O espetáculo do feio: práticas discursivas e redes de poder no eugenismo de Renato Kehl (1917-1937)

May 23, 2017 | Autor: Pietra Diwan | Categoria: History Of Eugenics, Eugenics, Eugenics and Bioethics
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Pietra Stefania Diwan

O ESPETÁCULO DO FEIO práticas discursivas e redes de poder no eugenismo de Renato Kehl. 1917-1937.

Mestrado – História Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2003

Pietra Stefania Diwan

O ESPETÁCULO DO FEIO práticas discursivas e redes de poder no eugenismo de Renato Kehl. 1917-1937.

Trabalho apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Social, sob orientação da Profª. Drª. Denise Bernuzzi de Sant’Anna.

Banca Examinadora

R ESUMO

Esta pesquisa não é uma biografia de Renato Kehl, médico mais comumente conhecido por ser o grande representante do eugenismo no Brasil. Não se trata também de uma investigação a respeito das relações entre eugenia e educação, eugenia e nação ou eugenia e higiene, grandes vertentes de análise do discurso eugenista. Trata-se principalmente de perceber a rede de relações que compunha a empreitada pela implantação da eugenia no Brasil – seus adeptos, incentivadores e financiadores – assim como de identificar, através dos textos de Renato Kehl, uma minuciosa tentativa de desumanizar o corpo imperfeito, ou seja, dysgenico, relacionando–o à fealdade, anormalidade, monstruosidade e doença. O que nos interessa é não unicamente descrever essa rede de poder tal como ela se apresenta, mas, sobretudo, perceber como ela se constitui historicamente, quais são seus sentidos, as justificativas científicas e morais que as sustentam e os interesses políticos em jogo. Renato Kehl será considerado aqui como um ponto de partida para conhecer as articulações históricas que o transformaram no maior representante do eugenismo brasileiro. Ou seja, partiremos do pressuposto que essa condição de Renato Kehl não é um a priori e sim o resultado de inúmeras relações sociais que trataremos de avaliar tendo como centro de debate a eugenia.

A BSTRACT

This research is not a biography of Renato Kehl, a doctor most commonly known as a major apologist of eugenics in Brazil. It is not either an investigation into the relations between eugenics and education, eugenics and nation, or eugenics and hygiene, common branches of the analyses of the eugenist speech. It is related above all to perceiving the net of relations which made up the endeavor for the implantation of eugenics in Brazil – its adepts, supporters and financiers – and also to identifying, through the texts of Renato Kehl, a minute attempt to de-humanize the imperfect body, or dysgenic, relating it to ugliness, abnormality, monstrosity and disease. What concerns us is not only to describe this net as its shows itself, but, above all, to perceive how it was historically constituted, what its meanings are, the moral and scientific reasons supporting it and the interests involved. Renato Kehl will be considered here as the starting point to know the historical articulations which made him the top representative of Brazilian eugenics. That means we will start from the presupposition that this condition of Renato Kehl is not an a priori, but rather the result of several social relations, which we will try to evaluate having eugenics and the center of the debates.

A GRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a CAPES pelo financiamento desta pesquisa sem a qual não poderia ser realizada. Muitas foram às pessoas e instituições que colaboraram para este trabalho. As pessoas que agradeço aqui nada tem a ver com os equívocos cometidos ao longo do caminho. Primeiramente, à diretora do depto de Obras Raras da Biblioteca Municipal Mário de Andrade pela compreensão no empréstimo do exemplar da Cura da Fealdade para digitalização. Da mesma forma ao CEDIC/PUC, pessoalmente à Ana Célia Navarro e à amiga e colega na História, Clarissa Schmidt, pela intermediação. Às bibliotecárias da Faculdade de Medicina da USP, que mui atenciosamente procuraram os livros Sexo e Civilização e Tipos Vulgares e, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco que gentilmente emprestaram a coleção do Boletim de Eugenia e das Actas e Trabalhos do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia para a eficiente microfilmagem feita pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Agradeço ao Fundo Pessoal Renato Kehl do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, que me recebeu na cidade maravilhosa para descobrir uma série de documentos inéditos sobre Renato Kehl, entre as quais as epístolas enviadas a ele. Agradeço a Ricardo Augusto, colega de primeiros contatos e futuros trabalhos que me apresentou o grupo de Higiene e Eugenismo da Faculdade Estadual de Maringá coordenado pela Profª. Maria Lúcia Boarini, com quem mantive interessantes ‘relações epistolares virtuais’. Ao Marcelo Cid pela revisão pronta e atenta naquele em cima da hora. Ao Eliseu e a Marisa que salvaram minha dissertação quando meu HD pifou. Aos inúmeros colegas da PUC/SP, tanto do curso de graduação como do programa de pós em História, que participaram sempre com críticas e palavras de otimismo durante este percurso: Márcinho, Raquel, Izilda e Sérgio; Daniel, Felipe, Alênio, Andréia, Mirtes. À companheira de luta Karina Poli. 6

Aos professores que me formaram na graduação, especialmente pela dedicação de Antonio Rago Filho pela aula de vida em nossa pesquisa de Iniciação Científica. Aos professores do Programa de Estudos Pós-graduados em História da PUC/SP, em especial, Maria do Rosário Cunha Peixoto e Maurício Broinizi, pelas leituras atentas e por acreditar que este trabalho era possível. Às professoras Luiza Margareth Rago e Olga Brites pelas contribuições durante o exame de qualificação marcado pelo ambiente criterioso mas muito descontraído. À minha orientadora, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, mulher, que deste a graduação me causou fascínio. Obrigada pela serenidade, força e segurança com que conduziu esta inicial e curta viagem pelo eugenismo. Companheira e cúmplice de minhas inseguranças e grande incentivadora de meus vôos mais altos. Um exemplo de dedicação e atenção. Os méritos que este trabalho possa vir a receber devem dirigir-se a você. À minha querida família, a todos vocês obrigada pela paciência em suportar minhas ausências. Minha irmã Giovanna, garota que certamente terá um futuro brilhante e ao meu irmão Filipe, meu grande exemplo de coragem, Avante! No pasarán! Mãe, por sua luta, você é a leoa que guarda e protege seus filhos ‘caducos’, sempre! Vovó, Ya-Yá e Bebé, obrigada. Meu pai, que sempre esteve presente, preocupado e curioso em saber o que afinal estudo. Batalhador, eu sei que você vai conquistar tudo aquilo que te pertence. Às vezes temos que olhar para frente, mirar o futuro! Rosa Maria, o exemplo do otimismo nas situações mais difíceis. Vocês dois me deram uma grande lição. Aos meus seis felinos do coração (Pirulito, Maria Mole, Firdusi, Rapadura, Pinóia e Tigrinho) companheiros de computador nas madrugadas e, de bagunças e carinhos nas horas de lazer. Ao meu amor... companheiro de todas as horas, que segurou minhas ‘barras’ e foi fundamental nesta trajetória. A você, José, que poetiza a vida.

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SUMÁRIO

ABREVIATURAS DOS ACERVOS ............................................................................... 9 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11 CAPÍTULO I – “À CUSTA DE MUITO SABÃO DE CÔCO(...)” ...................................... 29 1.

A Institucionalização da Rede................................................................. 29

2.

Tupy or for Tupy?.................................................................................... 57

CAPÍTULO 2 – BASTIDORES EUGÊNICOS ................................................................ 77 1.

“Relações Epistolares “ ........................................................................... 77

2.

“O Choque das Raças” ......................................................................... 110

CAPÍTULO 3 – O ESPETÁCULO DO FEIO ............................................................... 138 1.

Os Caminhos da Desumanização ........................................................ 138

2.

Isso é feio! Que triste... ........................................................................ 150

3.

“A Cura da Fealdade” ........................................................................... 162

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 176 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 181 1.

Artigos, Livros, Dissertações e Teses................................................... 181

2.

Obras de Referência ............................................................................. 190

3.

Filmografia Recomendada .................................................................... 190

4.

Sites ...................................................................................................... 192

A BREVIATURAS DOS A CERVOS

Estarão inscritas as abreviaturas ao final da primeira citação completa nas notas de rodapé, indicando a que acervo pertence tal documento.



Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP – FDR



Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP – FMD



Fundo Pessoal Renato Kehl, Departamento de Arquivo e Documentação

da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, RJ – FOC −

Biblioteca Municipal Mário de Andrade – BMA



Coleção Particular - CP

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I NTRODUÇÃO

Eva nasceu. Em dezembro de 2002 o mundo se surpreendeu com a notícia de que o primeiro bebê-clone havia nascido. Era uma menina, Eva, cujo nascimento foi anunciado por Brigitte Boisseller, geneticista de uma seita religiosa1 que acredita que o homem foi feito por cientistas de outro planeta. A notícia foi recebida com descrédito pela comunidade científica. Pensar nos avanços médicos ocorridos nos últimos anos é ver algo mais, além de uma tentativa de criar novas tecnologias para melhorar a vida e a saúde humana. Desde 1994, através de um pool de laboratórios, vem se desenvolvendo uma corrida pela leitura do DNA humano. Primeiramente, pequenos insetos e animais foram estudados, e finalmente, após oito anos, o Projeto Genoma Humano2 mostrava ao mundo que somos, fundamentalmente, uma cadeia espiral de 3 bilhões de genes encadeados. De acordo com os cientistas que participam do Projeto, a descoberta desse código da vida ajudará a evitar doenças congênitas, além de possibilitar a modificação das cadeias de DNA a fim de corrigir possíveis falhas genéticas.3 Enquanto isso a saúde vem se transformando num produto comercializável. Saúde significa comprar medicamentos de última geração, fórmulas diferentes para novos modos de viver, métodos de movimentação corporal, exercícios físicos e uma gama variada de serviços e técnicas para o bem-estar físico. O corpo saudável

1

Essa seita é conhecida como raelianos. Liderados pelo ex-jornalista esportivo Claude Vorillon (autodenominado Rael), os raelianos, acreditam que o homem é uma criação extraterrestre, e desenvolveram pequenos aparelhos de “fusão gênica” que são vendidos pelo site do grupo na internet por cerca de 10 mil dólares. Para saber mais, ver o site The Raelian Revolution: http://www.rael.org.int. Acesso em 23/03/2003. 2

Para saber mais sobre as implicações sociais e os interesses em torno dos problemas éticos envolvidos na decodificação do DNA humano, ver WILKIE, Tom. Projeto Genoma Humano: um conhecimento perigoso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994; e ver site sobre o debate e as implicações éticas deste projeto em: http://www.nhgri.nih.gov. Acesso em 25/03/2003. 3

“DNA, o guardião do segredo da vida, começa a falar”. Jornal O Estado de São Paulo, 27 de fevereiro de 2003. http://www.estadao.com.br/magazine/materias/2003/fev/27/316.htm. Acesso em 25/03/2003.

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adquiriu um valor de mercado na sociedade capitalista; na qual tudo se passa como se quanto mais se adquire saúde, mais sucesso se tem! Da mesma forma, a beleza tornou-se uma mercadoria. Ela é um atributo da saúde conquistada com esforço, dedicação ou altas contas em clínicas estéticas. Nessas clínicas – há uma em cada esquina – mais e mais pessoas enfileiram-se em busca da perfeição corporal. Na imprensa brasileira pode-se ler diversas matérias que fazem referência à importância de se ter saúde e ser belo. Em outubro de 2002, a capa de uma revista de grande circulação estampa a manchete “A Popularização da Beleza”,4 registrando que as clínicas de beleza e os tratamentos estéticos pululam na cidade de São Paulo. Homens e mulheres em busca da perfeição corporal são espetados por agulhas, queimados por raios laser, besuntados e massageados com cremes, pagando porém preços menores do que aqueles cobrados por cirurgiões plásticos. A tentativa de se obter uma boa aparência, ou o “corpo perfeito”, vincula-se não somente à auto-estima: o sucesso pessoal e a perspectiva de um novo emprego estão ligados à boa aparência, como afirma a matéria “A Ditadura das Aparências”.5 Segundo uma estatística, os alunos belos podem ter notas maiores em até 40% do que seus colegas “feios”, assim como os bebês mais bonitos despertam mais a ternura dos adultos.6 De acordo com Amadieu, as relações sociais são condicionadas pelas aparências. Com a crescente valorização da boa forma física e a exposição do corpo considerado jovem, o espartilho que se usava na década de 1920 está, agora, “dentro de cada um” e, o que era preocupação estética e cosmética exclusiva da mulher7 transformou-se numa preocupação médica para ambos os sexos. Cada vez

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Maria Rita Alonso. Botox, choquinhos, laser e muito mais. In: Revista Veja São Paulo, ano 35, nº 42, 23 de outubro de 2002, pp.12-16. 5

Luis Pellegrini. A Ditadura das Aparências. In: Revista Planeta, ano 31, nº 3, março de 2003, pp. 24-29. 6

Essas afirmações são baseadas num estudo feito por Jean François Amadieu, sociólogo que lançou na França o livro O Peso das Aparências. In: A Ditadura das Aparências, Op. cit. 7

Para saber mais sobre os significados do embelezamento feminino durante o século XX no Brasil, ver o completo e minucioso trabalho de: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté. Une contribution à l’histoire des pratiques et des representations de l’embellissement féminin au Brésil – 1900 à 1980. Tese de Doutorado. História e Civilizações. Universidade de Paris VII. Paris: 1994.

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mais a estética se especializa, e profissionais os mais diversos são requeridos dentro de clínicas. Não se trata unicamente de ir ao salão de beleza, mas à clínica dentro do qual as referências médicas imperam e a atmosfera hospitalar é recorrente, como se todos vestissem branco para cuidar da aparência. No mundo moderno – ou pós-moderno? – devemos8 ser belos, magros, ter cabelos lisos, ter pouco pêlo, enfim, devemos parecer ‘naturais’ diante do espelho, de nós mesmos e dos outros. E, para conquistar mais saúde, juventude e beleza os caminhos científicos e industriais não cessam de se multiplicar; principalmente depois do advento da revolução que casou a informática com a genética em meados dos anos 70, resultando em seres transgênicos e em produtos e técnicas outrora inimagináveis. Dolly foi sacrificada. Em 5 de julho de 1996 o animal nasceu em Edimburgo, na Escócia, mas o fato só foi divulgado em 1997. Dolly era uma ovelha e o primeiro animal clonado a partir da célula adulta de um mamífero. Embora com aparência normal, Dolly nasceu com diversas anomalias cromossômicas. Sofria de envelhecimento precoce; à sua verdadeira idade deveria se somar a da ovelha de 6 anos da qual se retirou a célula mamária que lhe deu origem. Assim, Dolly foi sacrificada 6 anos após seu nascimento, por sofrer de uma doença degenerativa. O fato questiona a própria eficiência da clonagem. De fato, centenas de animais já foram clonados e todos apresentaram más-formações genéticas e físicas.9 No Japão, cientistas criam uma mistura de porco com espinafre10. A inserção de genes de espinafre em suínos tem por objetivo produzir uma carne menos gordurosa e mais saudável. Mas os cientistas consideram que ainda é cedo para dizer se essa carne é tão saudável quanto o espinafre.

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O termo devemos é usado com a conotação de dever, como se fosse um dever cívico individual que deve ser prestado por todos. Dessa forma, ser feio representa atentar contra a civilidade, contra o coletivo, já que os tratamentos estéticos estão tão popularizados. 9

Sacrificada Dolly, o primeiro clone. (AFP) Jornal O Estado de São Paulo, 15 de fevereiro de 2003. http://www.estado.estadao.com.br/editoriais/2003/02/15/ger014.htm. Acesso em 25/03/2003. 10

Matéria divulgada pela agência alemã de notícias Reuters em 24 de janeiro de 2002 e publicada na internet, na página do jornal Popular – um jornal on-line de notícias bizarras – no site: http://www.terra.com.br/noticias/popular/2002/01/24/005.htm. Acesso em 24/01/2002.

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Ocasionalmente folheando uma revista médica11, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, encontrei o anúncio de uma empresa de fibras óticas produtora de equipamentos para microscópios que possibilitam a criação de animais transgênicos. Trata-se das agulhas que perfuram óvulos estéreis, para a inserção de DNA alheio, que freqüentemente vemos na televisão quando se mostra qualquer experiência de clonagem ou transgenia. Em página branca estão dispostos dois camundongos idênticos, um acima da página e outro abaixo. Sob os dois, a seguinte legenda, em inglês: Produto da natureza e Produto da PiezoDrill. O que isso significa? Que o primeiro é produto da natureza e o outro é um clone para fins de experimentação médica? Ademais, recebemos essa notícia com alívio ou angústia? – Que bom... a partir de agora os camundongos gerados pela natureza serão poupados e só os clones serão usados na experimentação de novas drogas, terão chips implantados em seus cérebros e após a aplicação de um medicamento novo serão observados até morrerem, para que os cientistas possam saber qual é a capacidade de resistência dos animais clonados à dor, à doença e ao sofrimento. Mas afinal, os clones têm alma? Ou clones humanos têm e os clones de camundongos não? Eles podem sofrer? Até que ponto se pode manipular o corpo animal e humano? Quais são os limites éticos da experimentação médica? Há uma desumanização do homem, ao querer fazer a clonagem, ou haveria uma humanização do clone? Ou nenhuma dessas duas possibilidades? Qual a diferença entre o corpo do animal e o corpo humano? O humano tem racionalidade, o animal não? Estaremos aptos a responder essas perguntas? Este trabalho não objetiva respondê-las, mas expor algumas das inquietações do presente que nos fazem voltar ao passado. Clonagem,

transgênicos,

saúde,

beleza

são

palavras

que

circulam

diariamente pelas páginas dos jornais e pelos canais de televisão. São termos que fazem parte de nossas vidas e cuja historicidade, no entanto, pouco conhecemos. Afinal, por que hoje faz tanto sentido olhar os rótulos dos alimentos, ser ou não

11

Anúncio da empresa norte-americana Burleigh que pode ser conhecida no http://www.burleigh.com/piezodrill. Anúncio publicado na Revista Cell, Vol. 100, nº 4, 2000.

site:

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contrário à plantação, comercialização e importação do milho transgênico12 no Brasil? Bruno Latour chamou esse processo de proliferação dos híbridos,

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seres

ou coisas que são um mix de natureza e cultura que acabam por se sobrepor àquilo que durante muito tempo o mundo ocidental – do norte! – procurou fazer: segmentar a vida, separar tudo em compartimentos. Fatos, poder e discurso.14 Já não é mais possível ao ocidental ler o mundo segmentado. O mundo agora está disposto em forma de rede, articulando ao mesmo tempo diversas dimensões da vida numa universalidade multicultural sopreposta. Atravessa o campo da representação, da linguagem e dos textos. Neste sentido, fazer um pequeno retrospecto dessa história do presente contribui para identificar algumas das motivações principais para a elaboração desta dissertação. Contemplando os anos de 1920 e 1930 no Brasil pode-se entender como é possível, hoje, pensar questões relacionadas à idéia de saúde e bem-estar, aliadas aos ideais estéticos. Além disso, há a importância de se perceber que ali estão localizadas informações relevantes para identificar de que maneira são formadas as redes de poder15 e de que maneira elas extrapolam muitas vezes a pretensa sacralidade dos laboratórios médicos e científicos. Apesar da rede de poder que aqui será objeto de investigação, a multiplicidade e as singularidades da vida, acredita-se, podem compor de modo criativo e ético experiências com menos dominação e arrogância, com menos segregação e mais tolerâncias, com menos divergências e mais consensos. Talvez para fazer passar os passados que não passam...

12

Atualmente apresenta-se uma polêmica no governo brasileiro sobre a importação do milho transgênico norte-americano, que foi impedido de entrar no Brasil pelo Ministério da Agricultura e pelo Departamento de Defesa e Inspeção Vegetal. As autoridades constataram que tal milho era oriundo de terras que não estavam livres de uma erva daninha (Striga spp) e que não possuía o certificado necessário. O governo brasileiro ordenou a queimada de todo o milho que adentrou ilegalmente pelo porto de Itajaí, SC, por crer que ofereceria risco ao meio-ambiente. Se, por um lado, a importação é proibida, por outro a empresa Monsanto implantou no Brasil (em Sorriso, MT) uma estação de pesquisa de melhoramento da soja, ou seja, da soja transgênica. Para saber mais ver: http://www.ibps.com.br. Acesso em 25/03/2003. 13

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 1994, p.7-8.

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Idem, p. 12.

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* * * Somos uma semente, que brota, nasce, cresce e morre. Deixamos novas sementes que serão nossos descendentes, e o ciclo se repete. Herança, descendência, continuidade. Fazendo a transposição da vida para a árvore é possível encontrar essa noção de circularidade. Vens do pó e ao pó tornarás, como afirmam a Bíblia, a doutrina da reencarnação e o espiritismo. Esse paradigma16 está tão enraizado na formação individual no Ocidente que é quase improvável vislumbrar outra possibilidade de entendimento da vida. A árvore possui raízes, troncos, galhos e folhas. Cada uma das suas partes carrega significado e sentido. As raízes sempre são utilizadas para construir a imagem de tradição, memória e história. O tronco da árvore tem a função de encaminhar os sais minerais extraídos da terra pelas raízes, a fim de lançá-los aos galhos e destes criarem as folhas, que serão ‘alimentadas’ também pela luz solar e pelo oxigênio, dois componentes fundamentais para a sobrevivência da árvore ou de qualquer ser vivo. Lembramos que a luz do sol e o oxigênio são elementos externos, e podemos até ousar um pouco, dizendo que fazem parte do meio, do que é externo à árvore. As folhas, por fim, são ‘o rosto da árvore’, pois sabemos sobre sua saúde ao constatar sua aparência verde e firme. São as folhas que interagem principalmente com o meio exterior. O mesmo acontece com a eugenia. Uma árvore frondosa, repleta de galhos e folhas. Seu tronco é firme e grande. Nas raízes estão as disciplinas que contribuem para dar solidez e estrutura à eugenia. Na imagem da árvore da eugenia, indiretamente, percebe-se que suas “raízes” querem dizer alguma coisa que não está dita à primeira vista. Genética, antropologia, estatística, genealogia, biografia, medicina, psiquiatria, cirurgia, economia, leis e testes mentais figuram entre as

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Entende-se por rede de poder as conexões entre governo, empresas e mídia perpassados por interesses pessoais, econômicos, culturais, etc., com a finalidade de dominação de um grupo sobre outro. 16

Incorpora-se aqui o termo paradigma utilizado por Thomas Kuhn. “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilha e, inversamente, uma comunidade científica consiste de homens que partilham um paradigma”. Diversas vezes utilizaremos essa terminologia, ora para designar o partilhamento de idéias no interior da comunidade científica ou da sociedade civil, In: KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 219.

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disciplinas dispostas nas raízes dessa árvore eugênica. Aí estão as ciências que necessitam, de uma maneira ou de outra, da planificação dos dados, do esquadrinhamento, da categorização e da experiência empírica, para comprovar seus dados, as conhecidas ciências objetivas. Ao falar da árvore da eugenia, é possível remeter o leitor à imagem encontrada no livro Sexo e Civilização17, de Renato Kehl, com os seguintes dizeres em inglês: “Like a tree, eugenics draws its materials from many sources, organizes them into an harmonious entity”18, e o título: “Eugenics is the self direction of human evolution”19. Pode-se visualizar o objetivo primordial da eugenia: evoluir a espécie humana. Na busca de mais dados sobre essa imagem, encontrei o site do Eugenics Archive, mantido pelo Cold Spring Harbour Laboratory, Nova Iorque, Estados Unidos20. Trata-se de um site com diversos documentos sobre a eugenia norteamericana. Essa Eugenics tree logo21 foi exibida na 3ª Conferência Internacional de Eugenia, realizada no ano de 1932, nos Estados Unidos, que contou com a presença de Renato Kehl. Com o olhar de historiadora, lancei-me a observar se a História estava lá. Em meio a 24 diferentes disciplinas, emaranhadas raízes, umas maiores e mais grossas, outras menores e mais finas, encontrei-a. À História é reservado o local entre a geologia22 e a antropometria23, ou seja, uma sub-rama que parte da geologia e desencadearia na antropometria, sem, portanto, ligar-se a esta última.

17

KEHL, Renato Ferraz. Sexo e Civilização. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1933, pág. 265. FMD 18

“Da mesma forma que a árvore, a eugenia extrai seus materiais de muitas fontes e organiza-as numa entidade harmoniosa”. 19

“Eugenia é o próprio sentido da evolução humana”.

20

O Eugenics Archive possui um acervo eletrônico de documentos sobre o eugenismo nos Estados Unidos. Toda a documentação está acessível e em alta resolução. Ver: http://www.eugenicsarchive.org. Acesso em 13/12/2001. 21

Como a imagem é chamada pelo Eugenics Archive e pelo livro de Renato Kehl.

22

Ciência cujo objeto é o estudo da origem, da formação e das sucessivas transformações do globo terrestre, e da evolução do seu mundo orgânico, de acordo com Novo Aurélio Século XXI: dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 2001.

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Tendo em mente que essa árvore reflete uma sociedade ideal, a História desempenha então papel secundário, já que outras disciplinas ocupam lugar de maior destaque na árvore. Essa árvore contém em si a concepção geral de eugenia. O conhecimento científico se sobrepõe à experiência humana, as relações sociais determinadas pela história cumprem um pequeno papel. É através das várias disciplinas descritas nessa grande árvore que se pode conhecer e conduzir a vida, a experiência e a história. As folhas, que na árvore que conhecemos anteriormente são o rosto, podem ser também, nesse caso, o corpo. Folhas verdes, corpos saudáveis, eugênicos. * * * Este trabalho tem como finalidade problematizar alguns aspectos deste paradigma da árvore como modo de representação da vida, entendido aqui como representação de um ideal de melhoria da raça brasileira, como proposta por Renato Kehl e vários adeptos, e que se constituiu de modo arborescente. Arborescente, pois usando a metáfora da árvore encontra-se a tentativa de construir um conhecimento hierarquizado com um ponto fixo – a base e suas raízes – genealógico24 e que pretende ser Uno, ascendente. Como modo de representação, a árvore é a projeção de uma sociedade utópica, ideal, por ser universalizante e homogeneizadora. No entanto, como poderá ser visto, a árvore, enquanto modo de representação da sociedade, não deixará de funcionar também e, sobretudo, em forma de rede. Não uma rede rizomática tramada pelas potências de vida, mas, muito mais, uma rede de poder, com formas de dominação e de exclusão por vezes sutis e por vezes bastante evidentes. Na verdade, esta rede de poder que deriva e caracteriza a árvore da eugenia sugere os contatos de Kehl, nosso vetor indicativo.

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Processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes, de acordo com Novo Aurélio Século XXI, op. cit.. 24

Genealógico no sentido atribuído pelo dicionário Novo Aurélio Século XXI, op. cit.. Genealógico/genealogia: 1. Lista, enumeração ou diagrama com os nomes dos antepassados de um indivíduo e a indicação dos casamentos e das sucessivas gerações que o ligam a um ou mais ancestrais; 2. O conjunto ou série desses antepassados; 3. Estirpe, linhagem.

18

Essa rede embora pretenda ser a-histórica e Una, é histórica e diversificada. Com a proposta de identificar as alianças, as formas de visibilidade e de publicidade, poderá ser visto que em seu interior há relações entre poderes público e privado, relações entre o Brasil e o exterior, entre médicos e muitos outros profissionais. Ela expressa aquilo que é preciso destacar sobre o tema aqui pesquisado: a consolidação de um eugenismo sui generis no Brasil, em relação ao resto da América Latina, principalmente devido à resistência por parte da Igreja Católica em adotar seus preceitos. Na verdade, o eugenismo no Brasil tinha a especificidade de se auto-intitular anti-racista.25 Entre suas principais preocupações estavam o nacionalismo e o problema da imigração. Nesse interior, havia uma intensa disputa pelos cuidados com o corpo, incluindo Medicina, Estado e Igreja. O eixo central em torno do problema brasileiro sobre “emergência da população” também faz parte desta rede de poder. A preocupação da comunidade médico-científica com os fenômenos ligados à população, tais como, as epidemias, a miséria e o trabalho industrial, gerará novas estratégias para tratar do corpo. Associadas às tecnologias já aplicadas em outros locais do mundo, elas chegaram ao Brasil através da divulgação de associações e grupos de eugenistas internacionais. Trata-se de investir no corpo individual, de estimular a ingerência policial e médica na vida conjugal e sexual de cada um. Essa intervenção tende a ser feita com o apoio do discurso médico, que a partir de então transporta a sexualidade e o corpo individual para o campo da ciência e muitos dos preceitos desta para dentro da intimidade doméstica de cada núcleo familiar. Cria-se uma política científica, que pensará os ‘males do corpo’ e suas soluções. A eugenia nasce no interior desse problema. Assim, a rede de poder mencionada ajudará na visualização desses interventores. Ela dará conta de mostrar a multiplicidade de idéias e de adeptos da eugenia, sem sub ou sobrevalorizar Renato Kehl, pois ele é parte desta rede eugênica que se instala em São Paulo e Rio de Janeiro, e não o seu único autor apesar de seus esforços para assim parecer que seria. Esta rede não é, portanto,

25

STEPAN, Nancy Leys. The Hour of Eugenics: race, gender and nations in Latin America. Ithaca e Londres: Cornell University Press, 1991, p.152.

