O espaço do sagrado e a poesia: A outra margem de Drummond

May 29, 2017 | Autor: Suzi Frankl Sperber | Categoria: Comparative Literature, Portuguese and Brazilian Literature, Literature and the Sacred
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O espaço do sagrado e a poesia:


A outra margem de Drummond





Suzi Frankl Sperber




Segundo Eliade, o mundo da poesia tem uma sacralidade que decorreria
do pietismo – o sentimento de piedade pelos humilhados, e da idéia de
nulidade do ser humano, de descoberta e dignidade só no ser mais baixo. –
A isto se dá o nome de mysterium fascinans e corresponde à transformação de
níveis, levando à transformação do mais baixo no mais alto. Esta passagem
de nível corresponderia à manifestação do ser pleno – diferenciado -
fundadora ontológica do mundo.
Para chegar à plenitude é preciso passar por uma ascese, uma
purificação transformadora, que redimensiona inclusive o amor, expressão da
"ruptura de nível ontológico e passagem da existência condicionada a um
modo de ser não condicionado"[1], isto é, à perfeita liberdade. Esta
perfeita liberdade é condição sine qua non da trajetória de purificação e
ascese, que independe de dogma e que é facultada a todos os seres humanos,
não apenas aos especiais, sejam eles santos, profetas, eleitos. Ela leva à
vivência da plenitude e à transfiguração da vida quotidiana pela
experiência através das pequenas coisas, passando pelos três momentos do
mesmo mistério: geração, regeneração e revelação (o que, segundo Eliade,
corresponderia a Pai, Filho e Espírito Santo). A experiência por excelência
é radical, avassaladora, significando a abolição de qualquer situação
confortável, ou mesmo do mundo condicionado.
Teriam todos os poemas que apresentam a temática da piedade diante dos
humilhados ou a nulidade dos seres humanos um caráter sagrado? Será esta
temática inerente à poesia? Definiria ela aquilo que os formalistas russos
chamaram de literariedade? Aí, por brincadeira, poderíamos chegar a
formular que o pietismo e a idéia da nulidade do ser humano seriam fatores
de poesia. O belo é bom, como dizia a paideia grega, que prezava o Kalos-
kagathos[2]. Poderia o texto literário ser literário devido à relação com o
sagrado?
Quando analisamos obras literárias, seja a obra de Clarice Lispector,
seja a de Carlos Drummond de Andrade, notamos que aquilo que nos envolve
avassaladoramente, às vezes com extraordinária delicadeza, às vezes com
violência, é aquilo que há de poético nos textos. Não é o pietismo. É outra
coisa. É algo relacionado com a palavra.
A levarmos em conta pelo menos uma das definições de poesia de Octavio
Paz[3], a poesia se caracterizaria pela participação. Esta depende da
experiência, que leva para além de si, para além do ser humano. Portanto
leva à transformação. E a transformação é uma das características do
movimento que conduz ao sagrado. Outras definições de poesia de Octavio Paz
são aplicáveis também ao sagrado. A relação mais íntima e direta com o
sagrado se dá pela palavra.


Todo idioma sagrado es secreto. Y a la inversa: todo idioma
secreto – sin excluir al de conjurados y conspiradores – colinda con lo
sagrado.[4].


