituições universitárias tendo como norte as instituições brasileiras e sua estreita simbiose com o Estado e com a laicidade. Posteriormente, a análise contemplará a inserção da dimensão do mercado nesta complexa equação, notadamente mediante uma reflexão sobre a incidência do neoliberalismo como elemento determinante do espaço econômico nesta última transição de século. Nesta seara, procura ressaltar o ambiente educacional brasileiro, contextualizando-o a partir de reflexões críticas. Mais especificamente, é feita uma breve discussão a respeito do impacto negativo do ideário neoliberal na questão da autonomia universitária relativamente às políticas para o ensino superior realizadas nos anos 90 tanto para a sua prestação pública quanto para o setor privado explorador do ensino. Sem o objetivo de esgotar a questão, e partindo da argumentação apresentada, busca refletir sobre o caso histórico brasileiro, com destaque para sua histórica econômica recente, com o objetivo de e as possibilidades e limites de construção da autonomia universitária no Brasil.

Palavras-chave: História da Educação Brasileira, Autonomia, Neoliberalismo

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Introdução As universidades desenvolveram-se na primeira modernidade também como decorrência de uma vontade já incipiente de remanescentes corporações medievais, formadas por mestres e discípulos, cujos objetivos já enunciavam o alcance de autonomia em face à influência administrativa da Igreja e do incipiente “Estado” (TRINDADE, 1999, p. 6-8). Tal conquista de autonomia implica um processo longo, tortuoso e complexo que varia conforme a realidade local de cada instituição e, em grande parcela das situações, ainda não foi finalizado na contemporaneidade. Mesmo definindo-se a autonomia de forma simples e direta como a capacidade do sujeito de decidir o curso de sua trajetória (ou seja, como um espaço de “não-intervenção”,1 certamente esta não é uma questão fácil de ser tratada, seja por uma abordagem conceitual, seja por uma visão histórica do problema. No caso da construção histórica do Estado brasileiro este escopo é comumente considerado como uma meta de difícil realização. A relação entre o Estado, o mercado e a educação no Brasil é, na expressão utilizada por Cunha (2007c), “meandrosa”. Esta palavra nos remete a sinuosidade de um rio para ilustrar a trama em que as três dimensões se constroem no caso concreto. E este é o primeiro alerta para entender a questão: a iniciativa privada atuando na educação não foi uma criação da onda neoliberal que invadiu o Brasil nos anos 90. Apenas como exemplo, a iniciativa privada atuava na educação brasileira desde o período imperial e foi no regime militar que ocorreu a primeira fase da expansão do ensino superior privado brasileiro (CUNHA, 2007c, p. 811-813). Desta forma, as duas variáveis (mercado e Estado) serão analisadas em dois momentos diferentes neste texto por uma escolha didática pois, como já foi dito, elas são inseparáveis na construção da educação nacional. Feita esta ressalva também é importante lembrar realmente existiu uma inovação neoliberal. A novidade se encontrou na expansão numérica das instituições privadas e no projeto de mercantilização do ensino superior. Este processo levou a racionalidade do mercado inclusive a instituições públicas que passaram a competir por recursos de acordo com metas impostas por organismos de fomento governamentais. Em

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A própria palavra “autonomia” significa uma “liberdade interdependente”, distinguindo-se, portanto, da eleutheria, que denota uma liberdade na total independência. (AMARAL, 1995, p. 126). Dessa forma, vê-se que a autonomia não significa soberania, mas a garantia de respeito ao interesse próprio no âmbito da comunidade maior, o que é conseguido pela participação, em igualdade, nos processos de tomada de decisão – sem uma intervenção determinante cujo caráter seja unilateral. Sobre o assunto, ver trabalho anterior: GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 316 e ss.