19

rizomática. Ela é parte da própria constituição arborescente proposta pelos eugenistas, em que as relações de poder são estabelecidas entre aqueles interlocutores interessados por essa proposta. Sua constituição seria similar àquilo que Deleuze e Guattari chamaram de segmentaridade arborificada. Nesse caso, como assinalou Deleuze e Guattari, o centralizado não se opõe ao segmentário, e os círculos permanecem distintos. Mas eles podem se tornar concêntricos e definitivamente arborificados (...) O rosto do pai, do professor, do coronel, do patrão se põem a redundar, remetendo a um centro de significância que percorre os diversos círculos e repassa por todos os segmentos.26 Assim, não se têm diversos olhos no céu – como afirmou Deleuze e Guattari –, mas sim um olho central computador, que varre todos os raios. Dessa forma

caracterizam-se

os

Estados

modernos

como

segmentaridades

arborificadas.27 Como exemplo, os autores afirmam que o nazismo se tornou possível com a organização de microorganizações que lhe davam um meio incomparável, insubstituível, de penetrar em todas as células da sociedade. Desse modo, essa potência micropolítica ou molecular torna o fascismo perigoso, porque é um movimento de massa: um corpo canceroso, mais que um organismo totalitário.28 Nesse sentido, utilizar nesta dissertação os conceitos de árvore e rede é obedecer a uma lógica descrita por Deleuze e Guattari, em que um movimento pode ser centralizado e rotacional e ao mesmo tempo repleto de segmentaridades e microfascismos, que acabam por redundar na centralidade inicial, ou, nas palavras dos autores, num grande buraco negro. Esses dois conceitos, portanto, não são conflitantes, na medida em que rede, aqui, não corresponde a rizoma também descrito por Deleuze e Guattari.29 Assim,

26

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1933: Micropolítica e segmetaridade. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999 (2ª Edição), p.83-115. 27

Idem, p.89.

28

Idem, p.92. Também no livro Revolução Molecular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985; Félix Guattari faz menção à esta espécie de rede de poder referente ao nazismo. 29

DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995, p.11-38.

20

um faz parte do outro (árvore – rede) e ambas possibilitam a emergência do eugenismo por meio de organizações, contatos e interesses diversos – baseados nas teorias biologizantes – que, somados, caem num ponto de acumulação. No entanto, quando remetemos para o plano molar da eugenia utilizamos também o conceito de braço para identificar as segmentaridades desse eugenismo: alienismo, higiene, educação, educação física, educação sexual, legislação, genética, imigração, cruzamentos, etc. Tais braços trabalham em prol de uma mesma idéia: o melhoramento do povo brasileiro. Desse modo, esta pesquisa não é uma biografia de Renato Kehl, médico comumente mais conhecido por ser o grande representante do eugenismo no Brasil. Não se trata também de uma investigação a respeito das relações entre eugenia e educação, eugenia e nação ou eugenia e higiene, grandes vertentes de análise do discurso eugenista.30 Trata-se, principalmente, de perceber a rede de relações que compunha a empreitada pela implantação da eugenia no Brasil – seus adeptos, incentivadores e financiadores – assim como de identificar, nos textos de Renato Kehl, sua minuciosa tentativa de desumanizar o corpo imperfeito, ou dysgenico,31 relacionando–o à fealdade, anormalidade, monstruosidade e doença. O que interessa neste trabalho é não unicamente descrever essa rede de poder tal como ela se apresenta, mas, sobretudo, perceber como ela se constitui historicamente, quais são seus sentidos, as justificativas científicas e morais que as sustentam e os interesses políticos em jogo. Renato Kehl será considerado aqui como o ponto de partida para conhecer as articulações históricas que o

30

Entre algumas delas estão: MARQUES, Vera Regina Beltrão. Eugenia e Disciplina: o discurso médico pedagógico nos anos 20. Mestrado em Educação, Campinas/Unicamp, 1992 ; ROMERO, Marisa. Do Bom Cidadão: as normas médicas em São Paulo: 1889-1930. Dissertação de mestrado. FFLCH/USP, 1995. Orientação Profª Drª Laura de Mello e Souza ; LUCA, T.R.de. A Revista do Brasil: Um diálogo para a (N)ação. São Paulo: Editora Unesp, 1999 ; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia. das Letras, 1993 e NALLI, M.A.G. O gene educado : a antropologia eugênica de Renato Kehl e a educação. Dissertação de mestrado. UEM, Maringá, 2000. Orientação Prfª Drª Maria Lúcia Boarini.; SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Editores Associados, 2001. 31

Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl para designar aqueles que não se enquadram nos padrões físicos, morais e intelectuais previstos pela eugenia. Disgenia: condição do caráter que resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. Encontrado em: Novo Aurélio Século XXI: op. cit.

21

transformaram no maior representante do eugenismo brasileiro. Partiremos do pressuposto de que esta condição de Renato Kehl não é um a priori, e sim o resultado de inúmeras relações sociais que trataremos de avaliar, tendo como centro de debate a eugenia. Nesse sentido, este trabalho objetiva perceber como foi possível Renato Kehl ter se transformado num dos principais, senão no principal, representante e autor das idéias eugênicas no Brasil. Assim, além de conhecer Kehl, torna-se uma proposta tão atraente quanto desafiadora saber quem compunha a rede de poder do eugenismo. O conceito de rede de poder, aqui utilizado várias vezes, foi constituído também graças à inspiração vinda de textos diferentes, entre elas aquelas de Bruno Latour e Michel Foucault. Este último, por exemplo, define a rede da seguinte forma: o poder se exerce em rede e, nessa rede não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Mas esse poder não é uma espécie de distribuição democrática ou anárquica através do corpo.32 Aliado a este conceito pensa-se a rede transformando homens de carne e osso em autoridades,33 como afirmou Bruno Latour. Seria, portanto, o caso de indagar como se tornou possível a criação do campo da eugenia, através da atuação de Renato Kehl – percebendo suas relações de poder com a comunidade médico-científica34 e a classe dominante35, motivando

32

FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 35-36.

33

LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora da Unesp, 2000, p.81. 34

Por comunidade médico-científica entende-se os membros que pertencem diretamente a institutos de pesquisa e de medicina, tão comuns nas primeiras décadas do século XX, tais como, Faculdades de Medicina, Institutos de Higiene e Eugenia e Ligas de Saneamento e Psiquiatria, entre outras, levando-se em conta que esses membros estavam na maior parte das vezes envolvidos em outras atividades não institucionais: escreviam para jornais, possuíam fazendas, comércio, etc. 35

Entende-se por classe dominante o grupo econômico e político que se formou após a Proclamação da República em 1889, e que comandou os mais diversos setores da vida nacional. Constituída por jornalistas, advogados, médicos, intelectuais, fazendeiros e donos de indústrias constituídas a partir da consolidação da agricultura exportadora do café e proprietários de comércios na região urbana. Muitas dessas pessoas pertenciam também à categoria anterior, de forma que não podemos generalizar e “algemar” esses grupos.

22

seus membros a participarem da empreitada pela eugenia – possibilitando o desenvolvimento de um novo campo de saber36? Assim, trata-se de investigar, nessa dissertação, como o eugenismo constitui (e é constituído) de uma história que envolveu disputas entre médicos e profissionais do Direito, entre profissionais de saúde, e entre estes e outras instituições, tais como a Igreja, o Estado e a indústria. Assim, investigar a eugenia é também, em grande medida, retornar à história da saúde pública e da higiene, em particular nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, tentando compreender como o discurso eugênico influenciou os discursos científicos, tornando-se, muitas vezes, o pivô de disputas entre medicina e higiene que estiveram por diversos momentos da história do início do século XX aliados de acordo com seus interesses. Nesse aspecto, o estudo da eugenia, representa, ainda, adentrar na história da medicina para entender os estudos contemporâneos sobre a ética na manipulação dos genes e os riscos da emergência de um neoeugenismo37 pautado na terapia gênica, na seleção de fetos perfeitos e na eliminação daqueles considerados inaptos. Ora, de acordo com Bruno Latour, “A construção do fato é um processo tão coletivo que uma pessoa sozinha constrói só sonhos, alegações e sentimentos e não fatos”.38 É dessa coletividade que se partirá como prerrogativa para objeto de estudo desta dissertação: o eugenismo e Renato Kehl. Assim, voltamos a insistir, este trabalho não trata exclusivamente de entender a trajetória de Renato Kehl, nem tampouco de fazer uma genealogia do eugenismo no Brasil. Tenta historicizar o sentido de sua produção, tendo em vista principalmente a rede de relações que tornou possível hoje lembrar que Renato Kehl é o mais importante eugenista brasileiro. Identificou-se diversas conexões deste personagem com escritores, jornalistas e médicos bastante conhecidos na época e que se perpetuaram por suas

36

A expressão campo de saber é aqui incorporada baseada na leitura de Michel Foucault, em que teoria e prática não são dois campos distintos, mas a teoria é prática. In, FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 71. 37

Para conhecer mais sobre o neoeugenismo ver na internet diversos sites sobre o assunto. Dentre eles: http://home.att.net/~dysgenics/eug.htm e http://www.wcotc.com/euvolution/euvolution, este último prega o nascimento de uma nova raça. Acesso em 25/03/2003.

23

atuações em diversas áreas. Várias referências que situam esses pensadores serão mencionadas em notas, as quais servirão, em certa medida, como um hipertexto de informações sobre a eugenia. Além disso, a amnésia39 do termo eugenia foi motivo de grande controvérsia após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele foi associado ao regime totalitário representado pelo nazismo, fascismo e comunismo, o qual usou das doutrinas eugenistas para afirmar seu poder pelas práticas de eliminação de judeus, ciganos, homossexuais, entre outros. No caso brasileiro, essa amnésia produzida historicamente dificulta a construção crítica da nossa história. Sem a intenção de julgar (absolver ou condenar) Renato Kehl, afirmo, de modo diferente ao que se lê na carta de Toledo Piza Junior40, que diz: A verdade é que você [Renato Kehl] está sempre só, ou como Monteiro Lobato41 escreveu: Dás-me a impressão de um D. Quixote scientífico, com todo o nobre enthusiasmo do manchego mas sem a loucura delle a pregar para uma legião de Panças. Ou seja, tentar perceber Kehl a partir do que é dele, e também distribuir as responsabilidades com todos aqueles que partilharam e participaram de fato dos Congressos com palestras e conferências, dando espaço em páginas de jornais e revistas, políticos que apresentaram projetos inspirados nessas doutrinas ou os próprios eugenistas que disseminaram em diversos setores sociais tais idéias. Recusamo-nos a esquecer ou apagar. Este trabalho é também um esforço para recuperar a memória daqueles que esqueceram.

38

LATOUR, Bruno. Op. cit., p. 70.

39

Amnésia foi o termo usado por Pichot para designar o ‘esquecimento voluntário’ sobre a importância da eugenia no desenvolvimento da biologia e medicina moderna por sua vinculação com as ações genocidas praticadadas na 2ª Guerra Mundial. PICHOT, A. O Eugenismo: genetistas apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, p. 71-96. 40

O Professor Salvador de Toledo Piza Junior pertenceu à Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ) na Universidade de São Paulo. Carta de 19/11/1937. Cartas Avulsas. FOC 41

Monteiro Lobato, escritor e amigo pessoal de Renato Kehl. Carta escrita em Nova Iorque em 9/10/1929. Livro de Autógrafos I (1912-1929). FOC

24

Esta pesquisa foi realizada a partir de extenso levantamento de fontes em diversos acervos e bibliotecas42, das quais destaca-se o Centro de Documentação da Fiocruz, no Rio de Janeiro, e a Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, por ali constar parte mais significativa da documentação. O corpus documental abarca a produção escrita e publicada por Renato Kehl. São livros, artigos de jornais, pequenos suplementos propagandísticos sobre a eugenia. Dentro de sua vasta produção, foram eleitos alguns livros, que mais correspondiam aos interesses da pesquisa. Podem ser destacados: Lições de Eugenia, Sexo e Civilização, Cura da Fealdade, Formulário da Belleza e Conduta. Entre outras publicações, pode-se destacar o Boletim de Eugenia, editado por Kehl entre 1929-1931, além de pequenos suplementos e matérias, como os da Revista Terapêutica. Foram usados também atas, estatutos e textos avulsos de Kehl relacionados à Sociedade Eugênica de São Paulo e à Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE). Além disso, encontrou-se um número considerável de correspondências inéditas endereçadas a Kehl no período de 1919-1944, que serão úteis para desenvolver a rede de relações de Renato de dentro de seu gabinete. Paradoxalmente, uma das grandes dificuldades na execução desta pesquisa está no excesso de fontes encontradas. As possibilidades de análise que se apresentaram foram inúmeras. Por isso mesmo, diversos trabalhos poderão ser desenvolvidos e devem ser incentivados, uma vez que a documentação mostrou-se de grande relevância para aqueles que se interessam pela história do corpo e da sexualidade, das ciências e das técnicas, assim como da saúde pública no Brasil. Localizado espacialmente no eixo Rio-São Paulo, este trabalho pretende acompanhar o pensamento eugênico de Kehl como sendo o irradiador ou senão o interlocutor das questões relacionadas ao corpo apto. Acredita-se na necessidade de percorrer a produção literária de Kehl, onde quer que ela se dê. Portanto, São

42

Entre as bibliotecas e acervos visitados pode-se destacar: Biblioteca da Faculdade de Medicina/USP, Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco/USP, Biblioteca Municipal Mário de Andrade, Arquivo do Estado de São Paulo, Centro de Documentação/Fiocruz/RJ.

25

Paulo e Rio de Janeiro serão os locais privilegiados para mapear a rede de Renato Kehl. O trabalho está delimitado temporalmente entre 1917 e 1937. Primeiramente, 1917, por se tratar da primeira vez que Kehl se pronuncia publicamente sobre o tema da eugenia na Associação Cristã de Moços de São Paulo. O ano de 1937, por ser quando a cruzada eugênica completa 20 anos, com a publicação de Por que sou eugenista? 20 Anos de Campanha Eugênica43. Para complementar lacunas e acrescentar dados relevantes, esse marco temporal oscilará para frente ou para trás, mas tomando como recorte principal o período destacado. Desta forma, o primeiro capítulo desta dissertação tratará da relação institucional e pública de Renato Kehl e seus adeptos a fim de iniciar a traçar parte da rede proposta. Intitulado “A custa de muito sabão de côco(...)”, está dividido em dois itens. O primeiro, A Institucionalização da rede, pensa a trajetória institucional da eugenia no Brasil, mostrando seus ideólogos, financiadores e incentivadores. Tupy or for Tupy? é o título do segundo item desse capítulo. Com a intenção de identificar as relações entre eugenistas brasileiros e estrangeiros encontramos em Kehl um respeitável publicista44 da eugenia na comunidade internacional. Transpondo a discussão institucional e pública do primeiro capítulo para o âmbito do privado e íntimo, serão mostradas as correspondências recebidas por Kehl, em que figuram nomes ilustres da intelectualidade brasileira, como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, entre outros. Bastidores Eugênicos também está dividido em duas partes, a primeira, “Relações Epistolares”, mostra as relações entre Renato Kehl e aqueles que estavam vinculados com a eugenia, mostrando sua atividade intensa na divulgação de seu trabalho, seja entre amigos ou entre colegas de profissão. Os temas paralelos são desvelados; elogios, desavenças e interesses estão expressos nas cartas entre aqueles interlocutores que construíram suas caixas-pretas. Surpreendente foi encontrar entre tantas cartas que ainda não haviam

sido

objeto

de

investigação

histórica,

um

bloco

de

dezesseis

43

KEHL, Renato. Por que sou eugenista? 20 Anos de Campanha Eugênica. 1917-1937. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937. BMA

26

correspondências que necessitaram ser tratadas separadamente. Trata-se de “O Choque das Raças”: o segundo item desse capítulo. Renato Kehl e Monteiro Lobato revelaram-se,

além

de

grandes

escritores,

cúmplices.

Relacionando-se

intensamente entre 1923 e 1930, Lobato publica o livro O Presidente Negro, um manifesto eugênico pouco destacado em sua obra, e troca correspondências bastante polêmicas com Kehl. Tornou-se de grande importância dedicar o capítulo final, O Espetáculo do Feio, à problemática do corpo. Em Os Caminhos da Desumanização as dicotomias entre saúde/doença; limpo/sujo; belo/feio e alegre/triste serão historicizadas com base na produção do eugenismo de Kehl, a fim de localizar as intervenções previstas nos corpos daqueles considerados disgênicos e tristes. Em Isso é feio! Que triste... o objetivo é identificar que as descrições do corpo imperfeito sempre estavam associadas às moléstias sociais (alcoólatras, sifilíticos, tuberculosos, leprosos e vagabundos), descrições da doença, sujeira ou feiúra. Finalmente, em “A Cura da Fealdade”, outro aspecto trabalhado é a profilaxia indicada para a ‘cura’ dos ‘seres feios’: esterilização, métodos cosméticos, códigos de comportamento, regulação dos casamentos e genealogia familiar.

44

Termo usado por Renato Kehl para elogiar a atuação de Oliveira Vianna como sociólogo em carta de 04/09/1931, Rio de Janeiro. FOC

27

Dos encantados da Amazônia aos orixás da Bahia; do frevo pernambucano às escolas de samba do Rio de Janeiro; dos tambores do Maranhão ao barroco mineiro; da arquitetura de Brasília à música sertaneja. Estendendo o arco de sua multiplicidade nas culturas de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e da Região Centro-Oeste. Esta é uma nação que fala a mesma língua, partilha os mesmos valores fundamentais, se sente que é brasileira. Onde judeus e árabes conversam sem medo. Onde a mestiçagem e o sincretismo se impuseram, dando uma contribuição original ao mundo, onde toda migração é bem-vinda, porque sabemos que em pouco tempo, pela nossa própria capacidade de assimilação e de bem-querer, cada migrante se transforma em mais um brasileiro. Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República Federativa do Brasil, em seu discurso de posse no Congresso Nacional em 01 de janeiro de 2003.

CAPÍTULO I – “À CUSTA DE MUITO SABÃO DE CÔCO(...)”1 1.

A Institucionalização da Rede Considerar a existência de uma instituição é, antes de tudo, perceber

que lugar ela ocupa entre outras. Toda instituição supõe materialidade, ou seja, algo que a torne material e fisicamente pública2 e que tenha como escopo seu caráter de atuação. Neste capítulo, a proposta de se perceber a institucionalização da rede significa perceber quais caminhos percorreram diversos eugenistas – através dos escritos de Renato Kehl – para consolidar um campo de saber galgado lentamente, em busca do melhoramento físico e moral dos homens e mulheres brasileiros. Por isso, este capítulo foi intitulado de À custa de muito sabão de côco [ariano]! Esta expressão – que está reproduzida na íntegra adiante – usada por Renato Kehl exibe com clareza ‘metafórica’ o modo como deveriam agir os eugenistas para atingir seus fins. Esfregando, torcendo, limpando e branqueando os corpos do povo brasileiro, como se fossem roupas sujas. Portanto, este capítulo muitas vezes parecerá repetitivo àqueles que de alguma forma conhecem a temática do eugenismo3, mas essa abordagem se faz necessária para a compreensão do modo como foi construído este trabalho. Primeiramente, trata-se da formação do campo eugênico no Brasil, através das articulações políticas entre seus interessados, das contribuições pessoais e de grupos da elite que constituirão uma rede de relações. Essa rede de relações

1

Citação feita por Renato Kehl no livro Lições de Eugenia, Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1929 (1ª Edição) e 1935 (2ª Edição), p. 241.

2

O sentido de “público” aqui é usado para entender uma coisa ou idéia que não fica restrita a um pequeno grupo, mas a quem a ela quiser ter acesso. Para o entendimento da instituição – ou institucionalização – é necessário ter em mente que ela é resultado de uma ação social para a formação de alguma organização ou associação, seja ela de caráter religioso, educacional, filantrópico, médica ou eugênica.

3

Diversos trabalhos tratam da temática do eugenismo e contribuíram de forma fundamental, juntamente com as fontes trabalhadas, para a construção deste capítulo. Entre eles citamos os principais: MARQUES, Vera Regina Beltrão. A eugenia da disciplina: o discurso médicopedagógico nos anos 20. Tese de mestrado. Departamento de Educação, Unicamp, 1992; NALLI, Marcos. O gene educado: a antropologia eugênica de Renato Kehl e a educação. Dissertação de Mestrado. UEM, Maringá, 2000.; LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

29

será posteriormente – como se vê no capítulo Bastidores Eugênicos – complementada nas relações pessoais entre Renato Kehl e os adeptos do eugenismo não somente no Brasil, como também no resto do mundo. Embora a origem do pensamento eugênico internacional esteja ancorada na segunda metade do século XIX — pelas formulações de Francis Galton4, após o lançamento do livro Origem das Espécies, de Charles Darwin5 — é apenas nas primeiras décadas do século XX que sua implantação ocorreu de fato6. Para legitimar suas práticas, o eugenismo sempre recorreu a estratégias de linguagem7. Um dos exemplos mais comuns e recorrentes nos textos eugenistas é aquele que remete a origem do homem ao berço da civilização judaico-cristã ocidental. Os exemplos de passagens da história hebréia a da Grécia espartana são muito utilizados por Renato Kehl para justificar sua implantação, levando em conta que as práticas propostas pelos eugenistas são equivalentes àquelas da Antiguidade. Sob o argumento de que Desde os tempos imemoriais se proclama a necessidade

de

preservar

os

homens

da

degeneração, entravando os fautores perniciosos,

4

Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin e um de seus primeiros seguidores. Criador da biometria, disciplina que aplica os métodos estatísticos à biologia, e especialmente ao estudo da hereditariedade, é considerado o pai da eugenia. Publica seu primeiro livro Hereditary Genius em 1869, e usa pela primeira vez o termo eugenia em 1883 (em inglês eugenics, do grego eugenes, que significa “bem nascido”). PICHOT, André. O eugenismo: genetistas apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 18-19. Para saber mais sobre Francis Galton, consultar também os trabalhos: PELÁEZ, Raquel Alvarez. Sir Francis Galton, padre de la eugenesia. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/ Cuadernos Galileu, 1985 e GALTON, Francis. Herencia y eugenesia. Madri: Alianza Editorial, 1988 (tradução de Raquel Alvarez Peláez).

5

Charles Robert Darwin (1809-1882), cientista britânico, que criou as bases da moderna teoria da evolução ao apresentar o conceito de que todas as formas de vida se desenvolveram em um lento processo de seleção natural. Seu trabalho teve uma influência decisiva sobre as diferentes disciplinas científicas e sobre o pensamento moderno em geral. Publicou em 1859 seu livro mais conhecido A Origem das espécies por meio da seleção natural. O eugenismo está historicamente ligado à teoria darwiniana. Enciclopédia Encarta e PICHOT, Op. cit., p.15.

6

Sobre as práticas eugênicas, os Estados Unidos foram o primeiro país a regulamentar a esterilização a partir de 1907, no Estado da Indiana; em 1909, em Washington, Connecticut e Califórnia. Em 1928, foi implantada na Suíça e no Canadá; em 1929, na Dinamarca; em 1934, na Noruega e Alemanha; em 1935, na Finlândia e Suécia. Nos países latino-americanos não houve uma aceitação das práticas de esterilização, principalmente pela sua maioria católica. PICHOT, Op. cit., p. 47.

7

Chamo estratégias de linguagem o modo como práticas discursivas são construídas com a finalidade de seduzir um determinado grupo de pessoas ou um setor social. A estratégia de linguagem se aproxima do poder de persuasão.

30

premunindo, enfim, a família e a sociedade contra o abastardamento. (...) desde as prédicas morais de Abraão e de Moisés; desde quando Licurgo ditou e impoz as leis que fizeram a glória de Esparta, e outros ainda se escoaram sob normas religiosas para o melhoramento moral da humanidade. (...) Pastores de alma, apóstolos e filósofos, mestres, educadores e cientistas, todos se esforçaram por tornar o homem mais homem, portanto menos animal, mais sadio e de melhores sentimentos, sem que se evidenciassem os resultados na altura dos esforços dispendidos. Obviamente, se forem levados em conta os princípios higiênicos e morais de Moisés e Abraão e o lançamento dos mau gerados no Rio Eurotas, em Esparta, pelas leis de Licurgo, será percebido que a segregação e eliminação daqueles considerados indesejados não é exclusiva do eugenismo moderno. Apesar da afirmativa das práticas anti-degeneracionistas da Grécia Antiga, e de admitirem os eugenistas que essas práticas contribuíram para a evolução do gênero humano8, elas formam insuficientes para o progresso completo da humanidade. Isso porque a evolução – a que se refere Kehl – não se processou por igual em todos os lugares9. A eugenia da época contemporânea redundou no projeto de implantação de uma prática baseada na hereditariedade, com fundamentação científica, capaz de resolver os problemas de ordem biológica, social e moral da sociedade. Esse é um dos aspectos que diferenciam a eugenia implantada no início do século XX daquela da Antiguidade. Se, na Antiguidade, a eliminação dos considerados menos aptos – por exemplo, bebês com defeitos físicos ou mentais – era vista como uma medida preventiva, na época contemporânea, o parasitismo10 é uma das motivações principais para o empenho dos eugenistas

8

KEHL, Renato. Sexo e Civilização. op. cit., p. 12. FMD

9

Ibdem.

10

Parasitismo é o modo como Renato Kehl se refere àqueles que vivem sob a tutela ou ajuda do Estado, por não poderem desenvolver atividades produtivas (ou não conseguirem inserir-

31

brasileiros. Impedir o parasitismo é contribuir para o progresso da sociedade, já que, com a eliminação do fardo social que sobrecarrega o Estado, o progresso da civilização estará garantido. Portanto, percebe-se que a referência feita por Renato Kehl à Antiguidade intenta justificar uma busca de origem das raízes da eugenia e da civilização ideal, vista aqui como a construção de um passado que legitime ações no presente. O reflexo do espelho11 do eugenismo de Renato Kehl vê a beleza plástica, a retidão moral e a divisão social de maneira idêntica à da Grécia Antiga12. Em suas palavras: Imitemos os gregos dos tempos heróicos, no que elles tinham de bello e salutar. Esforcemo-nos como elles para rehabilitar physica e moralmente os atributos humanos que a degeneração se propõe a alterar. Embellezemos a espécie humana, certos de que a belleza pode ser creada à nossa vontade. Não é utópica essa afirmativa. Somos súbditos da natureza, nem em tudo dependemos della e, em muito de nós mesmos. A natureza dá-nos a vida. Nós

vivemos

prolongando-a,

abreviando-a

ou

melhorando-a a nosso juízo. 13 Para Renato Kehl, não é utópica a idéia de criar uma civilização bela física e moralmente, mas essa via só é possível se houver o desligamento da relação do homem com a natureza, vista como selvagem e sinônimo de paixão, ou seja, sem racionalidade. Essa idéia é muito parecida com aquela desenvolvida pelos iluministas do século XVIII, que viam na racionalidade o único viés possível para o progresso social, colocando no extremo oposto

se), contradizendo a doutrina darwiniana da seleção natural, uma vez que os menos aptos acabam sobrevivendo, representando um peso para a sociedade considerada produtiva. 11

Para pensar o espelho, usamos a metáfora desenvolvida por Michel Foucault em Lugares Outros, 1984. A utopia é o reflexo do espelho, ou seja, algo que é projetado como imagem que existe, mas não está lá de fato. In: Ditos e Escritos, vol. 4.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

12

Renato Kehl foi mais enfático na afirmação do ideal da beleza grega no livro A Cura da Fealdade. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1923, p. 11-15. BMA

13

Idem p. 14

32

características como a paixão, o espírito e a ficção (entre outras), representadas como desvios da verdade (e também como reflexos da vida selvagem e animal) e do bom cumprimento das normas sociais. Os primeiros anúncios da eugenia no Brasil encontram-se em 1897, com a iniciativa do Prof. Souza Lima de defender a eugenia da nacionalidade. Apoiado pela Academia Nacional de Medicina, Souza Lima propôs uma lei para tornar obrigatório o exame pré-nupcial e o impedimento legal da união de tuberculosos e sifilíticos.14 Kehl apóia essa idéia mais tarde, ao escrever: As leis são geralmente elaboradas por advogados, sem

que

haja

interferência

medica

em

sua

elaboração, dahi a grande lacuna do nosso Código Civil, no que diz respeito à protecção da família contra as doenças transmissíveis por contágio ou herança (...) Mas o legislador brasileiro, aferrado ainda ao dogmatismo jurídico mal compehendido, recusou-se a satisfazer a essa aspiração nacional, talvez, levado pelo receio de cercear a decantada liberdade individual.15 Inicialmente, percebe-se a ambição da medicina de Kehl em interferir na constituição das leis brasileiras. A partir da década de 191016, a comunidade médica adquire autoridade para, juntamente com advogados, legislar em prol da saúde pública, a fim de controlar epidemias e regular os espaços de insalubridade nas cidades.17

Essa aliança entre duas categorias de

profissionais liberais não significa que ambas tiveram uma relação harmoniosa

14

KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p.23.

15

KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1923, p. 51. FDR

16

Desde o século XIX já existia essa relação entre médicos e legisladores, mas é a partir das primeiras décadas do século XX que esta atuação se acentua.

17

Para saber mais sobre a medicalização da sociedade ver: MACHADO, Roberto (org.) Danação da Norma. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978. Merecem destaque também os trabalhos sobre saúde pública em São Paulo e Rio de Janeiro, tal como: RIBEIRO, M.A. História sem fim:inventário da saúde pública. São Paulo: Unesp, 1993; YIDA, M. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Unesp, 1994 e TELAROLLI JR., R. Poder e Saúde: as epidemias e a formação dos serviços de saúde pública em São Paulo. São Paulo: Unesp, 1996.