Esta relação entre palavra e sagrado é confirmada em qualquer livro
sagrado: o ato de criação propriamente dito deu-se pela palavra – que
contém em germe, ab ovo, a potência - também contida no sagrado. Mas então
toda palavra é sagrada? Ou então, se toda palavra é potencialmente
sacralizável, que recursos de linguagem, de estruturação, ou temáticos
fecundam a palavra?
A dificuldade com relação à definição mais específica do sagrado é que
o conceito, vinculado à palavra, passa a incluir, para além do ganz andere
definido por Rudolf Otto[5], o poder de criação.
O homem primitivo, nosso ancestral, atribuiria à palavra tal peso
concreto, considera Arnold Hauser, que a enunciação pura e simples serviria
para captar o que é visto - que se afasta ou é invocado pela palavra -
assim como a imagem captura o animal, uma vez criada e gravada nas paredes
de uma caverna. A palavra é sagrada e evoca o sagrado. Exorciza-se com a
palavra. Não é preciso escrevê-la. Basta proferi-la. Com ela se fecha o
corpo. Com ela se mata e se salva. Com ela se abre e fecha portas – e o ser
humano se abre para a vida eterna. Com ela se cria e recria, se transforma,
e a transformação costuma ser vista como índice de ressurreição.
Os estudiosos do mito no século XX revelam a penetração da preocupação
ontológica do ser humano, cristalizada ou refinada nas enunciações dos
importantes pensadores dos séculos XIX e XX. Segundo Mircea Eliade, Marx
retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-
mediterrâneo: o papel redentor do Justo (o eleito, o ungido, o inocente, o
mensageiro). Assim, via preocupação ontológica e mito, o sagrado seria
ingrediente passível de manifestação nos mais diferentes e surpreendentes
textos e contextos. Quererá isto dizer que o sagrado permeia todo o
profano?
Os conteúdos e estruturas do inconsciente, que decorrem de situações
existenciais imemoriais, sobretudo as situações críticas, têm aspectos
religiosos. Ao por em questão a realidade do mundo e a presença do homem no
mundo, qualquer crise existencial tem um caráter religioso porque nos
níveis arcaicos da cultura o ser se confunde com o sagrado.


Autrement dit, dans la mesure où l'inconscient est le résultat des
innombrables expériences existentielles, il ne peut pas ne pas
ressembler aux divers univers religieux. Car la religion est la
solution exemplaire de toute crise existentielle, non seulement parce
qu'elle est indéfiniment répétable, mais aussi parce qu'elle est
considérée d'origine transcendantale et, en conséquence, valorisée en
tant que révélation reçue d'un autre monde, trans-humain. La solution
religieuse non seulement résout la crise, mais en même temps rend
l'existence «ouverte» à des valeurs qui ne sont plus contingentes ni
particulières, permettant ainsi à l'homme de dépasser les situations
personnelles et, en fin de compte, d'accéder au monde de l'esprit[6].