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síntese, o que se pretende neste artigo é refletir sobre as complexas relações entre Estado, mercado e autonomia utilizando para este fim a descrição histórica. 1 Brasil: Universidade temporã e heterônoma É no final do século XII que surgem as primeiras instituições que hoje chamamos de Universidade. Nasceram da vontade e união de professores, alunos e funcionários que buscavam conhecimento e funcionavam tendo como referência as corporações medievais de ofício. As primeiras universidades criadas foram de Bolonha, Paris, Montepelier e Oxford (LAMPERT, 1999, p. 21). Era uma nova etapa que se organizava dentro do processo de transição do feudalismo para o capitalismo. “Na origem da universidade estava a transição da humanidade de uma etapa para a outra: da vida rural para vida urbana, do pensamento dogmático para o racionalismo, do mundo eterno e espiritual para o mundo temporal e terreno, da Idade Média para a Renascença” (BUARQUE, 1994, p. 21). A conquista da autonomia pela universidade muitas vezes foi alcançada dificuldade, em meio a um processo de luta entre senhores e a Igreja para a conquista da autonomia. Afirma Jacques Le Goff:

...as origens das corporações universitárias são freqüentemente tão obscuras como as de outras corporações de ofício. Organizaram-se lentamente, mediante conquistas sucessivas, ao acaso dos incidentes que são outras tantas circunstâncias. Os estatutos apenas sancionam tardiamente as conquistas. Não podemos sequer ter certeza de que os que possuímos sejam os primeiros, o que nada tem de surpreendente. Nas cidades onde se formam, as universidades, devido ao número e qualidade de seus membros, manifestam um poder que inquieta os outros poderes. É lutando, às vezes contra os poderes eclesiásticos, outras vezes contra os poderes laicos, que elas adquirem sua autonomia (LE GOFF, 1989, p. 60).

Geralmente, depois deste processo de luta por autonomia, a corporação universitária congregava uma série de privilégios, tais como: autonomia jurisdicional; direito de paralisação e secessão; monopólio da colação de graus; isenção de impostos, dispensa do serviço militar, etc. (LAMPERT, 1999, p. 24-25). A maioria das instituições seguia o modelo parisiense e exerciam o ensino com função principal. O latim era usado na leitura e interpretação do texto pelo professor. Posteriormente os alunos perguntavam e faziam anotações e os registros das frases ou idéias mais importantes. Após o entendimento acontecia a discussão. (LAMPERT, 1999, p. 28). No Brasil a universidade teve um surgimento posterior

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ao da maioria dos países europeus e muitos Estados Latino-Americanos. Luiz Antônio Cunha (2007a) a qualifica como temporã. Fávero explica este descompasso como resultado do controle que a metrópole portuguesa exercia sobre a colônia brasileira. Desta forma, “todos os esforços de criação de universidades, nos períodos colonial e monárquico, foram malogrados, o que denota uma política de controle por parte de Metrópole de qualquer iniciativa que vislumbrasse sinais de independência cultural e política da Colônia” (FÁVERO, 2006, p. 20). O ensino superior, durante boa parte da história colonial brasileira, ficou a cargo dos colégios jesuítas. O método de ensino agregava o Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Nestes anos iniciais da educação colonial:

Para construir o método de ensino, os jesuítas tomaram como referência o método escolástico, existente desde o século XII, e o modus parisiensis, como era chamado o método em vigor na Universidade de Paris, local onde Inácio de Loyola e os demais jesuítas fundadores da Companhia de Jesus realizaram seus estudos. Nesses modelos, em que o uso do latim imperava, visava-se à abordagem exata e analítica dos temas a serem estudados, clareza nos conceitos e definições, argumentação precisa e sem digressões, expressão rigorosa e lógica silogística (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 145).

A hierarquia e a disciplina eram valores respeitados. O conhecimento era visto como algo pronto que deveria ser memorizado e o docente era apenas transmissor deste conhecimento. “Nas escolas jesuíticas, efetivou-se a manutenção de um modelo único, com controle rígido dentro e fora da sala de aula, e uma hierarquia de organização de estudos. Como resultado, o aluno passivo e obediente, que memoriza o conteúdo para avaliação, numa estrutura rígida de funcionamento do processo de ensino-aprendizagem” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 147). Em 1759, em meio às reformas pombalinas, os jesuítas foram expulsos e se desorganizou o ensino na colônia (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2006, p. 26-27). Para Pimenta e Anastasiou esta forma inicial da organização dos estudos superiores na colônia ainda tem permanência nas práticas docentes universitárias. Resgatando o conceito de habitus de Bordieu2 as autoras refletem que, apesar de não contar com a referência de um manual, o 2

A autoras definem, a partir de Bourdieu, habitus como “um conjunto de esquemas que permite engendrar uma infinidade de práticas adaptadas a situações sempre renovadas, sem nunca constituir princípios explícitos (...). O habitus permite a incorporação de alterações nos discursos e não nas práticas, instala-se e acaba sendo modificado apenas superficialmente, num avanço que fica presente mais no discurso do que na alteração da visão formal do conhecimento e, conseqüentemente, da memorização como metodologia na e da sala de aula” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 147).