33

todo o tempo. Muitos debates serão travados entre eles, principalmente para definir quais seriam os limites da autoridade médica diante da sociedade,18 onde e como ela deveria interceder e intervir. Após a primeira iniciativa de Souza Lima, foram publicados no Brasil alguns trabalhos que tinham como tema central a eugenia19. Entre eles pode ser destacado o de João Ribeiro, que consolida gramaticalmente o termo Eugenía, em lugar de Eugênica. Finalmente, antes do surgimento de Renato Kehl no cenário eugênico20, no Rio de Janeiro de 1914, o médico Alexandre Tepedino, discípulo do prof. Miguel Couto, apresenta sua tese de formatura com o nome Eugenia. Renato Kehl21 utiliza o termo eugenia pela primeira vez em 1917,22 na realização de uma conferência feita a convite de dois diretores norteamericanos da Associação Cristã de Moços de São Paulo, intitulada também Eugenia. Nas palavras de Kehl:

18

Para saber mais ver: ANTUNES, J.L.F. Medicina, leis e moral. São Paulo: Unesp, 1999.

19

Os primeiros trabalhos sobre a eugenia no Brasil, até a primeira conferência de Renato Kehl em 1917, foram: A. J. Souza Lima, “Exame pré-nupcial”. Discurso na Academia Nacional de Medicina, 1897; J.B. Lacerda, “O Congresso Universal das Raças”, de Londres. Rio de Janeiro: Ed. Papel Macedo, 1912; J.B. Lacerda, “Sobre os mestiços (publicado em francês). Paris: Imprimiere Devouge, 1912; A. Ferreira de Magalhães, “Pró-Eugenismo – Conferência de proteção à infância”; Anônimo, “O problema sexual”, prefácio de Ruy Barbosa e Coelho Neto, 1913; Alberto Torres, “O Problema Nacional Brasileiro”, Rio de Janeiro: Ed. Imprensa Nacional, 1914; Alexandre Tepedino, “Eugenia”. Tese. Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 1914; Rodriguez Doria, “O Erro Essencial da pessoa na lei brasileira do casamento civil”, Bahia: Imprensa Official, 1916. In KEHL, Renato, Sexo e Civilização, Op. cit., p. 269.

20

Entenda-se “cenário eugênico” como categoria de análise a ser construída ao longo do trabalho para pensar a rede de Renato Kehl e o campo de debate que se formou em torno desse tema.

21

Renato Kehl nasceu em 1895 em Limeira, interior de São Paulo. Formado em 1909, pela Escola de Farmácia de São Paulo e em 1915 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Empenhou-se durante a vida na vulgarização da eugenia. Escreveu diversos livros sobre o assunto e colaborou com diversos jornais e periódicos especializados, nacionais e internacionais. Mello, Luis Correia. Dicionário de autores paulistas. Comissão IV Centenário da Cidade de São Paulo, p. 287-288.

22

Conferência realizada em 13 de abril de 1917 na Associação Cristã de Moços de São Paulo, publicada no Jornal do Commercio, Edição paulista, 19 de abril de 1917. In: Annaes de Eugenia, São Paulo, 1919, p. 65. CP

34

A definição é curta, os seus fins é que são immensos; é a sciencia do aperfeiçoamento moral e physico da espécie humana.23 E completa com ressalvas: É a sciencia da bôa geração. Ela não visa, como parecerá

a

muitos,

unicamente

proteger

a

humanidade do cogumelar de – gentes feias.24 No entanto, como poderá ser visto no 3º capítulo desta dissertação, uma das propostas de Renato Kehl é a de que o país se povoe de ‘gente sã física e moralmente’, expressando todo o seu desejo por um país eugenizado em seu livro A Cura da Fealdade25. A partir de então, o termo eugenia faria parte de trajetória intelectual desse autor. A conferência de 1917 discorre sobre a ‘nova ciência’ de Galton e dos benefícios que pode trazer à sociedade. Um dos principais temas dessa conferência é a guerra.26 Logo de início, afirma: A campanha eugênica é opportuna neste momento em

que

no

Brasil

se

despertam

as

forças

regeneradoras. Também o é, pelas lições que se podem tirar do terrível factor dysgenico27 que é a guerra, esse flagelo ceifador28 de vidas preciosas.29 A guerra, portanto, era considerada fator degenerativo. Mas aproveitar a oportunidade no Brasil, em que forças regeneradoras estão surgindo, justifica23

KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p. 13.

24

Idem, p.15.

25

KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op. cit.

26

A guerra a que Kehl se refere é a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Primeiro conflito na Europa do século XX em que a tecnologia bélica surpreendeu o mundo, por trazer, entre outras coisas, as armas químicas e os aviões, apesar do combate ter sido travado principalmente nas trincheiras.

27

Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl. Disgenia: Condição do caráter que resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. De acordo com o Novo Dicionário Aurélio Século XXI, op. cit.

28

Ceifador: arrebatar, tirar (a vida), de acordo com Novo Dicionário Aurélio Século XXI, op. cit.

29

Conferência de 13 de abril de 1917, publicada no Jornal do Commercio, edição paulista em 19 de abril de 1917, In: Annaes de Eugenia, op. cit.

35

se pela discussão registrada na imprensa sobre a composição da nacionalidade brasileira. Os objetivos estavam em cuidar da higiene da raça para a grandeza da nacionalidade30. No entanto, na Europa e nos Estados Unidos, o eugenismo visa à regeneração das massas e à criação de exércitos capacitados, pois a guerra gerou tal derramamento de sangue anemiando-se os povos em luta, com o sacrifício de seus elementos essenciais.31 No Brasil, o regime republicano amplia essa discussão, pois para boa parte dos eugenistas brasileiros o país era ainda uma nação sem povo. Um dos caminhos apontados para acertar e formar o povo brasileiro seria o saneamento dos espaços, a organização do trabalho com a regulamentação das moradias e a domesticação dos corpos e dos gestos.32 Além disso, o ideal de uma República embasada na igualdade e na democracia criou a necessidade de formalizar e gerar novos campos de saber, para a produção de corpos constituintes de um povo homogêneo, tipicamente brasileiro.33 Mais do que isso, tratava-se de ver o povo brasileiro como população biologicamente constituída e que, por isso, deveria ser saudável. Esses ideais eram proclamados por eugenistas como um meio, entre outros, de ‘criar um novo tempo’, estabelecendo entre os séculos XIX e XX uma diferença radical – não transformada de modo radical, mas sim lentamente e de maneira crescente. Nesse sentido, em tom profético, Kehl afirma a emergência de uma nova era pautada na saúde, na vitória da vida sobre a morte, como se segue: Aos dias de tempestade, seguem-se felizmente dias de bonança, o que nos dá a esperança de que o século vinte, que iniciou sob os domínios da morte, seja denominado – o século da vida, tal qual o

30

Idem.

31

Idem.

32

Sobre este assunto a bibliografia é vasta. Ver principalmente: RAGO, L. M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985; MARQUES, Vera Regina Beltrão. A eugenia da disciplina..., op. cit.; CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1986.

33

Coloca-se a discussão de que tipo de povo brasileiro queriam os republicanos. Já naquele período soava contraditório pensar numa homogeneidade no Brasil, tendo em vista os grandes fluxos migratórios ocorridos no país desde a chegada dos primeiros europeus.

36

dezenove o foi da luz. Da liberdade e da saúde serão os annos vindouros.34 Na verdade, o biopoder analisado por Foucault faz parte deste ideário e, antes disso, ele constituiu, no final do século XIX, a preocupação dos investimentos sobre a vida e a morte revestidos pelo direito de ‘causar a vida e devolver a morte’.35 Tratava-se de um investimento no corpo através de estratégias para extrair a potência para as instituições de poder como a família, a escola, a polícia, a medicina, entre outras tantas.36 Em suma, de tornar a vida objeto essencial do poder e, por conseguinte, o corpo um dos principais alvos de seus investimentos. O entusiasmo gerado a partir da primeira conferência de Kehl resultou na fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo, que contou com a participação não somente de médicos, como também de membros de diversos setores da sociedade interessados em discutir a nacionalidade a partir de questões biológicas e sociais.37 Datada de 15 de janeiro de 1918, a Sociedade foi fundada no Salão Nobre da Santa Casa de Misericórdia, onde aconteciam as sessões da Sociedade de Medicina e Cirurgia, contando com cerca de 140 membros, o que representava um grande número para a época. Era a primeira associação do tipo, na América Latina.38 A diretoria da entidade era composta por: Arnaldo Vieira de Carvalho39 (presidente); Olegário de Moura40 (vice-

34

Conferência de 13 de abril de 1917, In: Annaes de Eugenia, Op. cit.

35

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: vontade de saber. Vol. 1, São Paulo: Editora Graal, 1988, p. 130. 36 Idem, p. 132. 37

MARQUES, V.R.M. Eugenia da disciplina... Op. cit., pág. 31.

38

Sociedade Eugenica Argentina (Buenos Aires, 1919), fundada por Victor Delfino; Sociedade Eugenica Del Peru (Lima, 1919), por iniciativa do médico e escritor Paz Soldan. In, Jornal do Commercio, 04/04/1919. FOC

39

Arnaldo Vieira de Carvalho. Médico de família ilustre formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1889, fundou o Instituto Vacinogênico de São Paulo (que em 1925 foi incorporado ao Instituto Butantã) sendo seu diretor em 1892, trabalhou no corpo clínico da Santa Casa de Misericórdia a partir de 1897. Fundou a Faculdade de Medicina de São Paulo em 1913 e foi seu diretor até seu falecimento em 1920. Tinha como genro Júlio Mesquita, fundador do jornal “O Estado de São Paulo”, que em 1917 fez uma campanha para arrecadar fundos para a construção da primeira sala de operações da América do Sul no hospital da Santa Casa de Misericórdia. In: jornal O Estado de São Paulo, 15 de agosto de 2001.

40

Olegário de Moura, segundo consta, presenciou em 1922 uma experiência sobrenatural na Academia de Estudos Psíquicos Césare Lombroso, em São Paulo, em que ele e o Dr. Carlos Pereira de Castro acompanharam a materialização e levitação de um homem que se

37

presidente); Renato Kehl (secretário geral); T. H. de Alvarenga e Xavier da Silveira (segundos secretários); Argemiro Siqueira (tesoureiro arquivista); Arthur Neiva41, Franco da Rocha42 e Rubião Meira (conselho consultivo). A imprensa comemorou sua fundação. Diversos periódicos destacaram a trajetória da Sociedade, publicando parte das reuniões realizadas. Muitas delas vinham acompanhadas do pronunciamento de Renato Kehl e algumas outras com somente notas elogiosas. O jornal O Estado de São Paulo publicou em 1919: É digno de nota o que se passou hontem na Sociedade eugênica de São Paulo. Devia entrar em discussão uma das questões mais apaixonadas e mais debatidas de que temos notícia em São Paulo, nestes últimos tempos: a consangüinidade e o casamento. (...) Uns e outros sustentando os respectivos pontos de vista, discutiram o assumpto sem paixão e sem intolerâncias, mas com calma, com serenidade, com vontade de acertar. Para

os

cientistas

paulistas

memorável a de hontem.

foi

uma

noite

43

Percebe-se que a Sociedade discutia temas já presentes na imprensa e que, além disso, seus cientistas tinham vontade de acertar. Vê-se a consolidação do campo da eugenia no âmbito público. Sua institucionalização ocorrera de fato. A imprensa noticiou, elogiou e registrou a formação desse apresentou como Harun al-Rashid e que falava árabe. Em outro caso, houve a materialização de Giuseppe Parini, poeta italiano do século XVIII, que foi relatado numa tese de autoria do Dr. Brasílio Marcondes Machado, intitulada Contribuição ao Estudo da Psiquiatria (Espiritismo e Metapsiquismo), apresentada em 26 de dezembro de 1922 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e foi recusada. 41

Arthur Neiva (1880-1943) - Viajou em 1912 para os estados de Goiás, Bahia, Pernambuco e Piauí com Belisário Penna (sogro de Renato Kehl), publicando em 1916 os resultados desta viagem exploratória que mostravam as condições de vida nos sertões brasileiros. Neiva, A. e Penna, B. “Saneamento do Brasil”, Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunaes, 1918.

42

Franco da Rocha (1864-1933). Idealizador e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, foi o primeiro professor de Clínica Neuropsiquiátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo, para a qual foi nomeado em 1918. Sua aula inaugural, em 1919, versou sobre a Doutrina de Freud e ganhou espaço no jornal O Estado de São Paulo, sendo publicada como artigo.

43

Jornal O Estado de São Paulo, Edição Noite, 27/06/1919.

38

campo de trabalho e discussão sobre os problemas nacionais acerca da composição da população brasileira. A consangüinidade, no casamento entre indivíduos de uma mesma família, era criticada por grande parte dos eugenistas, por causar doenças hereditárias. Mas não encontramos em Kehl uma justificação assumidamente de natureza moral para o impedimento de tais uniões. É de grande importância a adesão da imprensa, pois é sabido que vários dos membros da comunidade médica escreviam nos jornais de grande circulação e que seus artigos eram lidos por diversos setores da sociedade. Cogita-se que o jornal O Estado de São Paulo sofria de um certo ‘beneficiamento de informação’ devido à relação de parentesco entre Vieira de Carvalho (sogro) e Julio de Mesquita (genro). Ao mesmo tempo, a participação de 140 membros da elite paulista é significativa, pois setores distintos aderiram à proposta da Sociedade Paulista de Eugenia. Esse grupo é resultado da consolidação de uma rede de relações que será perseguida ao longo deste trabalho. Isto indica que parte do grupo já estava sensibilizada pelas questões relativas ao tema da eugenia. Antes disso, havia somente iniciativas dispersas. A Sociedade Eugênica de São Paulo tinha como finalidade, de acordo com seu estatuto, que era curto e bastante objetivo: estudar as leis da hereditariedade; a regulamentação do meretrício, dos casamentos e da imigração; as técnicas de esterilização; o exame pré-nupcial; a divulgação da eugenia e o estudo e aplicação das questões relativas à influência do meio, do estado econômico, da legislação, dos costumes, do valor das gerações sucessivas e sobre aptidões físicas, intelectuais e morais.44 A maior realização da Sociedade Eugênica de São Paulo foi a publicação dos Annaes de Eugenia.45 Constam nesses Annaes uma série de conferências realizadas por membros da Sociedade, entre eles alguns já citados, além de artigos, dentre os quais destacamos os títulos abaixo:

44

Annaes de Eugenia, São Paulo, 1919, p. 6-7.

39



Saneamento no Brasil – Eugenização no Brasil (Medicina Política) –

Olegário de Moura; •

Saneamento – Eugenia – Civilização (Conferência de Propaganda

Eugênica realizada na Associação Cristã de Moços) – Olegário de Moura; •

Moral e Eugenia – Noé de Azevedo;



Factores de degeneração de nossa raça – Meios de Combate-los (1ª

Conferência Pública realizada pela Sociedade em 08/05/1918) – Rubião Meira; •

O Segredo de Marathona (Conferência sobre Athletica e Eugenia) –

Fernando de Azevedo; •

Meninas Feias e Meninas Bonitas (Eugenia e Plástica) – Fernando de

Azevedo; •

Meninas Feias e Meninas Bonitas (Eugenia e Esthetica) – Luiz Pereira

Barreto; •

Eugenia (Seus fina – Factores dysgenicos a combater) – Bernardo de

Magalhães;

• Que é a Eugenia – Renato Kehl; • Conferência de Propaganda Eugênica na Associação Cristã de Moços, 13/04/1917 – Renato Kehl. Todas as propostas dos Annaes que dão conteúdo à idéia de eugenia na época. Apesar das diferenças entre si, têm em comum uma espécie de aposta na intervenção direta no corpo individual com a intenção de mudar o corpo coletivo, tendo em vista a formação da nacionalidade brasileira. Com a morte de Arnaldo Vieira de Carvalho e a mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro em 1920, a Sociedade enfraqueceu após apenas dois anos de sua fundação. Pelas palavras de Kehl:

45

Exemplar de difícil acesso, atualmente raro, dado seu desaparecimento do Instituto Oscar Freire, após o empréstimo feito a uma grande exposição em São Paulo e sua não devolução após o término da mesma. Utilizou-se nesta pesquisa uma fotocópia particular.

40

Infelizmente, a Sociedade Eugênica de São Paulo, que tive a honra de fundar sob os auspícios do Prof. A. Vieira de Carvalho, e que foi a primeira da América do Sul, mantem-se, actualmente, em estado de latência, devido a inconstância no enthusiasmo que despertam as iniciativas no nosso paiz. Nascida sob os melhores influxos, após memoráveis sessões, em muitas das quaes dói debatida, casamentos

ardorosamente, consangüineos,

a e

questão depois

de

dos ter

publicado um grosso volume intitulado “Annaes de Eugenia” deixou-se ficar paralyzada. De nada valeram os meus esforços, ao deixar São Paulo, para que a Sociedade Eugênica tivesse um modesto agasalho e o valioso bafejo46 da Sociedade de Medicina e Cirgurgia daquella capital. Enfim, apesar da desídia que ameaça aquella nobre instituição paulista, tenho a alentadora esperança de ver a Eugenia contando cada vez maior numero de proselytos, entre os meus patricios e, talvez, mesmo, de vir a ser fundado, no Rio de Janeiro, um Centro Brasileiro de Eugenia.47 Falando do fracasso da Sociedade Eugênica de São Paulo, Renato Kehl enfatiza sua responsabilidade na fundação da mesma, e como a Sociedade ficou à margem, após sua mudança para o Rio de Janeiro, decaindo no interesse de seus membros. De acordo com a afirmação de Kehl, pode-se levantar algumas questões: até que ponto a morte de Arnaldo Vieira de Carvalho influenciou na decaída do interesse paulista pelo debate sobre a eugenia, afinal a Sociedade era ainda muito nova, com somente dois anos de fundação, apesar da sua importância em relação à América Latina, com sua

46

Aura de sorte; favor, proteção, fortuna, bafo, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio Digital Século XXI. Op. cit.

47

KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p. XI-XII.

41

iniciativa de vanguarda? Ou então, teria tido alguma influência nesse fato a mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro nesse mesmo ano, por conta de seu casamento com Eunice Penna, filha do sanitarista Belisário Penna? Ou ainda, porque a elite paulista não tinha um real interesse nesse tema, sendo a Sociedade somente o pretexto para reuniões periódicas para a discussão dos mais diferentes temas? Todas essas possibilidades podem ter contribuído para o fim da Sociedade Eugênica de São Paulo, embora talvez mereça mais ênfase o fato de Renato Kehl ser o incentivador e estimulador do debate, o que despertava o interesse de muitos membros da elite paulista, mas não o suficiente para fazêlos ‘tomar as rédeas’ nos rumos da Sociedade. De fato, alguns dos membros da Sociedade Eugênica de São Paulo, depois de mais de dez anos, migraram para a Comissão Central Brasileira de Eugenia, sediada no Rio de Janeiro e dirigida também por Renato Kehl, como veremos. Com sua mudança para o Rio de Janeiro, Renato Kehl aliou-se à Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 192348 por iniciativa do psiquiatra Gustavo Reidel, após ter recebido o Grande Prêmio da Exposição Internacional de Higiene de Estrasburgo, na França. Participavam da Liga a elite da psiquiatria nacional, médicos, educadores, juristas, intelectuais em geral, empresários e alguns políticos brasileiros.49 Apesar de estar vinculado à Liga de Higiene Mental, percebe-se que houve um certo hiato na atuação de Kehl em prol da eugenia. Mesmo sabendo que importantes livros foram escritos por ele durante o período de 1920/1929, não vemos um Renato Kehl atuante, no que diz respeito à institucionalização da eugenia. Isso talvez porque no Rio de Janeiro ainda não tivesse sido criada uma Instituição específica para o debate do eugenismo em toda a sua extensão. Deveria haver um esforço para a formação dessa instituição, e Kehl levou nove anos para concretizar esse desejo. A nova oficialização de uma entidade preocupada em discutir assuntos relacionados ao eugenismo, em suas mais diversas dimensões, como a

48

A Liga de Higiene Mental funcionou entre os anos de 1923-1947. Para saber mais ver dois relevantes trabalhos sobre o tema: BOARINI, Maria Lucia e YAMAMOTO, O.H. Higienismo e Eugenia: discursos não envelhecem. In: Psicologia Revista. PUC/SP: 2002 e CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do mundo... op. cit..

42

psiquiatria, a imigração, a prostituição e o trabalho, entre outros, reacendeu o debate iniciado em São Paulo em 1918, além de rearticular um novo grupo de interessados em discutir a eugenia. Nesse sentido, a adesão de órgãos públicos à causa eugênica impulsionou o movimento para a formação no Rio de Janeiro de uma nova organização eugênica, que novamente tinha à frente Renato Kehl: O

benemérito

Sr.

Presidente

da

República,

prometeu em sua mensagem última tratar do assumpto [eugenia], tendo sido assegurado um decreto

de

saneamento

rural,

cuja

feliz

opportunidade despertou o applauso geral da nação. A campanha eugênica começa assim a ser patrocinada pelos poderes públicos do Brasil.50 É certo que a própria Liga agia com os preceitos eugênicos, como afirma Luzia Castañeda,51 pois para seus membros era preciso prevenir a sífilis, a tuberculose e o alcoolismo, todos eles fatores considerados degenerativos da raça, contribuindo com o empobrecimento, a miséria e a loucura. Desta forma, são colocados no mesmo nível fenômenos de origens diferentes, como a miséria, que tem origem social, e a loucura, que tem origem psicológica. Mesmo sendo a prevenção um campo de abordagem da higiene, que na década de 30 desenvolvia campanhas de prevenção da sífilis, da tuberculose e do alcoolismo, entre outras52, entende-se que, para os eugenistas, não era suficiente a prevenção da doença, mas a prevenção dos doentes. Casamentos deveriam ser regulados para que não gerassem crianças degeneradas, pois se considerava que a transmissão da doença era hereditária. Dessa forma, o controle de casamentos impediria na origem o nascimento dos mau nascidos,

49

CASTAÑEDA, Luzia A. Apontamentos historiográficos sobre a fundamentação biológica da eugenia, In: Revista Episteme, Porto Alegre, Vol. 3, nº 5, 1998, p.23-48.

50

KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p. 20.

51

Idem, p.38.

52

Para maiores informações sobre as campanhas de prevenção feitas pelos departamentos estaduais de saúde pública ver: MORAES, Mirtes. Imagens e Ações: Representações e práticas médicas na luta contra a tuberculose. São Paulo. 1899-1930. Dissertação de

43

evitando a sociedade dos doentes. Percebe-se aí a dimensão a-histórica do eugenismo, levando-se em conta que não se admitia a origem social da doença. Acreditava-se que a tuberculose, por exemplo, era uma doença degenerativa, passada dos pais para os filhos. A biologização da vida social se tornava o fundamento de toda a propaganda eugênica. Mas não apenas o eugenismo estava impregnado das idéias biologizantes. Essa tendência era particular do período, enfatizada e fundamentada pelos trabalhos da sociologia do início do século, que viam o corpo como uma máquina e a sociedade como um corpo. Nas palavras de Gustavo Riedel, é preciso prevenir para não degenerar53. Importava aos eugenistas, através da higiene e da saúde pública, sanear os espaços, conscientizar os indivíduos da classe pobre – pois esses homens

estavam

revestidos

pelo

conceito

de

classes

perigosas,54

representando uma ameaça à nação por possuírem desvios de comportamento tais como o sexo, a boêmia e a falta de higidez. Além disso, o saneamento dos corpos se daria através de duas medidas principais: o controle dos casamentos entre aqueles considerados sãos e a proibição das uniões entre os considerados degenerados. Portanto, evitar e prevenir as doenças sociais e os nascimentos de pessoas consideradas doentes era também evitar a degeneração da raça, o que associava muitas doenças tanto à miséria quanto à loucura. Várias novas iniciativas serão tomadas a partir de 1929. Uma delas é o lançamento do Boletim de Eugenia55, que teve sua primeira edição em janeiro Mestrado. História PUC/SP, 2000 e GONÇALVES, Adílson José. SPES: Saúde Pública, educação e comunicação. Tese de Doutorado. História PUC/SP, 2001. 53

Declaração de Gustavo Riedel na Primeira Sessão do Congresso Brasileiro de Eugenia, In: Actas e Trabalhos, Congresso Brasileiro de Eugenia, Vol. 1. Rio de Janeiro, 1931. FDR

54

Termo criado na Inglaterra, no século XIX, no período do estabelecimento da Lei dos Pobres, que criou espaços assistencialistas para os moradores dos cortiços de Londres, que, por causa do desemprego e da insalubridade, inevitavelmente adoeciam e caíam na marginalidade e no crime, significando ameaça à burguesia. Ver mais em: BRESCIANI, Maria Stela. E também no trabalho clássico do pensador que criou a definição, CHEVALLIER, Louis. Classes laborieuses et classes dangereuses. Paris: Hachette, 1984.

55

Ressaltamos a importância de um estudo detalhado sobre a produção do Boletim de Eugenia, em que consta material riquíssimo para quem se interessa pelo tema da eugenia, tal como o trabalho de MAI, Lílian Denise, Boletim de Eugenia (1929-1931): um estudo sobre forças educativas no Brasil, Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Maringá, PR, 1999. (Sob orientação de Maria Lúcia Boarini)

44

desde ano, sob a direção de Kehl – ele de volta, atuando em favor da cruzada eugênica56. É de se notar o amadurecimento do autor após mais de uma década do início de sua ‘jornada’, pois se, antes, sua atuação restringia-se ao espetro da Sociedade Paulista, agora o Boletim trava correspondências com estudiosos da eugenia em todo o mundo, além de outras partes do Brasil, como poderá ser visto no desenrolar deste trabalho.57 Nesse mesmo ano realizou-se o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, entre os dias 01 e 07 de julho de 1929, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Esse congresso foi realizado a pedido de Miguel Couto, presidente da Nacional Academia de Medicina que, no 99º aniversário da instituição. O convite para o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia revela a importância da discussão do tema para a consolidação do campo da eugenia no Rio de Janeiro. Foram convocados médicos, pharmacêuticos, clínicos, biologistas, educadores, sociólogos e associações congêneres que solicitarem inscripção além dos alumnos das Escolas Superiores da República para a realização conjunta de outros quatro eventos. São eles: 4ª Conferência Panamericana de Hygiene, Microbiologia e Pathologia; 2º Congresso Panamericano de Tuberculose; 10º Congresso Brasileiro de Medicina e o Primeiro Centenário da Academia Nacional de Medicina. Todos eles foram realizados no Rio de Janeiro, com sessões na Academia Nacional de Medicina e no Instituto dos Advogados.58 O Congresso de Eugenia estava dividido em três sessões: Antropologia, Genética e Educação e Legislação. Aparentemente essas sessões tiveram a mesma importância; contudo, analisando as fontes, percebeu-se a importância dada à última sessão, uma vez que somente as atas das reuniões desse grupo estão na íntegra na publicação do 1º Congresso. Evidencia-se uma hierarquia no interior do congresso, entre as sessões abertas. Isso quer dizer que Educação e Legislação é mais importante que Antropologia ou Genética?

56

Termo usado por Renato Kehl em 1937 em seu livro Por que sou eugenista? 20 anos de campanha eugênica. 1917-1937. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937. FMA

57

Esta afirmação refere-se às reflexões que serão desenvolvidas no próximo item deste capítulo: Tupy or for Tupy? e ao segundo capítulo: Bastidores Eugênicos.

58

Actas de Trabalho. 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Op. cit.

45

Talvez pelo número de participantes e pelo teor dos trabalhos apresentados? Talvez também porque as discussões sobre legislação eram mais valiosas, naquele momento histórico, que as questões de genética, ou então de antropologia? Ou ainda, devido à disputa pela formulação das leis – já indicada anteriormente – entre médicos e advogados? Modus vivendi, presidida por Levy Carneiro e secretariada por Celina Padilha (provavelmente quem escreveu a ata), a sessão de Educação e Legislação contou com a presença de diversas figuras da elite médica nacional. Entre eles destacam-se, além do presidente do Congresso, Edgar RoquettePinto, e nomes como Achiles Lisboa, Oscar Fontenelle, Mendes de Castro Xavier de Oliveira, Belisário Penna, Azevedo do Amaral, Gustavo Riedel e Alcântara Machado, entre outros. Levantando discussões acaloradas, as teses defendidas nessas sessões geravam diversas controvérsias em torno dos mais diversos temas, como imigração, raça, educação e política, entre outros. No primeiro e único volume das atas de trabalho, identificamos somente duas ‘aparições’ de nosso propagandista. É de se estranhar sua pequena participação. Será devido a suas outras ocupações? Renato Kehl, afinal, era o secretário geral do congresso! Naquela época, suas ocupações giravam em torno da propaganda de medicamentos da Bayer59 e da direção da edição do Boletim de Eugenia. Mas apesar de parecerem poucas essas atribuições, ele se ocupava também de manter atualizadas suas relações epistolares com diversos institutos e associações eugênicas no resto do mundo. Na seção inaugural, seu presidente, prof. Edgar Roquette-Pinto60, faz a distinção entre a higiene e a eugenia, enfatizando a complementaridade das duas e seu ponto de fusão, que é a medicina. Em suas primeiras palavras no congresso, ele afirma:

59

Renato Kehl foi funcionário da empresa A Química Bayer entre os anos de 1923 e 1944, ocupando os cargos de farmacêutico responsável e diretor médico, que elaborava as propagandas de medicamentos daquela companhia.

