O ESPETÁCULO À FLOR DA PELE

May 31, 2017 | Autor: F. Marquetti | Categoria: Teatro, Indumentaria, maquilagem
Share Embed


Descrição do Produto

O ESPETÁCULO À FLOR DA PELE Flávia Regina Marquetti

E soprando sua pele luminosa, ávido de embriaguez, olho através... Stéphane Mallarmè1

Pensar o espetáculo é pensar o inalcançável, aquilo que nos escapa a cada nova representação e, talvez, aí resida o fascínio e o encanto do teatro, uma ação metamórfica; a mesma peça, a mesma cena pode ser vista infinitas vezes e, embora seja a mesma é, no entanto, sempre outra. Esse fascínio, do mesmo, porém, diferente, se deve à presença única do corpo do ator em cena, que empresta sua materialidade, seus gestos, sua voz, suas expressões e sua alma aos personagens e nos permite o grande prazer de observar, sem culpa, o Outro/Eu. Assim como ocorre na ação erótica, o papel do olho e do olhar é determinante para a representação. O teatro, como o voyeur, precisa de um corpo e das emoções de um ser/persona que se entregue a seu espectador sem restrições e pudores. Esse jogo sedutor do teatro, que oscila entre o real e o imaginado, tem na ilusão criada pela pessoa, pela carne e, sobretudo, pela pele do ator, sua raiz. E se o corpo do ator é indispensável para criar essa mágica atrativa, sua pele é seu cartão de visita, seja ela ocultada pelas vestimentas, que também se tornam pele, seja pela maquilagem. A pele é o mais antigo e sensível de nossos órgãos, uma roupagem contínua e flexível, envolve-nos por completo, é o nosso invólucro. A pele, órgão mais extenso do corpo, delimita territórios, o que é de fora, o que é de dentro, interface entre o ambiente interno e o ambiente externo. (Miriam Dascal2)

No entanto, o teatro subverte esses limites, uma vez que permite ao ator e ao encenador exteriorizar o ambiente interno, emoções, medos, desejos; a pele é o veículo para inúmeras manifestações, discussões e criações no espetáculo. 1

L‟après-midi d‟um faune. Eglogue – 1865-1975. DASCAL, M. Da pele para fora da pele para dentro. https://www2.dti.ufv.br/danca_teatro/evento/apresentacao/artigos/gt1/miriam.pdf. Acesso em novembro de 2013. 2

As pessoas da pessoa

O magnífico espetáculo Recusa, da Cia Balagan, chamou a nossa atenção para um dado a ser discutido neste ensaio, a mola propulsora para a criação teatral: o questionamento das ações, da condição humana e sua relação com o status quo, com o poder coercitivo dos Estados. Questionamento que passa, no fazer teatral, pelo corpo do ator, que marca sua pele e vida. No espetáculo dois atores dividem a cena, caracterizados como os últimos remanescentes de uma tribo, até então considerada extinta. Sob a pele dos atores sentimentos e emoções, sobre ela, o traço das pinturas corporais, o urucum e todo um universo riquíssimo que se recusa a ser destruído: a identidade desses dois índios, suas crenças, hábitos e, simultaneamente, uma reflexão espelhada de nossa própria identidade, de nossa cultura e condição humana. Recusar ser um único ser, viver uma única vida, mesmo tendo o inferno como destino, essa é a escolha do ator. E, talvez, a recusa seja mesmo o ponto chave deste “homem absurdo”, como o define Albert Camus3. Recusa em se deixar aprisionar nos parâmetros medíocres da vida de todo mundo; recusa em se fixar em uma existência sem liberdade. A escolha é sempre pela liberdade extrema, que exige do ator/ser humano a total aceitação de seus riscos, de suas consequências. O ator recusa a segurança de um lar, de sua pátria, de ser único para abraçar/aceitar o múltiplo, o que se desfaz, pulverizado em incontáveis seres efêmeros, mas absolutamente reais em sua ilusão cênica. Habitar outros corpos, outros seres, essa mágica metamorfose confere ao ator muitas peles, às quais ele veste, despindo-se de si mesmo, apagando seus traços, seu rosto, seu corpo, transmutando-se em um Outro, cujo limite é sempre a sua própria vida, seu próprio corpo, sua pele. Vestir a pele do Outro é ver/conhecer o mundo a partir de outro contexto, é experimentar o diferente, o paradoxal e/ou contraditório. Nesse mistério de encantamento, a maquilagem e a indumentária oferecem ao ator o instrumento mais externo para sua criação, oferece-lhe uma nova pele, visível, capaz de delimitar o Outro criado a partir da recusa de si próprio. O personagem habita dentro do ator, mas ao espectador é oferecida sua pele, sua expressão externa, palpável e real, tão real quanto qualquer ser humano. 3

CAMUS, A. A comédia. IN: ___. O Mito de Sísifo. Ensaios sobre o absurdo.

Recusar o já conhecido, buscar incessantemente um novo ser, essa é a vida do ator e nisso ele emprega a aparência, a parte mais extensa e visível do corpo humano, para questionar o mundo/tempo no qual habita, mas no qual se recusa a permanecer. O ator representa. Fato. Mas o que é representar? Aristóteles já nos disse, é tornar presente aquilo que está distante de nós, o que deve ser lembrado; ou o que não deve ser esquecido, nos diz H. Weinrich 4– sutileza de pensamento. O ator torna presente o que não deve ser esquecido ou aquilo/aquele que se recusou a ser igual, ou seja, que transformou seu mundo, seu tempo. Mas para tornar presente um herói, um deus ou qualquer outra pessoa é necessário que o ator esteja dentro dele, vista sua pele, que o espectador olhe para o ator e veja não apenas sua aparência comum, cotidiana, mas sim uma persona. Nessa busca por caracterizar o Outro surgiu a maquilagem e a indumentária – sobre a pele do ator, elas o transfiguram em qualquer coisa: homem, deus, heróis, animais, seres fantásticos, objetos etc. Ao longo da história do teatro, que coincide com a existência humana, muitas formas foram usadas para transfigurar o ator. Desde as máscaras, coturnos e roupas suntuosas da tragédia clássica grega, passando pelas máscaras e roupas características da Comédia Dell‟Arte até a maquilagem de hoje. Mas neste longo trajeto, o recorte que pretendemos é o do contemporâneo 5, quando a arte teatral ultrapassa os conceitos da representação e instaura novos jogos de identificação entre Ator/personagem – não mais a transfiguração do ator em personagem, mas a exteriorização do conceito sobre o ser.

