O espaço público (in)visível ao olhar de Jacobs

Share Embed


Descrição do Produto

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

Artigo

O espaço público (in)visível ao olhar de Jacobs Andrei Mikhail Zaiatz Crestani Pesquisador no Programa de Pós-graduação, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo (IAU/USP), São Carlos, SP – Brasil. Professor na Escola de Arquitetura e Design, PUCPR. Visiting Scholar na Columbia University - EUA (2015-2017) - BOLSA CAPES-PDSE. E-mail: [email protected]

Brenda Brandão Pontes Escola de Arquitetura e Design, PUCPR. Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

CRESTANI, A. M. Z.; PONTES, B. B. O espaço público (in)visível ao olhar de Jacobs. Revista Políticas Públicas & Cidades, v.4, n.2, p.107 – 126, ago./dez. 2016. https://doi.org/10.23900/235 9-1552.2016v4n2-px

Resumo Nossas experiências cotidianas na cidade em sua face mais ordinária são cada vez mais marcadas pela indiferença; pelo consumo temporário e pela carência de interações sociais espontâneas e significativas, que conformem o espaço público como forma social que admita acesso amplo e irrestrito às mais diferentes vozes e formas de apropriação (Sennet, 2006; Delgado, 1999; 2008); Deutsche, 2007). Neste contexto, interrogamos em que medida a obra The Death and Life of Great American Cities de Jane Jacobs que se ocupou do espaço público cotidiano como poucos ainda nos oferece elementos que nos permitam avançar sobre uma realidade já tão distinta da que originou a escrita de seu trabalho. Para além de um elogio à Jacobs, pretendemos aqui explorar as articulações dos principais elementos de sua obra, mas ao mesmo tempo reconhecer eventuais tensões e lacunas nela existentes que solicitam contextualizações e encaminhamentos complementares. Propomos assim revisitarmos sua obra nos perguntando o quanto/e como ainda é possível (ou não) convocar o olhar de Jacobs para pensarmos as condições da realização do espaço público na cidade contemporânea. Palavras-chave:

Diversidade.

107

Espaço

público.

Jane

Jacobs.

Cotidiano.

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

O espaço público tem tomado grande presença na agenda política e científica recente. A soma das lutas sociais que vem (re)ocupando o espaço público como plataforma e causa de reivindicações coletivas tanto no Brasil como no mundo1 mostra que, para além de ser uma mera coincidência, transitamos por um momento de inflexão que apresenta suas contradições. Por um lado, os movimentos coletivos parecem reivindicar a dimensão política do espaço público como o locus privilegiado da ação e da palavra, da expressão livre e legítima dos sujeitos no sentido sustentado por Hannah Arendt e David Harvey. Por outro, nossas experiências cotidianas na cidade em sua face mais ordinária estão cada vez mais definidas pela indiferença; pelo consumo temporário; pela carência de interações sociais espontâneas e de apropriações heterogêneas. Aparentemente vivemos em um cotidiano tomado de práticas coletivas que não acompanham o que as lutas sociais antes citadas parecem reivindicar. Manifestar parece já nada dizer. Importante definir que entendemos espaço público aqui como uma forma social e concreta que privilegia o encontro, a interação de diferenças, a possibilidade de apropriações diversas, a copresença, o conflito e dissenso, e que manifesta um sistema simbólico coletivamente erigido (ARENDT, 2014; LEFEBVRE, 2006; SENNET, 2006; DELGADO, 1999; DEUTSCHE, 2007). Desde este ponto de vista, o espaço público como um campo de práticas cotidianas múltiplas e conflituosas - parece ter a possibilidade de sua realização enfraquecida na cidade contemporânea. Muñoz (2008) refere-se a um momento da lização2 : cidade que tem como fundamento a dominação absoluta da imagem, disponível para o espetáculo e aprisionada à cadeia global de programas urbanísticos. Cidade que, para Augè (2010), é minada de "pontos cegos" ou espaços da alienação entre a cidade e seus cidadãos que inviabilizam interações socioespaciais e de pertencimento significativas e, portanto, retraem a realização do espaço público. Esta mesma cidade que, para Manuel Delgado, pode ser vista cada vez 3 : submetida a ideologias urbanas que favorecem a tematização dos espaços, nega as diferenças

1 No mundo (exemplos, entre suas distintas motivações e escalas Cairo (2011); Os Indignados na

- New York Atenas (2011), Madrid Buenos Aires (2016). No Brasil (exemplos, entre suas distintas motivações e escalas todo o país Rio de Janeiro (2014). 2 La urbanalización se refiere, así pues, a como el paisaje de la ciudad se tematiza, a como, a la manera de los parques temáticos, fragmentos de ciudades son actualmente reproducidos, replicados, clonados en otras. El paisaje de la ciudad, sometido así a las reglas de lo urbanal, acaba por no pertenecer ni a la ciudad ni a lo urbano, sino al gobierno del espectáculo y su cadena global de imágenes (MUÑOZ, 2008, p.2). 3

108

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

funcionais e humanas, esvazia a história dos espaços públicos e limita qualquer forma de sociabilidade coletiva no cotidiano4. Ao aceitarmos este cenário exposto entre os diversos autores, entendemos que as vias de realização do espaço público (no sentido que descrevemos anteriormente) parecem cada vez mais estreitas. De muitos caminhos possíveis para avançarmos nesta exploração, decidimos para este trabalho nos perguntar: quais os elementos que o legado de Jane Jacobs nos oferece para explorarmos o espaço público contemporâneo? Partiremos mais exatamente de sua obra The Death and Life of Great American Cities não por ser a mais conhecida, mas essencialmente por tratar-se de um relato etnográfico que privilegia a observação de relações socioespaciais cotidianas no espaço público como o ponto fundante da vida urbana. Entretanto, não pretendemos apenas ressaltar o quão rico são os elementos jacobsianos e somar-nos às incontáveis vozes que clamam sua genialidade até os dias de hoje. Mesmo concordando sobre sua validade, nos parece que a admiração generalizada sobre como Jacobs diagnosticou problemas e esboçou soluções para as cidades (americanas!) de sua época, transformou suas ideias numa espécie de panaceia. Sua referência é repetidamente evocada tanto em ambiente acadêmico como político para servir de base a propostas por vezes totalmente avessas ao seu pensamento, ou, mesmo quando não avessas, situam-se em um contexto sócioespaço-político distante àquele da obra de Jacobs. Pretendemos com isso provocar a leitura e uso da obra de Jane Jacobs situando seu contexto de criação para ultrapassarmos generalizações inapropriadas da sua fala ainda tão presentes. Se por um lado tentaremos reconhecer como os elementos presentes neste livro específico ainda contribuem para pensar o espaço público, por outro nos parece devido também debater as possíveis ausências, carências e/ou contradições da obra para o contexto contemporâneo. Reencontraremos assim um horizonte em que Death and life possa ser valorizada como marco no pensamento das cidades, mas não elevada a uma condição de manual urbano universal. O primeiro momento do artigo

Situando o olhar de Jacobs

retoma brevemente o

contexto histórico-político da escrita da obra focalizada em nosso debate. Em seguida exploramos articulações entre seus principais elementos que até hoje ecoam na discussão sobre cidades. Tendo ressaltado suas contribuições, avançamos em um exercício pouco praticado em grande parte das publicações que se apropriam da no que tange aos atributos e condições do espaço público. Já nas considerações, realizamos o balanço entre momentos de seu argumento que, seja na superfície das suas palavras ou de modo mais subjacente, 4 2016).