60

Edgar Roquette-Pinto (1884-1954). Formado médico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Participou da Missão Rondon pelo noroeste do Mato Grosso. É pioneiro da radiofonia no país. Foi diretor do Museu Nacional e do Instituto Nacional do Cinema Educativo que fez o filme “O Descobrimento do Brasil”. Almanaque Abril: Quem é Quem na História do Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000, p. 419.

46

Durante muito tempo, disse, supoz-se que o meio dominava os organismos, portanto a medicina e a hygiene resolveriam o problema da saúde; mas a sciencia demonstrou haver alguma cousa que independe da hygiene: é a semente, a herança, que depende da eugenia. É preciso, accrescenta, tratarse da semente e assim a Academia de Medicina deu um grande passo, mostrando que, ao lado da medicina e da hygiene, há uma sciencia com muitos pontos de contacto com as primeiras e que nesse momento congregar as pessoas de boa vontade.61 Assim, higiene e eugenia eram ciências que tinham raiz comum, a medicina. Nas palavras de Kehl: Há quem confunda eugenia com educação física, com plástica, com educação sexual, com birth control ou a considere um simples ramo da higiene.62 Acredita-se relevante enfatizar a relação entre os pensamentos de Renato Kehl e Roquette-Pinto, já que muitas vezes as divergências entre eles se torna obscura. Lilia Schwarcz63 afirma que Roquette-Pinto estava marcado pelo culturalismo norte-americano de Franz Boas, sustentou o argumento de que ‘o problema brasileiro seria uma questão de higiene e não de raça’.64 No entanto, observando as atas do congresso, o mesmo Dr. Roquette-Pinto afirma: (...) do ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os mestiços manifestam acentuada fraqueza: a emotividade exagerada, ótima condição para o surto dos estados passionais.65

61

Actas de Trabalho. 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Op. Cit.

62

KEHL, Renato. A definição oficial da palavra ‘Eugenia’, In: Educação Eugênica, Exemplar 1, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1932, p. 14.

63

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Op. cit., p. 96.

64

Esta citação é extraída da 2ª Reunião do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia... op. cit., p. 132.

65

Idem, p. 138.

47

A crítica ao estado emocional dos mestiços no Brasil é racial e tem um apelo de ordem moral e não eugênico. Tal afirmação anuncia uma vertente muito difundida pelo eugenismo de Renato Kehl, que era não enfatizar demasiadamente o problema racial. Ele era visto como importante, mas o que interessava mesmo aos eugenistas era extirpar do corpo social os indesejáveis. Apresenta-se uma dupla vertente, que deve ser levada em conta, já que se tornou muito difícil colocar numa mesma categoria, em sua vertente teórica, Renato Kehl e seus companheiros, pela ambigüidade de suas afirmações. Levando a fundo o problema racial e o problema da higiene, amplamente discutidos pelos eugenistas, inevitavelmente serão encontrados muitos pontos de concordância e de divergência. Muitas vezes eles serão encarados como sinônimos e outras como coisas distintas. Nas palavras de Renato Kehl: a eugenia é a higiene da raça.66 Além disso, há outras controvérsias a respeito, por exemplo: Afrânio Peixoto, em seu artigo “A antiga e a nova medicina: a higiene”, publicado na Revista do Brasil de 1918, declara que: Eugênica é uma das ciências da ‘família da higiene’, tal como a Microbiologia, a Dietética, a Parasitologia e a Quimioterapia.67 O trabalho de Vera Regina Beltrão Marques sobre a educação disciplinar através do eugenismo da década de 1920 vê a eugenia como uma nova forma de intervenção da higiene.68 Discordamos da afirmação, levando em conta as análises dos documentos produzidos por eugenistas que se autodefiniam melhoristas da raça. Nas palavras de Kehl: A saúde assentar-se-há, então sobre duas bases: a Hygiene, que afastará as causas dos males e a Eugenia, que sellecionará os indivíduos, tornandoos mais sólidas unidades da raça. O problema da doença será, pois, resolvido, em um futuro não

66

KEHL, Renato. Sexo e Civilização , Op. cit., pág. 51.

67

LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação.São Paulo: Editora da Unesp, 1999, p. 205

48

remoto, não somente pelos médicos e homens de sciencia, mas pelos homens de Estado.69 Entende-se então que higienistas e eugenistas tinham pontos de similaridade, partilhavam ideais semelhantes, mas não idênticos, e que muitas vezes divergiam, apesar de ambas as disciplinas se originarem da Medicina. Percebe-se particularmente uma certa arrogância da classe médica na disputa pelo poder de definir ou de interferir no encaminhamento de políticas públicas. Sanistaristas, higienistas, alienistas e eugenistas, em sua maioria, tinham formação médica. Assim, em nome da corporação, ou da classe médica, o decoro no tratamento dos colegas demonstra entre a categoria de médicos uma certa polidez, revestida de arrogância, com aqueles que não pertencem à classe. Essa idéia está ancorada na medicalização da sociedade e no papel do médico como detentor do conhecimento necessário para organizar a vida e, por conseqüência, a sociedade. Portanto, do ponto de vista dos médicos, eles próprios eram os mais capazes para orientar as políticas públicas de saúde aos governantes, tinham autoridade científica para isso, dada pela formação em medicina. Contudo, na medida em que essas disciplinas tornavam-se autônomas em relação à Medicina (Higiene e Eugenia, entre outras), tensões, polêmicas e interesses políticos distintos contribuíram para o afastamento progressivo entre essas categorias, dando origem a novos grupos de saber e poder. Por exemplo, fundada em 1913, a Faculdade de Medicina de São Paulo,70 teve como seu primeiro diretor o Sr. Arnaldo Vieira de Carvalho. Diversos professores estrangeiros foram contratados para lecionar, entre eles Alfonso Bovero71, anatomista italiano; Lambert Mayer, fisiologista francês, e Samuel Darling e Wilson George Smille, higienistas norte-americanos. A cadeira de Higiene foi instituída em 1918, e em 1924 fundou-se o Instituto de

68

MARQUES, V.R.B. A eugenia da disciplina..., Op. cit., p 04.

69

KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social, Op. cit., p. 33.

70

SCHWARTZMAN, Simon. Formação da Comunidade Científica no Brasil. Rio de Janeiro: Finep, 1979, p. 155.

71

Alfonso Bovero participou do 1º Congresso de Eugenia em 1929. In: Actas de Trabalho, op. cit.

49

Higiene72, através de um convênio com a Fundação Rockfeller, a fim de obter autonomia da Faculdade de Medicina, onde seu espaço institucional era limitado. O interessante é que todo o treinamento do Instituto terá influência direta norte-americana, diferentemente da orientação européia dos serviços legislativos, burocráticos e médicos de até então.73 Numa outra perspectiva, pensamos a eugenia como uma ciência nova – assim entendida por Renato Kehl. Se, por um lado, admite-se que a higiene está no âmbito da prevenção da doença, por outro lado vemos que a eugenia conta com a prevenção através da despistagem,74 conceito desenvolvido por André Pichot. A eugenia, entendida como algo que previne antes da ocorrência, valia-se da despistagem – como a definia Pichot – queria evitar os nascimentos daqueles que pudessem desenvolver determinada doença ou ‘anomalia’, ou seja, daqueles considerados disgênicos. Fundamentalmente, era o caso de pensar também, numa dupla via, melhorar a raça dos bem nascidos e evitar o nascimento dos degenerados. A empreitada pela formação da Comissão Central Brasileira de Eugenia era familiar, pois sua esposa (Eunice Penna) ocupava o posto de secretária geral e seu sogro (Belisário Penna), diretor geral do Departamento Nacional de Saúde Pública, era membro efetivo. Renato Kehl, o presidente, publicou em 1931 um pequeno artigo em que definia as condições e atribuições dessa Comissão: Era natural, como eugenista brasileiro, que me preocupasse o desejo de fundar a Commissão

72

Sobre o Instituto de Higiene e toda a composição do arsenal propagandístico do período através das campanhas de prevenção de doenças sociais (sífilis, tuberculose, alcoolismo, etc.) ver o completo trabalho de GONÇALVES, Adilson José. SPES: Saúde Pública, educação e comunicação, op. cit.

73

YIDA, Massako. 100 Anos de Saúde Pública: a cidadania roubada. São Paulo: Editora da Unesp, ANO, p. 52

74

A despistagem é um conceito usado por André Pichot, para definir na contemporaneidade as práticas da terapia genética, na qual manipulações genéticas são feitas para evitar o nascimento de crianças com doenças consideradas congênitas, tais como, a mucoviscidose e a miopatia de Duchenne. Essa prática não carrega consigo o termo eugenismo, mas os geneticistas o revestem com uma outra expressão, eutanásia preventiva. In: PICHOT, André. Op. cit., p. 99-132. Para entender melhor a relação entre a despistagem e a eugenia no mundo contemporâneo ver: ROUSSEL, François. L’ eugenisme: analyse terminée, analyse interminable. In: Esprit. Paris: Junho, 1996, nº 222, p.26-54.

50

Central Brasileira de Eugenia, centro de estudo e de irradiação para a propaganda da eugenia, que aliás vinha sendo feita entre nós com perseverança, porém

desconnexamente.

Acompanhando

o

movimento mundial em torno dos problemas da regeneração

eugênica

do

homem,

mantendo,

mesmo, intensa correspondencia com as principaes associações existentes na Europa e na América do Norte, convenci-me de que não mais era possível protellar o projecto. Entrando em entendimento com os principaes proselytos

da

eugenia

no

Brasil,

cheguei

á

conclusão de que a idea era perfeitamente viável. Convinha, entretanto, dar-lhe uma forma que lhe garantisse a existência e utilidade real. Sou por índole, como a maioria de nossos patrícios, avesso a reuniões associativas, como é uso entre nós. Julgo

que

não

temos,

temperamento

de

um

para

modo

geral,

deliberar,

desapaixonadamente, quando estamos reunidos para discutir, seja de que for a natureza do assumpto. A nossa índole é accentuadamente personalista e as discussões, em comum, viriam difficultar a marcha de qualquer projecto a bem da collectividade,

sobretudo

quando

envolvesse

questões que apaixonem. Nestas condições, combinei com alguns de nossos eugenistas e especialistas em estudos affins para formar uma commissão que se propuzesse manter no paiz o interesse pelos estudos das questões da hereditariedade e eugenia, a propugnar pela difusão dos ideaes de regeneração integral do homem e a prestigiar os emprehendimentos scientíficos ou 51

humanitários de caracter eugênico, dispensando as reuniões periódicas. As deliberações serão tomadas pelo systema de consulta. As theses e outros assumptos levados á commissão serão remettidos aos seus membros para que opinem, por escripto, remetendo suas respostas ao presidente que, por sua vez, apurará a opinião da maioria. A commissão poderá prestar, silenciosamnete, sem discursos, nem banquetes, bons serviços á nossa pátria e á nossa gente. (...) Espero que o nosso meio culto brasileiro comprehenda

as

louváveis

intenções

da

Commissão Central Brasileira de Eugenia[CCBE], que surge modesta em seus intuitos, concorrendo, também, com o seu valioso auxilio e, sobretudo, com a sua sympathia para a consecução dos seus elevados propósitos.75 Como pode ser visto, a proposta da formação da CCBE não previa uma localização fixa. As atividades da comissão seriam realizadas por meio de correspondências entre seus componentes, desde que se tivesse em comum a temática a ser discutida. A extinção das sessões e reuniões – criticada por Kehl – fornece uma pista do porquê desse novo formato. No 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, as sessões de Educação e Legislação – já citadas – estavam repletas de polêmicas, e ao final das reuniões poucas eram as opiniões de consenso. Tal dinâmica de trabalho da Comissão favorece também o debate entre Renato Kehl e pessoas de diversas partes do Brasil e do mundo. Estados como Pernambuco, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, entre outros, estavam representados nas correspondências recebidas por Renato, o que poderá ser visto no próximo capítulo.

75

KEHL, Renato. A Campanha da Eugenia no Brasil. In: Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, nº 2, Mar-Abr/1931. FOC

52

A maneira como Renato Kehl se coloca no texto reproduzido acima propicia uma outra compreensão de seu papel na rede de relações eugênicas. Ele se coloca no centro quando diz que as theses e outros assumptos levados á commissão serão remettidos aos seus membros para que opinem, por escripto, remetendo suas respostas ao presidente que, por sua vez, apurará a opinião da maioria. Portanto, Kehl coloca-se como responsável pelo bom andamento da comissão e pela intermediação entre seus participantes. Neste caso, Kehl é representado como a autoridade, o poder, o centralizador das decisões acerca dos rumos da CCBE. No entanto, ele não está sozinho no centro de sua iniciativa. Kehl conta com o apoio de setores da elite brasileira assim como, ele depende do conhecimento da mesma em relação às suas idéias. Nesse sentido, ao concluir seu texto, Kehl remete à necessidade de convencer os setores dominantes – Espero que o nosso meio culto brasileiro comprehenda... – para que seus objetivos fossem alcançados em esfera nacional. Tanto que trinta anos depois, num texto idêntico ao anterior, com pequenas reformulações, Kehl comemora o aniversário da comissão ressaltando as aplicações práticas e seus resultados. Prestou inestimáveis serviços. Realizou inquéritos sobre

imigração,

povoamento,

natalidade;

fez

intensa propaganda pelo rádio e pela imprensa; apresentou à Assembléia Constituinte de 1932 um longo memorial e sugestões que forma lidas e discutidas, tendo o então deputado paulista prof. A.C. Pacheco e Silva conseguido a aprovação do art. 138b que dispunha: ‘incumbe a União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas, estimular a educação eugênica’.76 Como poderá ser percebido adiante, um desses trâmites relativo aos inquéritos foi feito em conjunto com Oliveira Vianna, quando a Comissão foi designada a pensar os problemas da imigração no Brasil, para serem

53

apresentados ao Ministério do Trabalho. Além disso, encontra-se aqui talvez, uma das únicas leis diretamente eugenista, para estimular a educação eugênica no país. Algumas das premissas de Renato Kehl e do movimento eugênico são particulares ao momento histórico em que estão inseridas, no qual constavam a noção de linearidade da história e a concepção de tempo ascendente, em prol de uma regeneração da raça e seu aperfeiçoamento: Somos melhoristas, isto quer dizer, nos guiamos pela

Eugenía,

por

essa

grande

idea

do

aperfeiçoamento incessante, moral e physico, dos nossos semelhantes, pela progressiva regeneração, emfim, dos mesmos, no presente e dos seus descendentes no futuro”77 Muito antes dos eugenistas, no Brasil, pensava-se o problema da degeneração racial (na opinião de cientistas, antropólogos e sociólogos) como um impedimento para o progresso. As teorias degenerativas do século XIX tiveram diversos adeptos em nosso país. Ilustres como o Dr. Nina Rodrigues, Silvio Romero, Afrânio Peixoto e os viajantes que conheceram, escreveram ou desenharam o Brasil, entre os quais: Gustave Le Bon, Arthur de Gobineau, Lapouge, Debret, Saint Hilaire, Louis Agassiz e Charles Darwin, que descreviam a situação promíscua – como descreveu Lilia Schwarcz – em que viviam os homens do campo e da cidade, principalmente aqueles de ascendência negra ou mestiça que se ocupavam da vadiagem e pela herança do colonialismo e da escravidão que produziram os tais ‘elementos degenerados e instáveis’ que por sua vez eram incapazes de acompanhar o desenvolvimento progressivo do país. A visão das teorias degenerativas formou uma espera/demanda pela constituição de uma identidade brasileira. 78

76

KEHL, Renato. A Eugenia no Brasil: Registro de uma data comemorativa. Publicado no A Gazeta, março, 1951. Papéis Avulsos. FOC

77

KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit. p. 125.

78

SCHWARCZ, Lillia. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

54

Desta forma, a ansiedade por uma identidade genuinamente brasileira fez emergir – por parte de teóricos de diversas correntes – leituras de caminhos possíveis a serem percorridos pela nação para a consolidação de seu povo. Do branqueamento pelo cruzamento, do cruzamento entre raças somente (miscigenação) ou pelo segregacionismo das raças. A eugenia insere-se numa dessas leituras originadas no final do século XIX, mas implantada somente nas primeiras décadas do século XX, tendo em seu interior as três tendências de melhoria da nacionalidade citadas acima. Renato Kehl pertence à última corrente de pensamento, a segregacionista, como veremos adiante. Um dos aspectos mais interessantes no trabalho de perceber Renato Kehl como parte de um enredamento e, que vale a pena ressaltar, é que em absolutamente todas as biografias aqui citadas, os membros pertencentes às sociedades eugênicas (que em sua época publicaram artigos e travaram relações com Renato Kehl) não registraram em suas histórias a participação no metiér eugênico, seja em conferências, trabalhos, publicações, etc.79 Era o caso de perguntar: trataram – os participantes e simpatizantes do eugenismo – de apagar os resquícios de sua participação e limpar de sua memória e da história essa existência? Como exemplo podem ser citados alguns casos: Roquette-Pinto; Oliveira Vianna; Monteiro Lobato e Vieira de Carvalho, entre outros.80 Fica a impressão, também, que Renato Kehl foi deixado sozinho, como se somente ele tivesse participação ativa no eugenismo. Houve muito investimento e dedicação por parte da intelectualidade brasileira para a formação do campo da eugenia. Articulados em todo o país,81 esses intelectuais tinham como foco norteador a figura de Renato Kehl. Interessante é

79

Não me refiro aqui às obras produzidas no interior das universidades, mas de uma pesquisa paralela efetuada na internet e em livros e biografias, justamente para testar os efeitos prolongados dessa participação em meios de comunicação de circulação pública. O resultado dessa pesquisa apontou, na maioria dos casos, a omissão dos dados sobre a participação dessas pessoas no metiér eugênico.

80

Como fonte de pesquisa foram utilizadas: Almanaque Abril: Quem é Quem na História do Brasil; sites de busca na internet, principalmente http://www.google.com.br; Enciclopédia Encarta Digital 2000; entre outros.

81

Não estou aqui querendo inferir sentido de conspiração nacional em prol da eugenia nesse desenredamento. Restringimo-nos à idéia de rede que se evidencia no grande número de correspondências enviadas e recebidas por nosso vetor indicativo, Renato Kehl.

55

pensar de que maneira, após mais de 70 anos da plena divulgação da eugenia, não encontramos tal participação na biografia desses adeptos e investidores – o que nos abre um caminho de análise bastante interessante, já que questiona o próprio papel dos historiadores e seu comprometimento com a ética nas análises e abordagens de determinados temas. Daí a importância, neste trabalho, de apurar a rede de poderes que compunha a empreitada pela eugenia. Para isso, foi necessário traçar neste item o caminho das relações públicas entre Renato Kehl e os adeptos do eugenismo no Brasil. O próximo item abordará as relações públicas entre Kehl e os pensadores do eugenismo fora do Brasil. Chamando a si mesmo de simples propagandista da eugenia82, objetiva-se perceber qual era o tipo de relacionamento estabelecido por Kehl com a comunidade científica internacional.

82

KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit, p.12.

56

2.

Tupy or for Tupy? É irresistível fazer o trocadilho mais lugar-comum deste país83. Isso

prova que temos a quem copiar. Serve também para mostrar-nos que tudo o que nos mostram não necessariamente devoramos. Não precisamos somente ‘beber nos outros’ para saciar nossa sede de saber. Produzimos aqui também! Mesmo sabendo que às vezes mimetizamos o que vem de fora. A própria sobreposição criativa de culturas propicia esse processo de assimilar, transformar, devorar e devolver uma coisa (idéia, projeto, práxis) diferente da original, com a especificidade do local onde foi transformada. Se no item anterior problematizamos o eugenismo no Brasil, algumas de suas relações e atribuições, neste item, serão identificadas algumas das idéias estrangeiras for Tupy, que foram assimiladas pelo pensamento eugênico brasileiro. Partindo deste princípio, perguntamos: de que forma o pensamento eugênico chegou ao Brasil? Como esse discurso foi incorporado aqui? Sabendo da existência de múltiplas interpretações e linhas na eugenia, qual era aquela com que Renato Kehl mais simpatizava? Os Boletins de Eugenia84 servirão como fonte principal para esclarecer tais questões, por se tratar de uma publicação carioca que tinha o próprio Renato Kehl como editor chefe. Trata-se de um jornal em formato tablóide, publicado entre os anos de 1929 e 1931 – com tiragem de 1000 exemplares – visto, então, como um pequeno suplemento propagandístico85 sobre o pensamento eugênico. A leitura mais atenta de sua coleção de 36 números foi importante para a compreensão da problemática central a que nos propomos neste item. Quais eram os interlocutores de Kehl fora do Brasil? E quais temas discutiam?

83

Fazemos aqui uma pequena homenagem a Mario de Andrade, um entre muitos brasileiros que estimularam o “come-te-a-ti-mesmo” dos modernistas da Semana de 22.

84

Boletim de Eugenia/Instituto Brasileiro de Eugenia. Rio de Janeiro, RJ: O Instituto, 19291931. Suplemento da Medicamenta: Rio de Janeiro. (36 fascículos). Para conhecer mais ver a dissertação de mestrado sobre a abordagem educacional dos Boletins em: MAI, Lílian Denise, Boletim de Eugenia (1929-1931): um estudo sobre forças educativas no Brasil, Op. cit.

85

Pequeno porque tinha 4 páginas nas suas primeiras edições, passando a 8 até dezembro de 1931, período da coleção do Boletim a ser estudada.

57

Os Boletins foram observados sob a seguinte perspectiva: as notas e artigos que compunham cada edição, selecionando aqueles que falavam sobre os casos internacionais, e as notas escritas por autores estrangeiros. Surpreendente foi perceber que discorriam sobre um mesmo problema, o que André Pichot identificou como a genética das populações. A genética das populações considera que os cruzamentos entre indivíduos permitem ligar uma dada população a um conjunto de genes. Estuda, assim, através de métodos estatísticos, como evolui a proporção dos diferentes genes no seio dessa população, conforme beneficiam mais ou menos os indivíduos que os possuem. A genética das populações ignora quase por completo o indivíduo como ser social; preocupa-se apenas com o conjunto dos genes que constituem a população.86 No princípio do século XX, pouco se conhecia sobre a natureza do gene. Sabia-se, contudo, que a hereditariedade era transmitida através dos cromossomos. O gene era uma entidade teórica. A genética fisiológica87 estava reduzida ainda a uma expressão mínima. Em contrapartida, a genética das populações era uma disciplina de ponta. Em função dos métodos estatísticos herdados da biometria de Francis Galton e das leis de Mendel, podia-se estudar a composição genética das populações sem conhecer a natureza física do gene. Até a Segunda Guerra Mundial, a genética das populações dominou quase a totalidade da genética. A importância que se atribuía à seleção natural incentivava os eugenistas, que preconizavam uma seleção humana. Nesse contexto, havia uma crítica voraz ao assistencialismo, ou o que chamavam de “filantropia contra-seletiva”. A medicina, a filantropia, o sentimentalismo, em suma, contrariando a seleção natural, salvando e concorrendo para a multiplicação de fracos, doentes e degenerados –

86

PICHOT, André. Op. cit., p. 78.

87

A genética fisiológica estuda a natureza dos genes, o modo como são fabricados, transmitidos à descendência e se manifestam nessa descendência através deste ou daquele caractere anatômico, fisiológico ou bioquímico. A genética fisiológica trabalha no nível individual, ou, pelo menos, numa única linhagem, da qual estuda sucessivas gerações. Claude Bernard é considerado o pai da fisiologia. Pichot, Op. cit. p.83.

58

agravam ainda mais a decadência, o abastardamento do gênero humano.88 A lógica desse raciocínio é que, ao invés de cuidar e ‘criar’ homens mais sãos, para os eugenistas, a filantropia insiste em ‘proteger’ aqueles que são considerados degenerados. Por isso, segundo os eugenistas, se faz tão necessária a eugenia, especialmente para controlar e estimular os casamentos dos ‘mais aptos’. Não por acaso, o corpo se torna de modo inédito o centro das preocupações ao mesmo tempo políticas, empresariais e médicas. Cuidar do corpo, de modo a torná-lo apto para o trabalho, e a disciplina cívica se transformam em meios de possibilitar o governo da nação. Esta é a premissa do biopoder que percorre todo este trabalho e, na qual, o que vale é o controle sobre a vida e a morte. No lugar de investir nas potências da vida, o biopoder investe no poder sobre a vida, com o intuito de torná-la matéria-prima. No livro História da Sexualidade, Foucault entende o corpo, a partir do século XVIII, de duas maneiras distintas, mas não excludentes: o corpo como máquina, com seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na sua docilização; e o corpo como espécie, transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos, na proliferação, nos nascimentos e na mortalidade, no nível da saúde, a duração da vida89. Desde então, o desempenho do corpo é gerado por uma biopolítica, ou seja, por uma tecnologia de disciplinarização individual e das regulações da população, a que nos referimos acima. Ela possui duas faces: anatômica e biológica; individualizante e especificante, responsabilizando a cada um dos seres sobre a face da terra pelas conseqüências degenerativas da espécie humana. No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, podemos identificar alguns traços deste tipo de sociedade, representada pelo que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar.90 No entanto, esse governo do corpo é disputado entre instituições diferentes: escola, hospital, empresários, etc. Essa ‘guerra’ de interesse pelo 88

KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p.44.

89

FOUCAULT, Michel. Capítulo V – o direito de morte e o poder sobre a vida, In História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988 (14ª edição), p.131.

90

Idem.

59

corpo pode ser representada, por exemplo, pela disputa entre a Igreja – que propõe a cura da alma, com base assistencialista – e a ciência – que busca a conscientização do indivíduo para o cuidado de si. A ciência cria estratégias para que as pessoas se sintam responsáveis por si e, deste modo, parte da coletividade. Nas fontes, em particular nos Annaes de Eugenia, percebe-se que o eugenismo de Renato Kehl critica abertamente a atuação da Igreja frente aos problemas da sociedade. No entanto, ressalta Lenharo,91 a Igreja não descuidou de se apropriar da racionalidade e dos avanços científicos. Na imagem de Cristo – por exemplo – foram depositados os significados do Cristo que vigia, admoesta, policia e, através desta imagem, a Igreja não somente explicita o que pensa das relações de trabalho; ela faz da imagem o seu recurso de intervenção nas mesmas relações.92 Na nota A Loucura Homicida da Velocidade93, sem autoria definida, pode-se perceber a generalização de um discurso do terror e do medo, principalmente porque o argumento nos é bastante contemporâneo. Estão em destaque o nervosismo e o alcoolismo: Durante os cinco últimos annos foram mortos por automóvel, nos Estados Unidos da América do Norte 100.000 pessôas, das quaes 30 mil eram escolares. Cada 42 segundos morre uma pessoa por accidente automobilístico naquelle paiz, na base estatística acima. A maioria dos accidentes é devido ao alcoolismo e ao nervosismo 94 dos motoristas. Dois aspectos dessa nota chamam a atenção. Em primeiro lugar, o título: loucura homicida da velocidade é uma alusão aos problemas da vida moderna, tida aqui como fator negativo. Três palavras, três sentidos considerados negativos. Loucura, relacionada a um desvio mental. Homicida, relacionada a um desvio moral, ou seja, o crime. Segundo essa mentalidade, a velocidade é fruto do crescimento das cidades, que transformou o homem num

91

LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. Op. cit., p. 169.

92

Idem, p. 171.

93

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº5, Maio, 1929, p. 3. FDR

60

‘escravo do relógio’ pela disciplina da fábrica. O foco dos problemas apontados direciona para os causadores das mortes no trânsito, os bêbados e os nervosos. A crítica aos alcoólatras é resultado de uma situação agravada pela Lei Seca em vigor desde 1918 nos Estados Unidos.95 Destaca-se, também, a importância da genética das populações, revelada nos dados numéricos dos acidentes: ‘a cada 42 segundos uma pessôa morre por accidente’. O reducionismo matemático mostra o quanto esses acidentes atingem números assustadores. Perde-se, a noção de totalidade, pois os números somente assustam, por excluir o rosto da vítima, transformando-a numa estatística. Assustam ainda mais, porque os autores dos acidentes são indivíduos alcoolizados e nervosos. Os primeiros costumavam relacionar o crime, os segundos à loucura. Esse texto repete-se no boletim de setembro de 1929, com uma ressalva. É introduzido mais um primeiro parágrafo, que potencializa o efeito dos dados da nota. A mania da velocidade nos Estados Unidos da America do Norte tende a degenerar-se a uma calamidade geral. Cresce assustadoramente o numero das victimas desta perversidade (...).96 Ora, por que esse parágrafo foi acrescentado à nota? Seria porque a partir do número 6/7 o Boletim passa a circular como suplemento da Revista Medicamenta97? A ênfase no aspecto da degeneração crescente – lembrando o linear ascendente da linha evolutiva em seu sentido negativo – alcançará o caos, a calamidade. Mas, afinal, para Kehl e outros eugenistas, os Estados Unidos não são o exemplo de civilidade? Por que então enfatizaria esse discurso? Por que, sendo nessa época os Estados Unidos sinônimo de modernidade e civilidade, os eugenistas o vêem negativamente?

94

Em negrito no original.

95

CATTON, Willian B. História Moderna dos Estados Unidos, Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1965, p. 508. Apesar de estar em vigor, o comércio ilegal de bebidas, a partir da Lei Seca, gerou um novo hábito de beber em bares clandestinos e nas residências. Mas pode-se afirmar que muito antes da Lei Seca ser instituída nos Estados Unidos o alcoolismo já representava um problema social.