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professor mantém práticas jesuíticas como “a preleção docente, a memorização, a avaliação, a emulação e o castigo característicos do modelo jesuítico” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 148). Com a vinda da família real portuguesa, em 1808, foi criado o primeiro curso superior no Brasil. Até então os estudantes brasileiros deveriam estudar na Europa e o principal destino foi Coimbra. Estima-se que mais de 3.000 bolsas foram concedidas para a formação de bacharéis e doutores em Portugal. O modelo que foi adotado no Brasil não foi o da universidade, mas o modelo de ensino napoleônico que tinha uma preocupação profissionalizante. O objetivo era formar a burocracia estatal de uma forma coesa ideologicamente (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 148). As práticas jesuíticas eram reforçadas:

Com respeito à sala de aula, esse modelo não altera as características próprias do modelo jesuítico. A forma pela qual se efetiva a relação entre professor, aluno e conhecimento se mantém. O professor é transmissor de conhecimento e, no estudo das obras clássicas, a aceitação passiva das atividades propostas, a importância da memorização do conteúdo pelo aluno como sua obrigação primordial, a força da avaliação como elemento essencialmente classificatório são característicos do ensino na universidade. Reforçam-se aí, elementos do ensino jesuítico, que refletem aquele conjunto de valores e atendem objetivos napoleônicos, em que o processo de “condicionamento” pretendido é preservado como uma metodologia tradicional, como uma pedagogia de manutenção, não havendo intencionalidade para a criação do conhecimento (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 150).

O que se pode sintetizar destes primeiros dados sobre a organização histórica do ensino superior no Brasil é que ele tem uma profunda ligação com o Estado e suas necessidades e também se organiza de forma essencialmente tradicional, no formato jesuítico de memorização de conteúdo e forte disciplina, restando pouco espaço para a construção do conhecimento ou a prática da pesquisa. A primeira “universidade” brasileira surgiu em 1920 com a junção das Escolas de Direito, Medicina e Engenharia do Rio de Janeiro. Esta universidade foi resultado da união de cursos isolados que se ligavam pela reitoria com a garantia de autonomia didática e administrativa. “Desse modo a primeira universidade oficial é criada, resultado da justaposição de três escolas tradicionais, sem maior integração entre elas e cada uma conservando suas características” (FÁVERO, 2006, p. 22). Durante os anos 20 aconteceu um amplo debate entre a Associação Brasileira de Educação (ABE) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC) sobre a concepção, função, autonomia e modelo que as universidades brasileiras deveriam adotar, mas nenhuma outra

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iniciativa foi concretizada pelo governo federal. É somente no governo Vargas que nova tentativa de implementação foi feita com a criação da Universidade de São Paulo em 1934. Apesar do Estatuto das Universidades Brasileiras garantir autonomia formalmente ela não se efetivou, haja vista a presença de um Estado autoritário. Em 1935 também foi criada, por iniciativa de Anísio Teixeira, a Universidade do Distrito Federal (UDF) no Rio de Janeiro. Esta iniciativa foi realmente louvável, mas o regime autoritário instaurado por Vargas fez sucumbir esta experiência inovadora (FÁVERO, 2006, p. 24-25). No discurso de inauguração da UDF Anísio Teixeira destacava que a universidade tinha várias funções como difundir conhecimento e preparar profissionais, mas que a sua função primordial era a produzir conhecimento. Segundo Fávero:

Com essas palavras, Anísio chama atenção para um problema fundamental: uma das características da universidade é a de ser um locus de investigação e de produção de conhecimento. E uma das exigências para a efetivação desse projeto era, sem dúvida, o exercício da liberdade e a efetivação da autonomia universitária. Mas como pensar em autonomia universitária no limiar do Estado Novo? (FÁVERO, 2006, p. 26).