109

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

revelam tensões e lacunas que solicitam reparações para que não nos limitemos à veneração ou apropriação cômoda e rasa de seus ensinamentos. Face a uma realidade contemporânea que cada vez mais demanda a atualização de nosso repertório técnicocientífico (necessário) , nos perguntamos o quanto/e como ainda é possível (ou não) convocar o olhar de Jacobs para pensarmos as condições da realização do espaço público na cidade contemporânea.

Situando o olhar de Jacobs Quando Jacobs publicou seu trabalho mais celebrado "The death and life of great American cities", em 1961, as cidades dos Estados Unidos passavam por grandes problemas. Tensões entre distintos grupos étnicos tomavam as ruas de grandes cidades - como Nova York, então residência de Jacobs, Boston, Los Angeles e Chicago , junto à migração em massa para os subúrbios após a Segunda Guerra Mundial, onde a população - estritamente branca e de classe média - buscava por residências maiores, mais segurança e privacidade. A resposta dada pelos planejadores na época pautava-se na expansão do acesso às rodovias para garantir fluxo em direção aos subúrbios; demolição de bairros antigos para construção de novos blocos de apartamentos; relocação de população ali existente; subsídio aos grandes empregadores na tentativa de atrair uma "nova onda" de classe média trabalhadora para a cidade. Reunidas, estas estratégias faziam parte do "Urban Renewal" (renovação urbana), ao qual Jacobs se opôs firmemente não apenas por meio de seu livro, mas especialmente pelo engajamento pessoal em sua comunidade (do bairro Greenwich Village em Nova York), liderando protestos contra as ideias de Robert Moses planejador urbano e prefeito que protagonizou planos de demolições em massa e obras viárias que cortaram bairros inteiros em Nova York. Militante contra o planejamento moderno o qual chamava ortodoxo Jane Jacobs construiu uma abordagem mais humana da cidade fundamentada nas relações sociais do cotidiano percebida na pequena escala e normalmente negligenciada pelo planejamento urbano. A primeira frase do livro explica muito do seu propósito JACOBS, 2011, p.1).

retratado por ela em três exemplos emblemáticos: a City Beautiful de Daniel Burnham (1863), a Cidade Jardim de Ebenezer Howard (1898) e a Ville Radieuse de Le Corbusier (1922). Embora sustentem soluções formais específicas, Jacobs inicia seus argumentos mostrando que no que diz respeito ao raciocínio fundante das três propostas não há distinções significativas tanto quanto ao rigor com o qual compartimentam a cidade em usos específicos, como na defesa da autossuficiência dos blocos habitacionais que em nada se relacionavam com a rua: ao contrário, abstraíam seu papel como meio catalisador das relações sociais cotidianas.

110

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

Jacobs rejeita este raciocínio moderno não apenas porque planeja e a tudo organiza sem estabelecer contato com a cidade real, mas também pela insustentabilidade econômica expressa neste modo de se planejar. Este planejamento parecia acreditar na perspectiva da autora numa disponibilidade financeira raditório, pois eliminava infraestruturas inteiras para reconstruir outras que além de não suprirem necessidades reais, sequer as consideravam como parte dos problemas a serem resolvidos. Se a primeira parte do livro é dedicada a críticas a como o planejamento urbano abstrai o espaço real, em seguida a autora lança-se em busca de alternativas para o repensarmos. Para isto, ela opta por afastar-se da visão do urbanista e retomar a cidade a partir do real, da rede de interações socioespaciais que a produzem, adotando o espaço público cotidiano da rua como a centralidade de suas observações. Se hoje nos parece clara a necessidade desta abordagem, para a década de 60 esta operação não era tão obvia assim especialmente sob o modo como Jacobs pôs em prática o olhar sobre o cotidiano.

As tramas do cotidiano que Jacobs enxergou Apesar de não descrever nestes termos, Jacobs reconhecia a rua não apenas como cenário ou como materialidade expressiva do espaço público, mas como âncora e parte ativa na realização da própria cidade como forma social. interessantes, proveitosos e significativos entre os habitantes das cidades se lim

2011,

p. 59). Dessa maneira, ela reapresenta a rua como espaço primordial responsável pela formação e reconhecimento da identidade dos diferentes recortes que compõem a cidade. A rua define-se como o solo produtivo dos argumentos de Jacobs e dos elementos que deles derivam. Destes elementos, o complexo da rua nos parece ser a metáfora maior na medida em que evoca e sintetiza uma série de suas propostas para repensar a cidade. Esta figura do balé é traduzida como a espontaneidade das movimentações cotidianas nas calçadas, em que acordos silenciosos ocorrem a todo momento de modo não programado, tecendo uma rede intrincada de relações que encontram sua forma e sua "ordem" na própria desordem: Não existe, porém, simplicidade alguma na ordem em si ou no atordoante número de elementos que a compõem. A maior parte desses componentes são, de certa maneira específicos. Eles provocam um efeito conjugado sobre a calçada, contudo, que não é de modo algum específico. Aí reside sua força (JACOBS, 2011, p. 57).