96

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro, 1929, p. 4.

97

A Revista Medicamenta era uma publicação mensal da Nacional Academia de Medicina.

61

Em A criminalidade na América do Norte98, artigo de Medeiros de Albuquerque, afirma-se que os casos de criminalidade nos Estados Unidos não são praticados pelos estrangeiros, como sugere Gabriel de Andrade e os daquele país. Argumenta com a tese de que os Estados Unidos foram originalmente constituídos de 500 mil criminosos degradados pela Inglaterra. Nesse sentido, para os eugenistas, os Estados Unidos, utilizando o princípio da Eficiência, implantaram a eugenia para livrar-se dos ‘mau gerados’ e limitar firmemente a imigração para aquele país, que desde 1917 restringiu a entrada de europeus do leste, negros, judeus e católicos, latinos e asiáticos, beneficiando principalmente as imigrações vindas da Grã-Bretanha, Irlanda e Alemanha.99 Não somente na Europa e nos Estados Unidos, como também no Brasil, o debate sobre imigração era bastante polêmico. Especificamente para os eugenistas, era uma questão fundamental. Abrangia questões de fundo relacionadas ao cruzamento de raças e ao “branqueamento”. Muitas vezes o discurso de Renato Kehl se mostrava contraditório a esse respeito, como se pode ver abaixo: O Brasil, que já é um ‘melting pot’ de raças, será dominado pelos elementos xanto-negróides, se uma política migratória enérgica não vier, com presteza, por cobro a tal ameaça.100 A tese de branqueamento101 pressupunha uma superioridade natural do branco. Mas essa superioridade não significava a determinação exata das características inferiores de negros e índios.102 Após a abolição da escravatura no Brasil, houve uma composição para o enclausuramento cultural do negro. No debate acerca da possibilidade de branquear o povo brasileiro, acreditava-

98

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 2.

99

CATTON, Willian B. Op. cit., p. 549.

100

KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p.206.

101

Para saber mais ver: SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

102

Idem, p. 12.

62

se que, sendo o gene branco mais forte, por meio de cruzamentos entre brancos e negros se acabaria por clarear o povo brasileiro.103 O problema da imigração no Brasil, na visão das políticas eugênicas, visava também a evitar a entrada de negros e asiáticos. Kehl reforça ironicamente: A nacionalidade embranquecerá á custa de muito sabão de côco ariano!104 Em outra nota o assunto muda completamente – esta é a curiosidade do setor105 de notas internacionais, seus assuntos são os mais diversos. Em Causas determinantes da prostituição,106 é de se surpreender com a quantidade de elementos apresentados: April Bent publicou os resultados da uma pesquiza feita entre 113 prostitutas. Em todas era notavel o temperamento sexual hereditário. Em algumas, evidenciava-se a instabilidade geral da esphera emotiva,

com

tendências

ao

alcoolismo.

A

deficiência mental e hereditariedade criminal foi encontrada em 67% dos casos. Cincoenta por cento das prostitutas provinham das classes inferiores da sociedade. Primeiramente, o título pretende apresentar as causas determinantes da prostituição. Segundo o Boletim, a prostituição poderia originar-se de três fatores que são sociais, mas também hereditários. Primeiramente, a prostituição seria devida a uma genética – quando uma prostituta tem uma filha, há grande possibilidade de que esta venha a ser uma prostituta. Em segundo lugar, o alcoolismo resultaria em prostituição. E, por fim, a instabilidade emocional – algo, aliás, pouco explicado, que permanece vago e genérico

no

Boletim,

resultaria

igualmente

103

Idem, p. 81.

104

KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p.241.

na

prostituição.

Assim,

105

Na verdade as notas internacionais não estão setorizadas, mas as defini assim, por se tratar de um mesmo viés de seleção.

63

hereditariedade, desvio social e moral e desvio mental estariam na base da prostituição. A dúvida fica para a última frase da citação do Boletim. Pertencem à classe alta da sociedade 50% das entrevistadas, ou seja, em qualquer das duas classes elas podem estar nos bordéis de luxo ou populares. Desta forma, através dos números e de um saber médico apoiado em estatísticas e no pressuposto de que os desvios contagiam gerações futuras, se extraiu o determinante da prostituição. Nenhuma análise sócio-histórica é considerada importante. Todas as razões que explicam a prostituição são, segundo o Boletim, de natureza moral e em particular biológica. Ao contrário dessa postura favorável ao determinismo biológico sabe-se o quanto a prostituição pode ser compreendida apenas levando em consideração suas razões históricas. Assim, por exemplo, Luiza Margareth Rago, em seu livro Os Prazeres da Noite107 estuda as transformações sócio-culturais que afetam a mulher na cidade de São Paulo. Discutindo a produção de discursos científicos, de caráter médico, jurídico e criminológico mostra de modo minucioso as estratégias para a consolidação das práticas de controle social sobre a prostituição em São Paulo. Diversas notas do Boletim tomam relevância no que concerne ao problema

da

genética

das

populações,

que

agora

se

mescla

ao

malthusianismo108 . As notas geralmente tratam de aspectos como imigração, índices de natalidade e mortalidade, diminuição ou aumento do contingente populacional. Como lemos em A Natalidade na Itália e na Europa:109 A Agencia de Roma’ extrahiu de um estudo estatístico germânico da ‘Wirtchaft und Statisk’ algumas interessantes cifras comparativas sobre o movimento da população na Itália, na Allemanha, na França e na Inglaterra durante o primeiro semestre de 1927 a 1928. Resulta de tal estudo que

106

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 5, Maio, 1929, p. 4.

107

RAGO, Luiza Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo, Paz e Terra, 1991.

108

Thomas Malthus (1766-1834), economista e demógrafo britânico, sua principal contribuição foi a teoria da população. Enciclopédia Microsoft Encarta 2000.

64

nesse período o excesso effectivo de nascimentos sobre mortes foi respectivamente de 213.017 e 239.518 na Itália, 194.370 e 213.287 na Allemanha, 61.397 e 80.277 na Inglaterra e Paiz de Galles e 148 e 39.734 na França. Calculando sobre 1000 habitantes o excesso dos nascimentos é pois na Itália de 11.5 e 11.8, na Allemanha de 6.2 e 6.8, na Inglaterra, 3.1 e 4.5 e na França 0.0 e 1.5. Fica evidente o problema europeu da estagnação do crescimento populacional. Aí está o cerne do problema europeu sobre eugenia, que rondava o debate da genética das populações. De acordo com esse texto, todos os países citados mostraram um número superior de mortes sobre os nascimentos. Daí surgem os dois problemas advindos da genética populacional que a eugenia tentava resolver. Primeiramente, na Europa, a diminuição dos nascimentos, muitas vezes ocasionada por ‘um nível de civilidade’ impedia a ‘procriação’, o que na verdade poderia ser lido como o aumento do número de mortes. Na Europa, portanto, a eugenia era pensada para selecionar os casamentos, garantindo a continuidade da prole dos indivíduos mais aptos, que correspondiam aos padrões de identidade nacional. Por isso, os eugenistas necessitavam estimular a procriação assistida, a fim de desenvolver e melhorar o patrimônio genético daqueles países. Já no artigo O malthusianismo na Ásia110 é possível perceber o reverso dessa interpretação. Esse texto é precedido de artigo nacional pedindo a diminuição da imigração do número de aborígenes ao Brasil. O artigo foi publicado no ‘Mercure France’ pela Dra. M. T. Nisot. Disserta sobre a crescente onda de nascimentos nos países da Índia, China e Japão. Apresenta várias estatísticas e a necessidade de os respectivos governos recorrerem ao birthcontrol, afirmando que:

109

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 6/7, Jun-Jul/1929, p. 4-5.

110

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 3.

65

(...)Os recursos territoriais serão dentro em pouco insuficientes

relativamente

à

progressão

da

população. Mostra-se o problema territorial no Japão em relação ao crescimento da população. Já no caso chinês, o problema é apresentado da seguinte forma: o país tem mais pessoas por milha² do que a Bélgica (país mais povoado da Europa), 873/657 pessoas por milha quadrada. De acordo com o artigo, houve resistência do governo japonês às idéias malthusianas, mas depois as autoridades cederam à necessidade do controle de nascimentos, assim como ocorreu na China. No caso indiano, houve um elemento novo: E a autora cita as ligas fundadas com esse fim [malthusianismo],

os

jornaes

favoraveis

ao

movimento, os professores e médicos que o auxiliam, fazendo notar que Mahatma Gandhi lhe é contrário.111 Parece que, nesse caso, o controle de nascimentos tem fins não só biológicos, mas também políticos. O líder pacifista Gandhi é posto como sendo contrário ao controle de nascimentos. É conhecida a sua resistência pacífica à influência inglesa na Índia, o que colocou no centro das discussões sociais as teses de natalidade. O Boletim, de certa forma, combate essa resistência de Gandhi, que é ao mesmo tempo política e nacionalista. Para os autores do Boletim, essa resistência representaria uma postura política, em que ciência e política se aproximam a fim de perverter o ideal de justiça e resistência reclamado pelo próprio Gandhi. No Boletim, o discurso da ciência acaba se sobrepondo ao da justiça social. O segundo problema a ser resolvido pelos eugenistas é o do aumento populacional nos países por eles considerados ‘pouco civilizados’. Pela procriação desenfreada dos ditos ‘inaptos’, o eugenismo serviria para endossar a tese de Malthus, de que o aumento populacional chegaria a tal ponto (crescendo em progressão geométrica), que a quantidade de alimento (crescendo em progressão aritmética) não seria suficiente para todos, assim 111

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 3.

66

como as condições de vida seriam mais insalubres, gerando um maior número de epidemias e miséria. Se partirmos do princípio – eugênico – de que nesses países o nível cultural é ‘inferior’, pela própria composição genética de seus compatriotas, as medidas eugênicas de seleção racial seriam um ‘prato cheio’. Portanto, o controle de natalidade está presente nos dois casos citados, no primeiro para estimular bons casamentos e no segundo para inibir a disseminação dos considerados ‘menos aptos’. Mas sempre há uma exceção. A Itália estava fora da estatística de diminuição populacional. No texto Preconceitos e erros acerca da população: a ilusão do número112, de F. Nilti (ex-presidente do Conselho de Ministérios da Itália), a questão das populações é mostrada com base na exceção do caso italiano, apesar de se condenar o excedente populacional nos países asiáticos. O autor afirma: Se o número fosse potencia, os ingleses e franceses estariam bem longe de sua grandeza e os hindus e os chineses seriam os donos da terra. Bastam 80 a 90 mil ingleses para dominar trezentos milhões de hindus. E justifica o caso italiano, que apesar de ter ‘muita gente’, tem ‘gente boa’: A Itália não pode viver sem emigração, sem ser um grande paiz industrial, sem levar pelo mundo o seu esforço de trabalho, os seus productos industriaes e agrários, a sua força de organização. Além de o texto afirmar a superioridade italiana e por conseqüência a européia, a ênfase na inferioridade dos hindus e chineses – de modo geral, os não europeus – é gritante. Na verdade, a teoria galtoniana de finais do século XIX já preconizava essas idéias de inferioridade e superioridade dos povos. Mas, no caso italiano citado acima, como em muitos outros (o Brasil por exemplo), pode-se perceber a aplicação de uma teoria de superioridade para

112

Artigo extraído do jornal O Estado de São Paulo, 31/03/28. Publicado em Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 8, Agosto/1929, p. 8.

67

justificar a necessidade de emigração dos trabalhadores italianos. O texto do Boletim conclui afirmando a potência de exportação da força de trabalho italiana, que por sinal chegou em grande quantidade no Brasil desde o final do século XIX e que ainda adentrava pelos portos brasileiros na década de 20.113 O trabalho de Iraci Galvão114 analisa a emergência no Brasil de uma nova mão de obra – o trabalhador livre – a partir da segunda metade do século XIX. Todo esse processo exigiu uma reformulação não somente dos processos de produção e da própria noção de trabalho, mas também das relações de dominação. Através de um código não escrito – diz ela – mas impresso nas relações e no comportamento entre as pessoas, a autoridade oficial e a influência pessoal se confundem. Todo o esforço para conduzir o regime republicano liberal nessa passagem trouxe as noções de Progresso e Civilização como argumento fundamental de persuasão para a necessidade da formação de uma nação democrática.115 Nesse sentido, a preocupação européia com a diminuição de seu contingente populacional é tão grande que são recorrentes as notas sobre o tema. Um concurso norte-americano realizado em esfera internacional tenta visualizar a origem do problema: Um prêmio de 3500 dollares. A ‘Eugenics Research Association’ offerece um premio de 3500 dollares a quem apresentar o melhor trabalho sobre as causas da queda na natalidade em differentes paízes da Europa durante os últimos quarenta annos. Os trabalhos deverão incluir uma relação de todos os estudos feitos sobre o assumpto, principalmente entre os povos do Norte ou de origem nórdica espalhados pelo mundo. Haverá preferência pelos trabalhos baseados em estudos objectivos. O curso

113

Para conhecer melhor o processo imigracional no Brasil e o debate em torno da política desenvolvida para regular esta prática no século XX, ver: LENHARO, Alcir. A Sacralização da política. Op. cit.

114

GALVÃO, Iraci. Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada. São Paulo: Hucitec, 1986.

115

Idem, p. 137.

68

está aberto para todo o mundo, as theses, porém, devem ser escriptas em inglez, allemão ou francêz, assignadas por um pseudonymo e acompanhadas de um cartão com o nome e endereço do autor. Os trabalhos podem ser enviados até junho de 1930 para a – “Eugenics Research Association – Cold Spring Harbor, NY – USA. Ressalta-se o destaque dado ao trabalho sobre a queda da natalidade, ‘principalmente entre os povos do Norte ou de origem nórdica’, considerados os remanescentes do Sacro Império Germânico, ou seja, os legítimos arianos, a raça ‘mais superior’. Para os eugenistas brasileiros, a crítica ao neomalthusianismo é enfatizada pela prevenção do controle de população através dos métodos anticoncepcionais. Nas palavras de Kehl: As idéias deste economista [Malthus] teriam os aplausos

dos

eugenistas

se

tivessem

como

finalidade combater o acréscimo progressivo dos tarados e dos degenerados. Porém, ao invés disso preconizam a restrição global da natalidade, tão somente com intuito de evitar os perigos da superpopulação.116 Na sua opinião, Malthus erra quando não prevê o controle galtoniano dos nascimentos, evitando que os degenerados nasçam e estimulando o nascimento dos mais aptos. Além disso, Kehl afirma que o mundo produz o dobro do suficiente para alimentar a população mundial.117 Outrossim, o propagandismo de Renato Kehl gerou alguns convites internacionais, entre os quais damos destaque para a pequena nota O Cruzamento de Raças:118

116

KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p. 214.

117

Idem, p. 213.

118

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº4, pág. 3. FDR

69

A Comissão de estudos do cruzamento de raças da International Federation of Eugenic Organizations, com sede em New York, dirigida pelo Prof. Davenport acaba de convidar o Dr. Renato Kehl para collaborar nessa commissão apresentando um estudo sobre o problema dos cruzamentos segundo o ponto de vista brasileiro. Mesmo sabendo da controvérsia que representa a miscigenação no Brasil – aqui colocada como cruzamento – o importante nesse texto é destacar que o preconceito da nota já revela a postura do Boletim em relação ao tema. O convite de Davenport a Renato Kehl é para a elaboração de um estudo sobre ‘o problema’ dos cruzamentos. Entende-se daí que estão falando das teorias de branqueamento, muito em voga nesse período, mas que também disputavam espaço com os favoráveis à purificação da raça por meio dos cruzamentos. Além de convites, os elogios ao trabalho de Renato Kehl eram sempre publicados, em traduções de cartas recebidas. No primeiro número do Boletim de Eugenia, numa pequena nota intitulada “Instituto de Eugenia”, Renato Kehl recebeu do diretor do Instituto de Eugenia de Berlim (anexo ao Kaiser Wilhelm Institut119 ) a seguinte carta: Distincto collega. O bello artigo publicado na Revista Therapeutica sobre o nosso Instituto, bem assim a remessa de algumas de suas obras e artigos, foi para nós motivo de grande alegria. Entreguei tudo, em tempo, ao Professor Fischer. Não deixarei de ler os seus valiosos trabalhos e de utilizal-os opportunamente. Espero, muito em breve, poder enviar-lhe um trabalho que lhe poderá interessar. Pela presente desejo apenas participar o 119

O Instituto Kaiser Wilhelm-Guilhermo de Berlim monopolizou toda a investigação sobre gases tóxicos durante a Grande Guerra, para sua aplicação em armas químicas. No entanto, essa não foi uma arma decisiva no conflito, já que a tradição militar era contrária e havia muitas restrições quanto à sua aplicabilidade. SANCHEZ RON, José Manuel. El poder de la ciencia: historia socio economica de la física (siglo XX). Madrid: Editora Sevilla, 1992, p.232.

70

recebimento de seus trabalhos e apresentar os meus agradecimentos. Muito grato, saudações respeitosas de Dr. Hermann Muckermann.120 Vale ressaltar a importância dessa primeira nota internacional publicada no boletim. A intenção de publicar essas notas ‘elogiosas’ a Renato Kehl dá credibilidade ao jornal e à própria comunidade médica brasileira. Na nota A Propósito de um livro121 , lemos: A propósito do apparecimento do livro ‘Lições de Eugenia’ recebeu o seu autor o Dr. Renato Kehl a seguinte carta do grande scientista allemão Prof. Eugen

Fischer.

“Presadissimo

collega,

Queria

receber os meus mais sinceros agradecimentos pela amável remessa do seu bello livro ‘Lições de Eugenia’. Absolutamente não há duvida de que V.S. acaba de prestar um grande serviço com este livro á Eugenia. Justamente num paiz como o Brasil elle é

extraordinariamente

útil.

Desejo

que

sua

campanha e que este seu belo compendio tenham merecido sucesso. Quanto eu posso julgar por uma rápida

leitura,

tratou

V.S.

com

elevação

e

segurança a Eugenía. Com os mais elevados agradecimentos o seu admirador, prof. E. Fischer (assig.). Diretor do Kaiser Wilhelm Int. Antrop. Eugenik de Berlim. Para além dos elogios tecidos pelo diretor do instituto berlinense, duas vezes a afirmação localizada no centro do texto – ‘justamente num paiz como o Brasil elle [o estudo da eugenia] é extremamente útil’ – demonstra o ideal de purificação da raça, bastante explícito, porque somos miscigenados. Tanto o autor [Dr. Hermann Muckermann], como o Prof. Fischer tornaram-se

120

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 1, Janeiro/1929, p. 3.

121

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 2.

71

colaboradores

freqüentes

dos

boletins

nas

edições

subseqüentes,

demonstrando certa afinidade entre essas instituições. Em nota sobre Charles Richet122, vice-presidente da Société Française d’Eugenique, pode ser lido: (...)membro do Instituto e Professor da Universidade de Paris em cartas dirigidas ao nosso diretor [Renato Kehl] após dizer em uma delas: ‘combien je suis

heureux

d’avoir

votre

approbation’

em

agradecimentos aos louvores a ele dirigidos pelo magnífico livro que publicou sobre Eugenia tem as seguintes palavras para esta sciencia: ‘de plus em plus je suis convaincu que c’est vers l’Eugénetique que doivent tendre tous nos efforts. C’est la science de l’avenir. J’ai cherché, moi aussi, de contribuer pour quelque peu au progres social, dans

ma

“Selection Humaine: Reussirons-nous à émouvir lês savants et le peuple?.123 Parece que o comentário de um membro da comunidade médica internacional dirigindo-se a Renato Kehl, legitima a iniciativa brasileira, como se este fosse um lastro. Há uma certa civilidade no intercâmbio entre as associações eugênicas, uma cordialidade, uma polidez no tratamento entre esses homens, muitas vezes denotando uma formalidade excessiva. Observando

a

relação

de

Renato

Kehl

com

as

instituições

internacionais, nota-se uma nova possibilidade de análise. O que pretendia Kehl ao publicar essas notas elogiosas? Reconhecimento nacional ou respeito internacional? Pensando na rede de poder de Kehl, esse mesmo viés de análise enfatizará sua relação com as associações internacionais. Na década de 30, o mundo contava com diversas sociedades eugênicas. Em sua grande maioria,

122

Charles Richet (1850-1935). Prêmio Nobel de Medicina em 1913 militava pelo aperfeiçoamento da espécie humana através da seleção. “(...) deixemos a seleção natural e tenhamos a coragem de fazer a seleção social”. Apud. PICHOT, André. Op. cit., p.27.

72

tinham publicações próprias. Constatou-se a existência de 27 associações em 1931, oito delas somente nos Estados Unidos.124 No primeiro exemplar do Boletim de Eugenia, encontramos uma nota bastante intrigante. Totalmente escrita em alemão, “Kleine Nachrichten” parecia um artigo com pequenos tópicos cujos nomes citados eram de eugenistas e higienistas brasileiros. A princípio, assemelha-se a um texto transcrito exatamente como fora publicado originalmente em algum veículo de imprensa no Brasil. Mas onde, quando, por quem? Não esclarecida a questão, pois não havia dados para responder a essa primeira indagação, adianta-se à uma segunda questão. Por que o texto estava escrito em alemão? Para dar credibilidade à matéria? Quem a leria? Um alemão, por certo. Isto nos faz pensar que o jornal circulava fora do Brasil – tendo em vista as notas anteriores e suas boas relações com o Instituto Kaiser Wilhelm-Guilhermo, de Berlim. Mas é apenas o primeiro número do boletim! Ademais, constatamos que no número seguinte havia uma nota em francês idêntica à nota escrita em alemão intitulada Petites Nouvelles125. Daí conclui-se que essa coluna era para a divulgação das ‘atividades da comissão’ eugênica no Brasil. No entanto, essa prática não se repetiu nas edições posteriores dos boletins. Finalizando, percebe-se que ao longo deste item, em todos os momentos, relacionou-se as políticas de controle e de regulação dos corpos com um discurso assumidamente racial e biológico que descartam quaisquer possibilidades de desenvolvimento positivo, ou seja, sem que haja uma intervenção biopolítica nos corpos.126 Na última nota, O Ensino de Biologia para os homens políticos, isso fica bastante claro, na medida em que a pressão por parte da comunidade científica sobre resoluções de Estado torna-se cada vez mais insidiosa. Discorre a nota:

123

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 1, Janeiro/1929, p. 3.

124

Boletim de Eugenia, Vol. 3, nº 32, Agosto/1931.

125

Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 2, Fevereiro/1929, p. 4.

126

Nesse período já é possível identificar um outro tipo de discurso que intervirá diretamente no corpo feminino – o discurso do embelezamento, desde princípios do século XX inferiu diversos significados ao ato de se embelezar e no período em questão, embelezar-se significava ser saudável, ativa e conseqüentemente feliz. Para saber mais ver o trabalho de SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté... op. cit.

73

Numa carta endereçada ao ‘Times’, em nome da ‘Eugenics Society’ da qual é presidente, Leonardo Darwin, filho do grande Charles, pede a introdução da biologia nos programas escolares, porque o conhecimento do quanto os maiores interesses nacionaes estão alliados á constituição biológica das gerações futuras, diffundindo entre as classes cultas, constitue a única salvaguarda verdadeira contra os perigos sociaes. Está hoje universalmente reconhecido que as leis da herança têm vital importância,

não



para

o

incremente

e

melhoramento dos productos da terra, como também para o desenvolvimento da vida humana. Darwin affirma em seguida que não unicamente os aspirantes a uma cathedra de apicultura devem possuir a adequada preparação sceintífica, mas é de summa importância que todos quanto aspirem um posto iminente na política nacional, na pratica ou nas colônias, possuam sólidas noções das leis que governam a existência humana e a sua evolução.127 Parece que o pedido de Leonard Darwin, para que o ensino da biologia fosse incluído nas escolas, reflete a valorização da medicina e da biologia expressa na necessidade de que todos aprendam, como numa formação doutrinária, a importância magna dessa disciplina. Como se não bastasse esse poder de apreender, o valor da doutrina é confiado às ‘classes cultas’, que têm a responsabilidade pelas ações de hoje e das gerações futuras, em prol da preservação da nação. O final do texto arremata brilhantemente: ‘todos quanto aspirem um posto iminente na política nacional, na prática ou nas colônias, possuam sólidas noções das leis que governam a existência humana e a sua evolução’. Além disso, a superioridade européia é representada pela Inglaterra,

127

Artigo extraído da Folia Médica, publicado em 30 de abril de 1929. Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 6/7, Jun-Jul/1929, p. 1-3.

74

que precisa ancorar-se nas ‘leis da existência humana’ para subjugar e gerir a vida dos ‘pobres coitados’ das colônias. Enfim, Renato Kehl era propagandista porque tinha influência ou tinha influência porque era propagandista? Creio que esse jogo de palavras jamais será solucionado. Investigando os homens de elite na década de 1930, poderá ser visto que, sendo médico, publicando artigos e com um mínimo de contatos era possível viabilizar soluções para muitos problemas. Renato Kehl obteve muitos beneficiamentos relativos a favores e indicações de colegas, como no caso do emprego que conseguiu na empresa Bayer por indicação de uma amigo muito próximo, Monteiro Lobato.128 Kehl possuía trânsito livre na comunidade médica, era muito bem articulado – como ficará mais claro no próximo capítulo, em que o discurso público dos Boletins de Eugenia será levado para a privacidade de suas correspondências – todavia não consolidou para si de fato, ao longo de sua trajetória, um lugar respeitável129 na comunidade médico-científica, apesar de ter dedicado toda sua vida a ela. O caminho encontrado por Kehl para conquistar o sucesso da eugenia foi atingir inicialmente a elite, para depois convencer a população de seus propósitos. Portanto, as estratégias na rede e da rede são postas em prática por seus membros, a fim de conquistar o maior número de adeptos. O sucesso da eugenia está ligado, antes de tudo, à conquista da opinião pública e, em particular das pessoas cultas.130 Essa conquista da classe culta representava uma espécie de aval para que as práticas eugênicas de melhoramento da nação brasileira fossem executadas. Isso quer dizer que se trata de uma estratégia para a dominação da opinião pública e do povo, mas que, antes de tudo, deverá ser avalizada pela classe culta.

128

Carta de Monteiro Lobato a Renato Kehl, São Paulo, Fev/1920. (Livro I)

129

Quando digo respeitável, refiro-me ao obscurecimento de seu nome e de sua atuação ao longo de sua vida dedicada aos problemas da eugenia no Brasil e que, ao contrário de outros pensadores, caiu no esquecimento. Talvez este esquecimento seja devido à grande repulsa da comunidade médica e da grande sociedade às práticas eugênicas após a 2ª Guerra Mundial, em que Adolf Hitler empregou a eliminação de diversos tipos, considerados por sua ideologia, indesejáveis. Entre eles estavam: negros, judeus, homossexuais, ciganos, deficientes físicos, entre outros.

130

KEHL, Renato. No século da Eugenia, In Imprensa Médica. Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 231, 15/01/1937.

75

Os eugenistas não devem preocupar-se em traçar programas para terem o prazer de os ver

completamente

realizados.

Se

fosse

assim, não se teria construído a catedral de Colônia, que levou vários séculos para ser concluída. Renato Kehl

C APÍTULO 2 – B ASTIDORES E UGÊNICOS 1. “Relações Epistolares” 1 Este capítulo tem por objetivo investigar as relações epistolares de Renato Kehl, levando a problemática do eugenismo e da constituição da rede eugênica da esfera pública – publicações em jornal, livros, conferências – à esfera privada. As fontes principais são parte da coleção de cartas inéditas emitidas e destinadas a Renato Kehl entre os anos de 1919 e 1946. Até aqui, os dados da constituição formal da Sociedade Paulista de Eugenia e da Comissão Central Brasileira de Eugenia foram captados de sua esfera pública, ou seja, do que foi divulgado oficialmente nos meios de comunicação. Agora, a proposta é levar a construção da rede de relações eugenistas ao âmbito privado, naquilo que será chamado de Bastidores Eugênicos. Se, no capítulo anterior, o enredamento de Renato Kehl foi pensado a partir de suas relações institucionais e públicas – em associações, jornais, sociedades e faculdades – neste serão as relações pessoais e íntimas que darão a tônica da problematização acerca do eugenismo. Cartas de cunho pessoal, demonstrando relações familiares e de amizade, interesses políticos, editoriais e relacionados à aplicação do eugenismo no Brasil constituirão o corpus documental principal neste momento da dissertação. Para pensar os bastidores, o leitor é convidado a acompanhar a metáfora do teatro, numa analogia com nosso objeto. Entre o palco e a platéia existe a coxia. É na coxia que ocorrem a conversa, a concentração dos atores, a troca de roupa, a composição de novos personagens, maquiagem, figurino, cenário, camareiras, assistentes e objetos cênicos. Contudo, no teatro, os bastidores estão também em outro local, além da coxia. Atrás da platéia – na parte mais alta do teatro – é onde trabalham iluminadores,

1

Esta expressão foi usada por Renato Kehl em resposta à carta de Paz Soldan (médico eugenista peruano) em que revela seu empenho na formação de alianças e contatos através de correspondências escritas. Diz: Vou escrever a este notável eugenista espanhol [ Luis

77

sonoplastas e o diretor, que dali tem uma visão mais global (o desenho cênico) e de como se desenrola a ‘trama’ teatral. Tanto quanto o pessoal que fica nas coxias, atrás da platéia tem-se também o controle do espetáculo. Para o espectador, muitas vezes, o teatro é o cinema ao vivo, sem uma relação direta entre a platéia e o ator. No entanto, a base da experiência teatral é o improviso, o inconstante e a troca de energias entre o palco e o público. Apesar disso, pode-se dizer que o teatro é também o controle, a vigilância, a regulação do tempo e do espaço para uma finalidade específica. – mostrar a arte, o show, principalmente se forem levados em conta todos os aspectos descritos acima, que fazem parte de toda a construção cênica, ou seja, a própria noção de bastidores. Quando o espetáculo se inicia, vemos a movimentação cênica de forma harmoniosa, calculada e marcada, na qual aparentemente não há falhas nem conflitos. A noção de bastidor vem da idéia daquilo que está por detrás das cortinas, escondido do público. Em nossa analogia, para o objetivo desta pesquisa, trata-se do que não foi dito nem publicado, mas escrito, entre duas pessoas. À essa idéia de bastidores liga-se uma outra. Sendo a correspondência uma relação travada entre duas pessoas, pressupõe-se que tratam de questões íntimas – no sentido daquilo que está no interior dessa relação – que interagem através da escrita, com confiança e cumplicidade. De fato, confiança e cumplicidade são indissociáveis do exercício da correspondência entre duas partes. Foi necessário lançar mão de alguns instrumentos teóricos para ler essas cartas. A epistolografia – a arte de analisar cartas – propicia o estudo da correspondência através dos tempos, permitindo a reconstituição parcial de relatos e fatos, por intermédio de uma ótica mais particular, mais subjetiva.2 Ora, a função primordial da carta sempre foi utilitária, pragmática. O

Huerta] que há muito tempo desejo contar entre os amigos com os quaes mantenho relações epistolares (...). Renato Kehl à Paz Soldan. Rio de Janeiro, 10/12/1928.