Dos riscos de ser plural

O espetáculo [diz Hamlet] eis a armadilha onde apanharei a consciência do rei Shakespeare

O espetáculo, eis aí a armadilha onde todas as consciências são apanhadas, pois é nele que reside o grande embate do teatro, seja ele antigo ou moderno. Para pensarmos 4

WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Utilizaremos algumas peças e grupos da produção teatral brasileira contemporânea para exemplificar os pontos abordados em nosso ensaio. 5

o fazer teatral temos que naturalmente considerar dois pontos de partida: o texto, objeto de teóricos, e o espetáculo, objeto de atores, encenadores, diretores, iluminadores, cenógrafos, maquiladores, figurinistas, um exército de profissionais que se oculta atrás do levantar da cortina. Ambos, texto e espetáculo, constroem a base do fazer teatral, a base do que desde a Antiguidade Clássica se convencionou chamar de mimeses. Embora muitos séculos tenham decorrido desde Aristóteles e sua Arte Poética, e inúmeros tratados tenham sido escritos sobre ela, ainda hoje o termo mimeses é objeto de controvérsias e revisões6. Partir do conceito de mimeses e de Aristóteles pode parecer um retorno muito grande às origens do teatro, mas não o é, pois o ponto central reside exatamente aí, nas definições e na perspectiva adotada para a construção do espetáculo. Segundo a Poética, o teatro é mimeses, entendida aqui no sentido já revisto por Dupont-Roc, Lallot e Malhadas, ou seja, “representação de uma ação” (49b 24-27). Note-se que tomar mimeses por representação, ao invés de imitação, é essencial, pois re-presentar, do latim, repraesentare, tem como sentido primeiro: fazer ou tornar presente; mostrar à evidência; patentear, revelar7; ou seja, o teatro presentifica, atualiza, torna presente, revela uma ação, ou mais exatamente, um mythos (50 a 4) – mito, história, enredo, no qual é possível divisar o movimento que leva do objeto modelo (existente no mundo) ao objeto produto (criação artística, objeto estético) apresentado no palco. O mythos seria, portanto, a “alma da peça teatral”, enquanto o espetáculo, o seu corpo. Ainda em Aristóteles encontramos as maneiras pelas quais as diversas formas de representar se distinguem: “... por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou modos diferentes...” (47a 13-17). Eis aí a cilada hamletiana, as formas buscadas para tornar presente um mythos é a eterna procura da arte por uma nova forma para a substância poética. Se o mythos se repete, a forma é alterada, os contornos, a roupagem dada a esse corpo deverá se “adequar” ao seu tempo, ao seu público e/ou às intenções de seu encenador/diretor. A questão da primazia do texto ou do diretor/encenador, levantada por Artaud, é outro ponto chave para compreendermos o papel do espetáculo no teatro após 1920. A 6

Uma revisão mais intensa dos termos e conceitos apresentados na Arte Poética já se encontra em curso desde 1980 na França por pesquisadores como Dupont-Roc e Lallot, ou Daisi Malhadas aqui no Brasil com sua publicação de 2003. 7 Definição obtida no Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis – http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/. Grifos nosso.

negação

do

texto

dramatúrgico

pré-estabelecido

e

a

valorização

da

montagem/encenação abriram espaço para a experimentação de novas formas teatrais, nas quais o representar, o tornar presente, agora é entendido não só como reconhecer – conhecer de novo (o que se tinha conhecido noutro tempo), ou ainda: ter ou chegar a ter conhecimento, ideia, noção ou informação de algo; mas é, acima de tudo, compreender: conter em si, constar de; abranger; alcançar com a inteligência; entender; perceber as intenções de; estender a sua ação a8. A palavra teatro é, etimologicamente, lugar de onde se vê, mas o que vemos no teatro? Vemos o Outro/Eu, materializado em um corpo, palavra que em grego significa pessoa. Essa metamorfose, transformação de um Eu singular, o ator, em um Outro plural, que recobre vários segmentos da sociedade, de sentimentos, sensações alheias a ele, se dá a partir de um jogo de ilusão, no qual a caracterização, maquilagem e indumentária, entram em cena e conferem nova pele ao ator. Para os gregos pele é tudo aquilo que recobre, dessa forma, podemos entender que todos os elementos que são utilizados para caracterizar o ator e mesmo a cena9 constituem, no teatro, sua pele, sua epiderme, sobre a qual é projetado o mais profundo de seus personagens. Enquanto a roupa, em nosso meio social, serve, de maneira geral, para vestir e marcar status, no teatro ela ganha outros contornos, ela não só caracteriza o personagem, dando-nos indícios de sua idade, sexo, condição material, classe social, religiosidade, nacionalidade etc., mas ela também pode revelar seus sentimentos, sofrimentos, culpas, desejos e pode ir ainda além, a escolha da indumentária permite despertar no espectador uma reflexão critica mais profunda sobre as relações sociais ali apresentadas. As

roupas,

em

nosso

cotidiano,

não

despertam em

seus

usuários

questionamentos sobre suas formas/cortes e as relações de poder que se verificam a partir deles. Mas, segundo Beatriz Pires10 é possível observar transformações nas vestimentas que ora se chocam com os postulados religiosos, permitindo uma liberdade maior ao seu usuário, ora adquirem características extremamente rígidas e desconfortáveis, que obrigam os indivíduos a manterem uma postura altiva e hierárquica. 8

Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis – http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/ Embora o tema deste ensaio não seja o cenário, não podemos nos furtar de chamar a atenção de ser ele a pele da cena, o que veste o palco para a representação e que ele está intimamente correlacionado aos demais elementos cênicos, como a maquilagem e a indumentária. 10 O corpo como suporte da arte, 2005, p. 25 a 57. 9