No balé da rua , Jacobs reconhece o desenvolvimento de uma vida pública informal que não obedece a regramentos e sustenta interações socioespaciais responsáveis pela vitalidade urbana. Uma das primeiras lições de sua obra que nos parece pouco aproveitada é o valor da copresença para a manutenção do espaço público. Ou seja mesmo que compareça como um sub-texto a narrativa do balé trata da constituição 111

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

e dinâmica de um espaço social demarcado pela interação entre estranhos, em que os sujeitos (mesmo quando firmam acordos silenciosamente) partilham de uma experiência em importante não apenas como um corpo percebido no espaço, mas como parte de uma integração social sempre latente, de associações, trocas e sociabilidades capazes de colocar o espaço público em prática. Pelo balé da rua , Jacobs inicia a discussão da causa central que acompanha seu livro: a diversidade como elemento necessário para a vida urbana, impulsionada pela multiplicidade de pessoas e relações informais espontâneas. Sua devoção ao tema é uma extensão da sua crítica ao peso negativo que as definições planejamento exercem sobre as cidades: compreender, comunicar, planejar e inventar o que for necessário para enfrentar as dificuldades. [...] as cidades vivas, diversificadas e intensas contêm as sementes de sua mostra-se

OBS, 2011, p.498-9, grifo nosso). A perda da diversidade para o contexto de sua reflexão como efeito negativo das urbanizações

de soluções genéricas a grande escala, que negligenciavam as particularidades de cada localidade. Em um momento da segunda parte do livro, especificamente o capítulo 7, Jacobs elenca com o que para ela configura as condições físicas capazes de gerar a diversidade: Há quatro condições indispensáveis para gerar uma diversidade exuberante nas ruas e nos distritos: 1. O distrito, e sem dúvida o maior número possível de segmentos que o compõem, deve atender a mais de uma função principal: de preferência, a mais de duas. Estas devem garantir a presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura. 2. A maioria das quadras deve ser curta; ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes. 3. O distrito deve ter uma combinação de edifícios com idades e estados de conservação variados, de modo a gerar rendimento econômico variado. Essa mistura deve ser bem compacta. 4. Deve haver densidade suficientemente alta de pessoas, sejam quais forem seus propósitos. Isso inclui alta concentração de pessoas cujo propósito é morar lá. Associadas, tais condições criam combinações de usos economicamente eficazes (JACOBS, 2011, p. 165-6).

Reconhecemos neste trecho uma proposta teórico-prática da diversidade que conjuga duas dimensões arquitetônica e social: A dimensão arquitetônica, na variação dos tipos de edificação, dos tipos de espaços públicos e de tipos de atividades, e uma dimensão social, na variedade dos sujeitos , na espontaneidade com que esta rede de interações se estabelece (AGUIAR, 2012, p. 65). O espaço público rua e todo o entorno que a envolve

é questionado por Jacobs

.

Ele exerce um papel fundamental na constituição das interações coletivas, sendo

112

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

apontado pela autora como componente ativo das tramas socioespaciais que dão a ver a diversidade. Além disso, as quatro condições expostas fundammicroeconomia. Durante a leitura nos deparamos inúmeras vezes com a importância dada à presença de estabelecimentos comerciais e de serviços ao longo das calçadas para estimular o continuado (animado dia e noite), e dinâmico (interessante aos vários tipos de pessoas que vão à rua por diferentes razões) (JACOBS, 2000, p. 37). A vitalidade do local

associada à diversidade

seria acionada pela presença de

pequenos comércios (de rua ou edificados) porque eles oferecem ambientes facilitadores de é muito fácil descobrir que situações geram a diversidade urbana se observarmos os locais em que a diversidade floresce e pesquisarmos as razões econômicas que permitem seu surgimen (JACOBS, 2011, p. 165). Quando Jacobs concilia microeconomia e espaço - como condição e manutenção da diversidade - expõe novamente a significância que a dimensão espacial (arquitetônica) tem em seu argumento a favor das práticas e apropriações cotidianas responsáveis pela vida do espaço público. Os três primeiros aspectos que nos permitem fazer esta constatação 1) usos distintos combinados na composição do bairro; 2) sua distribuição heterogênea em quadras curtas; e 3) o convívio equilibrado entre edificações históricas e contemporâneas garantiriam, em sua perspectiva, o quarto elemento do seu quadro analítico-prescritivo: a densidade. A densidade entra neste conjunto como fator para a diversidade e vitalidade por facilitar a emergência de maiores interações coletivas e, portanto, vida pública visitantes farejam lugares onde já há vida e os procuram para compartilhar dela, alimentando-a ainda m . A defesa pela densidade é também parte de sua crítica às estratégias do planejamento moderno que, durante o urban renewal, estimulou paralelamente a dispersão populacional rumo aos subúrbios e a adoção de um novo modo de habitar a cidade (destinado à classe média em ascensão): conjuntos residenciais fechados que substituíram antigas quadras centrais. Para Jacobs, tanto a fuga para o periurbano como a adoção dos blocos habitacionais fazem parte da orquestração do planejamento que arruinava as ruas como espaço central da vida urbana. A preferência por este estilo de vida catalisaria o esvaziamento do convívio pedestre e interações sociais. Intervenções estimulariam este processo ao funcionalizar as vias em favor da circulação de veículos privados uma diversidade ampla e concentrada podem levar as pessoas a andarem de

Este desenho estimulava o contrário da diversidade: a segregação

um fator de

ameaça à vida pública. A segregação viria acompanhada pela sensação de insegurança no espaço público, já que os enlaces sociais, a animação, as interações estariam enfraquecidas ou inexistentes. É neste momento que ela introduz

113

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

como uma prática espontânea da vigilância acompanhada das apropriações e fundamental para a vida pública informal: O requisito básico da vigilância é um número substancial de estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das calçadas do distrito; deve haver entre eles sobretudo estabelecimentos e espaços públicos que sejam utilizados de noite. Lojas, bares e restaurantes, os exemplos principais, atuam de forma bem variada e complexa para aumentar a segurança nas calçadas (JACOBS, 2011, p. 37).

Microeconomia e densidade se veem aqui conjugadas em favor de um espaço público vital, seguro e diverso. Ao falar dos , Jacobs nos atenta novamente da copresença, da alteridade que só é perceptível na microescala das interações da cidade narrada por Jacobs. Não é possível a entendermos sem pensar o outro como sujeito que se integra à nossa experiência urbana. Neste cenário o : sua presença, seu olhar, e mesmo nossa interação silenciada me informam condições favoráveis ao uso, envolvimento, apropriação, enfim, realização da vida pública. Embora Jacobs associe os olhos da rua também com as aberturas em edificações (o que reitera a dimensão arquitetônica da sua proposta quanto a diversidade), nos parece que a maior riqueza deste elemento está na alteridade como fator de uma experiência urbana socialmente ordem e o sossego palpável como os projetistas pensam. O prazer das pessoas de ver o

Falar do lugar do outro é, então, um modo de falar do nosso próprio lugar na partilha do mundo em comum. É nesta dinâmica que a autora argumenta o encadeamento existente entre densidade 5 , olhos da rua e segurança. - representada por proprietários dos comércios e pequenos serviços lindeiros às ruas atuaria em favor da segurança por extrapolar seu papel como comerciante para atuar como observador (cuidador) do espaço público, motivando a confiança mútua e sensação de proteção. Assim, mesmo associando a segurança à condições espaciais e da microeconomia6, fica claro que a segurança na sua proposta floresce de uma autogestão democrática, muito mais eficaz que a iluminação pública ou o policiamento apoio eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhança (JACOBS, 2011, p. 60). Até aqui reunimos de modo sucinto o que acreditamos ser as principais contribuições da obra. Reencontramos a rua como a escala eleita por Jacobs no embate aos ideais modernistas. Mostramos como ela nos sensibilizou o olhar para este solo do cotidiano, 5

io da dispersão das pessoas, trocando as

que não possui zonas de alta densidade, porém altos índices de criminalidade (JACOBS, 2011, p.32). 6 Quando elenca a necessidade da diversidade do comércio e da largura das calçadas para garantir grande p.35).