Experimentarei a noção de sagrado aplicada à poesia de Carlos Drummond
de Andrade que, em seminário inédito, chamei de um místico ateu. Carlos
Drummond de Andrade era socialista. Sua temática é abrangente, e nela os
tempos modernos, a máquina, a cidade indiferente e dura, o capitalismo
aparecem como ameaça para os valores humanos. Ele não tematiza o sagrado,
nem propõe uma trajetória de ascese, mas ao ansiar pela mudança, por um
outro mundo, utópico, que está aquém, propõe automaticamente uma cifra, um
locus intersticial que passa por uma transformação que se abre para o
sagrado. Alguns temas podem indiciar valores relacionados às religiões,
como a esperança ("Com o tempo, a esperança / e seus maquinismos, / outra
mão virá / pura - transparente - / colar-se a meu braço"). Ao longo dos
poemas manifestam-se diferentes formas da esperança: na vida, na justiça,
no direito; sob modalidades como confiança, fé, utopia. Correspondem a
formas de ação e luta que evitam a resignação, vinculadas fundamentalmente
à pulsão de vida: Eros. Tanatos, a pulsão de morte, reside nas
características do mundo pervertido, poluído, corrompido. A mão suja, por
exemplo, não representa só a culpa pessoal: também é culpa ancestral,
pecado original. Mas como é tematizado o individualismo burguês, a sua
eliminação, possível graças a maquinismos, atinge também o cerne da questão
de classes. No poema "Mão Suja" CDA trata da pureza e impureza, honestidade
e coonestação. Não é preciso que esteja verbalizada a idéia de coonestação,
nem que haja imagens que a sugiram.
CDA pega um tema como o da responsabilidade, ou da co-responsabilidade
e elabora, a partir da mão, a partir do adjetivo que a qualifica, o tema da
culpa. Neste caso ele amplifica a metonímia, levada às últimas
conseqüências. A sujeira da mão, por adjacência, acaba representando mais
do que o crime e a culpa particulares, pessoais. Representa a dissolução:
de costumes, de política, correspondente à dissolução dos tempos. Marcante
é o anseio de pureza, recorrente na obra de CDA. Não se trata de uma idéia
idílica, complacente, romântica de pureza e bondade, à Rousseau do "bon
sauvage". CDA rejeita o idílico da pequena cidade: não tem complacência com
o agradável, confortável. Não celebra a estreiteza, nem a felicidade do
cantinho. Muito menos a alienação dos que vivem fora de seu tempo
("Cidadezinha qualquer"). Diz Simone Weil "É preciso uma representação do
mundo em que haja o vazio, para que o mundo tenha necessidade de Deus. Isto
supõe o mal". A felicidade pequena, nem é felicidade: é satisfação,
contentamento. Estas emoções não admitem dúvidas, nem anseios ou
inquietações. Não apresentam um vazio, porque fecham os olhos para o que de
mal possa haver naquele mundo. Neste sentido, é extraordinário o poema da
perplexidade: "No meio do caminho[7]". O poema repete o embate com a pedra.
O encontro vira encontrão pela repetição e o eu lírico se bate mais contra
ela. Atira-se à pedra como se, a partir de uma certa intensidade de desejo,
ela devesse deixar de existir. Ou então o próprio eu devesse desaparecer,
como se ele não existisse, ou nem tivesse existido. O desejo de eliminar
quer a pedra, quer o eu, compreende o desejo de absoluto e se ele fracassar
(no momento em que a energia estiver esgotada), o absoluto se transfere
sobre o obstáculo, que acaba assumindo proporções imensas, incomensuráveis,
vencendo quem se choca com ele. Desta maneira o obstáculo será maior do que
o ser humano, que não consegue aceitá-lo como mero limite. Ao renovar a
apresentação do obstáculo, a pedra, o eu lírico indicia a necessidade de
reconhecimento do entrave. A ação iniciada é interrompida no meio. No meio
do caminho, ao invés de encontrar o inferno, o purgatório e o paraíso, como
o eu lírico Dante no meio do caminho de sua vida, o eu lírico CDA encontra
a pedra. Ao invés da trajetória para a purificação, vem o choque. Repetido,
o choque cresce, se aprofunda e cinde o espaço da vida do poeta, cuja
heterogeneidade será inegável.
O implícito no poema, o seu não-dito, aparece em outros poemas sob a
forma da vida menor. Quando começa o poema "Vida menor", podemos temer que
ele proponha justamente a alienação, ou a pusilanimidade, visto que fala em
fuga, exílio, "perda voluntária de amor e memória". No entanto a voz lírica
assevera: "Não a morte, contudo. / Mas a vida: captada em sua forma
irredutível". Quando "o tempo não mais se divide em seções; o tempo /
elidido, domado" ele foi desbordado. A sua elisão implica a pureza de seu
estado. (Octavio Paz considera que o tempo puro é uma das marcas poéticas
relacionadas ao sagrado). Diferentemente de Proust, cujo espírito cresce
para além do tempo, recapturando-o pela consciência das sensações,
reveladas ou manifestadas pela memória involuntária, Carlos Drummond de
Andrade cala tudo ao redor da voz lírica, ou do eu lírico, despreza tudo,
como o José, no poema, "Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem
teogonia, / sem parede nua / para se encostar, / sem cavalo preto / que
fuja a galope, / você marcha, José! / José, para onde?" Reduzido à mera
vida, desprovido de todo e qualquer conforto, muleta, máscara, o eu lírico
desconstrói o ser nas suas relações com o mundo, a sociedade, si mesmo, de
modo a estar tão definitivamente só e nu, que cabe todo o não-dito. Abre-se
um sulco profundo, que penetra o absoluto. Na verdade revela-se um intenso
e repetido desejo de pureza. A vida menor: "Não o morto nem o eterno ou o
divino, / apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente / e solitário
vivo. / Isso eu procuro." Esta reaparece em diferentes poemas, como em
"Fraga e sombra", em que a voz lírica é plural: "E calcamos em nós, sob o
profundo / instinto de existir, outra mais pura / vontade de anular a
criatura."[8]
A vida menor, a "mais pura / vontade de anular a criatura" representa
humildade. Esta passa pela busca da beleza. A diligência não é desvalor: em
"Mão suja" a mão do trabalhador e sua sujeira são boas. Solidariedade,
fraternidade, amor, são referências para as matrizes poéticas de Carlos
Drummond de Andrade, em busca de poesia e de beleza.
O embate entre sim e não, entre eu e outro favorece a construção de
tipo apofático. CDA utiliza com freqüência a apófase, de modo a sublinhar o
não-dito, o negado, a fim de significar o que está além ou aquém do dito. O
discurso apofático acaba por indiciar o sagrado, e serve também para falar
de poesia. Em "Procura da poesia"[9] a poética do autor é apresentada pela
sua negação. É verdade que o discurso apofático está relacionado em geral à
teologia negativa, e, pois, sua recorrência serve para os argumentos
teológicos[10]. Mas o sagrado e o poético não se opõem.