78

estreitamento das distâncias entre dois missivistas requer um terceiro elemento, intermediário – o correio (materializado também na pessoa do portador da carta, do mensageiro). Esta função é tão importante quanto as do remetente e do destinatário, por assegurar e garantir a chegada da mensagem escrita do local original a seu destino final, confirmando com sucesso a leitura da mesma. Nílvia Pantaleoni sugere, para a segurança do conteúdo da mensagem, ou seja, para que a mensagem não seja lida por ninguém além das partes envolvidas na conversa, que os mensageiros fossem analfabetos.3 Sem tal radicalismo, os correios oficiais passaram a assegurar a integridade das correspondências e sua não violação. Muitos remetentes aproveitam a fórmula epistolar para expor suas opiniões políticas, morais, filosóficas ou religiosas. Um exemplo desse tipo de composição está nas páginas do romance epistolar de Goethe, Werther, em que história e ficção se superpõem no relato de um tempo.4 Para que haja uma relação entre as partes, o ato de abrir o envelope de uma correspondência recebida acaba por autorizar o início da interação. Essa interação pressupõe uma ratificação recíproca, ou seja, responder à carta de alguém é declarar que se está aberto ao outro e vice-versa. Desta forma, este capítulo pretende mergulhar o leitor na atmosfera íntima da interlocução a que Renato Kehl estava sujeito enquanto membro expressivo do eugenismo brasileiro, muitas vezes escrevendo cartas a intelectuais, políticos e amigos, sempre inseridas nas respostas que recebeu dessas pessoas, idéias, comentários e sugestões visando ao sucesso do eugenismo. O corpus documental que será trabalhado aqui consta de um conjunto de cartas encontradas no centro de documentação da Fiocruz/RJ, em ótimo estado de conservação. Foram encontrados livros encadernados em capa

2

PANTALEONI, Nílvia Teresinha da Silva. As cartas de Ruy Barbosa a Maria Augusta e de Monteiro Lobato a Purezinha: a interação por escrito e as metáforas do amor. Dissertação de Mestrado. Língua Portuguesa, PUC/SP, 1999, pág. 3.

3

Idem, p. 7

4

GOETHE. Obras Completas. Buenos Aires: Libreria “El Ateneo” Editorial, 1953.

79

dura, com a inscrição “Autógrafos”5 na primeira capa. Neles constam as respectivas cartas, coladas, uma em cada página, em ordem cronológica de recebimento. Pode-se observar o caráter extremamente exigente e metódico de Renato Kehl pelo modo como tais cartas estão acondicionadas: todas em ordem cronológica, com números seqüenciais escritos à mão no canto superior de cada carta, transcritas, se escritas com letra de difícil interpretação pelo remetente, e muito bem conservadas, sem amassados ou pingos e manchas no papel ou dobras muito firmes. Ao que tudo indica – pela existência de dois tipos de letra nos livros, ao lado das cartas – Eunice Kehl era a responsável pela organização da correspondência recebida por seu marido,

ocupando

correspondência

o

posto

registra

de

secretária.6

verdadeiras

Em

conversas

alguns entre

casos,

a

remetente

e

destinatário. Assim, muitas vezes, o papel entre remetente e destinatário se confunde, por não ficar evidenciado qual foi a primeira das partes a enviar a carta. De qualquer maneira, fica claro que Renato envia muito mais cartas do que recebe. Na maioria das vezes, as cartas dessa coleção são respostas a correspondências enviadas anteriormente por Renato, pois elas trazem em si as respostas a possíveis perguntas, ou agradecimentos ao envio de exemplares de livros recentemente publicados, tal como pode ser visto a seguir: Recebi com grande prazer os dois exemplares dos trabalhos de V. Excia. – Sexo e Civilização – e – Lições de Eugenia. (...) Fico-lhe grato e irei juntar á minha leitura o cabedal precioso que me servirá de orientação

no

assumpto

de

interesse 7

profundamente ligado ao nosso – Destino.

5

São três livros de cartas que foram intitulados por Kehl, respectivamente: Livro I (19121929); Livro II (1929-1932) e Livro III (1933). FOC

6

O fato de Eunice ser secretária de Renato Kehl indica que ela organizava também a correspondência recebida por Renato. Esta é uma suposição que leva em conta os comentários que parecem ser de Renato e outros, feitos por alguém que organizou o material, mas nunca respondeu em nome do titular das cartas, Renato Kehl.

7

General Meira de Vasconcelos a Renato Kehl, Rio de Janeiro, 17/03/1936.

80

Conforme pedido, nesta data lhe remeto um exemplar da these do doutorando Monteleone sobre ‘5 Pontos de Eugenia’.8 Agradeço de coração ter se lembrado de mim. ‘Bioperspectivas’ não é só o melhor de teus livros: é um livro grande e belo.9

Por esse motivo, uma outra perspectiva delimitou o processo de análise da documentação. Foi necessário ler as cartas duplamente, isso quer dizer, observar uma seqüência cronológica de recebimento de cartas de um mesmo autor endereçadas a Renato. Isso porque, como seria de esperar, são poucas as cópias das cartas enviadas por Kehl. Portanto, houve a demanda por entender o sentido das cartas enviadas a Kehl levando em conta que se tratavam, na maioria das vezes, de respostas com elogios, comentários e novas perguntas a ele. Foram encontradas também diversas cartas soltas, aqui denominadas papéis avulsos, que constituem parte da correspondência recebida num período posterior ao ano de 1933 e que não foram integradas a nenhum livro de Autógrafos. A coletânea de cartas foi escolhida de forma bastante aleatória, levando em conta a autoria das mesmas. No total, foram arroladas para esta dissertação 74 cartas, o que representa um número pequeno diante de toda a coleção. No entanto, utilizaremos somente uma parte desse material10 para ressaltar

alguns

aspectos

da

composição

e

do

conteúdo

dessas

correspondências entre Renato Kehl e seus aliados e críticos. Figuram nesse conjunto de cartas nomes de ilustres intelectuais do período, tais como: Cecília Meirelles, Charles Davenport, Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre, 8

Borges Vieira a Renato Kehl, São Paulo, 23/04/1929.

9

Roquette Pinto a Renato Kehl, Local não identificado, novembro/1938.

10

É importante ressaltar a relevância do material documental disponível para pesquisa no Fundo Renato Kehl, na Fiocruz/RJ, que contribuiria de forma bastante positiva para pesquisas relacionadas ao tema do eugenismo, sobre a vida de Renato Kehl e sobre a epistolografia.

81

Maria Lacerda de Moura, Monteiro Lobato, Oliveira Vianna e Roquette-Pinto, entre outros. O termo publicista serve bem para determinar a atuação de Renato Kehl no movimento eugenista. Ele divulgava os ‘fatos novos’ a seus interlocutores, como os lançamentos de livros; intercambiava endereços com outros eugenistas do mundo; fazia convites para conferências; solicitava opiniões editoriais, etc. Foi assim que estabeleceu relações – primeiro epistolares, depois pessoais – por exemplo, com Monteiro Lobato (que poderá ser visto adiante, em carta de 1918) e com Oliveira Vianna. Como se lê a seguir: Aproveito a opportunidade para dizer-lhe que desejava muito conhecel-o pessoalmente. De longa data acompanho com muita sympathia e grande admiração a sua brilhante e laboriosa vida de publicista e sociólogo.(...) Caso permita irei um dia visital-o ahi em Nictheroy.11 Além daquelas correspondências estabelecidas com ‘desconhecidos’ – o que requeria certa formalidade – outras cartas eram menos formais. Familiares correspondiam-se com freqüência com Kehl. São exemplo seu pai, irmãos e Gustavo, que têm o mesmo sobrenome Kehl e, ao que parece, buscam nessas cartas esclarecer suas relações de parentesco: Acabo de receber uma carta do meu primo em Wessel

acusando

recepção

da

minha

carta

referente ao assumpto das relações que talvez existam entre nossas famílias. Ele terá muito prazer de s’ocupar d’isso e esperamos que seja habilitado de nos dar o nome de primos.12 Essa comunicação, cujo objetivo é localizar as relações de parentesco, mostra uma importante preocupação em se construir a árvore genealógica da

11

Renato Kehl a Oliveira Vianna. Rio de Janeiro, 04/09/1931.

82

família Kehl, de origem alemã, para que se possa identificar a ascendência tão buscada pelos eugenistas. Quem sabe, na busca pela origem de seus antepassados alemães, os Kehl não encontrariam Siegfried, o lendário herói ariano? Contudo, dentre as cartas recebidas de familiares, destacam-se especialmente aquelas trocadas com seu irmão mais novo, Wladimir Ferraz Kehl, também médico. O conteúdo das conversas entre ambos é bastante diverso. Transitam dos assuntos pessoais aos filosóficos. Sempre num tom irônico e bem humorado, Wlad – modo como Wladimir assina suas cartas (e como peço licença para referir-me a ele) – discorre sempre elogios e críticas a seu irmão mais velho. Numa carta de 19 de abril de 1923, mesmo ano de publicação de Lições de Eugenia e Como escolher um bom marido, a ambigüidade da relação entre ambos se evidencia: (1)19/04/1923. Renato, O seu livrinho ‘Como escolher...’ chegou-me às mãos justamente no meu dia de annos. Confesso que fiquei na duvida: será coincidência, ou trata-se mesmo de um presente de anniversario? Seja lá como for; alegrou-me receber mais um trabalho seu de indiscutível utilidade e deliciosamente

pequenino.

Não

interprete

desfavoravelmente o termo. Livro daquelle tamanho enfia-se no bolso e, mal se apresente occasião, a gente abre e lê: enquanto espera o bond, ou mesmo no bond... É muito commodo. Dois dos capítulos que o compõe já os conhecia das columnas do ‘Jornal’, o outro foi novidade. (2) Realmente, se eu fosse moça e recebesse no meu 30º anniversário um livro com aquelle título, certo tomaria o presente como uma insinuaçãozinha perversa...

12

A

Capa

com

a

sua

gravura

Gustavo A. Kehl a Renato Kehl. A bordo do navio Itaquatiá, 12/12/1921.

83

graciosamente

idyllica

e

o

título

realmente

suggestivo garantem o sucesso da edição, não falando já no que vae escripto dentro. (3)Tenho para mim, entretanto, que se o livro se intitulasse ‘Como achar um bom etc.’, ou mesmo ‘Méthodo pratico para achar um marido’, não haveria mãos a medir. Oiço dizer que um marido é hoje artigo de luxo, - um ‘bom’ marido será então uma ave, já não direi ‘rara’ mas rarissima! (4)Infelizmente todos os bons conselhos de que o livro vae recheado não me podem valer, você porem fica intimado a escrever um outro, não menos útil, ensinando aos rapazes de boa vontade de ‘como escolher uma boa mulher’, digo esposa, para o que não lhe faltará a Tríplice autoridade de estheta, de eugenista e de marido feliz. Eu fico esperando os ensinamentos de sua experiência, convencido de que você o escreverá, nem que seja apenas por amor à symetria. (5)Agora neste ponto, surge-me uma curiosidade: o que pensarão as mulheres em geral, desse ‘escolhe marido’? Creio haveria muito a (......)se ellas quisessem falar... Mas passemos adiante que isso é maldade e eu sou, você sabe, dos ‘taes bonzinhos’. (6)Por falar nos ‘taes bons’ lembra-se agora que você citou o meu sempre admirado F. Nietzche por duas vezes no seu livrinho e em ambas você lhe arranhou a autoridade. Se dar conselhos, e principalmente bons conselhos não fosse coisa perfeitamente inútil e indiscutivelmente inmoral (porque desmoraliza a pessoa a que se fala) eu aconselharia a você a que lesse a opinião de

84

Zarathustra sobre o ‘filho no matrimonio’. Estou certo de que você começaria a considerar F. Nietzche como eu o considero: o apostolo de um eugenismo transcendente, cujo ideal não está ali no ‘mens sana, etc.’, mas um

pouco mais alto, no

‘Superhomem’... É permithido a cada um fixar o seu ideal, quando o tenha, na altura que quiser: uns ao nível do estomago, outros, mais baixo ainda..., em compensação há os (como N.) que visam ‘par delà de

bien

et

nietzcheano...

de

mal’

para

(7)Quando

falar

recebi

o

no seu

jargon livro,

acabava de ler um ensaio de Schopenhauer sobre o Amor

e,

se

não

temesse

uma

contradição

escandalosa recomendaria a você a leitura como útil e interessante (aparte o colorido metaphysico), mas depois do que ficou dito dos conselhos, desisto... (8)No estado de espírito em que estava no momento, bastou o título do livro para suscitar immediatamente

uma

porção

de

perguntas,

daquellas perguntas que estão sempre á espera de resposta satisfactoria. Duas dellas: tratando-se de casamento por inclinação mútua, é possível uma escolha fria e calculista? E dado que fosse possível, seria razoável dar-se prioridade ao critério eugênico em prejuízo do sentimental? Falemos ‘in concreto’: a uma moça apresentam-se 2 candidatos; um tem todas as bellas qualidades exigidas no código eugênico, o outro, coitado, só tem uma: a de ser sinceramente amado. Para qual deve pender a escolha? Fio que você como eu, como todo mundo, se tivesse de intervir na pendência e não grado

85

todos os preceitos eugêncios, dizia: vae, menina e casa com o teu amado... Não tivesse já o Ecclesiastes dito no seu sábio epicurismo: váe e gosa a vida com a mulher que amas. Claro está que tudo isso depende da existência real daquele deusinho nu, com arco e flechas envenenadas. Parodiando aquele autor cujo nome me esquece agora, poder-se-ia dizer: la nature a sés raisons que la raison ne connait pas.... (9)Bom, façamos de conta que estamos de accordo e terminemos. (10)Você se queixa sempre de muito trabalho, dando apesar disso a impressão de que você mesmo o procura; oiça: trabalho demasiado faz mal á saúde, degrada o homem e, além disso, como dizia O. Wilde é o recurso dos que não tem nada mais a fazer... (11)E agora, depois desta enxurrada de asneiras você tem o direito de descansar, mas antes abrace o Wlad, não se esqueça homem de recommendarme a Eunice e de beijar o Victor Luiz por mim.13 Optou-se por colocar esta carta na íntegra para que se tornasse possível verificar a desenvoltura com que Wlad conduz a conversação. Densa e erudita – cita Nietzsche, Schopenhauer, Oscar Wilde, o Eclesiastes – crítica e elogiosa ao mesmo tempo, foi separada aqui em onze partes que tratavam respectivamente de onze temas diferentes, a saber: 1. Agradece o recebimento do livro e comenta-o, ressaltando sua utilidade, que questionará adiante, e o tamanho cômodo, que pode ser lido em qualquer lugar. 2. Ironiza a coincidência do recebimento do livro em seu trigésimo aniversário, o que seria para uma moça com trinta anos uma ofensa ou insinuaçãozinha

86

perversa por sugerir que tal moça estivesse ‘encalhada’. 3. Ao comentar o título do livro, Wlad lembra que, tendo em vista a dificuldade de encontrar um marido, visto como artigo de luxo, um bom marido seria então uma ave não rara, mas raríssima. Poderia a escassez de bons maridos, descrita por Wlad, ser vista como uma crítica ao comportamento masculino? Wlad crê que por sua aplicação prática o livro devesse chamar ‘Método prático’ ou ‘Como achar...’. 4. Wlad sugere que Kehl escreva um livro para os rapazes de ‘Como escolher uma boa mulher’14, pois, com elogios reconhece em Kehl o que chamou de Tríplice autoridade (esteta, eugenista e marido feliz). 5. Curiosamente, Wlad ironiza, perguntando a Kehl o que pensarão as mulheres sobre esse escolhe marido, escrito por um homem,15 e sinaliza que isso poderia ser um problema ao irmão. 6. Wlad aponta que Renato menciona Nietzsche por duas vezes, em afirmações que desqualificam o filósofo, invertendo seu sentido. Wlad, sendo admirador confesso desse autor, mostra uma primeira divergência teórica entre os irmãos. Diferentemente de Renato, Wlad considera Nietzsche o apóstolo de um eugenismo transcendente, cujo ideal não está ali no mens sana, mas um pouco mais alto, no super-homem. Desta forma, pode se considerar que, se Renato faz uma crítica a Nietzsche, desqualificando suas análises, Wlad entende-o de outra forma, já que o super-homem é visto por Nietzsche como um tipo de perfección absoluta, opuesto al tipo del hombre ‘contemporáneo’, del hombre ‘bueno’ que forma parte del cristianismo y otros nihilismos16. 7. Refere que recomendaria Schopenhauer (um ensaio sobre o Amor), se isso não fosse uma contradição, dado o conteúdo prático do livro de Renato, ficando o amor em segundo plano quando se escolhe racionalmente um marido. 8. Mais uma vez Wlad sutilmente critica a proposta do livro de Renato, fazendo a ele tais perguntas: 13

Wladimir Ferraz Kehl a Renato Kehl, São Paulo, 19/04/1923.

14

Este livro (Como escolher uma boa esposa) Renato Kehl publicará em 1926 pela Editora Francisco Alves: Rio de Janeiro, obedecendo, nas palavras de Wlad, seu amor à symetria.. Idem.

15

Esta pergunta de Wladimir mostra o quão machista era a literatura, já que homens escrevendo às mulheres uma fórmula de como escolher um bom marido parecia-lhe uma tanto equivocada.

16

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo.Barcelona: Edicomunicación, 1997, pág. 72.

87

é possível fazer uma escolha calculista quando um casal se ama e, dessa forma, dar prioridade ao fator eugênico? Responde polemizando que a postura de Renato, como a de todos, seria a escolha pelo amado, ao invés daquele outro pretendente eugenizado. Argumenta usando a imagem do Cupido: o amor quando surge é implacável e não há tentativa de controle sobre isso que obtenha sucesso: “A natureza tem razões que a razão desconhece”. 9. Wlad desiste da controvérsia sobre a temática do livro escrito por seu irmão Renato e finaliza a carta fazendo novos elogios e recomendações. 10. Fala sobre o excesso de trabalho muito acenado por Kehl nas cartas que recebe e afirma que trabalho demais faz mal à saúde e degrada o homem, ou seja, é um prejuízo à saúde e vai contra a proposta dos eugenistas. Lembrando Oscar Wilde, escreve que trabalho demais é o recurso daqueles que não têm nada mais a fazer. 11. Ao final, levanta uma ‘bandeira branca’ depreciando suas próprias palavras: depois dessa enxurrada de asneiras você tem o direito de descansar, enviando um abraço afetuoso e cumprimentando Eunice e o filho de Renato, Victor Luis, que falecerá aos 14 anos.17 Se o livro de um eugenista falando do modo como as mulheres devem encontrar um bom marido é motivo de críticas de seu irmão próximo, com maior ênfase deveriam vir as críticas de mulheres motivadas pela busca de espaço no interior do próprio eugenismo, dominado por homens em torno de Renato Kehl. Além da participação de sua esposa Eunice, filha de Belisário Penna, identificamos outras vozes femininas, como as de Celina Padilha, Hildegart, Maria Lacerda de Moura e Cecília Meirelles. Hildegart, estudante de doutorado em direito na Espanha, empenhavase na divulgação da eugenia em seu país, através de ligas e escritórios de birth-control. Considerada uma menina prodígio desde os primeiros anos de vida, foi criada por sua mãe, Aurora Rodriguez, mulher de família abastada, que simpatizava com as idéias libertárias e com o eugenismo. Criou sua filha

17

A dedicatória do livro de Renato Kehl, Typos Vulgares. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1946, é uma homenagem ao filho morto Victor Luis Penna Kehl.

88

com conselhos de médicos e pedagogos, e aos 13 anos Hildegart já havia concluído o curso superior em Direito. As relações entre anarquistas e eugenistas eram bastante comuns na Espanha das primeiras décadas do século XX, tendo em vista uma eugenia que proporciona a melhoria do corpo através da saúde corporal e mental, do naturismo e da educação sexual. Essa linha de pensamento anarquista que se relacionava com o eugenismo rechaçava os ensinamentos católicos, em prol da ciência. A ciência era para os anarquistas um sinal de progresso, ligada ao evolucionismo e contra a religião.18 Hildegart era amiga pessoal de Leonard Darwin19. As cartas não indicam onde ela conheceu Kehl, mas eles passaram a se corresponder após o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Numa dessas cartas, Hildegart pede a Renato um volume das atas de trabalho do referido congresso: He leido sobre ello [Congresso Brasileiro de Eugenia] un interesante trabajo publicado por Vd. en ‘The Eugenics Review’, a la que estoy suscrita, y que Major Leonard Darwin, me señalo con especial interés hablándome con grandes frases elogiosas de Vd. y de labor que en America realiza Vd.20 Em maio do mesmo ano, Renato Kehl escreve a Hildegart. Na resposta Kehl felicita-a pela fundação da Liga para a Reforma Sexual sobre Bases Científicas. Kehl indica o nome de três especialistas brasileiros em questões sexuais para que Hildegart estabelecesse intercâmbio epistolar: Professor Júlio Porto Carrero, José Cavalcante e Ernany de Irajá. De acordo com Kehl, são cientistas que encaram o problema dentro das normas modernas. Essa 18

Raquel Peláez escreve um belíssimo livro sobre o parricídio de Aurora Rodriguez sobre Hildegart em 1933. PELAEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas. Criminales o locos? Madri: Cuadernos Galileo de Historia de la Ciência/Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1987.

19

Filho de Charles Darwin e grande incentivador do eugenismo. PELAEZ, Raquel A., La eugenesia em América Latina, op. cit. , p. 131.

20

Hildegart a Renato Kehl. Madrid, 17/01/32 O fragmento mostra que além das publicações nacionais Renato Kehl publicava trabalhos em jornais fora do Brasil, neste caso o The Eugenics Review..

89

respostas nos sugere uma pergunta: quais são as normas modernas para discutir a sexualidade, principalmente se entre os cientistas indicados por Renato Kehl só há homens? No mínimo, as determinações sobre a sexualidade, na opinião dos eugenistas, seguirão sempre na linha de preservar a mãe para a vida doméstica, para cuidar e educar os filhos, e os homens para a vida pública, e para educar seus filhos mais crescidos durante a adolescência.21 Esses pressupostos dividem em três séries os estágios de educação dos filhos e a cargo de quem ficaria a educação em cada um desses estágios: na primeira série, sob responsabilidade da mãe ou da tutora; a segunda série, a cargo do pai ou do tutor, e a terceira a cargo do educador e do médico.22 Renato afirma ser mais eugenista do que conhecedor das questões sexuais, e como tal cuido desse assumpto [sexualidade] não como especialista, mas por necessidade da íntima correlação que existe entre os problemas eugênicos e os problemas sexuais. Apesar desta declaração, seu trabalho na Conferência Nacional de Educação prega o controle da sexualidade através da educação sexual, de modo esquemático. Trata-se, talvez, não de um especialista no assunto, como ele mesmo ressaltou, mas de um profundo conhecedor do debate médico acerca da sexualidade, já que enfatiza a correlação entre eugenia e sexualidade. Neste sentido, identifica-se mais um braço23 do eugenismo, para além das questões relacionadas à regeneração da raça – principal atribuição dada aos eugenistas, preocupados com a regeneração da raça. Raça, sexualidade, imigração, educação, legislação, alienismo e crime são alguns desses braços a que me refiro.

21

Na Conferência Nacional de Educação, realizada em Curitiba em 1927, durante a exposição de sua tese nº 75, Renato Kehl esclarece a quem caberia a educação dos filhos, e propôs o seguinte: “(...) à mãe cabe, naturalmente responder perguntas curiosas dos filhos e, compete-lhe dar as primeiras instruções. Ao pai incumbe, complementarmente prevenir os filhos mais crescidos sobre os perigos das más companhias e dos perigos resultantes das perversões sexuais; compete-lhe, também concilia-los ao respeito próprio e de seus companheiros, amedrontado-os, talvez, quanto às conseqüências nocivas das leituras, conversas e práticas obscenas”. In: Conferência Nacional de Educação, SCHMIDT, Maria Auxiliadora (et. alli), Brasília: INEP, 1997, p. 435.

22

Idem.

23

O termo braço é usado aqui para designar um prolongamento do eugenismo fora da comunidade médica.

90

Na mesma carta que escreve a Hildegart em 1932 Renato Kehl se orgulha de ser citado na Espanha por outros autores eugenistas: Li a obra do Dr. Haro tendo tido o prazer de ver o meu nome citado em várias passagens. Quando estiver com este autor transmiti-lhe as minhas felicitações pelo seu livro.24 Adiante, Renato Kehl percebe no Brasil uma mudança na orientação teórica de planejamento nacional. Talvez Kehl veja a classe culta mais influenciada pelas condutas norte-americanas, que buscam o crescimento nacional pela eficiência, sem prender-se em questões religiosas ligadas à lei e à moral católica, mas obedecendo aos princípios protestantes. Isso quer dizer que provavelmente Kehl atribua o atraso, não somente no Brasil, aos preconceitos religiosos que impediam, por exemplo, a seleção natural – de sobrevivência dos mais aptos – inviabilizada pelas práticas assistencialistas da Igreja Católica, espelhada em instituições semelhantes às da Santa Casa de Misericórdia, de auxílio aos mais pobres. A idéia reformadora caminha a passos de gigante. Mesmo no Brasil nota-se a formação de uma nova mentalidade; isto certamente no seio das classes cultas. Atribuo o atrazo universal neste sentido aos preconceitos religiosos.25 Entendo, entretanto que a reforma deverá ser evolutiva

e

não

revolucionária.

Precisamos

caminhar devagar para avançar com segurança.26 A reforma evolutiva e não revolucionária a que se refere Renato Kehl demonstra sua filosofia baseada no progresso – e no positivismo –, fundamentada na crítica à possibilidade revolucionária. Caminhar devagar para avançar com segurança é uma idéia liberal e racionalista, que fecha os 24

Renato Kehl a Hildegart. Rio de Janeiro, 28/5/1932.

25

Idem.

26

Idem

91

espaços de decisão tomados por possíveis paixões. Uma racionalidade política avessa a mudanças radicais é tida por Kehl e por seus parceiros como a única possibilidade de encontrar o caminho certo, por estar revestida de neutralidade ideológica.27 A Espanha, desde 18 de agosto de 193128, vivia numa república democrática, que separou as relações entre o Estado e a Igreja. A solução da república democrática espanhola caminhou para o Estado laico – sem intromissão da Igreja – apesar de ter uma inclinação de esquerda e anti-falangista. Encontramos aí uma discordância entre Kehl e Hildegart, que era defensora da República: Tengo sumo gusto em incluirle los primeros folletos que yo hube de publicar em 1931, desde luego em tiempo de la Dictadura, por lo que me mantengo simplesmente en las líneas teóricas.29 Ainda assim, confirma-se a postura política de Hildegart, como pode ser encontrado na mesma carta, em destaque no primeiro parágrafo: Se asombra Vd. Que em España se pude hacer esta difusión claramente anticoncepcional. Antes, sin la República los artículos del Codigo Penal lo impedían. Al venir la República se derrogo ese Código dictatorial y quedo en vigor el de 1870. Como por entonces nada se sabia en España de estas propagandas no hay ningun articulo en el Codigo que explícitamente lo prohiba, y la propaganda puede pues hacerse30.

27

A separação entre razão e paixão na política foi amplamente discutida por BRESCIANI, Maria Stella (et. alli). Razão e Paixão na Política. Brasília: Editora UnB, 2002.

28

Em agosto de 1930 foi apresentado um projeto de constituição. A partir daí a Espanha se constitui uma república democrática, laica, descentralizada, com câmara única, sufrágio universal e Tribunal de Garantias para julgar as irregularidades constitucionais. Desde 28 de janeiro de 1930 a Espanha vivia a deposição do ditador Primo de Rivera. Atlas Histórico Mundial: de la Revolución Francesa a nuestros días. Vol. 2. Madrid: Ediciones Istmo, 1985 (10ª edição), p.177.