114

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

ao complexo balé e o que por ele se move: a vida pública informal, a força da copresença na manutenção da vida da rua. Ao tratar da diversidade lição central de sua obra propôs uma perspectiva positiva sobre o papel da microeconomia, como elemento que atravessa e concilia as dimensões arquitetônica e social do espaço público. Pretendemos agora seguir por uma via complementar, localizando certas tensões internas a suas ideias na t

a importantes no pensamento do

espaço público ora ausentes ou incompletas em seu trabalho.

O que os olhos de Jacobs não alcançou Se por um lado Jacobs celebra a espontaneidade das interações cotidianas do espaço público (o balé da rua), por outro, em diversos momentos parece abrir vias para o questionarmos o quanto ela valoriza este mesmo aspecto. Quando narra o balé da rua Hudson, em Nova York, remonta um ambiente muito específico: uma comumunidade composta de vizinhos e comerciantes de classe média branca, com hábitos que seguem um determinado padrão reconhecível por todos, que garantiria a manutenção da ordem e segurança da rua. No relato das dinâmicas da sua rua e seu bairro, ela valoriza a vida microeconômica que sustenta a vitalidade e na sequência se refere a a este espaço, que aí visita, usa ou passa, mas não faz parte. Em um momento ela menciona um certo desconforto em direção aos estranhos na rua, afirmando que o convívio entre comunidade e estrangeiros poderia ser bem-sucedido somente sob determinadas condições socioespaciais: lidar com estranhos, desde que possua uma demarcação boa e eficaz de áreas privadas e públicas e em suprimento básico de atividades e olhos, quanto mais estranhos (JACOBS, 2011, p.41, grifo nosso). Este é um de nossos primeiros incômodos: em que medida a espontaneidade defendida por Jacobs se afasta (ou não) do projeto moderno de ordenamento do espaço? Em que medida é possível associar o exercício da espontaneidade a partir de condições materiais? A autora posiciona as figuras públicas (especialmente proprietários dos armazéns, padarias, cafés, comércios e serviços em geral) em um lugar privilegiado: são os olhos reconhecer a mudança dos ritmos, distúrbios da ordem, ou seja, os conflitos. Como mencionamos no início do artigo, a possibilidade do conflito é característica fundamental para a realização política do espaço público, a qual deve pressupor (pela ação e palavra) uma plataforma aberta a heterogeneidades, modos distintos de apropriação e, portanto, admitir o dissenso e o conflito. Contraditoriamente, o cenário que a autora narra quanto à possibilidade de usos e múltiplas apropriações afasta-se um tanto deste teor espontâneo das práticas c Podem estar presentes pessoas de todos os tipos, mas aquelas que aparecem ao mesmo tempo por determinado

115

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

motivo não devem formar um grupo inteiramente incompatível com o daquelas que apar

p. 179 - 80).

A possibilidade das diferenças parece então encontrar pouco espaço no argumento de Jacobs ou, quando muito, um espaço bastante marginal. Eventualmente a natureza desta contradição surja do fato de que os bairros utilizados como exemplos positivos por Jacobs (como o North End em Boston e o West Village em Nova York), tratavam-se na época de bairros etnicamente brancos, com quadras já um tanto modernizadas, homogêneas socioeconomicamente e compostas de uma classe média trabalhadora seleta: em geral jornalistas, arquitetos e artistas (GANS, 1968). Estas características não são (ou são quase nada) contextualizadas por Jacobs, nem por seus seguidores e, entretanto, explicam muito como sua imagem do balé da rua é na verdade quase uma abstração excludente se considerarmos a realidade socioeconômica e espacial das ruas de nossas cidades: Nova York como um microcosmo de diversidade social. Esta é [entretanto] a quadra que conhecemos dos filmes, [...] sendo apenas tanto uma construção social como uma

Ainda sobre isto, Berman ironiza de modo bastante ácido: Se retornamos um pouco ceticamente à sua visão do quarteirão, podemos encontrar o problema. O inventário de pessoas de suas vizinhanças tem a aura [imaginária] de uma versão Hollywoodiana [...]: todas as raças, credos e cores trabalhando juntas para manter a América livre para vocês e para mim. [...] Mas, um minuto!, eis o problema: [...] não há negros em seu quarteirão. É isso o que faz parecer bucólica a sua visão do bairro: é a cidade antes da chegada dos negros. Seu mundo abrange desde sólidos trabalhadores brancos, na base, a profissionais liberais brancos de classe média, no topo. Não existe nada ou ninguém acima; no entanto, o que é mais importante aqui, não há nada ou ninguém abaixo (BERMAN, 1986, p. 307).

Neste sentido, nos permitimos interrogar a diversidade de Jacobs em dois âmbitos. (1) Quão inclusiva é a diversidade por ela defendida (nos termos do nosso argumento: de admitir o convívio de maiores diferenças socioeconômicas e socioculturais e seus modos de se apropriar do espaço)? e (2) Do ponto de vista da sua condição de realização: até que ponto a alta densidade fundamenta uma diversidade capaz de nutrir o espaço público com distintas formas de sociabilidade? Obviamente levantamos estas questões sem a pretensão de invalidar a contribuição da obra e conscientes de que estamos longe de uma resposta final. Mas temos algumas suspeitas quanto aos seus encaminhamentos. Para a primeira pergunta acreditamos que a diversidade (apresentada como conceito e diretriz no livro) não é suficiente para a discussão e propostas de um espaço público no sentido que perseguimos neste artigo, precisando ser necessariamente articulada/revista junto ao conceito de diferenças. Embora a diversidade per se sugira uma relação de distinções de um elemento para o outro, ao mesmo tempo ela nos permite racionalizar distintos elementos em grupos. Ou seja, podemos falar grupo