El ritmo poético no deja de ofrecer analogías con el tiempo mítico; la
imagen con el decir místico; la participación con la alquimia mágica y la
comunión religiosa. Todo nos lleva a insertar al acto poético en la zona de
lo sagrado[11].



Não fosse tal concepção de poesia, poderíamos temer que a proposta
relação dos poemas de Carlos Drummond de Andrade com o sagrado seria um
flagrante erro, tendo em vista de sua adesão ao socialismo. Afinal a
crítica às religiões feita pelo marxismo foi categórica.
Segundo Paul Ricoeur, ao criticar a religião Marx, Freud e Nietzsche
limparam o horizonte para um mundo mais autêntico, para um novo reinado da
Verdade.
Marx viu a religião como ópio do povo, como "fuga da realidade e das
condições inumanas do trabalho".
Nietzsche desmascara a religião como refúgio dos fracos[12]. O
objetivo da religião (aparentemente) teria sido o de tornar a fraqueza
respeitável, a fim de tornar a vida dos oprimidos um pouco mais suportável.
E a religião teria sido bem sucedida no seu intento, ao promover virtudes
como a piedade, a diligência, a humildade, a cordialidade, consideradas
como a moral dos escravos, dos fracos, dos incapacitados e excluídos.
Freud também teria desmascarado a religião, para revelar e discernir o
real do aparente. Segundo ele, a religião era vista como fonte de conforto
e de esperança para as dificuldades e agruras da vida. A religião seria, em
verdade, uma ilusão que apenas expressava o nosso anseio por ter um Deus-
pai, um protetor.
Segundo Paul Ricoeur, cada um dos três também criou uma arte de
interpretar o mundo, a vida, o homem. Portanto, cada um dos três mestres
desmascarou uma falsa consciência, uma compreensão falsa da sociedade (ou
do texto) na medida em que cada um deles "representa três procedimentos
convergentes de desmistificação[13].
Neste contexto em que a desmistificação da religião foi repetida, qual
o estatuto do sagrado?
Em primeiro lugar, a religião desmistificada por Marx, Nietzsche e
Freud era uma religião instrumentalizada. Não era o sagrado, nem nenhuma de
suas manifestações, tão claramente marcadas pela alteridade mais absoluta,
pela necessária não funcionalização. Em segundo lugar, como já dizia Santo
Tomás de Aquino, não podemos saber o que é Deus. Só o que ele não é.
Atributos como simplicidade, perfeição, bondade são atributos divinos. Se o
ser humano pretender ter atributos idênticos, precisaria ser perfeito,
infinito, onipresente, imutável, eterno e uno como ele. Portanto, a
simplicidade e humildade verdadeira, aquela vinculada ao sagrado, só pode
corresponder mesmo à vida menor, à sucessiva perda de camadas que afastam o
ser humano do real e do absoluto. Em outras palavras, só é possível chegar
ao absoluto e real por apófase: o mais baixo, o menor, leva o discurso, o
anseio, a realização da caminhada para o mais alto. O princípio da não
instrumentalização de aspecto nenhum do mundo, ou do conhecimento, leva o
poeta a propor a sua profissão de fé segundo o princípio apofático não
forçosamente para atingir o sagrado, mas para não converter nada em
artifício. Seu objetivo é não instrumentalizar a doutrina (nem a religiosa,
nem a política e social), sob o risco de que tudo vire ideologia, "ópio do
povo" e do poema.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem: rumor do mar nas ruas junto à linha
de espuma.
O canto não é a natureza
Nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
Elide sujeito e objeto[14].