29

Hildegart à Renato Kehl. Madrid, 17/01/1932.

30

Idem

92

Merece destaque a afirmação de Hildegart de que a defesa dos métodos anticoncepcionais é feita na Espanha somente a partir do advento da república que, invalidando o código civil anterior, colocou em vigor as leis de 1870, que abriam margens para a divulgação de métodos de controle populacional (não previstos, talvez pela antiguidade do Código de 1870). De acordo com Raquel A. Pelaez,31 Hildegart foi morta por sua mãe em 1933. Sua história ficou muito conhecida em toda a Espanha. Hildegart era uma menina prodígio anarquista-eugenista, engajada na luta política espanhola. Conhecida como a Virgen Roja, Hildegart foi morta ao querer ser independente de sua mãe, que dedicou sua vida para criar uma filha completamente eugenizada. Ao lado da carta de Hildegart, no livro de Autógrafos, está escrito a mão: Assassinada em Madrid quando dormia. Faleceu aos 19 anos tendo deixado várias obras impressas Já que falamos de Hildegart, cabe ressaltar a escassez de correspondências entre Kehl e mulheres. Além da jovem espanhola, somente outras duas vozes femininas ecoaram na coleção de cartas escolhidas para esta dissertação, Maria Lacerda de Moura e Cecília Meirelles. Uma carta somente, endereçada por uma mulher a Roquette-Pinto, presidente do 1º Congresso de Eugenia, merece especial destaque. Essa carta foi encontrada na coletânea de correspondências pessoais de Renato Kehl, pelo fato de ter sido ele o secretário geral do Congresso, e provavelmente quem respondeu e resolveu a controvérsia, que infelizmente não ficou registrada em seus arquivos pessoais. Maria Lacerda de Moura pede a Roquette-Pinto que a informe sobre a possibilidade de inscrever-se no congresso e sob quais condições, já que só soubera da realização desse evento em maio (o Congresso seria realizado em julho). A tese que gostaria de inscrever tinha por título: A Emancipação feminina – Liberdade Sexual da Mulher. O interessante é a crítica feita ao

31

PELAEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas. Op. cit., p. 105.

93

eugenismo.32 A missivista afirma que é inútil pensar em eugenia na defesa da espécie: si a mulher é a escrava social do preconceito sexual,

através

da

monogamia

hypocrita

e

legalizada no seu tartufismo cômico.33 Lembra ainda que não há um só nome de mulher entre todos os inscritos e acrescenta: Um congresso de eugenia só de homens é prova de que estamos muito distantes da solução do problema eugenico34 Sua afirmação mostra um dos conflitos existentes entre eugenia e gênero. Para Maria Lacerda era inadmissível discutir eugenia entre homens, uma vez que as mulheres são metade da espécie e devem ter tratamento e respeito igual, diante da elaboração das leis e regras que afetam a todos. Desta forma, percebe-se que além da aguerrida luta pelos direitos da mulher travada por Maria Lacerda de Moura, vê-se também uma certa afinidade dessa anarquista com o debate da eugenia. Seria prematuro afirmar que Maria Lacerda era eugenista, mas sua carta mostra indignação diante do lugar periférico ocupado pelas mulheres num congresso que debateria questões relacionadas à vida da mulher. Não há cartas remetidas por Celina Padilha nesta seleção de correspondências. Seu nome merece destaque pela atuação próxima que essa educadora teve em relações com Kehl em congressos e conferências. Além de ser a secretária da Seção de Educação e Legislação do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, escrevendo as atas das reuniões,

32

Para conhecer melhor a trajetória de luta de Maria Lacerda de Moura, consultar o minucioso trabalho de LEITE, Mirian Lifschitz Moreira, Utopias educacionais de Maria Lacerda de Moura, In: História e Utopias. John Manuel Monteiro e Ilana Blaj (orgs.). São Paulo: ANPUH, 1996. p. 65-70.

33

Maria Lacerda de Moura à Roquette-Pinto, Guararema, 25/05/1929 (Livro I)

34

Idem

94

apresentou juntamente com Renato em 1927 a tese nº 74 (Sobre educação sexual).35 Comentando sua proposta de educação sexual conjunta para meninos e meninas, enfatizando que esta prática deveria ser estendida para todo o sistema educacional, Celina faz uma crítica à separação dos sexos na educação escolar: Desde que iniciei minha carreira de professora, (...) isto me feriu, tanto mais quanto, sendo mulher, sinto a falta de naturalidade que a educação interpõe entre o homem e a mulher, estragando as mais belas amizades, quiçá o intercâmbio intelectual.36 Essa preocupação de Celina Padilha demonstra, independente do lugar ideológico que ocupa, que as mulheres, antes de serem eugenistas, buscavam romper a separação entre os sexos gerada pela sociedade machista e patriarcal que relegava à mulher o papel de ‘procriadora’, enquanto cabia ao homem a administração dos negócios, estudos, pensamento e a vida pública. Ser mulher e participar do debate acerca do eugenismo significava também firmar o lugar da mulher na sociedade, na população e na espécie, desenvolvendo funções não só de foro íntimo como a administração da casa e a amamentação, mas também o conhecimento das ciências da vida. Iniciativas como a de Maria Lacerda de Moura e de Celina Padilha dão visibilidade para o debate sobre os temas da sexualidade, da regulamentação dos casamentos, dos exames pré-nupciais a partir da voz da mulher. Mas esse lugar transforma a mulher, antes (até meados do século XIX) reprimida e reclusa, em moralizadora dos instintos e da família37, o que não significa uma libertação por si, porque quem dita as normas ainda são homens e médicos.

35

Renato Kehl apresentou a tese nº 75 (O problema da educação sexual: importância eugênica, falsa compreensão e preconceitos – como e quando e por quem deve ser ela ministrada). In: Schmidt, M.A. (et. alii). Conferência Nacional de Educação. Brasília: INEP, 1997.

36

PADILHA, Celina. Apud: Schmidt, op. cit., p. 432.

95

Apesar do reconhecimento profissional das médicas ocorrer a partir da segunda metade do século XIX, muitas pressões de homens e mesmo de mulheres – que acreditavam ser a medicina uma profissão masculina – foi a sua afirmação no campo médico a partir do exercício da competência que contribuiu, entre outras coisas, para a redefinição dos papéis femininos. Mas deve-se lembrar que as relações de gênero estão perpassadas por outros antagonismos, como aqueles relacionados à classe social e a raça. 38 Dada a amplitude dos ‘braços’ do eugenismo, nomes de literatos não necessariamente ligados a esta corrente de pensamento mantiveram contato com Renato Kehl. Mas diferentemente de Maria Lacerda de Moura, que estava envolvida em debates sobre a emancipação da mulher e a educação, e de Hildegart, que tinha um trabalho engajado pela formação da Liga de Reforma Sexual na Espanha, ou ainda de Celina Padilha, que estava diretamente envolvida com a eugenização do Brasil pela educação, o nome de Cecília Meirelles deixa-nos dúvidas quanto a seu envolvimento com o tema do eugenismo. Renato Kehl escreveu uma carta à Cecília convidando-a para participar de uma campanha de benefício coletivo: (...) Tomo a liberdade de me dirigir a V.S., no sentido de pedir a sua valiosa colaboração, para uma modesta iniciativa da Comissão Central Brasileira de Eugenia.39 Mais uma vez nota-se um eugenista contactando um desconhecido – neste caso, desconhecida. Tal pedido demonstra o empenho de Kehl na campanha pela eugenização, que buscava mobilizar adeptos nos mais diversos setores sociais, principalmente no meio intelectual. Caberia a Cecília Meirelles preparar a tese/palestra intitulada: O papel da mulher perante a

37

CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo... op. cit., p. 200-201.

38

RAGO, Elisabeth Juliska. Médicas Brasileiras no século XIX. In: Cadernos Pagu, nº15, ano: 2000, Núcleo de Estudos de Gênero, Campinas, pág. 199-225.

39

Renato Kehl a Cecília Meirelles, Rio de Janeiro, 29/04/1933.

96

eugenia. A finalidade dessa colaboração seria, de acordo com a carta de Kehl, compor uma série de palestras que seriam transmitidas pela rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro – palestras que seriam depois transcritas e enviadas aos principais jornais do país – durante a Quinzena da Eugenia, que se realizaria no mês de maio. No conteúdo da palestra deveriam constar as seguintes reflexões: A função da eugenia da mulher; a defesa da prole; a mulher como fator principal na defesa da nacionalidade; a mulher mãe e a mulher cidadã; o que devem fazer as mulheres pela ‘higiene da raça’.40 De acordo com o sumário proposto por Renato Kehl a Cecília Meirelles, percebe-se quais eram as principais preocupações relativas ã função da mulher numa sociedade eugenizada, assim como dos papéis que caberiam a elas: a função eugênica da mulher (procriação e prevenção da raça); a defesa da prole (cuidados aos filhos relativos à amamentação e à educação primeira da criança); a mulher como fator principal na defesa da nacionalidade (são as mulheres que impõem a ordem e a moral no espaço familiar e íntimo, propiciando conseqüentemente a ordem no espaço social, preservando desta forma a nacionalidade); a mulher mãe e a mulher cidadã; (Para os eugenistas há uma distinção entre a mãe e a cidadã? A mãe é a mulher do lar que cuida da família e a cidadã é aquela que defende seus interesses no público e por isso não servem para ser mães? Ou quando têm filhos deixam de ser cidadãs e passam a ser mães?); o que devem fazer as mulheres pela ‘higiene da raça’ (proposta de como devem agir as mulheres para o sucesso do eugenismo, ou seja, seguindo todos os parâmetros estabelecidos acima). Há nessa rede uma expectativa de que a mulher seja, de certo modo, ativa. Ela é parte essencial na construção da suposta nação eugênica, por servir como elemento disseminador da moralidade dentro do lar, exigindo a retidão das relações familiares e podendo atuar, a partir das primeiras décadas do século XX, na

40

Idem.

97

vida pública, mas sempre com um papel atrelado à sua condição de mãe e esposa. De modo diverso do que encontramos na carta de Maria Lacerda de Moura, que critica a não participação feminina das questões relativas ao eugenismo, Cecília Meirelles é convidada a escrever um texto sobre os temas eugenistas. No entanto, o próprio sumário sugerido por Kehl acaba delimitando qualquer espaço de criação sobre o tema da mulher e do eugenismo. A perspectiva de elaboração do texto foi dada, agora caberia à Cecília Meirelles responder. Em 30 de abril de 1932, dia seguinte ao da carta enviada por Kehl, Cecília responde ao convite para participar da Quinzena de Eugenia:

Convite que muito me honra, tanto pela obra a que serve como pelas pessoas que a representam. Vejo-me no entanto, obrigada a solicitar-lhe a fineza de me desobrigar d’esse compromisso, por estar empenhada em outros, anteriormente assumidos, também para o mesmo mês de maio41 A recusa da escritora em participar desse evento sugere duas perspectivas de análise. A primeira é que, sendo simpatizante do eugenismo de fato, não pôde participar da referida quinzena por estar atarefada. A segunda refere-se ao modo delicado como foi feita a recusa, muito polida e educada, indicando também que pode ter sido uma recusa para não se envolver com tais questões de modo ‘oficial’42, ou seja, escrevendo uma palestra que levasse seu nome.

41

Cecília Meirelles à Renato Kehl, Rio de Janeiro, 30/04/1933.

42

O termo ‘oficial’ é usado aqui para explicitar uma prática pública, ou seja, publicação em jornais e revistas, palestras em rádio e auditórios, conferências, etc. Ao contrário, existem práticas não-oficiais de partilhamento de idéias que estão fora do público. Nas conversas de gabinete, nas cartas e correspondências, nos saraus e jantares entre amigos, que não exige daqueles menos envolvidos ou engajados uma postura explícita sobre o tema.

98

Desse modo, fica registrado o contato havido entre Kehl e Cecília Meirelles, mais uma pessoa do meio intelectual brasileiro que, se não partilhava dos ideais eugênicos, se relacionava com adeptos de tal teoria. Essa constatação mostra também que, apesar dos lados ou das correntes ideológicas a que possam pertencer, é na elite econômica, política e intelectual que está grande parte dos interlocutores do eugenismo, ou seja, na classe culta. Quando, pouco acima, mencionamos o patriarcalismo no Brasil, tornase inevitável a associação dessa temática com um dos grandes pensadores das primeiras décadas do século XX, que ficou imortalizado por sua obra Casa-Grande & Senzala.43 Gilberto Freyre também se correspondeu com Renato. Na verdade foi Renato quem escreveu a Gilberto Freyre, mas na documentação disponível consta somente a resposta de Freyre à carta de Kehl. Nela, Freyre agradece a gentileza pelo envio do livro Sexo e Civilização, publicado dois anos antes, e ressalta que este será de grande ajuda para seus estudos iniciados em Casa-Grade e Senzala. Desta forma, Gilberto Freyre sinaliza para a próxima pesquisa44, de que se ocupará a partir de então: (...)da decadência da família patriarcal no Brasil e dos primeiros effeitos da miscigenação por um lado, e da urbanização, por outro. Sem esquecer, é claro, os persistentes effeitos do systema industrial (escravidão), inclinado, como sou a dar importância às influências do ambiente (euthenia).45 Como pode ser visto, a decadência da família patriarcal teria ocorrido, segundo Freyre, em função, dentre outras coisas, da mudança de regime (da

43

Casa-Grande & Senzala teve sua primeira edição em 1932.

44

Pela descrição feita por Gilberto Freyre, a pesquisa a que se refere é para o livro que seria publicado em 1936, Sobredos e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano, pela Companhia Editora Nacional, São Paulo.

45

Gilberto Freyre à Renato Kehl, Recife, 05/05/1934.

99

escravidão ao industrialismo) gerado pelo desenvolvimento cafeeiro e conseqüentemente da mudança do foco político e econômico do nordeste para o Estado de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX. De todo modo, o desenvolvimento – principalmente paulista – gerou preocupações por parte de políticos e pensadores brasileiros: miscigenação e urbanização. De que forma as capitais dos Estados, sem infra-estrutura, receberiam os negros libertos e todo o fluxo imigracional incentivado pela União? Esse processo gerou um enchimento das capitais e péssimas condições de vida e de trabalho ao trabalhador, agora livre e inserido num novo mercado, não mais escravocrata.46 Importante pensar que, numa conjuntura política tão problemática e complexa, a utilização do termo euthenia, visto como o estudo das influências do meio ambiente, demonstra uma inclinação ao darwinismo social47. A idéia da luta pela sobrevivência do mais apto e a eliminação dos mais fracos é influenciada

principalmente

pelo

meio

ambiente,

visto

como

clima,

desprezando a importância das relações sociais, políticas, econômicas na composição da sociedade. Sabe-se o quanto é redutor e politicamente perigoso considerar o clima como responsável por aspectos da vida cultural, por exemplo: a preguiça do homem indígena ou a sexualidade das mulheres nativas. Além disso, a importante obra de Freyre tem passagens que indicam certo machismo e racismo por parte do autor. Para elucidar, serão apresentadas algumas passagens dessas palavras escritas em 1933. Misturando-se [os portugueses] gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e

46

GALVÃO, Iraci. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada.... op. cit., p, 26.

47

Darwinismo social: Corrente teórica da segunda metade do séc. XIX e primeira metade do séc. XX, ou a doutrina por ela formulada, que aplica alguns princípios básicos da idéia darwinista de evolução (como as de seleção natural, luta pela existência, e sobrevivência do mais apto) ao estudo e interpretação da vida humana em sociedade. [A designação é historicamente imprecisa, uma vez que as primeiras obras ligadas a essa corrente antecederam a elaboração e publicação dos trabalhos de Charles Darwin em biologia.] Apesar da imprecisão da definição indicada pelo dicionário, é oportuno utilizar o termo

100

multiplicando-se

em

filhos

mestiços

que

uns

milhares de machos atrevidos conseguiram firmarse na posse de terras vastíssimas48 Há quem veja tal afirmação como recurso de linguagem, que usa a ironia como meio de contar uma história de dominação dos portugueses sobre os indígenas no território brasileiro. No entanto, esse tom despojado pode adquirir um caráter depreciativo, pois coloca em xeque quem são essas tais mulheres de cor que se misturavam com os portugueses, esses machos atrevidos, termo que mais parece um elogio à esperteza e à perspicácia portuguesa de conquistar a terra através da sedução das índias. A interpretação é reforçada nesta outra afirmação: (...) por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam [as índias] se entregando, de pernas abertas, aos ‘caraíbas’ gulosos de mulher49 Afirmações

deste

tipo

mostram

as

mulheres

indígenas

como

promíscuas, o que ocidentaliza o julgamento aos indígenas que tinham uma relação com o corpo e com o sexo certamente bastante diferente da européia. As afirmações de Gilberto Freyre são tendenciosas e mostram o povo indígena – e principalmente a mulher – como parte de uma etnia bastante diferente da branca, ariana, européia e ocidental. As descrições dos indígenas em relação ao branco não diferem muito daquelas feitas dos negros, como poderá ser visto: Não se negam diferenças mentais entre brancos e negros. Mas até que ponto essas diferenças representam aptidões inatas ou especializações devidas

ao

ambiente

ou

às

circunstâncias

darwinismo social por estar mais próxima à terminologia empregada pelos próprios eugenistas na época. Dicionário Aurélio Digital, Século XXI. Editora Nova Fronteira, 2001. 48

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro/Brasília: Schmidt/INL MEC, 1980, p. 09.

49

Idem, p. 10.

101

econômicas de cultura é problema dificílimo de apurar.50 Apesar da dúvida que deixa em relação às diferenças mentais entre brancos e negros, não descarta o fator biológico como causa, admitindo assim uma diferença de origem hierárquica e hereditária entre esses dois grupos. De uma forma ou de outra, Gilberto Freyre atinge um outro extremo àquele adotado pelos eugenistas, que apontam a hereditariedade como um dos fatores principais para a superioridade racial, pois, sendo essa diferença inata, acaba por desconsiderar as relações sociais e as condições de vida produzidas pelos fatores econômicos e de cultura. Renato Kehl aponta a degeneração e a superioridade dos povos como um problema de miscigenação que deturpa o caractere racial próprio de cada raça. Por isso, Kehl defende a união entre casais compatíveis intelectual e racialmente e vê na miscigenação brasileira um aspecto da degeneração da espécie e da nação. Os eugenistas não podem, pois, ser favoráveis aos cruzamentos de raças diferenciadas como seja entre a branca e a preta, a branca e a amarela, a indígena e a preta. (...) Só aberrações individuais ou traições de momento, fazem com que um branco procure uma preta ou uma branca aceite um preto. No nosso país, entretanto, levantam-se algumas vozes suspeitas, advogando tais cruzamentos ou os admitindo inócuos para o futuro da nacionalidade. (...) Quando pedimos notícias de mestiços capazes de se emparelharem no valor físico, psíquico, mental, com brancos sem mescla de sangues heterologos, citam sempre a meia dúzia de homens que todos conhecem, e que mais?51

50

Idem, p. 297.

51

KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 201.

102

A hibridização ou miscigenação, como era mais conhecida a mistura de raças, era tema de grande debate na comunidade médica intelectual mundial. Em fevereiro de 1929 Kehl recebeu cartas de Charles Davenport, diretor do comitê de cruzamento de raças da International Federations os Eugenics Organizations, solicitando um estudo sobre o cruzamento de raças durante as duas últimas gerações no Brasil. Esse estudo deveria obedecer a três critérios: 1, o local, província ou principais regiões no Brasil em que ocorrem os cruzamentos; 2, as raças envolvidas nesses cruzamentos e 3, o número de gerações em que a hibridização tem ocorrido, mostrada em escala. Além disso, Davenport pede referências e indicações de publicações relativas ao assunto e se há alguém no Brasil que possa enviar-lhe fotografias. Prontamente, Kehl responde à carta de Davenport destacando a dificuldade que há no estudo do cruzamento de raças no Brasil, apesar de vários cientistas estarem desenvolvendo estudos incipientes, e descreve quatro problemas fundamentais a dificultar esse estudo: (...) primeiro a vastidão territorial do nosso país; segundo

a

diversidade

de

cruzamentos

processados nas diferentes regiões; terceiro, a falta de uma investigação systematizada e orientada por ethnologistas competentes; quarto, devo dizer, embora constrangido, que tem concorrido para que não se interessem pelo problema, preconceitos de raça e receios de provocar melindres no seio da maioria da população que é mestiça.52

O último motivo destacado mostra uma resistência à proposta eugênica, ressaltando que esse discurso não era unívoco e homogêneo a ponto de se tornar uma unanimidade, mesmo porque, como o próprio Renato escreve, poderia provocar melindres, mas também desentendimentos políticos

103

entre a população e o governo, pois tal estudo poderia ser considerado racista. Na mesma carta, Kehl envia um anexo – que infelizmente não está na coletânea de cartas – com seu ponto de vista sobre esse assunto e também indica o nome de Roquette-Pinto (diretor do Museu Nacional) para o fornecimento das fotografias e referências bibliográficas sobre o cruzamento das raças no Brasil. Outra carta de Davenport foi registrada somente três anos após a carta de 1929, portanto em abril de 193253. Nesta ocasião, Davenport remete-se a Renato não mais ocupando o cargo de diretor do comitê de cruzamentos de raças da International Federation of Eugenic Organizations, mas como presidente do 3º Congresso Internacional de Eugenia, que seria realizado em 1933. Ambas as entidades estavam sediadas no Museu Americano de História Natural, com escritório em Cold Spring Harbor, Long Island. O interessante é que foi exatamente no 3º Congresso Internacional que se apresentou a árvore da eugenia, trabalhada no início desta pesquisa.54 A carta de Davenport mostra o interesse da Federação Internacional de Organizações Eugênicas em afiliar o Brasil e suas organizações eugênicas , como membros fixos. Vale lembrar que do lado esquerdo da página em papel timbrado em que a carta foi escrita aparecem todos os presidentes de associações eugênicas em todo o mundo. Dispostos em ordem alfabética, os países-membros e seus respectivos representantes estão perfilados de cima para baixo. O primeiro deles é a Argentina; seu representante é Victor Delfino, médico que presenciou a fundação da Sociedade Paulista de Eugenia em São Paulo no ano de 1918.55 A formação da primeira sociedade eugênica na

52

Renato Kehl a Charles Davenport, Rio de Janeiro, 02/04/1929.

53

Charles Davenport a Renato Kehl, Nova Iorque, 04/04/01932.

54

Renato Kehl apresentou nesse congresso a tese Medidas para estimular a fecundidade dos tipos superiores. In: KEHL, Renato. Lições de Eugenia, Op. cit., p. 24.

55

Annaes de Eugenia, op. cit., p. 177-178.

104

Argentina, com sede em Buenos Aires, deu-se posteriormente ao Brasil.56 Em 1932 o mesmo Victor Delfino, que estava em São Paulo prestigiando Kehl e os eugenistas paulistas, foi mais bem sucedido, pois tornou-se membro da Federação Internacional, coisa que Kehl não era. Além da Argentina, da América Latina figurava na lista apenas Cuba, que tinha forte influência do pensamento e da política norte-americana.57 Vê-se nesse breve demonstrativo que diversos países estavam envolvidos com as questões relacionadas ao eugenismo, cruzamento de raças, controle de casamentos e nascimentos, normatização da imigração, assim como na seleção e investimento no melhoramento da raça. A união desses países mostra a interlocução de experiências e, além disso, forma um campo político de força para a discussão de suas idéias. Finaliza-se a análise desta seleção de cartas com um dos mais polêmicos teóricos brasileiros, Oliveira Vianna (1883-1951). A primeira correspondência entre Renato Kehl e Oliveira Vianna data de 01/09/1931. Ela responde a um pedido feito por Kehl em nome da Comissão Central Brasileira de Eugenia ,para que Oliveira Vianna respondesse a um questionário sobre a eugenia dos nossos grupos nacionaes e ethnicos58. Desculpando-se pelo longo tempo sem dar satisfação sobre o questionário enviado por Kehl, Oliveira Vianna argumenta o porquê de não ter respondido à solicitação do eugenista: Não

lhe

digo

meu

pensamento

sobre

seu

questionário porque estou com um livro quase prompto,

onde

o

seu

questionário

se

acha

respondido com detalhes completos (...) e terá então a resposta ao questionário que teve a grande gentileza de me mandar.

56

Victor Delfino fundou em 1932 a Associação Argentina de Biotipologia, Eugenia e Medicinal Social. In: PELAEZ, Raquel Alvarez. La eugenesia en America Latina, Op. cit., p. 127

57

Os países representados na International Federation of Eugenics Organizations eram: Argentina, Áustria, Cuba, Tchecoslováquia, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grã Bretanha, Itália, Noruega, Polônia, Rússia, África do Sul, Suécia e Holanda.

105

O fato de Oliveira Vianna não ter respondido ao questionário enviado por Kehl, por estar ocupado com o lançamento de um livro sobre o tema da eugenia dos grupos nacionais e étnicos no Brasil, demonstra um certo segredo por parte do intelectual diante de uma nova produção. O livro a que se refere Oliveira Vianna na carta é Raça e Assimilação,59 lançado em 1932, talvez o texto mais polêmico desse autor. Num dos trechos desse livro, Vianna, discute a inferioridade do negro em relação à raça ariana: Em relação ao negro puro, minha opinião é de que, para certos tipos de inteligência superiores, ele revela,

na

sua

generalidade

uma

menor

fecundidade do que as raças arianas ou semitas, com que ele tem estado em contato (...) Neste ponto

[a

proporcionalidade

de

capacidade

intelectual superior entre brancos e negros], as duas raças são desiguais – e esta desigualdade se reflete na desigualdade da riqueza eugenística das suas elites respectivas.60 Esta clara apresentação de que a raça negra constitui-se de elementos menos dotados em relação à raça branca acaba por ser seu argumento principal para a defesa que faz da miscigenação da raça negra como forma de integração na sociedade. Tal como Gilberto Freyre, a miscigenação é vista como fim para a elevação da ‘qualidade’ racial no Brasil, que passaria a ter ‘tipos’ mais inteligentes por possuírem os miscigenados características positivas da raça branca e da raça negra ou indígena, desde que esse processo fosse selecionista. Oliveira Vianna enfatiza o selecionismo norteamericano que, através de uma política imigracionista, propõe a identificação nas diferentes raças de seus melhores tipos (mais inteligentes, mais fortes, mais belos, mais saudáveis, mais ricos). Por este princípio, a miscigenação não seria negativa, pois em todas as raças há os bons e os maus, apesar de 58

Oliveira Vianna a Renato Kehl, Niterói, 01/09/1931.

59

VIANNA, Oliveira. Raça e Assimilação. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1932.

60

Idem, p.68.

106

ser possível nascer dos bons, maus e dos maus, bons. Mas o critério principal é que crê que entre os negros há menos aptos do que entre os brancos.61 Poucos dias depois, Kehl escreve uma nova carta62 a Oliveira Vianna insistindo na possibilidade de que lhe enviasse uma pequena súmula desse trabalho para ser publicado no Boletim de Eugenia, que como foi verificado não foi fornecido. Toda a necessidade de discutir os problemas nacionais, principalmente aqueles ligados às raças que compõem o povo brasileiro, estava presente na maioria das cartas arroladas. Normalmente de cunho íntimo e pessoal, havia também aquelas que tratavam dos assuntos de interesse nacional, enviadas de forma oficial. Na década de 1930 foi formada uma comissão empenhada em discutir a seleção da imigração no Brasil. Era formada por Renato Kehl, Roquette-Pinto, Raul de Paula, Conde N. Debané e Dulphe Pinheiro Machado, que foram nomeados pelo Ministro do Trabalho e presidida por Oliveira Vianna, que entre 1932 e 1940 ocupou o cargo de consultor jurídico do ministério recém-criado. O trabalho dessa comissão preparar um anteprojeto de regulamentação da imigração para o ‘Código de Imigração’.63 Se o presidente de tal comissão partia do pressuposto de que o japonês é como o enxofre, insolúvel,64 nota-se a tônica dos debates sobre a questão imigratória. Numa carta em papel timbrado do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Oliveira Vianna, em tom formal, cumprimenta Kehl, remetendo-lhe todo o material relativo à imigração e colonização, para que os membros da comissão pudessem estudar, a fim de desempenhar esta missão65.

61

Idem, p. 210. Citado também em KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 201.

62

É nesta carta de 04/09/1931 que Renato Kehl pede a Oliveira Vianna para visitá-lo em Niterói, pois ainda não se conheciam pessoalmente.

63

KEHL, Renato. Lições de Eugenia, Op. cit., p. 243-250.

64

Idem, p. 256.

65

O termo missão é visto como uma tarefa que carrega um compromisso quase religioso, o que no caso dos eugenistas, parece um tanto paradoxal, pela postura científico-progressita que adotavam.