Véronique Nahoum-Grappe11 nos fala de como a indumentária “substituiu” a representação “corpórea” entre os séculos XVI e XVIII. A moda dita posturas físicas e, portanto, afeta as relações entre os indivíduos. Os tecidos luxuosamente coloridos, as pedrarias, o deslumbramento causado por certas aparições de homens e, sobretudo, de mulheres belas, equivalem às manifestações de poder, do sagrado, “são espetáculos sociais heterogêneos que ocupam a cena visual pondo em funcionamento uma mesma tática de luminosidade e de expectativa” 12. Essa valorização do parecer, da aparência manteve seu reinado até os dias atuais. O teatro, acostumado a um olhar mais perspicaz para o cotidiano e para a história, vem se utilizando dessa percepção para criar, a partir da indumentária e da maquilagem, a percepção crítica de seus personagens e sociedades, ou as usando para conferir um efeito distinto sobre a cena/ação. A imagem do personagem que vem para a cena, na verdade, é um suporte material, a imagem, leitura desse suporte, ocorre a partir do momento em que não vemos mais aquilo que imediatamente é dado nesse suporte, mas outra coisa. A imagem começa quando paramos de ver o suporte e reconhecemos uma figura, como afirma Francis Wolff13, nesse momento a imagem representa algo que está presente, o ator caracterizado como personagem, mas também alguma coisa ausente – ocorre uma sobreposição de sentidos, transformando dois mundos, “o real, do que aparentemente está representado e o imaginário, o que está ausente, o que ainda não está, o que não está mais, o que não pode estar presente, mas que se torna presente pela imagem sugerida ou negada” 14. O que temos em cena são corpos em representação, ideia muito explorada pelos surrealistas, sobretudo Magritte, que questiona em suas telas, como em Les liaisons dangereuses, de 1936, uma oposição entre o olhar do espectador, o corpo nu da modelo, o espelho e o reflexo deste. O espelho, nas mãos da modelo, está voltado para o espectador,

mas

retrata

o

dorso

da

própria

modelo



limite

entre

o

corpo/imagem/olhar/expectativa – o que vejo, o que é representado não é mais a imagem de um corpo, mas um questionamento sobre a própria representação do ser.

11

A mulher bela, In: Duby, G. e Perrot, M. História das mulheres no Ocidente. 1991, p.123-127 ibiden, p.125. 13 WOLFF, F. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In. Novaes, A. (org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: SENAC, 2005, p.17 a 29. 14 Ibiden, p.26. 12

Assim sendo, é possível a materialização de uma ideia abstrata sobre a pele do ator, nela o encenador/diretor imprime informações que escapam ao texto dito, ou que o ultrapassam, abrindo um leque de imagens e conceitos que presentificam quer a vida do autor da peça representada, quer o contexto histórico-social da mesma, quer as relações pretendidas entre o momento histórico da peça e o vivido pelo encenador/espectadores atuais. Esse expediente, largamente utilizado pelo teatro ao longo de sua existência vai desde o disfarce de mulheres em homens, ou vice-versa, até a corporização dos aspectos sexualmente estimulantes e ameaçadores que definem as relações humanas e as identidades de gênero, em imagem “concreta”. O travestimento, em seu sentido mais amplo, é o eixo de toda representação, de toda mimeses, todo ator se traveste para colocar o Outro em cena, mas dentro desse jogo há nuances delicados, que vão desde a referência sutil a algum fato – indicado pela marca epidérmica, à explicitação do corpo do ator em plena metamorfose. Um exemplo desta caracterização sutil pode ser dado na criação do compére para a Mostra Teatral Wallace Leal Valentim: curtas{cenas}curtas. Na mostra, idealizada para reviver as peças dirigidas por Wallace na década de 40, com o então grupo TECA – Teatro Experimental de Comédia de Araraquara, um compère foi empregado para ligar as cenas que seriam apresentadas pelos diretores da cidade. Nesta criação, a atriz Fúlvia Cusumano Reis, transvestida em compère - figura ambígua/andrógina do teatro de revista - teve as costas maquiladas com um ramo de rosas vermelhas. Mais que um simples adorno, a imagem concretizava, na pele da atriz, uma proposta estética do diretor Wallace para a cidade. Visionário, ele propunha, para diversos segmentos de Araraquara, intervenções plásticas que iam de projetos para espaços culturais, como a praça do sol ou o museu do chapéu, a inventários inusitados, como o publicado em uma crônica sua à época, no jornal Tribuna Impressa de Araraquara. Nesta, Wallace contrapunha o número de espécies de rosas existentes na cidade em 1945, trinta e cinco mil, com os carros existentes: apenas quarenta veículos.

Foto: Nara Marques – Mostra Wallace Leal Valentim Rodrigues - curta{cenas}curtas15 Fúlvia Cusumano Reis - compère

A proposta cênica da Mostra buscou aliar à representação não só as cenas das peças, mas um conceito idealizador para a cidade, a crônica das “35 mil rosas e 40 carros” era a expressão literária dessa abstração, dessa tatuagem/cicatriz deixada na pele/memória da cidade e que, em cena, reavaliava os percursos culturais da mesma, basculando entre a idealização e a não realização, corporificadas no compère, alter ego de Wallace. Da mesma forma, o farto uso de chapéus pela atriz nas cenas, foi utilizado para referir-se ao surreal museu do chapéu que Wallace queria ver erguido. O corpo da atriz tornou-se suporte para a imagem de uma cidade, a Araraquara desejada por Wallace. Outra caracterização, na mesma Mostra, permitiu à maquiladora Patrícia Diniz, segmentar o rosto da atriz Di Souza para expressar, simultaneamente, a passagem do tempo, a corrupção física do personagem (acometido por um câncer de boca) e a dualidade presente no texto de Pirandello 16, usado para a adaptação/criação da cena Olhares e formas da Cia O Tear17. A maquilagem, em tons de azul e prata, simula um gotejamento sobre a pele, como a vela trazida pela atriz em suas mãos na cena, o coração/mácula se exterioriza não só sobre a pele, mas também sobre a vestimenta.

15

Ficha técnica: Curadoria da mostra, idealização, figurino e dramaturgia do compère - Flávia Marquetti; maquilagem - Patrícia Diniz; compère - Fúlvia Cusumano Reis 16 Pirandello, L. O homem da flor na boca. 17 Ficha técnica Cia. O Tear: Dramaturgia, direção e atuação – Di Souza; maquilagem – Patrícia Diniz.