116

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

diverso e ainda assim excluir ou sublimar a existência de especificidades que aí estão em interação e conformando um sistema simbólico único, autêntico. A , isoladamente, pode ser convertida em instrumento da técnica em favor da exclusão e discriminação, tornando-se do ponto de vista sociológico do espaço público uma armadilha conceitual e uma estratégia política de esvaziamento e/ou apaziguamento das diferenças e das desigualdades: diversidade esvazia a diferença pois o diverso contém em si a ideia de identidades que se relacionam, compõem-se e toleram-se como se fosse possível estabelecer diálogos igualitários sem as hierarquias de poder/saber, sendo que a função própria da diferença é borrar as identidades e não instituí(RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 3).

conceito, inclusive, central em um dos manifestos de Lefebvre (1970) é, ao contrário, o que nos permite reconhecer os valores distintos, livrar-nos de padrões homogeneizadores na produção dos espaços da vida. Na diferença que não é fruto de uma opção simples encontramos a possibilidade do outro, da superação das clivagens sociais e espaciais motivadoras da desigualdade, a possibilidade de incorporar os avessos da cidade e valorizá-los como face legítima do nosso cotidiano. No segundo questionamento queremos provocar a necessidade de uma leitura mais acurada sobre como utilizamos conceitos para operar questões nem sempre tangíveis do espaço público as que pertencem a um nível simbólico da experiência. Jacobs indica a densidade como fator gerativo da diversidade, porque facilita a proximidade entre os corpos, o que poderia conduzir à copresença entre sujeitos. Cabe ponderar que a proximidade entre pessoas, embora possibilite, não necessariamente resulta em interações significativas entre indivíduos e entre estes indivíduos e o espaço. Importante frisar que a coexistência de indivíduos e|ou grupos em determinado recorte espacial não é predeterminação de copresença, porque esta última implica em dinâmicas coesivas e/ou conflitivas, interações profundas entre contexto, indivíduo e coletividade e que, portanto, se constituem de diferenças sociais e seus desdobramentos (DOXA, 2001; NETTO, 2012). Deste modo, podemos dizer que é pela qualidade (e não pela quantidade) das interações socioespaciais que determinados espaços diferenciam-se significativamente em relação aos outros. Falamos aqui de intensidade. Ao considerar que o espaço público se realiza a partir da experiência coletiva que admite a diferença, nos falta neste escopo questionar a suficiência da densidade como conceito/instrumento. Intensidade7 , sob nosso entendimento, é tomada como a 7 Na definição oficial de intensidade encontramos que sendo a qualidade do que é intenso

é aquilo que Logo, mesmo que densidade e intensidade possuam em sua base constitutiva relações quantitativas, a intensidade urbana (ou intensidade dos espaços urbanos) é uma manifestação que se caracteriza qualitativamente, contendo em seu próprio entendimento primário esta condição quali-

117

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

dimensão da ênfase e não do volume; das interações e não da mera coexistência de número de pessoas; do momento criativo e não do pré-disposto; daquilo que é significativo, que ganha sentido pelo contraste, e não do que é homogêneo ou regular. Ênfase é um ato que vai em direção ao exagero. A palavra em itálico, por exemplo, serve como um marcador do que é importante. Ênfase é então uma concentração de significado (SENNET, 1992, p.117, itálico original). Deste modo, pensamos a intensidade também como uma manifestação da ênfase de determinados significados, e isto implica dizer que os meios (agregados ou reforçados) pelos quais um espaço ganha intensidade não são neutros e possuem conteúdos de ordens político-culturais específicos que os determinam8. A

compreensão

da

diferença

entre

densidade

e

intensidade

(conceitos

complementares) não deve se assentar em uma dicotomia epistemológica. Densidade e intensidade possuem uma linha tênue de diferenciação, que é necessária para que não se empobreça o alcance de ambos como instrumentos que operam diferentes aspectos de nossa percepção/experiência da realidade e dão a ver distintos processos que se desenvolvem na cidade. Embora elemento importante à vitalidade, a densidade em si não é predicado de ações individuais e|ou coletivas que criem laços de sociabilidade e uma urbanidade da diferença, interação e comunicação. Queremos dizer com isso que se Jacobs nos apresenta a densidade como potente geradora da animação e diversidade da cidade, por outro lado não alcançou o debate e investigação das relações intersubjetivas da realização do espaço público que o estudo da intensidade seria capaz de mobilizar. Com isso resumimos: nem todo espaço denso é intenso. O contrário também é verdadeiro. Outro ruído da sua obra é quanto ao argumento da necessidade da separação nítida entre espaço público e privado como uma das formas de manutenção da segurança. Jacobs não nos esclarece em profundidade sua proposta, mas fala que a área a ser vigiada (rua) precisa relacionar-se com limites físicos claros entre o espaço público e o privado. Sabemos que se trata de mais um dos seus questionamentos a um dos modelos formais modernistas

que propunha áreas livres integradas pelo

embasamento de edifícios suspensos por pilotis que, para Jacobs, confundia o desempenho do a sensação de segurança. Guardada nossa concordância com Jacobs quanto à fragilização das interações socioespaciais que o modelo moderno de cidade tende a desencadear9, nossa suspeita permanece 8 Esta discussão é ampla, parte da tese de doutoramento em andamento de um dos autores, e não conseguiremos contornar todos seus aspectos neste artigo. Sugerimos leitura de publicação anterior que melhor desenvolve estas noções: -Between Spatialities: an approach to the contempo Artigo apresentado e publicado nos anais da conferência LASA International Congress, Nova York, Estados Unidos, 2016. 9 Alguns estudos se debruçam de modo mais específico sobre este aspecto do efeito da morfologia arquitetônica sobre a qualidade das interações coletivas e vitalidade. Ver: NETTO, et al. (Buscando) Os efeitos sociais da morfologia arquitetônica. In: urbe, Rev. Bras. Gest. Urbana, 2012.

118

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

quanto ao reforço da separação público

ISSN: 2359-1552

privado que nos parece um tanto apartado

do restante do seu argumento. Se antes ela nos oferecia uma abordagem mais integrativa capaz de superar dicotomias e encontrar uma conciliação possível de dimensões espacial e social, articulando-as à microeconômica , esta última proposta soa de um determinismo físico muito distante deste horizonte. Finalmente, a última intervenção que nos arriscamos a fazer acompanha o que Herb Gans e Sharon Zukin indicam como uma Jacobs em relação à força de dois atores importantes na produção das cidades: o Estado e proprietários imobiliários. Planejamento urbano é Estado; faz parte dele. como carma dos urbanistas, os quais, mesmo exercendo certo papel na orientação ou influência do desenvolvimento da cidade, constituem um grupo relativamente impotente frente à força política dos interesses do capital: É verdade que na primeira metade do século XX Le Corbusier e outros arquitetos popularizaram os desenhos das superquadras [...]. Mas empreendedores imobiliários e agências estaduais construíram esses projetos e, com sua inteligência e ativismo político progressista, Jacobs não deveria ter ignorado o poder do capital que eles dominavam (ZUKIN, 2010, p.25).