Esta é uma questão realmente importante, pois o espaço da autonomia nunca realmente foi construído pela comunidade acadêmica brasileira. Os significativos processos de mudança foram resultado da força e vontade do Estado em períodos ditatoriais (a ditadura de Vargas e o Regime Militar). Mas, paradoxalmente, as mudanças foram modernizantes e utilizaram a educação como um instrumento de suporte ideológico e fortalecimento do regime. Quando, em 1937, Vargas instituiu a Universidade do Brasil a questão da autonomia foi ignorada e a escolha dos reitores e direitos da universidade ficava a cargo do presidente. Além disso, os professores e alunos foram expressamente impedidos de se manifestarem politicamente sendo proibidos de comparecer “às atividades universitárias com uniforme ou emblema de partidos políticos” (FÁVERO, 2006, p. 27). Com o fim da ditadura Varguista em 1945 ocorreu a redemocratização e no final dos anos 40 e inicio dos anos 50 novas tentativas de conquistar autonomia universitária foram feitas. A pesquisa ainda não estava institucionalizada e “multiplicavam-se as universidades, mas com o predomínio da formação profissional, sem idêntica preocupação com a pesquisa e a produção do conhecimento” (FÁVERO, 2006, p. 28). Amplos debates ocorrem com relação a discussão entre o ensino público e privado e a discussão da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

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Em 1968, depois da instauração da ditadura militar no país com o golpe de 1964, é que se concretizou a primeira reforma universitária brasileira. O objetivo principal foi modernizar a instituição, tornando-a eficiente na formação de profissionais para o mercado de trabalho e para a tecnocracia que governava o país. Os pontos principais da reforma foram: extinção da cátedra; unificação do vestibular (que passou a ser classificatório); instituição do curso básico e profissional; sistema de créditos e matrícula por disciplina; organização semestral; flexibilidade da organização curricular; pós-graduação nas modalidades de especialização, mestrado e doutorado; aglutinação das faculdades em universidades; perda da autonomia e controle externo (LAMPERT, 1999, p. 39). A necessidade de desenvolver a pesquisa no Brasil, uma das bandeiras do movimento estudantil nos anos 60, chegou em uma versão deturpada no Brasil. A universidade de pesquisa, com inspiração no modelo alemão, acabou por aparecer apenas na pós-graduação. Segundo Pimenta e Anastasiou:

Esses elementos do modelo alemão, que dão destaque à produção do conhecimento e ao processo de pesquisa, são assimilados ao sistema de ensino superior norteamericano e chegam ao Brasil, em âmbito nacional, no texto da Lei 5.540/68, como resultado dos acordos MEC/Usaid, conduzindo às reformas educacionais do período da ditadura militar. Separa-se aí a pesquisa do ensino, deixando a graduação a responsabilidade de formação dos quadros profissionais – o que reforça o caráter profissionalizante do modelo napoleônico – e destinando à pós-graduação a responsabilidade da pesquisa (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 152).

O Ensino superior e as universidades brasileiras nasceram muito próximos ao Estado. O surgimento dos primeiros cursos no início do século XIX derivaram da necessidade do Estado Metropolitano português formar quadros para a burocracia estatal. A criação da USP também se inseriu em um processo de modernização autoritária promovido por Vargas e finalmente a reforma de 1968 foi o resultado de um projeto de modernização de Estado Burocrático-Militar. Ou seja, dentro desta dimensão e com a interferência direta do Estado na criação e formação dos quadros universitários o espaço da autonomia acabou se tornando restrito. Afinal, a autonomia intelectual ou institucional é uma conquista - não pode ser permitida ou outorgada. O movimento acadêmico que propugnava mudanças no modelo foi abafado pela ditadura militar. A reflexão sobre as práticas autoritária e tradicionais com relação à docência foi mais uma vez adiada. Sendo assim:

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No período da ditadura militar há uma estagnação do citado processo critico no que concerne à formação na graduação, tendo os professores universitários oportunidade de aperfeiçoar-se na pesquisa de suas áreas específicas, mas sem oportunidades sistemáticas de reflexão sobre a sua atuação como docentes. Reforça-se todo o ambiente adequado a uma pedagogia calcada na transmissão de saberes, num papel docente centralizador, numa relação de reprodução de conhecimento tido como verdadeiro e na não-problematização e crítica da realidade social, cultural, econômica e científica. (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 153).