Nesta cena ocorre outro travestimento, que joga com os gêneros dos personagens, mesclando em um só corpo o personagem masculino, caracterizado na indumentária pelo uso do chapéu e pela maquilagem, a face que se decompõe; com o da personagem feminina, esposa do protagonista, que vem à cena no delicado vestido e na fita rosa que ata sua cintura, e no outro lado da face, íntegro. O coração exteriorizado na maquilagem bate em dois peitos, igualmente dilacerados. Dentro e fora, passado e presente, se fundem para expressar a dor e a angústia do personagem – o texto nos diz da falta, do “não”, da passagem do tempo; a imagem nos mostra, com um simples olhar o que “é”, marca do presente, o que lhe confere a força mágica da presentificação do ausente, da ilusão imaginária, tão cara ao teatro.

Foto Robison Willian Ferreira. – Olhares e formas Atriz: Di Souza – Cia O Tear

Essa mesma ilusão imaginária foi utilizada com maestria na peça Penélope Vergueiro, dirigida por Carlos Canhameiro e encenada pelo grupo Penélope Cia de Teatro18. A maquilagem e indumentária utilizada com maestria na peça Penélope Vergueiro conferiu à peça a possibilidade de representar o irrepresentável, um corpo ausente, mas que se fez presente o tempo todo. A sinopse apresentada pelo grupo nos dá o eixo sobre o qual gravita o espetáculo: O

espetáculo Penélope

Vergueiro é inspirado num fato

presenciado na Rua Vergueiro, em 2005: um veículo avança o sinal vermelho, cruza a avenida e colide com outro veículo estacionado. O 18

Ficha técnica do espetáculo: Direção e Dramaturgia - Carlos Canhameiro; Pensamento Corporal e Dança - Andréia Yonashiro; Atrizes - Erika Coracini, Paula Carrara, Rimenna Procópio; Iluminação Daniel Gonzalez; Consultoria de Imagem - Monica Zaher, consultoria maquilagem e cabelos Cecy Procópio.

inusitado é que o primeiro veículo colide inúmeras vezes no outro carro, tentando mesmo atropelar o motorista, para então entender-se que o motorista do primeiro carro é a esposa traída que pega o marido em flagrante com a amante. Penélope Vergueiro destrincha o acontecimento amoroso e os seus desdobramentos, transformando um fato cotidiano caótico, um acidente de carro, em possibilidades e olhares diversos sobre a mesma mulher e o seu amor vivenciado. A peça aponta diversas facetas desse feminino e suas relações amorosas, colocando o público como um observador ocular, testemunha e recriador de cada ação. O quebra-cabeça sobre o amor e suas possibilidades, ou sobre o desamor e seu desencontro social é montado por cada olhar que ali se encontra como testemunha da arte e do ato performático presente. A história está lá, roteirizada, descrita, mas o acontecimento cênico é único, e exige de cada espectador sua contribuição como fazedor artístico e fruidor. 19

Em Penélope Vergueiro temos três atrizes, três mulheres concentradas em uma personagem central, a que dá título à peça, e um fato, um acidente envolvendo os personagens de um triângulo amoroso, esse é o mote para que as três atrizes e o dramaturgo/diretor construam o mais visceral espetáculo sobre o feminino. Na escolha cênica feita por eles, o palco, compartilhado com o público, é isolado por uma fita zebrada, como no dia do acidente, ali estamos como espectadores da peça, mas também espectadores omissos da batida dos carros e da violência cotidiana contra a mulher. Logo à entrada do espetáculo são oferecidas algumas camisas masculinas para espectadores de ambos os sexos, e é solicitado a estes que as vistam por sobre suas roupas, esse expediente prenuncia não só a nossa participação na peça, mas expande a cena, o público é também personagem dessa trama. Outro efeito imediato que se tem a partir da distribuição das camisas ao público é a presença da imagem do masculino reforçada, independente da quantidade de homens na “plateia”20, as camisas, em torno de 30 ou 40, transformam o grupo em majoritariamente masculino 21, indicando o caráter/comportamento machista apresentado por homens e mulheres.

19

Retirado de : http://penelopeciadeteatro.blogspot.com.br/p/espetaculos.html. Acesso em 10/11/2013 Como em outros espetáculos, plateia e atores ocupam o mesmo espaço no palco, redimensionando a discussão sobre o real e o ficcional. 21 O número de espectadores para o espetáculo é de 70 pessoas, aproximadamente. 20

Ao longo do espetáculo, as atrizes irão buscar ora o contato físico com esse masculino referenciado, como por exemplo, em um abraço dado por uma atriz no espectador(a) vestido com a camisa, alusão às diversas relações afetivas, familiares da personagem com o masculino: a busca por carinho, proteção, sexo, que embora sejam consentidas e desejadas, ainda trazem a marca da coerção. Ora é solicitado ao espectador que ceda a camisa para outra atriz, que as vai vestindo sobre o colo nu, essa sobreposição do masculino ao corpo feminino desnudado adquire diversos sentidos na cena, tornando reconhecíveis as inúmeras condições sociais opressoras vividas pelo feminino. A imagem criada é então representação de algo ausente em toda a peça, o corpo masculino, seu peso, sua forma, sua força física; mas que é reproduzida em certos aspectos da aparência visível – a camisa – indumentária social do cidadão considerado civilizado, polido, educado, de condição social, econômica e intelectual mais elevada, mas que se revela o oposto em sua ação bárbara e violenta.