A ausência da crítica aos interesses do Estado e dos agentes capitais que expulsam populações para obterem lucro na exploração do solo urbano é uma escolha um tanto questionável da autora e que merece reparo (MARICATO, 2001; ZUKIN, 2010). A mesma força que empregou para culpar os urbanistas por projetarem bairros inteiros como espaços que alienavam a relação entre habitantes e cidade, não foi empreendida para debater sobre as forças do capital e do Estado que operavam (e ainda operam) definindo o que se constrói ou não na cidade (ZUKIN, 2010). O silêncio quanto a estes agentes os autorizou, de certo modo, a apropriação avessa do seu repertório (RYBCZYNSKI, 2010). A retórica do estímulo à vitalidade e da animação continuada do espaço urbano que Jacobs defendeu converte-se hoje de modo negativo e distante da sua proposta original: sob a forma de um espaço público cada vez mais obediente a critérios de mercado, controlado e estereotipado em diferentes modos de consumo e que, falsamente, atendem à expectativa de melhoria da cidade. Estas eram, justamente, expressões de um espaço público contrário à abordagem da autora.

Considerações – um (necessário) olhar para além de Jacobs O trabalho de Jane Jacobs sem dúvida representa um dos maiores marcos teóricoprático nos estudos urbanos do último século. O fato de não ter formação em arquitetura e urbanismo não a impediu de infiltrar-se na disciplina. Ao contrário: seu olhar arejou o ambiente acadêmico e político de discussão do planejamento urbano,

119

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

chamando atenção (com uma linguagem muito inteligente e direta) a um dos aspectos mais caros à cidade e pouquíssimo valorizado até então por seus planejadores e gestores na tomada de decisões: a trama social das relações urbanas cotidianas. Seu livro ultrapassa a condição literária e comparece como manifesto em favor da vida urbana que se realiza no espaço público. Não economizando esforços em sua crítica aos ideários modernistas planejar as cidades

que abstraíam a vida do espaço em seu modo de e

a racionalização de suas metodologias, convertendo-se em autoridade intelectual dos assuntos da cidade e causando transformações substantivas que até hoje ecoam no planejamento urbano. O espaço público cotidiano é a arena de sua obra. É neste lugar que Jacobs estabeleceu talvez mais impulsionaram a disseminação de suas ideias: o balé da rua, os olhos da rua e suas figuras públicas. Ela

seus pés no terreno do

cotidiano; investiu o dia todo de suas semanas para (re)conhecer o seu espaço e o espaço do(s) outro(s); tocou a vida das calçadas de um modo incomum e pouco (ou nada) visto nos estudos urbanos de sua época. A identificação direta dos seus leitores com sua linguagem talvez nasça justamente daí: porque, primeiro, ela se posicionou junto aos sujeitos e às relações das quais queria falar, deixando que a espontaneidade e a informalidade da via repercutissem no estilo e fluidez de sua crítica-proposta, sensibilizando-nos a cada página a observar o espaço público mais de perto e de dentro. No entanto, cremos que o esforço de Jacobs mereça mais do que reverência inquestionável ao contrário: ao que nos parece, sua proposta era justamente a de nos deslocar de zonas de conforto para elaborarmos uma visão mais crítica sobre nossas reflexões e práticas na cidade. Deste modo, sem desmerecer as virtudes do The death and life of great American cities, nos ocupamos também de realizar um balanço um pouco mais inquisitivo da obra um difícil exercício de auto-controle frente ao entusiasmo que (como muitos) também sentimos no folhear de suas páginas. Nesta obra Jacobs nos questiona de modo agudo sobre nosso papel de arquitetos e urbanistas no desenho das cidades e os impactos que dele podem derivar. Porém, nos parece que seu engajamento político contra as propostas de Robert Moses liderou demasiadamente o objetivo de seu livro a ponto de outros agentes e processos que pesam sobre a conformação das cidades serem quase que invisíveis nas reflexões. A energia que investiu antes de mais nada como ativista modernismo nos oferece munição efetiva contra Moses e o plano moderno, mas que não alcança outros alvos importantes. Enquanto a figura do especialista urbanista pena em suas mãos, o poder do Estado e do capital passa quase que ileso pelo seu

120

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

crivo10. Estes que em muito definem o desenvolvimento da cidade de um modo que nada tem em comum com os interesses de Jacobs (seja nos tempos atuais ou no tempo em que ela escreveu) para a preservação da comunidade, sua autenticidade, manutenção da diversidade e espontaneidade no espaço público. Quanto a isso (ao menos nesta obra) Jacobs nos deixou devendo uma perspectiva crítica mais abrangente mesmo para a sua época já que Robert Moses não agia sozinho, sendo financiado por fundos federais e privados, e suportado pela plataforma política da gestão local para fazer com que seu plano ganhasse forma no território americano. Neste sentido, Jacobs retoma a cidade a partir de articulado, pois não considera forças como a especulação imobiliária, o crescimento demográfico e mesmo a internacionalização de Nova York. Negligenciar estes aspectos é, ao nosso ver, um movimento perigoso realizado pela autora não só do ponto de vista interpretativo (da cidade que já está), mas porque sua obra apresenta em diversos momentos uma linha prescritiva (da cidade que deveria ser) e que, portanto, deveria dar a ver articulações dos poderes que conformam o espaço urbano, as quais não se limitam à superfície da prancheta e à ponta da lapiseira do urbanista. Neste âmbito a obra peca por reter a crítica a um plano mais técnico do que social: a crítica de Jacobs se abre para posicionamentos bastante distintos em relação à forma de planejar a cidade. Por um lado, a exigência de diversidade como autenticidade derivada do cotidiano é um forte argumento contra qualquer tipo de intervenção Por outro lado, não é propriamente a crítica social que é endereçada, mas uma crítica da técnica como único critério legítimo para a tomada de decisões que afetam a vida das pessoas (TAVOLARI, 2015, p.11).

Suspeitamos que esta lacuna é a que justamente abre espaço para sua obra acomodar mais divergentes entre si, convertendo seu trabalho em discurso comum e fácil mesmo para práticas projetuais totalmente antagônicas a sua visão: "[Há] uma apropriação indevida e romantização do trabalho de Jacobs por grupos influentes como planejadores urbanos e gestores

grupos que têm um interesse na ).