Na contemporaneidade a questão se torna ainda mais complexa considerando-se a influência do mercado nos rumos do ensino superior brasileiro. Na dimensão privada a interferência é óbvia: a instituição de ensino também é uma empresa. Na dimensão pública, ainda que de maneira mais subjetiva, esta interferência também se faz presente pois a racionalidade do mercado muitas vezes se impõe na administração da instituição pública. Refletir sobre o impacto do neoliberalismo e a influência da dimensão econômica dentro dos rumos das instituições de ensino superior brasileiro é o foco do próximo item deste artigo. 2 O Neoliberalismo e as Políticas para o Ensino Superior nos Anos 90: impacto na autonomia universitária O processo de massificação do ensino superior começou como um desdobramento da própria expansão do ensino primário nas décadas e 40 e 50 e do ensino médio nos anos 60. Para atender esta demanda, na década de 70, aconteceu um crescimento desenfreado dos cursos superiores em instituições privadas, geralmente na modalidade de faculdades isoladas. Dentro do contexto clientelista do regime militar muitas vezes estes cursos não apresentavam nenhum tipo de controle e qualidade de ensino e os subsídios governamentais distribuídos indiscriminadamente (CUNHA, 2007, 811-813). Atualmente o MEC insiste na necessidade de ampliar vagas no ensino superior e triplicar o número de matriculados. Pois, segundo o levantamento do ministério apenas 10% dos alunos entre 18 e 24 se encontravam matriculados no ensino superior no final dos anos 90. (MEC, 2011). O projeto de massificação do ensino superior é delicado haja vista que se pauta em diretrizes essencialmente quantitativas e principalmente na forte do ensino privado. No ensino fundamental a situação é análoga. A tentativa de ampliação dos níveis educacionais da população mediante projetos de curto prazo e de fácil implementação gerou conseqüências desastrosas. Condicionando empréstimos a partir de baixos índices de reprovação e aumento do número de alunos matriculados, o Banco Mundial é coadjuvante na

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implantação da escola por ciclos no ensino fundamental brasileiro. Ao invés de concentrar seus esforços na formação e valorização dos docentes ou na modernização de laboratórios e bibliotecas o governo optou por, pura e simplesmente, eliminar a reprovação. Os resultados desta escolha são alarmantes. Em 2003 o SAEB (Sistema de Avaliação do Ensino Básico) divulgou que 97% dos alunos estavam matriculados no ensino fundamental; ocorre que 64% dos alunos que freqüentavam a quinta série não sabiam ler e nem escrever (MAIS, 2005). Os exames do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) também confirmam este diagnóstico. Em 2006 participaram do exame no Paraná 2,8 milhões de alunos e a média na prova objetiva foi de 36,09 pontos e na redação foi de 52,08 pontos (em um escala de 0 a 100) (PARANÁ, 2007). Este desempenho não é aceitável para esta etapa da escolarização. O quadro remete à complexidade do processo educativo: não é possível pensar uma reforma do ensino universitário sem contemplar a questão do ensino fundamental e médio; ademais, os critérios quantitativos obviamente não são suficientes para resolver a questão educacional no país. Considerar a questão quantitativo-estatística é um fator importante, sem dúvida. Todavia, esta é apenas uma das variáveis relevantes para ser alcançado um escopo estrutural de incrementação da educação. Ao ser relevado em caráter quase que exclusivo, deixa de ser um elemento agregador positivo para incidir em verdadeiro óbice ao projeto de desenvolvimento educacional. A expansão das matrículas no ensino fundamental, médio e superior é defendida e comemorada entusiasticamente pelo governo, mas a qualidade da formação oferecida não é discutida de forma satisfatória. Apesar de organismos internacionais de fomento, como o Banco Mundial, defenderem o aumento do número de vagas de qualquer modo, e de preferência do modo mais barato, é preciso pensar também na qualidade do ensino ministrado e, ademais, que tipo de egresso se pretende formar. Mais do que isso, é preciso existir uma reflexão sobre o verdadeiro impacto deste modelo, que cria um exército de profissionais obviamente não preparados para o exercício adequado de sua habilitação formal. A reforma do Estado no Brasil, contexto no qual se insere a reforma universitária, foi um desdobramento da crise de Estado de bem Estar Social e do retorno da doutrina liberal que renasceu na administração Reagan e se disseminou pelo mundo. Em 1989, a cidade de Washington sediou uma reunião organizada pelo Institute for Internacional Economics (Latin American Adjustament: How Much Has Happeened?) para avaliar as reformas econômicas que julgavam necessárias na América Latina. O Estado nacional era percebido como incapaz