A apreensão do real e das dimensões do espírito humano aproximam
Carlos Drummond de Andrade da mais profunda compreensão do sagrado. Há
diferentes poemas cujo tópico trata da urbe, da produção da poesia, da
natureza, ou do corpo. Ao usar como recurso a enumeração caótica, ou
tematicamente, quando ele fala sobre as urbes cindidas, sobre o quotidiano
esfacelado, Drummond aborda um tema caro para a modernidade: o mundo
fragmentado. A concepção fragmentária do mundo se deve a uma concepção
profana, que se define pelos instantes, pelas obrigações de trabalho,
sociais. O imediatismo das ações e eventos dificulta a compreensão do todo,
do evento inserido no mundo, passando a ter um estatuto ontológico
disperso, diferente. Desvaloriza a vida em sociedade, a solidariedade,
levando o ser humano para uma solidão última, no limite sartriana. Nos
poemas de Drummond também se percebe a angústia do eu lírico diante de uma
tendência para o novo a todo custo, para o apagamento das raízes, de
tradições, de valores, de ética, caracterizadores das atuais misérias
humanas.
Carlos Drummond de Andrade não tematiza o sagrado, nem propõe
obrigatoriamente uma trajetória de transformação ascética, mas ao ansiar
pela mudança, por um outro mundo, utópico, que estaria aquém, ao reafirmar
a vida e – com ela – o amor, propõe automaticamente uma cifra, um locus
intersticial que se abre para a transcendência, para o sagrado.
Um dos poemas que pode ter provocado estremecimentos de rejeição, ou
de surpresa e incompreensão, quando publicado foi "No meio do caminho", já
comentado anteriormente. Construído sobre a repetição e a circularidade,
contendo um núcleo temático reduzido ao mínimo, parecendo corresponder à
concepção da vida e do mundo como absurdos e despedaçadores, o poema
pareceu ser fundamentalmente experimental. No entanto, se lermos Simone
Weil, encontraremos em "La Pesanteur et la grâce"[15] reflexões exatamente
sobre uma pedra no caminho. Segundo ela, é preciso reconhecer e não negar a
dor, o horror, a dificuldade, o tropeço, o limite humano, sob pena de
render-se à adversidade, submetendo-se a ela. Estar submetido à adversidade
corresponderia, segundo ela, à posição do oprimido, daquele que, para não
reconhecer que está sendo oprimido, abaixa a cabeça e os ombros. Reconhecer
a opressão permite enfrentá-la. Não reconhecê-la leva à fuga, ou à auto-
aniquilação. Diz Simone Weil que "toda forma de recompensa constitui uma
degradação da energia[16]. CDA representa o eu num mundo com um entrave. O
mundo com o mal. Isto cria um vazio. Pareceria que CDA entende o poema como
fator indispensável para o confronto radical, duro, com a realidade. A sua
superação pela poesia preenche o vazio criado por outras dimensões, uma das
quais pode ser o sagrado.
Neste ponto nos confrontamos de novo com a imaterialidade do sagrado.
O que é? Como se constrói? Por que a poesia se aproxima tanto ou tão
facilmente do sagrado, que permite a diversos e diferentes autores dizerem
algo semelhante ao que enuncia Octavio Paz?
Sabemos que os poemas, desde sempre, usam da repetição. Esta - tantas
vezes desqualificada – pode construir um sistema organizador de um evento,
isto é um ritual. Entendo que a poesia apresenta um ritual. E ritual na
medida em que corresponde a um "conjunto de práticas consagradas pelo uso
e/ou por normas, e que se deve observar de forma invariável em ocasiões
determinadas". O ritual pode ocorrer tanto em cultos ancestrais quanto
modernos, tanto recorrer na vida profana, quotidiana, como na vida
religiosa. Pode aparecer como problema – psíquico – ou como solução ou
busca de solução para problemas. Portanto, o que caracteriza
verdadeiramente o ritual é o uso repetido de certos recursos. No ritual, a
repetição apanha o gesto que representa algo concreto, atribuindo-lhe, pela
repetição, um valor simbólico.
A repetição de um só gesto, ou palavra, e a repetição de fórmulas
(expressão usada nos estudos da oralidade), apresenta o perigo da entropia,
isto é, o perigo de perda de informação, decorrente da tendência ao estado
de máxima homogeneidade - também de informação. Mas a repetição ao mesmo
tempo esvazia virtualmente o ou os sentidos conhecidos, abrindo, para o
preenchimento do mesmo signo, ou sintagma, novos ou renovados conteúdos.
Estes não são obrigatoriamente desgastados. Eles podem renovar-se e
aparecer repetidos num contexto novo. Disse-o João Guimarães Rosa:


E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. [...]. E que o
menino Franscisquinho levou susto e chorou, um dia, com medo da toada
"patranha" – que ele repetira, alto, quinze ou doze vezes, por brincadeira
boba, e, pois, se desusara por esse uso e voltara a ser selvagem[17]

No ritual, a repetição corresponde a um jogo representativo, que
começa como reação ou reflexo (portanto passiva), mas que termina como
conquista, transformação em outra coisa. Gestos, movimentos, expressões
manifestadas pelo corpo ou rosto são repetidos no ritual. A palavra não
precisa, mas pode compor o ritual. E o ritual também pode ser realizado
exclusivamente pela palavra. Diferentes recursos de repetição da poesia
(rimas, consonâncias, assonâncias, dissonâncias, estribilhos, ritornelos,
refrãos...) constróem o ritual no poema. E a partir dele o espaço
associativo se abre para o sagrado.
Novamente, coloca-se o problema sobre se todos os poemas,
independentemente de qualidade literária, de tratamento, de temática, se
abrem para o sagrado. Octavio Paz diz

Pues el poema es vía de acceso al tiempo puro, inmersión en las aguas
originales de la existencia. La poesía no es nada sino tiempo, ritmo
perpetuamente creador[18].


Mas fica claro por todo o texto que Paz tem um certo pressuposto sobre
o que ele qualifica como poesia e este é um critério de valor.
Todo poema se abre para o sagrado?


A relação entre poesia e sagrado pode ser esclarecida pela noção
benjaminiana de experiência. Diz ele


Onde há experiência, no sentido próprio do termo, determinados
conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, com os do
passado coletivo. Os cultos, como os seus cerimoniais, com as suas festas
[...] realizavam continuamente a fusão entre esses dois materiais da
memória[19].


Portanto, a relação estabelecida entre contingente e imanente através
deste salto entre o particular e o coletivo e ancestral dá uma dimensão
deste campo associativo que relaciona a experiência a um núcleo de sentido
que ultrapassava os limites pessoais.


A dualidade de mundo interno e externo pode ser superada pelo sujeito
"só" se ele vislumbra a unidade de sua vida inteira... no fluxo da vida
passada e concentrada na lembrança... A percepção que apreende esta unidade
torna-se apreensão intuitivo-divinatória do sentido inalcançado e por isso
indizível da vida[20].


A lírica, mais do que a prosa, na sua característica circularidade e
reversibilidade[21], estabelece dimensões que ultrapassam o nível da
relação com a série social, ou sócio-política, ou histórica, quando ela é
referida. O vértice de sentido dentro de um espaço que se vê homogeneizado
pela falta de sentido de cada fragmento ou parcela de vida vivida, organiza
este espaço definindo a diferença entre o sem sentido e o sentido.

Disons tout de suite que l'expérience religieuse de la non-homogénéité
de l'espace constitue une expérience primordiale, homologable à une
"fondation du Monde". Il ne s'agit pas d'une spéculation théorique, mais
d'une expérience religieuse primaire, antérieure à toute réflexion sur le
Monde[22].


A vida profana, cuja apreensão do espaço é fragmentária, apresenta-se
homogênea na sua indistinção. Esta corresponde às características
postuladas para a pós-modernidade, mantendo a relatividade do espaço, feito
da massa amorfa de uma infinidade de lugares. A poesia, a grande poesia,
mesmo se aparentemente profana e laica, mesmo quando o poeta é ateu,
apresenta os traços de uma experiência sintetizada, essencial. O centro
aglutinador desta experiência essencial transcende os limites do tempo e da
duração, das circunstâncias, da história.
CDA usa o discurso apofático, a temática da humildade e da vida menor,
reafirma a vida, constrói a utopia de algo que corresponde não
explicitamente a alguma salvação. Constrói rituais a partir de repetições e
organiza o caótico e fragmentário pelo vértice da esperança. E é na
dialética entre eu-lírico e outro, entre realidade externa e interna, entre
confronto, limite e superação, entre desesperança e esperança na vida,
sempre reafirmada, que a lírica de CDA na sua circularidade e
reversibilidade, constrói uma hierofania.