Foto: Carlos Canhameiro – Penélope Cia de Teatro Atrizes: Paula Carrara e Erika Coracini

As camisas remetem à opressão, ao peso da autoridade/poder masculino exercido sobre o corpo feminino por pais, maridos, irmãos e a sociedade em geral 22. Na sequência das cenas, as camisas adquirem um novo contexto, a sobreposição continuada aliada ao movimento da atriz e sua dificuldade em realizá-lo, metamorfoseiam-nas em 22

O uso de camisas para criar a indumentária feminina também foi muito bem explorado na peça Hamlet, Direção: Aderbal Freire Filho, 2009. Na peça, Ofélia, com figurino de Marcelo Pies, vem à cena com um vestido de noiva feito a partir de camisas masculinas e, igualmente, sugeriam uma camisa de força.

camisa de força - retratando em cena a condição da mulher/Penélope: amarrada, sufocada e aviltada. Todos os objetos cênicos presentes na peça Penélope Vergueiro são retirados do universo feminino, como uma batedeira, um secador de cabelos, uma bolsa rosa (alusão à Penélope Charmosa? a Barbie?), os óculos de sol, o batom, as escovas de cabelo, o balde de plástico, a toca de banho e muitos outros; todos ganham em cena novo contexto, são armas contra o feminino. A cena com o uso da batedeira de bolos é de uma tensão e angústia impar, sem maniqueísmos, a peça explora a ambiguidade imagética ao longo de todo o espetáculo, nesta cena, a atriz, com as camisas sobrepostas ao corpo simula o toque e, concomitantemente, a agressão física ao corpo de outra atriz com a batedeira, descendo com ela ligada da altura do rosto até o sexo. O corpo sob as camisas é feminino, assim como a mão que segura a batedeira, esse dado concreto a partir da presença exclusiva de atrizes em cena foi escolha consciente de Canhameiro e do grupo, a imagem nos remete à educação dada pelas mães a seus filhos varões e a todo um contexto de opressão realizado pelas próprias mulheres a si mesmas, além do sofrido pelo masculino.

Foto: Alexandre Krug – Penélope Cia de Teatro Atrizes: Erika Coracini e Paula Carrara

Outras cenas exploram a sobreposição da imagem do corpo das atrizes com os objetos do lar, como na “poética” cena do aspirador de pó, na qual uma das atrizes limpa o chão/rua/palco molhado e coberto por vários detritos com o corpo da outra, transformando-a em “aspirador de pó” ou “esfregão”, enquanto canta uma bela canção de amor de espera pelo amado. Essa metamorfose do corpo da mulher em receptáculo de lixo/sujeira gerada pelo conflito com o masculino, passa pela gestualidade, mas

também pela indumentária usada pela atriz/aspirador – um vestido vermelho – intensificando os signos: feminino, paixão erótica e violência/sangue. A proposta visual criada para as atrizes propõe um gradual desmoronamento da imagem do feminino idealizado pela mídia e sociedade 23. Inicialmente todas se apresentam belas, bem vestidas, penteadas e maquiladas, ao longo da peça vai ocorrendo a desconstrução dessa imagem, elas vão se descabelando, borrando a maquilagem, sujando e decompondo a indumentária e o corpo. O discurso dialoga com as efígies, via texto e/ou as músicas presentes na peça, fazendo com que o espectador decodifique o contexto criado pela representação, estendendo sua ação para além do espetáculo, para a plateia, para a rua, para os lares, para a sociedade – o limite entre o ficcional e o real se distende, dilui, torna-se quase inexistente. A linguagem visual, obtida a partir da maquilagem e da indumentária utilizada no espetáculo, redimensiona e corrobora as escolhas e as recusas em Penélope Vergueiro. Em Sua Incelença24 Ricardo III, do grupo Clowns de Shakespeare (Natal-RN), observa-se outra forma de travestimento ou uso desses expedientes, a recusa ao óbvio levou o diretor e encenador Gabriel Villela a elaborar uma mistura de elementos da cultura indiana com a do sertão, da estética barroca com a moderna. Ricardo III, peça de William Shakespeare datada entre 1592 e 1593, foi transformado em um épico brechtiniano contemporâneo por Villela, a base para essa nova peça é Shakespeare e os clowns. Brecht em sua proposta de teatro épico pede um 23

Comunicação pessoal – Rimenna Procópio, atriz da Penélope Cia de Teatro. As Incelenças, também denominadas Incelências (em língua portuguesa: Excelência, por corruptela), Cantigas de Guarda, Cantigas de Sentinela ou Benditos de defuntos constituem uma forma de expressão musical típica da Região Nordeste do Brasil, cidades do Vale do Paraíba e, em escala menor, em outras regiões do Brasil. O termo Incelença remete a uma ampla coletânea de pequenos cânticos executados especialmente em virtude de falecimentos. De forma similar, podem ser também executados sob a cabeceira dos enfermos terminais, substituindo a extrema unção na ausência de sacerdote e apressandolhes a morte, diminuindo-se-lhes, então, o sofrimento . Neste âmbito, credita-se às Incelenças a propriedade de despertar nos agonizantes o remorso sobre os pecados, incitando-os ao arrependimento. Não obstante associadas, no mais das vezes, aos ritos mortuários, há registros de sua utilização em meio a preces contra males infecciosos, inundações ou mesmo para amenizar as duras estiagens que castigam a região do semi-árido . Em outras acepções, porém, a utilização destas cantigas fora dos contextos estritamente fúnebres é considerada um agouro de morte. Marcadas pela perpetuação de sua oralidade (estendendo-se de pai para filho e de benzedores para jovens através da memória), as Incelenças apresentam uma estrutura rítmica bastante simples e compõem-se sempre de doze estrofes - o número dos apóstolos de Cristo -, idênticas à primeira exceto pela marcação numeral no início de cada uma. A execução de tais cantigas é feita sem acompanhamento instrumental, sendo, geralmente, iniciada por uma ou mais vozes femininas, que cantam os primeiros versos de cada estrofe e às quais se segue um coro em uníssono, entoando os demais. Outras vezes, embora mais raramente, podem ser rezadas, cantadas em solo, uníssono ou coro. Seja como for, acredita-se que uma vez iniciada a execução das incelenças não podem ser interrompidas, nem mudados seus executantes, sob pena de a alma do falecido não alcançar a salvação. http://pt.wikipedia.org/wiki/Incelen%C3%A7a consulta em janeiro de 2013. 24