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de realizar sua política monetária e fiscal. Estas políticas deveriam ser geridas e responsabilidade dos organismos internacionais fomentadores do ideário neoliberal. As questões relativas às reformas sociais foram ignoradas. A educação, saúde, pobreza e distribuição de renda seriam resolvidas de forma “natural” depois da liberalização do mercado. (BATISTA, 1994, p. 14)

A avaliação objeto do consenso de Washington abrangeu 10 áreas: 1. disciplina fiscal; 2. priorização dos gastos públicos; 3. reforma tributária; 4. liberalização financeira; 5. regime cambial; 6. liberalização comercial; 7. investimento direito estrangeiro; 8. privatização; 9. desregulação; e 10. propriedade intelectual. (BATISTA, 1994, p. 26)

O que o corolário do consenso pregava era a redução das despesas para alcançar o equilíbrio orçamentário. Mas no caso dos países mais pobres isso poderia significar a desorganização do Estado e isso pode até “comprometer a sua visão clássica de provedor de segurança contra ameaças internas à ordem pública ou externa à integridade territorial”. (BATISTA, 1994, p. 29-30) O ideário também defendia a regressividade e o minimalismo na cobrança de tributos. O aumento da carga tributária e a questão da evasão foram ignorados e a proposta apresentada defendeu a distribuição mais ampla da carga tributária e o aumento dos impostos indiretos. Em suma o Consenso de Washington formulou uma política de abertura comercial irrestrita e predatória para os países americanos contando e exigindo a sua concordância. No setor educacional, além do ambiente criado pelo Consenso de Washington na dimensão econômica, outra agência internacional de fomento importante foi o Banco Mundial. Em suma, as diretrizes do Banco Mundial para o ensino superior foram as seguintes: a) "Fomentar maior diferenciação das instituições, (inclusive privadas)”. No caso brasileiro esta orientação possibilitou que algumas instituições ofertassem apenas o ensino e outras somente a pesquisa e quebrou a necessária união entre o ensino a pesquisa e a extensão, que eram o tripé sobre o qual se organizava o ensino superior pátrio de qualidade; b)"proporcionar diversificação de financiamentos”: os alunos e as empresas foram “convidados” a compartilhar o financiamento das instituições públicas com o governo. Nesta dimensão o principio da educação como direito público subjetivo foi ferido. Além disso, corre-se o risco de que as instituições de ensino acabem por se transformar em laboratórios das grandes empresas “fomentadoras” de pesquisa; c) "redefinir a função do governo em relação ao ensino superior”: neste item se reafirma a qualidade de avaliador do sistema para o governo. A sua

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função principal não seria de implementar, fomentar e definir as principais diretrizes para o ensino mas de avaliar o funcionamento do sistema e implementar medidas corretivas quando a competição não fosse suficiente para resolver o problema; d) "adotar políticas que priorizem qualidade e equidade”: o que é uma questão bastante discutível e praticamente impossível sem compreender a educação como um direito social (BANCO MUNDIAL, 1994). A LDB 9.394, de 1996, e o projeto de reforma universitária desenvolvido desde então, estão em sintonia com estas diretrizes, principalmente com relação à diferenciação entre as instituições e com o papel de avaliador adotado pelo poder público. E, finalmente, é importante ressaltar que, desde 1998, a Organização Mundial do Comércio defende que já que se existem provedores privados na educação, principalmente na educação superior, ela deveria ser tratada como um serviço comercial e, conseqüentemente, regulamentado segundo as normas da OMC (DIAS, 2003, p. 822). Este processo político de desvalorização do Estado Nacional e mercantilização da política teve sérios desdobramentos nos países latinos. O Brasil viveu a abertura de mercados no governo Collor, mas a implantação do modelo liberal e de enxugamento do Estado se completou no Governo de Fernando Henrique Cardoso. O presidente nomeou em 1995 Luiz Carlos Bresser Pereira para implementar a chamada reforma gerencial na administração pública brasileira. A idéia era de reformular o papel do Estado brasileiro de formulador de políticas e provedor de serviços públicos para fiscalizador da iniciativa privada. Para Bresser Perreira:

Os Estados modernos contam com três setores: o setor das atividades exclusivas do Estado, dentro do qual estão o núcleo estratégico e as agencias exclusivas ou reguladoras, os serviços sociais e científicos, que não são exclusivos, mas que, dadas as externalidades e os direitos humanos envolvidos, mais que justificam, exigem forte financiamento do Estado; e finalmente, o setor de bens e produção de serviços para o mercado. (PEREIRA, 2001, p. 250)

Nesta classificação a educação se localizava no setor dos serviços sociais e científicos. O desenrrolar desta reforma gerencial levou o governo a tentar implantar de forma cada vez mais incisiva uma cultura de competição e gestão na educação brasileira. Mesmo reconhecendo formalmente que a busca de lucro não é saudável na educação Bresser Pereira buscou incentivar a competitividade e flexibilizar a burocracia, buscando uma gestão de resultados (PEREIRA, 2001, p. 251). O cerne deste argumento é que a lógica mercantil seria capaz de aprimorar o desempenho do setor educacional. A luta entre as instituições de ensino para alcançar índices e metas “naturalmente” seria responsável por uma melhoria no

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desempenho dos alunos e agregaria qualidade à educação. No setor educacional os contratos de gestão não foram criados como propugnava Bresser Pereira, mas vários “incentivos” foram implementados por instituições e agências de fomento. Os docentes que aumentavam os seus indicadores de produtividade eram “premiados” com bolsas especiais e prêmios, independente da qualidade, originalidade ou da relevância social da pesquisa elaborada. Nesta dimensão, cada vez mais o ensino é visto como bem econômico e não como um direito social. Marilena Chauí afirma que este cenário acabou por transformar o modelo de universidade adotado no Brasil. A mudança se deu em etapas e criou diferentes modelos de universidade até gerar o que a autora denomina de universidade operacional:

De fato, enquanto a universidade clássica estava voltada para o conhecimento, a universidade funcional estava voltada diretamente para o mercado de trabalho, e a universidade de resultados estava voltada para as empresas; a universidade operacional, por ser uma organização, esta voltada para si mesma como estrutura de gestão e arbitragem de contratos.(CHAUÍ, 2001, p. 190)

A autonomia neste modelo se traduz no gerenciamento empresarial da instituição e prevê que, para cumprir as metas e alcançar os indicadores impostos pelo “contrato de gestão” com a sociedade, a universidade tem ‘autonomia’ para captar recursos de ‘outras fontes’, fazendo parcerias com as empresas privadas, por exemplo (CHAUÍ, 2001, p. 183). Dentro deste conceito de “autonomia” a idéia era de “flexibilizar”. As sugestões eram para que se eliminasse o regime único de trabalho e os processos de compras e prestação de contas fossem simplificados. O controle só aconteceria no final do processo com a “prestação de contas”. No campo acadêmico a sugestão era para que se adaptassem os currículos da graduação às necessidades das empresas e que a docência e pesquisa fossem separadas, pois este era um modelo muito caro para manter em um país pobre como o Brasil. Para Marilena Chauí uma instituição social, como a universidade, não deveria ser entendida exatamente como uma “organização”, na medida em que a organização seria regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito; e em assim sendo, não seria realmente determinante deste ambiente a discussão ou o questiona da sua existência e função, ou seja, como uma instituição “deve fazer”, por razões de princípio. Neste modelo de instituição operacional a docência e a pesquisa acabam não tendo ter pleno desenvolvimento. Os critérios usados para avaliar a educação são meramente quantitativos: quanto a universidade produz? Em quanto tempo? Qual o custo da sua produção? A universidade é