De fato, 11 por atores da produção do espaço urbano que expõem cenários totalmente alheios aos verdadeiros objetivos pelos quais ela lutou. 10 Novamente: lembramos que nosso foco de fala Entretanto, por toda sua trajetória entre manifestos e por sua vida política continuamente ativa, já tinha condições incorporado no argumento uma conjuntura mais ampla dos atores e jogos de poderes em torno dos processos que ela trabalha/questiona sobre a cidade. 11 Ano passado comemorávamos seu centenário e vários eventos ocorreram em diversas partes do mundo. Daqueles que participamos (em Nova York) ouvimos diversas vezes esta expressão em situações extremamente controversas ao seu legado. Nos espantou o fato de ninguém da audiência incomodar-se e

121

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

Muito disso também parece decorrer de uma apropriação bastante unilateral e conveniente do que ela advogou sobre a vida microeconômica como fator positivo para a vitalidade e diversidade do espaço público. Embora concordemos sobre o valor deste argumento de Jacobs e acreditamos que mereça maior consideração em nossos estudos sobre o espaço público , alguns estudiosos o demonizam desde uma posição bastante extremada focada apenas em seus efeitos negativos o que, neste caso, nos parece uma apropriação indevida do trabalho de Jacobs porque isola um único aspecto. Claro, esta perspectiva negativa parte de efeitos concretos na cidade quando tem amparado por muito tempo propostas de teor desenvolvimentista que nada mais fazem do que fragmentar a cidade em estereótipos de consumo, segundo critérios de mercado e direcionado para classes sociais específicas, restringindo formas de encontro e sociabilização e reproduzindo espaços exclusivos de segregação. Sabemos que Jacobs atenta para não se generalizar. Ela também não impõe que sua obra seja modelo! Entretanto, o modo como constrói seu argumento acabou resultando no todo num tom de recomendação sobre caminhos para melhores cidades como válido para toda situação. Sua lista sobre as condições para diversidade, por exemplo, não elenca o cuidado de considerar relações específicas de cada contexto (sejam elas espaciais, econômicas ou culturais) esquecendo que a diversidade, por vezes, não é um efeito positivo no espaço dependendo do modo pelo qual é motivada. Ela pode ser efeito de alterações totalmente excludentes e seletivas no território urbano. Um exemplo bastante claro é em relação ao bairro do Harlem em Nova York12 que, desde 2000, começa a ser tomado por diferentes culturas de todas as partes do mundo, expulsando sua população autêntica afro-americana. O bairro que foi há mui em termos culturais, entretanto extremamente seletivo em termos socioeconômicos e bastante esvaziado de sua população original. Claro. Estamos falando aqui também de gentrificação um fenômeno ainda em fase embrionária nos Estados Unidos e que iria começar a ganhar força e impactos mais sensíveis anos após a publicação de Jacobs, sobre o qual, portanto, fica difícil exigirmos que ela tenha tido alguma previsão. Mesmo em momento tardio de suas produções (para além da obra que nosso artigo se debruça), nos parece que Jacobs não ignorou o problema (da gentrificação), mas obviamente não poderia tratar de todas as questões urbanas em uma obra só, não tendo tido tempo suficiente antes de sua morte

questionar os palestrantes (muitos deles prefeitos ou donos de franquias). Apenas mais uma evidência do suas palavras. 12 O bairro do Harlem em Nova York é objeto de estudo do doutoramento em andamento de um dos autores, que há dois anos vive no bairro e estuda o seu cotidiano.

122

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

para responder a muitos que inclusive a apontaram como uma gentrificadora13 (opinião esta que nós, autores, não concordamos). De fato. Por um lado Jacobs plantou muitas de suas ideias que acabaram tornando-se como parâmetros gerais para o diagnóstico e soluções para as cidades americanas, dando um poder aos atributos do espaço14 talvez maior do que eles sejam capazes de exercer sobre a qualidade das interações. Contudo, entendemos que existam tensões que envolvem o uso de sua obra que ultrapassam a sua responsabilidade. Uma delas inicia-se com a própria tradução do título do livro para diversas línguas em que o The Death and Life of Great American Cities American , resultando em . Não cremos que seja uma situação que desmereça atenção, na medida que a tradução promove uma descontextualização sociocultural, espacial e política prejudicial ao modo como a obra é apropriada pelos seus leitores. Esta ausência do "American" no título "autoriza" ou no mínimo serve como álibi (extremamente negativo) para o uso indevido de alguns aspectos das reflexões de Jacobs tanto por políticos como por acadêmicos. Cidades não são iguais. Por isso nos chama a atenção o fato de nós pesquisadores da cidade e planejadores termos quase sempre as mesmas referências científicas para seu estudo. Obviamente não se trata de descreditar a contribuição de Jacobs, mas queremos dizer que muitos dos referenciais que buscamos para entender as cidades brasileiras não necessariamente abrangem aspectos históricos, políticos, culturais etc da formação de nossas cidades e, portanto, não são capazes de explicá-las em diversos aspectos. Sua obra é mais uma dessas referências onipresentes que, por nossa escolha (e não a dela), é tão elevada à uma condição de irreparável que acaba nos imobilizando rumo à necessária atualização teórico-prática das discussões de nossos problemas urbanos atuais. No que diz respeito ao espaço público já mostramos diversas lacunas internas a serem transpostas em relação à esta obra de Jacobs. Destas, queremos reforçar 03 momentos: o primeiro da necessidade de relativizar as condições que a autora aponta para a diversidade, voltando nossa atenção também ao entendimento e as implicações de se pensar diferenças no estudo/projeto do espaço público contemporâneo, reconhecendo que estas sejam espaciais ou sociais são fundamentais na constituição de diferentes intensidades das experiências urbanas. Sobre o segundo: já argumentamos sobre a importância de diferenciarmos intensidade e densidade não apenas como operação semântica, mas especialmente porque são instrumentos que atuam de modos extremamente distintos em nosso olhar sobre a cidade e dos elementos que nela valorizamos. Insistimos que não se trata de . Ambos instrumentos são importantes e sustentam uma relação tênue entre si, 13 Como: Gans, 1965; Zukin, 2010. 14 Como morfologia, idade das edificações, largura das calçadas e abertura nas fachadas.