distanciamento, criado, na concepção cênica de Villela, a partir da fusão estética dos clowns aos elementos do cangaço, da mescla de músicas em inglês e português, de gêneros e períodos os mais variados, às canções populares do Nordeste brasileiro; tudo acrescido de algo mais para desvelar as numerosas pessoas no interior da pessoa. Esse algo mais se faz presente em cena na indumentária, em alguns adereços e na maquilagem. A Índia fornece ao espetáculo de Villela formas e brilhos inusitados, com suas sombrinhas e rickshaw25. As três carroças em cena, que funcionam como cenário móvel, são um misto de rickshaw e carroças nordestinas. Villela entrelaçou o sertão à Índia nos escudos, nos arcos e flechas (referência ao guerreiro Arjuna26); nas cartucheiras em forma de cinturões típicos de danças indianas tradicionais - unindo os guizos dourados indianos às flores artificiais - largamente utilizadas no Brasil pelas camadas mais populares da sociedade. Da mesma forma, nordeste e Índia se confundem nos adereços de cabeça, diademas com pedrarias, nas joias: profusão de anéis, pulseiras e colares peitorais dourados. Além dessa fusão, o espetáculo trouxe à cena algumas peças tradicionais inglesas, como a capa com pele de arminho de Ricardo III. A maquilagem fez jus ao grupo, os atores vieram caracterizados como clowns, às vezes ostensivamente maquilados, às vezes com maquilagens mais discretas, mas sempre trazendo a figura do clown – máscara sobre máscaras. Ao propor aos atores do grupo Clowns de Shakespeare uma nova pele para interpretar Ricardo III, de Willian Shakespeare, Gabriel Villela estabeleceu não só uma intertextualidade com os dois grandes épicos indianos: o Mahabharata e o Ramayana, textos que tratam da disputa de poder entre famílias reais indianas, mas também atualizou o estranhamento e distanciamento pedido por Brecht, rediscutindo os principais conceitos sobre a arte cênica Ocidental e nos fazendo refletir sobre quão antiga e atual é a relação existente entre poder e violência. Além de redimensionar a imagem tradicional do clown.

25

Rickshaw - transporte indiano, em sua versão antiga, antes do uso da bicicleta como mecanismo de tração. 26 A passagem à qual a gestualidade dos atores faz alusão é a do Karma-yoga Sanyasa, Bhagavad Gita, quando Arjuna, em meio à batalha, sustenta o arco em posição de lançamento da seta e pede a Krishina um conselho: “se é melhor abrir mão da ação ou agir. Krishina responde que ambos são caminhos para o mesmo objetivo”. Na peça, essa reflexão feita por Krishina é revitalizada pela sobreposição das diversas sociedades representadas.

Repensar o conteúdo teatral de um texto clássico é também repensar seu formato, sua aparência, forma e conteúdo foram atualizados, não mais estava ali apenas o texto de Shakespeare, a estética de Brecht ou do teatro indiano clássico, sobre o palco estava tudo isso, mas travestido, incorporado à pele do contemporâneo, refletindo a influência da cultura e dos séculos sobre a nossa sociedade, sobre a pele do ator. Dois espetáculos completamente diferentes: Penélope Vergueiro e Sua Incelença Ricardo III, ambos traduziram na pele do espetáculo a recusa ao óbvio, ao já experimentado e consagrado e, principalmente, a recusa da inércia diante de seu mundo, propostas que fizeram uso da pele/corpo do ator para discutir o momento histórico e o papel do teatro no mundo.

Nudez Desencantada

Se a indumentária tem sido, ao longo dos séculos, um artifício para a caracterização do personagem, o uso da nudez em cena é relativamente recente, ao contrário do que ocorre na pintura e na escultura que veem explorando a nudez desde a Antiguidade, o teatro geralmente veste seus atores para despir seus personagens. No entanto, encontramo-la em alguns grupos teatrais que exploram a nudez como identidade estética em suas montagens e/ou como forma de discutir as “novas” realidades sexuais e as relações de gênero no século XXI. Para além do erotismo, o uso da nudez no teatro visa traduzir um novo tipo de nudez, uma forma descarnada, dês-sublimada, “de uma carne entregue ao excesso e ao desamparo de sua contingência” (Rimann,1988, p.26). A exibição do corpo nu do ator simultaneamente pode chocar por sua entrega absoluta e explicitar a humanidade desse corpo/personagem, tornando-o mais próximo do espectador. No espetáculo Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, levado à cena pelo grupo Armazém Companhia de Teatro, o diretor Paulo de Moraes explora a nudez de uma forma contundente logo na cena inicial, Geni, uma prostituta, aparece em cena sentada em uma cadeira e, sozinha, lentamente vai escrevendo sobre seu corpo nomes de homens com batom vermelho, enquanto escreve a atriz fita diretamente a plateia, lentamente ela vai desnudando seu corpo e sua situação de mulher marcada pelo sexo/sangue/dor. O batom, como em Penélope Vergueiro, é instrumento de sedução e

também projétil/sexo masculino/cartucho de bala27 que perfura e fere o corpo feminino. Ao final da cena, a atriz é tragada, com cadeira e tudo, para o interior do cenário, com um movimento brusco e extremamente rápido. As portas, que compõem o cenário, se abrem para engolir o corpo da atriz e, na sequencia, retomar o fio da narrativa, agora apresentada linearmente. No espetáculo Hipóteses para o amor e a verdade, do grupo Os Satyros, de São Paulo, encontramos o que se pode considerar o ponto nevrálgico dos questionamentos da arte dramática hoje: o esfacelamento do limite entre realidade e ficção. Outros grupos têm explorado essa fronteira, como é o caso de Janaina Leite e Fepa na peça Festa de Separação. Um documentário cênico, de 2010, na qual o casal de atores, antes marido e mulher, representam a si mesmos e à sua separação, sem nomes fictícios, fazendo uso de vídeos pessoais, cartas, lembranças etc. Também no cinema observamos esse movimento de confundir, embaralhar os limites entre a realidade vivida pelo ator/diretor com sua criação, como no filme Synecdoche, New York, de Charlie Kaufman, lançado em 2008. Em todas essas manifestações, a vida pessoal do ator se confunde com a do personagem e do texto “ficcional”, com o produto estético realizado. Se para Brecht 28 a forma épica adotada por seu teatro deveria apresentar procedimentos que permitissem quebrar a ilusão teatral, que fizessem o espectador ter consciência de que aquilo que estava sendo apresentado era uma representação e não realidade, imagem/objeto artístico, produto estético mediado pela poiésis, que além de prazer deveria levar à reflexão; hoje o teatro busca mesclar essas realidades, confundi-las, mas de forma diversa da que o teatro a utilizou nos últimos séculos, a discussão agora passa pelo próprio conceito de real e de representação/mimeses. O que está na base de todo questionamento é a inexistência do real e da verdade, conceitos que veem sofrendo com as novas tecnologias e propostas da sociedade. E se o conceito de real é questionado, o de representação também o é. Esse novo embate do teatro com o mundo/sociedade pode vir apresentado sob vários aspectos: no formato/escolha da cena; no uso de metáforas visuais e maquinários 27