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[1] Eliade, Mircea. Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965: 148.
[2] Do gr. kállos = belo; kágathos = bom
[3] Hay una nota común a todos los poemas, sin la cual no serían nunca
poesía: la participación. Cada vez que el lector revive de veras el poema,
accede a un estado que podemos llamar poético. La experiencia puede adoptar
esta o aquella forma, pero es siempre un ir más allá de sí, un romper los
muros temporales, para ser otro. Como la creación poética, la experiencia
del poema se da en la historia, es historia y, al mismo tiempo, niega a la
historia. [...] El poema es mediación: por gracia suya, el tiempo original,
padre de los tiempos, encarna en un instante. La sucesión se convierte en
presente puro, manantial que se alimenta a sí mismo y transmuta al hombre.
(Paz, Octavio. El Arco y la Lira. El poema, la revelación poética, poesía e
historia. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1967: 25).
[4] Idem ibidem: 44.
[5] Otto, Rudolf. Le Sacré. Paris: Payot, 1949.
[6] Eliade 1965: 178.
[7] Andrade, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Editora do Autor, 1963: 203.
[8] Andrade 1963: 175.
[9] Andrade 1963: 186-7.
[10] A teologia negativa é um modo de abordagem de Deus que consiste em
aplicar-lhe proposições negativas. Em lugar de atribuir-lhe qualidades
positivas ou proceder por analogia, o método negativo ou apofatismo
consiste em dizer aquilo que Deus não é, em recusar-lhe qualquer predicado.
Este método foi amplamente usado por São Tomás de Aquino, por exemplo.
Apesar de se querer racional, o método apofático está ligado ao misticismo,
isto é, à instituição que manifesta uma realidade transcendente que excede
as possibilidades da linguagem. (Derrida, Jacques. Salvo o nome. Trad.
Nícia Adan Bonatti. Revisão técnica Enid Abreu Dobransky. Campinas:
Papirus, 1995: 5).
[11] Paz 1967: 117.
[12] O verdadeiro objetivo da religião seria o de elevar a "fraqueza a uma
posição de força, tornar a fraqueza respeitável". (Ricoeur, Paul. Freud and
Philosophy: An Essay on Interpretation. New Haven: Yale University Press,
1970: 32.
[13] Ricoeur 1970: 34.
[14] Andrade 1963: 186.
[15] Weil, Simone. La Pesanteur et la Grâce. Avec une introduction par
Gustave Thibon. Paris: Plon, 1948: 76-7-8.
[16] Weil La Pesanteur et la Grâce. Paris: Plon, 1948: 10
[17] Rosa, João Guimarães. Sagarana. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio.
1964: 236.
[18] Paz 1967 : 25.
[19] Benjamin, Walter. "Sobre alguns temas em Baudelaire". In BENJAMIN,
HORKHEIMER, Max e T.W. ADORNO. "Conceito de Iluminismo". Trad. De Zeljko
Loparic e Andréa Maria Altino de Campos Loparic. In Benjamin, Horkheimer,
Adorno, Habermas. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980 (Os
Pensadores): 32.
[20] Benjamin "O narrador. Observações sobre a obra de Nikolai Leskow", in
op. cit.: 67-8.
[21] Entendo que as noções de circularidade e de reversibilidade no jogo
poético acabam sendo mais produtivas que a definição de Jakobson, ainda que
venha a dar no mesmo. A definição de Jakobson é: "A função poética projeta
o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação"
(Jakobson 1973: 220). Ou: "Podemos adiantar que na poesia a similaridade se
superpõe à contigüidade e que, por conseguinte, a equivalência é promovida
ao grau de processo constitutivo da seqüência". (Jakobson 1973: 225).
[22] Weil 1948: 21.
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