123

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

mas certamente a intensidade alcança dimensões simbólicas do espaço público que a densidade sozinha não é capaz de resumir se quisermos falar de um espaço significativo, autêntico e de copresença. O último aspecto: é crucial que reconheçamos e façamos nossas intervenções (sejam teóricas ou práticas) sobre o espaço público entendendo que sua autonomia (que admite dissensos, apropriações diversas, heterogeneidade etc.) é condição fundamental para sua realização como forma social e política. Talvez Jacobs inicie assim em seu elogio à espontaneidade e à vida informal da rua, mas depois acaba focando mais sobre condições materiais para a vida social, não desenvolvendo com o mesmo esforço sobre aspectos sensíveis da realização do espaço público que sua materialidade não é capaz de reter. Em termos científicos, mesmo o que Jacobs nos oferece como instrumentos no estudo do espaço público merece certos cuidados/atualizações, na medida em que permanece em um nível textual que não esclarece qualquer procedimento de campo: Jacobs [...] defendeu estratégias que considerava as mais adequadas para criar vações não foram feitas de forma sistemática: não há, por exemplo, aleatoriedade da amostra, nem preocupação em torná-la representativa a partir de um número suficiente de bairros ou de uma distribuição proporcional à população. [...]Sintomático também é o fato de que seu livro não apresenta uma seção dedicada à metodologia adotada ou uma lista de referências bibliográficas. Estudos feitos com maior rigor metodológico sobre os princípios defendidos por Jacobs falharam em encontrar suporte empírico para suas afirmações a respeito das causas de vizinhanças bem sucedidas (SABOYA et al, 2015, p. 1).

Reconhecemos que sua etnografia do cotidiano nos devolveu uma escala de apreensão real à vida urbana e nos convidou a sair de nossos escritórios para entrar em contato com o que dá vida à cidade: as relações sociais. Entretanto, neste livro Jacobs evita a grande escala (sua crítica aos modernistas) e acaba fixando-se ao outro extremo desta relação na escala da quadra. Nos perguntamos então: quais os possíveis efeitos em rede (física e social) das suas recomendações para o espaço público? Será que se perseguíssemos as condições materiais de sua proposta, garantiríamos uma cidade diversa, cheia de vida, habitada por diferentes apropriações e espontânea? Persiste nesta obra um hiato no que se refere à articulação entre a microescala das interações e as grandes infraestruturas, elementos estes que garantem o funcionamento de uma cidade toda, implicam um preço na manutenção e acessibilidade econômica, o que rebate diretamente na qualidade do espaço urbano e sua composição social e, logo, nas condições socioespaciais para que o balé da rua ganhe forma. Este texto não busca diminuir todo o esforço analítico e um passo importante que Jacobs nos permitiu dar em direção ao estudo das cidades. Entretanto, entendemos que há lacunas na contextualização de várias dimensões na leitura e uso do seu texto, especialmente se o objetivo for o de não limitar o horizonte da discussão do espaço público. Se queremos enfrentar Jacobs se referia para qualificar os espaços padronizados, sem vida, segregados e excludentes comentamos , devemos reconhecer e aceitar

124

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

sem tanto melindre que possam existir limitações não apenas no trabalho de Jacobs como de muitos outros autores que utilizamos para ler a cidade. Em um cenário de contínua divinização (cômoda porque desobriga o pensamento crítico) de obras como The death and life of great American cities, permanece a urgência de avançarmos em exercícios teórico-analíticos-empíricos dispostos a questionar as condições da realização do espaço público na cidade contemporânea que, sendo capazes de resgatar ganhos trazidos a partir de reflexões como as de Jacobs, estejam dispostos a atualizar olhares já viciados e evitar as tão repetidas (e já improdutivas) abordagens.

Referências AGUIAR, D. Urbanidade e a qualidade da cidade. In: AGUIAR, D; NETO, V. M. (orgs.). Urbanidades. Rio de janeiro: Folio Digital, Letra e Imagem, 2012, p. 61 - 79. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forensi Universitária, 2014. AUGE, M. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: EDLTFAL: UNESP, 2010. BERMAN, M. Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. -Between Spatialities: an approach to the contemporary urban space of ado e publicado nos anais da conferência LASA International Congress, Nova York, Estados Unidos, 2016. sm In the Era of Globalization, Huddersfield, Reino Unido, 2016. DELGADO , M. El animal público. Hacia una antro-pología de los espacios urbanos. Barcelona: Anagrama, 1999 DELGADO, M. Barcelona. La falacia da la Ciudad Mentirosa. Madrid: Ediciones Siruela, 2008 DOXA, Maria. Morphologies of Co-presence in Interior Public Space in Places of Performance. In: Proceedings, Atlanta: 2001. People and PLans: essays on urban problems and solutions. New York: Basic Books, 1968. HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. HABERMAS, J. Direito e Democracia: Entre Faticidade e Validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. LEFEBVRE, H. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do Paris: Éditions Anthropos, 2000. 2006 Contemporary Perspectives on Jane Jacobs: Reassessing the Impacts of an Urban Visionary. New York: Routledge, 2016. MARICATO, Ermínia. Morte e vida do urbanismo moderno. Resenha do livro Morte e Vida de Grandes Cidades. Disponível em: [http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_resenhajacobs.pdf]. MUÑOZ, F. Urbanalización. Paisajes Comunes, Lugares Globales.Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 2008 NETTO, V. M.; VARGAS, J. C; SABOYA, R. T. de. (Buscando) Os efeitos sociais da morfologia arquitetônica. urbe, Rev. Bras. Gest. Urbana, Curitiba , v. 4, n. 2, p. 261-282, Dec. 2012.

125

Políticas Públicas & Cidades, vol. 4 (2), dezembro 2016.

ISSN: 2359-1552

RYBCZYNSKI, W. Makeshift Metropolis: Ideas About Cities. Indiebound, 2010. RODRIGUES, T. C; ABRAMOWICZ, A. O debate contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação. Educ. Pesqui., São Paulo , v. 39, n. 1, p. 15-30, Mar. 2013. SABOYA, R. T. de; NETTO, V. M.; CELSO VARGAS, J. Fatores morfológicos da vitalidade urbana. Uma investigação sobre o tipo arquitetônico e seus efeitos. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 180.02, Vitruvius, maio 2015 SENNET, Ri. The Conscience of the Eye: the design and social life of cities. New York: W.W. Norton and Company, 1992. SENNET, R. O declínio do homem público - As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das letras, 1993. TAVOLARI, B. M. D. Jane Jacobs: Contradições E Tensões. In: Anais do XVI Enanpur Espaço, planejamento e insurgências. Belo Horizonte: 2015. Disponível em: http://xvienanpur.com.br/anais/?wpfb_dl=622 ZUKIN, S. Naked City: The Death and Life of Authentic Urban Places. New York: Oxford, 2010.

126

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.