O bato ganhou o formato atual - cartucho de bala – em 1915, em plena I Guerra Mundial – talvez por isso seja até hoje considerado uma “arma” de sedução. O formato do projétil – cilindro alongado e pontiagudo encontra respaldo em toda uma cultura da guerra e do masculino, na qual as armas estão associadas ao falo. Conferir: MARQUETTI, F.R.e FUNARI, P.P.A. O falo e o chifre. Uma respresentação do masculino no paleolítico. Dimensões. Revista de História da UFES, n. 26, 2011. 28 Brecht foi um dos poucos pensadores que compreendeu profundamente o sentido de mímesis, dado em Aristóteles, opondo-se ao conceito veiculado pela tradição francesa.

eletrônicos; na dramaturgia, que não se fecha em um texto pré-estabelecido, mas que é construída em cena pelo ator em comunhão com o espectador – exemplo é o espetáculo Sonhos para vestir de Sara Antunes, dirigido por Vera Holtz. Neste o texto é tecido a partir das lembranças de infância da atriz somadas às dos espectadores, sem a intervenção da plateia a dramaturgia não ocorre, o que exige não só um controle absoluto da atriz sobre as intervenções, como também uma entrega sensível por parte do público. O ápice dos questionamentos sobre a não delimitação entre os espaços da vida e da arte encontramos com Os Satyros, em Hipóteses para o amor e a verdade. Nesta peça, o questionamento da realidade corporal dos atores, sua identidade de gênero é colocada em cena para um debate e/ou embate com a sociedade/plateia. Pautados na reflexão sobre o pós-homem, que recria seu corpo, sua identidade independentemente de seu corpo natural; no questionamento sobre a artificialidade de todos os corpos, pessoas, relações sociais, afetivas etc. e no domínio da tecnologia sobre o humano, Os Satyros se utilizam da nudez absoluta em cena, tanto de mulheres, de homens, como de transexuais masculinos e femininos para essa discussão. Longe de qualquer erotismo ou show burlesco e caricatural, a nudez desses corpos transformados estabelece o elo entre o “real” e a “criação artística”, entre a “verdade” e o “imaginário”, entre o ser e o desejar, entre o ator e o personagem, pois o drama ali representado pelos corpos é a própria vida do ator, é sua história pessoal que ele mesmo encena no espetáculo. De maneira geral, após 1960, são colocadas em cena as experiências pessoais dos atores, tornando público o privado, o objeto principal dessa manifestação é o corpo do ator, é através dele que se cria uma nova linguagem cênica na qual os gestos, as marcas adquiridas constituem a base da sintaxe – a aproximação entre vida e arte transforma o corpo em mediador dessas duas dimensões, como no caso das performances de artistas como Günther Brus e Hermann Nitsch, que impõem a seus próprios corpos ações que ameaçam a sua integridade física, colocando em xeque os valores morais, sociais e religiosos da sociedade e da cultura ocidental, além de causar grande impacto no público, provocando sentimentos de aversão. Gina Pane, segundo Beatriz Pires29, é outra artista que mescla artes plásticas à performance, valorizando o gesto, o movimento do corpo e a dor. Pane constrói sua obra através de “ferimentos causados por objetos cortantes, como lâminas de gilete e de navalha, e pontiagudos, 29

Pires, B. Op. cit, 2005, p.136 -9. A autora discorre também sobre outra forma de espetáculo que se utiliza da modificação do corpo pelo artista, a body art e a body modification.

como pregos. Em suas performances o tema é contado por meio do tipo de ferimento e da forma como ele é adquirido”- a marca sobre a pele/corpo da atriz equivale à proposta dos Satyros, em ambos a exposição do ferimento/vida (interno/externo) torna-se signo do espetáculo. Todo o processo de criação de Hipóteses foi resultado de histórias reais coletadas a partir de depoimentos dados por pessoas anônimas e comuns no espaço d‟ Os Satyros na Praça Roosevelt, São Paulo. Dentre essas pessoas encontramos ao menos dois dos transexuais que estão em cena, e que, até então, não eram atores. Convidados a se auto representarem na peça, eles expõem suas vidas e seus corpos, redimensionando o teatro do terceiro milênio e a sociedade à qual pertencem não pertencendo. Hipóteses é um espetáculo interativo, que brinca com o público e seus celulares, que joga com a internet e com os chats e sites de pornografia ou de relacionamentos, aproveita-se dos diversos meios de comunicação para ilustrar a incomunicabilidade, a urgência dos personagens/pessoas em se sentirem vivos em um espaço que, cada vez mais, perde a humanidade. O cenário é composto por computadores, telões, manequins pintados e suspensos por correntes e até uma singela cortina de argolinhas, os espectadores são convidados a se misturarem a esse mundo do centro velho de São Paulo, compondo com os personagens um mundo estranho, no qual ninguém ama ninguém e nem se comove com nada, que assiste passivamente a prostituta nua ser embalada por papel filme pelo cliente apaixonado, que quase a asfixia para que diga o que ele quer ouvir. Cenas que tocam, incomodam, enternecem e levam a uma angustiante reflexão sobre o homem. Recusando rótulos e paradigmas, essa nudez desencantada revela os personagens atrás das máscaras do real, assumindo a proposição de Lacan, na qual “a identidade é uma máscara que repousa no vazio” (Escritos, 1998). Para Os Satyros, revelar esse vazio além da cena é proposta estética, é o que eles chamam de “teatro expandido”, ou seja, a vida e o mundo são também Teatro. Os Satyros, a Penélope Cia de Teatro e outras companhias unem atualmente as pontas dos fios temporais, rediscutindo questões que estavam arraigadas no seio da sociedade desde os séculos XVI e XVII, quando a ligação entre representação teatral e comportamento sexualmente transgressor era feita a partir do corpo feminino. Hoje, século XXI, o feminino continua oscilando entre a transgressão e os papéis normativos, mas ganha a companhia de outros corpos em cena, que se recusam a permanecer dentro dos limites impostos pelo “natural”, pelo moralmente aceito - a ambiguidade visual e de