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administrada e avaliada segundo critérios que poderiam ser usados para uma montadora de automóveis (CHAUI, 2003, p. 6). Infelizmente estas idéias já foram incorporadas pelos docentes brasileiros que não questionam os indicadores, apenas esmerando-se em alcançá-los para competir por bolsas de pesquisa das agências de fomento – bolsas estas que nem mesmo são sempre concedidas em razão da expertise do candidato, mas sim comumente decorrem da maior ou menor influência política pessoal ou institucional do beneficiário. Esta sem dúvida é uma limitação importante para o exercício da autonomia universitária, que ainda se vê sofrendo uma forte intervenção externa de variáveis econômicas fortemente negativas para a incrementação da educação como um fato de desenvolvimento do país. Considerações finais Sem o objetivo de esgotar a questão, e partindo da argumentação apresentada, o que se busca é refletir sobre o caso histórico brasileiro e as possibilidades e limites de construção da autonomia universitária no Brasil. Em síntese, historicamente o Estado brasileiro foi uma presença marcante para o ensino superior no país. Financiando, promovendo incentivos fiscais ou definindo metas de gestão ele foi uma das forças que traçou os rumos das instituições de ensino brasileiras públicas ou privadas. A outra força definidora foi o mercado. O grande paradoxo das “empresas” de educação é que a formação de qualidade que congrega ensino, pesquisa e extensão são deficitárias e isso acabaria levando estas “empresas” à falência. Além disso, a visão clientelista de algumas instituições com relação aos alunos acaba por ofuscar o processo de ensino-aprendizagem. E, realmente, é possível a comunidade acadêmica exercer autonomia dentro da lógica empresarial que congrega relações entre empregados e empregadores? É importante lembrar que a grande expansão das “empresas” de educação também levou à lógica e a racionalidade privada instituições públicas. No espaço público ela se mesclou com o corporativismo e o clientelismo que tradicionalmente já fazem parte do imaginário político e das práticas sociais do setor público.3 Neste espectro de forte intervenção econômica negativa, a construção da autonomia (como não-intervenção) no espaço do ensino superior brasileiro (e educacional como um todo) é escopo de difícil 3

Para um estudo aprofundado e detalhado desta questão ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

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construção e que talvez demande uma maior participação da comunidade a fim de reforçar a legitimidade de ação deste importante e clássico espaço de luta pela liberdade de ser e existir do sujeito contemporâneo e suas futuras gerações: o ambiente universitário. REFERÊNCIAS AMARAL, Carlos Pacheco. Autonomia: uma aproximação na perspectiva da filosofia social e política. Revista da Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1995. BANCO MUNDIAL. La Enseñanza Superior: las lecciones derivadas de la experiencia (El Desarrollo en la práctica). Washington: BIRD, 1994. BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington. São Paulo: Peres, 1994. (Cadernos da Dívida Externa, n. 6) BUARQUE, Cristovam. A Aventura da universidade. 2. ed. São Paulo: Unesp, 1994. CHAUÍ, Marilena de Souza. A Universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 24, p. 5-15, set./dez. 2003 _____. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Unesp, 2001. CUNHA, Luiz Antônio. O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o Estado e o Mercado, Educação e sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 809-829, out. 2007c. _____. A Universidade reformada: o golpe de 1964 e a modernização do ensino superior. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2007b. _____. A Universidade temporã: o ensino superior na colônia à Era Vargas. 3. ed. São Paulo: UNESP, 2007a. DIAS, Marco Antonio Rodrigues. Comercializar no ensino superior: é possível manter a idéia de bem público? Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 817-838, set. 2003. FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. A Universidade no Brasil: das origens à reforma universitária de 1968. Educar, Curitiba, n. 28, p. 17-36, 2006. GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da educação brasileira. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. LAMPERT, Ernâni. Universidade, docência e globalização. Porto Alegre: Sulina, 1999. LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. 2. ed. São Paulo: Brasilense, 1989. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. MAIS de 50% dos alunos da 5a série não sabem ler nem escrever. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2005.

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