identidade criada pelo travestimento cênico ou real, constitui muito mais do que uma oportunidade para apresentar confusões cômicas das identidades e embróglios de enredos românticos. As provocações sexuais, nas peças teatrais, tornam-se o meio prático da expressão patente de uma crítica à violência sexual, masculina e feminina; além de crítica social sobre a condição humana, uma recusa ao silêncio, à apatia na qual o ator empresta seu corpo, sua pele, assumindo até às últimas consequências seu ato/ação/cena. O ator/encenador, através da imagem criada, “ignora as nuances do subjuntivo ou do condicional. Ele „é‟, ponto, é tudo. Jamais um „se‟ nem um „talvez‟. Defeito do qual ele tira sua força. Pretendendo representar o real sem nuances, sem julgamentos, pondo o possível e o real no mesmo plano”30, conferindo o sentido de realidade à própria realidade, ele torna visível e compreensível o invisível, aquilo que não está lá, ou que não deveria lá estar. O teatro nos apresenta o mundo, nele o verdadeiro olhar é o do homem sobre a imagem, não mais da imagem sobre o homem. O teatro contemporâneo não mais representa, a partir da definição do século XVI, ele figurativiza a realidade em segundo grau, como quer Barthes31. O teatro, por meio do corpo do ator, mostra não o real, mas diversas realidades que se escondem sob a pele da sociedade. Criando

cuerpos tendidos, cuerpos sometidos, felices, concretos,

infinitos...32. O resultado desses experimentos é que o corpo passa a ser sujeito e objeto do ato artístico, simultaneamente. Onipresente, o corpo do artista, como objeto da arte, trona-se ele mesmo obra, não só instrumento criador de obras. O corpo, a pele do ator transformou-se no último ponto de ancoragem a que é possível apegar-se para compreender-se como sujeito - a manipulação, a transformação, o ultrapassar-se como pessoa ou indivíduo entre os outros – seja por cirurgia, terapias, drogas ou virtude estoica - não mais revela um mythos. As imagens nos colocam, brutalmente, diante de uma realidade nua e crua, da qual não somos mais capazes de nos apropriar, pois a dimensão simbólica e metafórica que permitia a representação do real volatilizou-se.

30

Wolff, 2005, p.27 Barthes, Roland. A câmara clara. Tradução Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984 32 Vilariño, Idea, Tarde. Poesía Completa. Uruguai: Cal Y canto, s/d. 31

Agradecimentos: às atrizes Erika Coracini, Paula Carrara e Rimenna Porcópio Penélope Cia de Teatro, Alexandre Krug e Carlos Canhameiro; a Robison Willian Ferreira, Di Souza – Cia O Tear, Patrícia Diniz, Fúlvia Cusumano Reis e Nara Marques pela cessão das imagens.

BIBLIOGRAFIA:

ARISTÓTELES, Arte Poética. Trad. Jaime Bruna. Porto Alegre: Ed. Globo, 1966. ARTAUD, A. Le thèâtre et son double. Paris: Gallimard, 1964. BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BORREL, R. (trad.) Bhagavad Gita. São Paulo: Editora três, s/d. BRECHT, B. Escritos sobre teatro. Buenos Aires: Nueva Visión, 1976. CAMUS, A. A comédia. IN: ___. O Mito de Sísifo. Ensaios sobre o absurdo. Lisboa: Edição Livros do Brasil , s/d COBIN, Alain. O encontro dos corpos. In: VIGARELLO, G. (DIR.). História do Corpo. 2. Da revolução à Grande Guerra. Tradução João Batista Kreuch e Jaime Clasen. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009. DUPONT-ROC, R. e LALLOT, J. Aristotele, La Poétique. Texte, traduction, notes. Paris: Éditions du Seuil, 1980. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. LABAKI, Aimar; PEREIRA, Germano. Os Satyros. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LOREAUX, Max. Le peintre, la toile e le corps. In: ____. La peinture à l’oeuvre et l’énigme du corps. Paris: Gallimard, 1980. MALHADAS, D. Tragédia Grega. O mito em cena. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2003. MALLARMÈ, Stéphane. L‟après-midi d‟um faune. Eglogue – 1865-1975. MARQUETTI, F. R. e FUNARI, P. P. A. O falo e o chifre. Uma respresentação do masculino no paleolítico. Dimensões. Revista de História da UFES, n. 26, 2011. http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2578

MEDINA, Clodoaldo Jr. Histórias do TECA – Teatro Experimental de Comédia de Araraquara. São Paulo DBA Artes Gráficas, 2012. NAHOUM-GRAPPE, Véronique. A mulher bela. In: Duby, G & Perrot, M. (dir.) História das Mulheres no Ocidente. Vol. 3. Tradução Maria Helena C. Coelho et al. Porto/ São Paulo: Edições Afrontamento/ EBRADIL,1991. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. PIRES, Beatriz F. O corpo como suporte da arte. São Paulo: SENAC, 2005. RIMANN, J-P. On a touché au corps. Pornographie. Équinoxe – Revue de Sciences Humaines. Nº19, primavera/1998. Suisse: Association Arches. SHAKESPEARE, W. Hamlet. São Paulo, Abril. 1976. VILARIÑO, Idea. Tarde. In: ___. Poesía Completa. Uruguai: Cal y Canto, s/d. WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. WOLFF, F. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In. Novaes, A. (org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: SENAC, 2005.

Sites:

DASCAL, M. Da pele para fora da pele para dentro. http://blog.shopluxo.com.br/dicas-de-beleza/a-historia-do-batom/ http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues. Acesso em novembro de 2012. http://penelopeciadeteatro.blogspot.com.br/p/espetaculos.html. Acesso em 10/11/2012 http://pt.wikipedia.org/wiki/Incelen%C3%A7a Acesso em janeiro de 2013 http://www.armazemciadeteatro.com.br/menu_full.php?b=3&z=10 http://www.satyros.com.br/index.php/noticias/87-em-nova-peca-os-satyros-traduz-osentimento-do-terceiro-milenio. Acesso em 15/11/ 2012 https://www2.dti.ufv.br/danca_teatro/evento/apresentacao/artigos/gt1/miriam.pdf. Acesso em novembro de 2012. https://www2.dti.ufv.br/danca_teatro/evento/apresentacao/artigos/gt1/miriam.pdf. Acesso em 10/11/ 2012.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.