107

Tenho a honra de enviar a V.Ex. toda a legislação nossa relativa á immigração e colonização. Como dentro

em

pouco

nos

reuniremos

para

o

desempenho da missão que nos confiou o Sr. Ministro do Trabalho, pareceu-me que seria útil a V.Ex. ter em mãos as novas leis relativas ao assumpto que iremos tratar.66 O desenvolvimento de políticas públicas que pudessem controlar a composição racial brasileira impregnada de idéias eugênicas espelhava o empenho não só de Renato Kehl, considerado o representante da eugenia no Brasil, mas também de muitos outros interessados na ‘elevação da pátria’. Como afirmou Mario Pinto Serva, um desses evangelizadores67: O Brasil está feito. Quando perguntamos nós, poderemos dizer, - também o brasileiro?68 Tal afirmação mostra o quanto, na opinião dos eugenistas, o brasileiro, entendido aqui como povo, pode ser construído, manipulado e moldado. Trata-se principalmente de ver esse povo, ao mesmo tempo, como coletivo e indivíduo passíveis de manipulação, já que compunham a nação que deveria ser construída com a ajuda de médicos e seu tão proferido conhecimento científico sobre o homem. Neste sentido, concluímos com o trecho de uma carta datada de 17/03/1936 em que o general Meira de Vasconcelos afirma: (...) a doctrina da seleção deve ser encarada resoluta e patrioticamente pela classe médica69; a necessidade da lei de esterilização dos typos inferiores, quer por degeneração, quer no escalão

66

Oliveira Vianna a Renato Kehl, data desconhecida, aproximadamente 1935, Rio de Janeiro.

67

Novamente o termo cunhado pelo próprio Kehl remete a uma função proselitista e religiosa, vista por nós como artifício lingüístico de conquista e sedução. In: KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 33.

68

Idem.

69

A classe médica é vista aqui como a única classe capaz de resolver os problemas do Brasil e é deste poder que vão se investir para conquistar os setores mais diversos da sociedade.

108

de raças que não nos convenham, se impõe para a melhoria gradativa das gerações futuras.70 A melhoria das gerações futuras, almejada não só por Meira de Vasconcelos, mas também pelos eugenistas, implicava o desenvolvimento de práticas que pudessem ser implantadas em larga escala. Esterilização, educação e regulação dos nascimentos e casamentos eram medidas previstas pelos eugenistas. Para sua implantação, diversos setores deveriam estar envolvidos na empreitada. Do direito à medicina, da educação à sexualidade, diversos eram os setores ou braços dos envolvidos no eugenismo brasileiro. Também na literatura foi encontrado mais um desses interlocutores, Monteiro Lobato.

70

Gal. Meira de Vasconcelos à Renato Kehl, Rio de Janeiro, 17/03/1936.

109

2. “O Choque das Raças” 71 O Choque das Raças é o título de um romance de Monteiro Lobato, que conta mais ou menos o seguinte: Ayrton Lobo mora no Rio de Janeiro e trabalha numa financeira, a Sá, Pato & Cia. Após comprar um Ford, é designado por seus dois chefes para liquidar um negócio perto de Friburgo, também no Estado do Rio de Janeiro. Mas ao atingir a velocidade de 60 quilômetros por hora, o máximo que chegava seu ‘fordinho’, se distrai com a paisagem e sofre um acidente, que o deixa desacordado. Acorda num palacete, a casa do Sr. Benson, um homem misterioso, que tinha diversos criados, todos mudos. Recebe Ayrton dizendo que a partir de agora será seu confidente e viverá ali. Nada do que escutasse poderia ser dito a ninguém. Benson, caracterizado pelo autor com o estereótipo de sábio, usava óculos de ouro. Era elegante, falava devagar e conhecia as “coisas da natureza e ciência”. Tinha uma filha chamada Miss Jane. O anfitrião leva o hóspede para conhecer o laboratório e lhe explica todo seu esforço ao longo de sua vida para construir uma máquina, o porviroscópio, que pode ir ao passado e ao futuro, captando determinado momento histórico através de um “corte anatômico”, que se pode visualizar em um globo de cristal. Contudo, alguns dias depois o Sr. Benson morreu, por causa de sua idade avançada, levando consigo a solução técnica do aparelho que lhe custou toda a vida para construir. Destruiu papéis e peças mestras e incumbiu sua filha de relatar o drama do Choque das Raças nos Estados Unidos no ano de 2228, a história mais interessante vista no porviroscópio. Em troca, Ayrton deveria transformar essa informação em livro. Em vários encontros dominicais, Jane conta a Ayrton como se desdobrou o ‘grande choque’.

71

Este livro foi publicado em 1926 pela Companhia Editora Nacional e reeditado em 1945 pela Brasiliense sob o nome de O Presidente Negro ou O Choque das Raças.

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Ela descreve a formação do povo americano ao longo dos séculos, afirmando que para lá foram os elementos mais eugênicos das melhores raças européias, por conta dos incentivos à imigração. É nos Estados Unidos onde vive a força vital da raça branca. Desta forma, a Europa perdeu seus melhores elementos e acabará pigmentada pelos amarelos no século XXIII. O único erro cometido pelos Estado Unidos em sua composição foi o elemento negro. O não cruzamento entre as raças branca e negra, continua Jane, gerou uma barreira de ódio, mas conservou as duas raças puras, diferentemente do Brasil, que mediocremente fundiu-as, descaracterizando-as, tendo o branco sofrido uma inevitável piora de caráter. Era 2228, o Brasil cindiu-se em dois: a República do Paraná e o Vale do Amazonas. O primeiro era um imenso foco industrial, centralizador, às margens do Rio Paraná, com clima temperado e formado pela parte sulsudeste do Brasil, além de Argentina, Uruguai e Paraguai. Já o Vale do Amazonas, era uma república tropical resultante do desequilíbrio sanguíneo da fusão das quatro raças: branco, negro, vermelho e amarelo, que era predominante. Vivia-se nos Estados Unidos a vitória da eugenia iniciada no início do século XX. Após ‘esvaziar’ a Europa, formaram-se os mais perfeitos tipos de beleza plástica, as mais fortes inteligências, os mais puros valores morais. Usavam o princípio de Francis Galton, de que qualidade vale mais que quantidade, e que para a raça branca funcionou como um controle de nascimentos. No entanto, no século XX, a raça negra não oferecia grande ameaça, já que estavam segregados pelas leis eugênicas, conservando a raça negra pura. Mas, ao contrário do princípio de Galton, a raça negra se preocupava com a quantidade. Foi adotada nos Estados Unidos uma lei espartana, que reduziu a quase zero o número de ‘desgraçados’ por defeito físico, e a Lei Owen, do remodelador da raça branca americana. No livro O Direito de Procriar, diz Jane, Walter Owen lançou os fundamentos do Código de Raça, que promoveu a esterilização dos tarados, mal-formados mentais, de todos os indivíduos, em suma, capazes de prejudicar com má progênie o futuro da espécie.

111

Desapareceram os peludos, os surdo-mudos, os aleijados, os loucos, os morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos, os gramáticos, os místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptores de donzelas, as prostitutas, a legião inteira de mal-formados no físico e no moral, causadores de todas as perturbações da sociedade humana. Mas apesar de sofrer os mesmos processos restritivos dos brancos, a raça negra cresceu mais que as dos brancos, chegando à proporção da metade no século XXIII. Predominavam então duas correntes de idéias para solucionar o problema racial nos Estados Unidos. A ‘solução branca’ que queria e expatriação do negro para o vale do Amazonas e a ‘solução negra’ que queria dividir os Estados Unidos em dois, o sul negro e o norte branco. No entanto, a Constituição americana estaria ameaçada diante da ‘solução branca’, pois perante a lei todos são iguais, além do fato de que os negros não queriam abrir mão de sua cidadania. Do ponto de vista estético o negro não era mais negro. A ciência já havia resolvido o problema de pigmentação dos negros que apresentavam uma cor esbranquiçada semelhante à das mulatas. No entanto, não havia sido resolvido o problema do ‘encarapinhamento’ dos cabelos. Politicamente, a raça negra tinha um representante chamado Jim Roy, uma mistura de senegalês com pele-vermelha (apesar de não haver um só índio naquela região). Jim era uma liderança que carregava consigo o poder de unificar a raça negra em torno de um partido, a Associação Negra, e seus adeptos (54 milhões de pessoas) agiam como autômatos. Outros dois partidos existiam em 2228. O Partido Masculino que tinha como presidente em fim de mandato e candidato a reeleição o Sr. Kerlog. Constituído por 51 milhões de vozes, era a expressão da vitória da Eugenia e do Arianismo. Havia também o Partido Feminino, constituído por 51 milhões e meio de mulheres, tinha como candidata à eleição Evelyn Astor, que quase ganhou a última eleição; sua beleza era tão harmoniosa que tinha força de dominação.

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O Partido Feminino tinha como ideologia central a tese de Georgia Elvin, autora de Simbiose Desmascarada, que afirmava que a mulher não constituía a fêmea natural do homem. A mulher original foi extinta ainda na pré-história e foram as sabinas, roubadas de seus machos originais, que eram anfíbios. A grande busca desse partido, além da igualdade de direitos já conquistada, era reencontrar seu macho original. Eram as mulheres uma raça diferente daquela dos Homo sapiens – elas pertenciam à raça das Sabinas mutans. Às vésperas da 88ª eleição para presidente dos Estados Unidos, estavam sendo costuradas as alianças. Era decisivo o apoio de Jim Roy a um dos dois partidos, como de costume. De Kerlog, Jim queria a atenuação da Lei Owen, mas Evelyn Astor queria a união das raças sabina e negra, que foram espezinhadas durante séculos. A princípio, ele não apoiou diretamente nenhum dos dois grupos e disse que se pronunciaria somente 1 hora antes do início do pleito. Nas eleições, o sistema de voto funcionava da seguinte forma: os eleitores não precisavam sair de casa para votar. Radiavam (mandar informações através de ondas de rádio) seus votos em direção a central de Washington, que eram recebidos e apurados automaticamente, sendo impressos com letras de néon nos painéis de fronte ao Capitólio. As possibilidades de fraude não existiam, tendo em vista o sucesso da eugenia, que elevou o nível moral do povo. O pleito durava cerca de uma hora somente. No dia da eleição, todos aguardavam a posição de Jim Roy. E ele se pronuncia: ‘O candidato da raça negra é Jim Roy!’. Miss Astor desmaia e propõe imediatamente apoio a Kerlog. Há um arrependimento feminino e todos passam a desprezar a teoria elvinista e declaram: ‘Só a união da raça branca nos salvará’. Afinal o homem branco era o marido milenar da mulher. Diante do problema da eleição de Jim Roy e da iminência da separação dos Estados Unidos, foi organizada a Convenção da Raça Branca. Foram convocados os seis representantes mais importantes da sociedade. Além de

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Kerlog, eram eles: George Abbot (indústria – chefe da indústria de bonecos falantes); John Perkins (comércio – comercializava peles de lontra branca); Harmworth (Finanças – diretor do Banco Universal); John Leland (Artes – criador da Puericultura Estética); John Dudley (Ciências – pai da cor nº8 e autor de 72 invenções) e Dorian Davis (Letras – poeta de um soneto único). Na Convenção, Kerlog pede aos membros lhe dessem as ‘razões da raça’ diante do problema da eleição do presidente Jim Roy. Quinze minutos depois John Leland apresenta uma moção que é lida e ouvida no mais absoluto silêncio e aprovada por unanimidade. Era a solução teórica para o problema, que ficou guardada em mais absoluto segredo. A solução prática veio uma semana após a Convenção, por obra de John Dudley, que realizou sua 73ª invenção. Tendo estudado por longos anos o problema do ‘encarapinhamento’ do cabelo negro, descobriu uma solução para alisá-lo e torná-lo igual ao da raça branca. Através de três aplicações de três minutos cada ao custo de dez centavos cada, os Raios Omega seriam a solução para igualar brancos e negros na aparência física. Formaram-se Postos Desencarapinhantes ao mesmo número dos postos de vacinação. Não se falava em outro assunto. Multiplicaram-se as fábricas de pentes, grampos, loções, xampus, brilhantinas e tinturas, que trabalhavam dia e noite sem conseguir atender à procura. Novos cabeleireiros surgiram. A raça negra esqueceu a política, e o dia da posse de Jim Roy aproximava-se. Após três meses da invenção dos raios Omega, 97% da população negra já estava ‘omegada’. Até Jim Roy se omegara. No entanto, sentiu que sua força vital diminuíra. Mas Jim iria dividir a América! Na véspera da posse, o presidente em exercício Kerlog vai visitar Jim Roy. E diz: O branco veio assassinar-te... Trago na boca a palavra que mata! Não penetrarás na casa Branca, lá não cabe Sansão de cabelos cortados. Tudo é inútil quando o futuro não existe. Não há moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota. Tua raça morreu, Jim. O branco deu um ponto final no negro da América.

114

Jim Roy surpreso contesta: Os raios Omega!!! -

Sim, os raios de John Dudley possuem virtude dupla. Ao mesmo tempo que alisam os cabelos...

-

Esterilizam o homem!!!

-

Perdoa-me, Jim...

No dia seguinte, Jim Roy é encontrado morto em seu gabinete. Um dia antes, a pedido de Kerlog, Abbot lançou uma nova boneca que dançava tango que desviou a atenção da população para a morte de Jim. O choque das raças fora prevenido, o que valeu por uma segunda vitória da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do embate isenta dos perturbadores ao molde dos retóricos e fanáticos cujas palavras outrora impeliam as multidões aos piores crimes coletivos. Assim, a vitória negra foi vista como mero incidente na história americana. Um ano após a Convenção, a natalidade negra cai a 97%, e os efeitos dos raios Omega ficaram em mais absoluto segredo. A moção proposta por Leland na Convenção que havia sido mantida também em segredo dizia o seguinte: “A convenção da raça branca decide alterar a Lei Owen no sentido de incluir entre as taras que implicam a esterilização o pigmento negro camuflado. A raça branca autoriza o governo americano a lançar mãos dos recursos que julgar convenientes para a execução desta sentença suprema e inapelável”. Assim, frio como o corte de um bisturi, um grupo de cento e oito milhões de pessoas foi extinto sem que ninguém percebesse. Décadas depois, no maravilhoso jardim americano onde só brotavam camélias de pétalas levemente acobreadas pela força misteriosa do geoambiente, erguia-se, ao alto do monumento de gratidão erigido pelo sócio branco ao sócio negro, o busto do velhinho Dudley que curou a dor de cabeça histórica do 87º presidente dos Estados Unidos. Após finalizar a história, Ayrton, apaixonado por Jane, investe em sua paixão e beija-a, encontrando finalmente a mulher de seus sonhos.

115

* * * Esse é o único romance escrito por Monteiro Lobato em 1926, mesmo ano em que o filme “Metropolis”72 é lançado na Alemanha de Weimar. Nesse filme, Maria é uma mulher-máquina que manipula os trabalhadores da cidade baixa – subterrânea. Os trabalhadores vivem no ritmo marcado das máquinas, com movimentos repetitivos, num ambiente insalubre e sombrio. A rebelião dos trabalhadores, escravizados pelas máquinas, termina com a reconciliação das duas classes, a dominante, que vivia na cidade alta com arranha céus e a alta tecnologia, e a classe trabalhadora.73 No Brasil, em um pequeno romance, Lobato descreve a sociedade do futuro. Após a vitória da eugenia, amplamente implantada no início do século XX, os Estados Unidos se depararão com o problema racial mais forte de toda a sua história, a eleição de um presidente negro. No ano seguinte da publicação deste livro, Monteiro Lobato seguiria para os Estados Unidos para ocupar o cargo de adido comercial junto ao consulado brasileiro de Nova Iorque. Mesmo tendo sido publicado em partes no jornal A Manhã74, afirma-se que foi escrito com a intenção de ganhar o mercado norte-americano e tornar-se um best-seller, mas ao que parece, teve mais visibilidade no Brasil do que nos Estados Unidos. De acordo com as cartas publicadas no livro Obras Completas de 194575, Lobato confessa a Heitor de Morais, seu cunhado, em 19 de junho de 1926:

72

Metropolis, Alemanha, 1926. Fritz Lang (diretor), produção da UFA. Para saber mais ver: DUTRA, Roger Andrade. Metrópolis: Cinema, Cultura e Tecnologia na República de Weimar. Mestrado em Historia. PUC/SP, 1999.

73

KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 175.

74

Escrito em três semanas para o jornal dirigido por Mário Rodrigues e publicado entre 5 de setembro e 1 de outubro de 1926. Carta dos editores. LOBATO, J.B. Monteiro. O Choque das Raças. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945 (2ª Edição). Para maiores informações ver também: AZEVEDO, C., CAMARGOS, M. e SACCHETTA, V. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: Ed. Senac, 1997 e sobre Monteiro Lobato e sua relação com o fordismo ver: CAMPOS, André Luiz Vieira de. A república do pica-pau amarelo. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

75

Obras Completas de Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945. Foram editadas posteriormente com o nome de Cartas Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1959. Ocupam o volume 16 e 17 do Obras Completas.

116

O Choque já saiu em São Paulo, mas ainda não vi. Esse livro vai mudar o rumo da minha vida. O consulado americano está interessadíssimo nele. Viva o talento, Seu Heitor.76 Assim, o primeiro romance do pai do Jeca Tatu foi escrito já com a intenção de publicação no ‘estrangeiro’. Mas o que ocorreu de fato foi a recusa desse livro, devido a seu conteúdo polêmico, que questionava a crueldade dos brancos americanos diante da raça negra. Quase um ano depois de lançá-lo no Brasil, Lobato ainda polemizava a respeito nos Estados Unidos. Numa carta a Gastão Cruls, em 10 de dezembro de 1927, revela: (...) Tudo depende da saída do meu ‘choque’, e do escândalo que ele causar. Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 de dólares para o autor e com essa dose de fertilizante não há Tupy77 que não grele. Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até proibição policial obteremos – o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra bootlegged com whisky e outras implicâncias dos puritanos.78

76

Idem, p. 200.

77

Lobato refere-se aqui à editora que pretendia montar nos estados Unidos para publicar livros de autores brasileiros, mas a idéia não vingou. AZEVEDO, C. Op. Cit., p.217.

78

LOBATO, M. Cartas Escolhidas. Op.Cit., p. 146.

117

Contando já com um escândalo literário, Lobato tentava agora adaptar o texto para conseguir publicá-lo ali. Contudo, o texto original do Choque não foi alterado, tampouco publicado nas terras do Tio Sam. Entende-se um dos motivos da não publicação do texto. Já em finais da década de 20 circulava no meio eugenista uma tendência que se confirmaria na década de 30, de que o negro tinha seu potencial e havia dado sua contribuição na formação dos Estados Unidos. Sob o nome de ‘culturalismo’79, admitia a raça negra na composição norte-americana, mas como raça distinta da branca. Como dito anteriormente, nos Estados Unidos, o culturalismo gerou uma situação segregacionista, que separou os brancos genuinamente norte-americanos dos negros,

chineses,

japoneses,

indianos

e

latinos,

sem

contar

o

desaparecimento dos nativos indígenas, desde os princípios da colonização daquele país. Os desdobramentos do texto são impressionantes e oportunamente suas descrições serão mostradas, pois acredita-se que, diferentemente do que se divulga pelos especialistas em Monteiro Lobato, esse texto foi escrito também com a finalidade de divulgar a eugenia no Brasil, e não somente com o intuito de tornar-se um best-seller norte-americano. Vê-se um Lobato complexo e ambíguo cuja orientação dificilmente poderá ser definido, já que, sendo fruto de seu tempo e com visão vanguardista, ora foi reacionário, ora moderno, e por vezes as duas coisas simultaneamente. Por isso, não quero questionar o cunho racista do texto, pois teríamos de relacioná-lo com toda a sua obra, já que o tema é bastante polêmico em relação à representação do negro na obra lobatiana80. Os trabalhos que analisam os textos de Lobato citam muito pouco o Choque, como se o autor nunca estivesse envolvido com a temática eugênica. Nesta dissertação, o romancete de Lobato foi escolhido porque aponta perspectivas para investigar suas descrições literárias em relação ao problema racial e ao 79

Teoria antropológica defendida por Franz Boas e aceita por Gylberto Freire quando desenvolve o conceito de democracia racial no Brasil.

80

Ver na net: LAJOLO, Marisa. Negros e negras em Monteiro Lobato, para Octávio Ianni. Unicamp/IEL, 1998. Net: http://www.as.miami.edu/las/negrolobato2.html. Acesso em: 22/11/2002.

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sucesso da eugenia no futuro fictício de 2228. Em outras palavras, para além da questão de raça, o que será enfatizado é seu cunho eugenista. Sob a justificativa de contar uma história de amor entre Ayrton e Jane, interessa aqui ver a história de amor entre o futuro e a eugenia, ou sobre o presente de 1926 e a eugenia como projeto de um futuro ideal. Contudo, não se pode relativizar as declarações de cunho racista de Lobato pelo fato de ter ele criado a Tia Anastácia81 e de ter mostrado a opressão sofrida pelos negros em Negrinha. No Choque, sem pudor nenhum, Lobato faz a defesa dos ideais eugênicos – assumidamente, em carta particular escrita a Kehl, declara que é adepto de tal teoria. Em carta endereçada a Kehl em 192682, afirma: Renato, Tu és o pae da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra próeugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo83. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéas. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha. Lobato Além de declarar seu texto como grito de guerra pró-eugenia, diferentemente do que pregam alguns textos que tratam da obra crítica de Lobato, o romance não é um texto encomendado só para agradar ao público norte-americano. O escritor afirma de forma veemente a necessidade de vulgarizar estas idéas [eugênicas]. Declarando que “a humanidade precisa de

81

A Tia Anastácia foi criada muito depois da consolidação da imagem da “preta gorda e beiçuda” nas antigas black-face norte-americanas do século XIX. Mammy era a negra escrava, assexuada, representando o oposto da mulher branca submissa ao marido. Ao contrário, ela era ligada às atividades domésticas, ao campo sendo gorda e forte, e seu marido (Sambos) submisso a ela. Na imaginação dos brancos, Mammy representava a família anti-natural apesar de mostrar uma vida no campo sem conflitos entre senhor e escravo. Ver na net: http://joseph.oasismag.com/stories/storyReader$17. Acesso em: 20/11/2002

82

Monteiro Lobato a Renato Kehl, São Paulo, 1926.

83

Apesar das desculpas dadas por Lobato, o texto foi dedicado a Arthur Neiva e Coelho Neto, dois grandes atuantes nas políticas de saúde pública nacional, assim como na rede de relações eugenista.

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poda”, é importante enfatizar que, nesse momento, Lobato não está fazendo uma crítica só ao problema racial e eugênico brasileiro, mas mundial. Além disso, uma outra problemática se apresenta. A ficção futurista de Lobato contém em si a junção de todos os desejos e medos de uma sociedade eugenizada. Para isso, entende-se o trabalho literário como fonte investigativa e rico meio de pesquisa e compreensão sobre o ‘espírito de uma época’. Houve na historiografia, durante muitos anos – e ainda há – uma necessidade de se colocar em lugares opostos a verdade e a ficção. Seja para firmar o ofício dos historiadores do século XIX (empiricista) com a função de relatar de maneira objetiva a realidade de um passado através de um discurso neutro, seja pela própria necessidade de conferir ao relato imaginativo ou literário um status de inverossimilhança sem quaisquer elementos históricos ou científicos, como se esses relatos – vistos como puramente poéticos – tivessem determinada autonomia em relação a seu autor e às condições de espaço-tempo, econômicas, sociais e culturais, vistas como mero reflexo. Optou-se aqui, porém, por observar e utilizar a obra de Monteiro Lobato como fonte histórico-literária, tendo em vista as afirmações de dois historiadores. Keith Jenkins e Hayden White84. Eles afirmam de maneira consonante que a história é um modo de contar e ver o mundo, por meio da linguagem, que só se consolida através do trabalho do historiador, que vai impregnar determinado relato do passado com seus anseios do presente. O mesmo pode ser dito da literatura ou da poesia. Os dois ofícios trabalham com a linguagem. Nas palavras de White: poetizar não é uma atividade que paira sobre a vida ou a realidade, que as transcende ou permanece alienada delas, mas representa um modo de práxis que serve de base imediata para toda a atividade cultural, e até mesmo para a ciência.85

84

Dois livros de grande relevância para este trabalho e principalmente para este capítulo foram: JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2001 e WHITE, Hayden. Capítulo 5. As ficções da representação factual. In: Trópicos do Discurso. São Paulo: Editora Edusp, 1994, p.137-151.

85

WHITE, Hayden, op. cit., p. 12.

120

Desta forma, o que vai delimitar o espaço de trabalho dos historiadores, para que seu ofício seja uma ciência-arte, são as fontes. O passado obedece à minha interpretação e à eleição de minhas fontes. Elas [as fontes] impedem a liberdade total dos historiadores e, ao mesmo tempo, não fixam as coisas de tal modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações. Sendo o objeto de trabalho dos historiadores o passado, em seu trabalho restam-lhes apenas os registros desse passado, que conseqüentemente se tornarão relatos lingüísticos. Nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual, porque o passado é repleto de acontecimentos, relações, sons, cheiros, sensibilidades e não somente um relato escrito. À história cabe analisar a precisão dos relatos dos historiadores, sendo as interpretações meras variações. O estudo da história é o estudo da historiografia, por conseqüência a história é a própria historiografia e não um adendo dela.86 Portanto, acredita-se que o texto de Lobato aposta no projeto eugenizador das primeiras décadas do século XX, implantado nos Estados Unidos e difundido no Brasil como forma de equacionar um problema não somente racial, mas também moral. O Choque mostra fendas ou fissuras que abrem caminhos para a discussão de questões muito debatidas nessas décadas, tais como: a imigração, o progresso dos povos, os avanços da ciência e da tecnologia, da estética e da beleza, assim como da civilização, evidenciando algumas facetas da vida social e política que tinham em vista a domesticação dos corpos, para torná-los mais aptos para o trabalho. Desta forma, o texto de Lobato parte do rádio – visto como expressão da

modernidade

em

1926



como

elemento

impulsionador

dos

desenvolvimentos tecnológicos até o futuro de 2228, onde se desdobra a história. Nesse futuro, a descoberta de novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações tácteis.87 A partir de então, a vida se transformara e a importância do rádio transporte era fundamental. As pessoas não precisavam mais se locomover

86

JENKINS, Keith. op. cit., p. 32.

87

LOBATO, J.B.M. O Choque das Raças. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945 (2ª edição), p.109.

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para executar suas tarefas. Tudo era transmitido por ondas.88 Mudanças importantes também ocorreram na imprensa. Os jornais não tinham mais amontoados de jornalistas dentro da redação. As matérias, imagens e notícias eram rádio-transportadas das casas dos colaboradores e diretamente impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as casas.89 Por tudo isso, a ficção de Lobato relata que no ano de 2228 o transporte, que era visto como um grande problema, fora solucionado. Diz também, que após a invenção da roda, toda a civilização industrial ocupou-se em desenvolvê-la e extrair dela todas as suas possibilidades. Até nas moedas... que são redondas. Mas o diagnóstico dado por Lobato é que o rádio matará a roda. Em função dos transportes de dados através das ondas, os homens passaram a desfrutar novamente do caminhar a pé e a perder a pressa. Lobato mostra o quanto o espaço urbano já se tornara um fluxo de multidões visto como caótico em 1926. Em suas descrições de como seriam as cidades no século XXIII afirma que as ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas ao tráfego. Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros (...) A pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-social.90 O mais belo de ser visto em toda a cidade era a vida noturna. Toda a iluminação pública e residencial era artificial, com luz fria, onde se via que por dentro e por fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava às cidades o aspecto de emersas de um banho de fósforo.91 Observa-se

que

todas

as

descrições

sobre

as

descobertas

tecnocientíficas são mostradas em sua positividade, desacompanhadas de críticas, como se não houvesse aspectos negativos nas descobertas

88

Nota-se o quão vanguardista era a visão de Lobato a respeito das inovações tecnocientíficas. Pode-se dizer que anteviu a internet.

89

A televisão com vídeo texto e o enxugamento das estruturas empresariais por causa da internet é coincidente.

90

LOBATO, J.B.M., O Choque das Raças. Op.cit., p.110.

91

Idem, p.119.

122

científicas, tais como o uso da ciência para fins de dominação de um grupo sobre outro. Inspirados no cientificismo do século XIX, os eugenistas acreditavam que a(s) ciência(s) era(m) o guia de toda a forma de ser e que proporcionaria a resposta a todas as perguntas que se pudesse fazer de forma racional. Em outras palavras, havia a crença de que o método científico conduzia à certeza das coisas.92 Com base nessas informações, pode-se dizer que Lobato construiu sua Cidade do Sol93. De acordo com Alceu Amoroso Lima94, prefaciador da edição brasileira do livro de Campanella95, o Choque é a melhor das indicações do que não deve ser uma sociedade bem organizada’96. Por isso, a leitura do texto deve ser feita pelo avesso, para fazer, em geral, o oposto de que ele recomenda. Pode-se destacar também outros textos clássicos que tentam construir uma sociedade ideal. Thomas Morus97 em Utopia e Francis Bacon98 em Nova Atlântida, além do ‘clássico dos clássicos’, a Republica de Platão99. O texto de Lobato pode também ser comparado aos livros de inspiração futurista imortalizados na literatura mundial, posteriores ao Choque,

92

Para saber mais sobre os impactos e as descobertas científicas na Europa ver: KNIGHT, David: La era de la ciência. Madri: Ediciones Pirâmide, 1988, pág. 17.

93

Cidade do Sol é o título do livro escrito por Tommaso Campanella (1568-1639), calabrês, que construiu em seu livro a antítese do pessimismo descrito por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Neste livro, Campanella, reformula filosoficamente o mundo representado na sociedade perfeita, com perfil totalitário, é verdade, mas com muitas reflexões sobre a justiça.

94

Esse texto faz parte do prefácio à edição brasileira de Cidade do Sol. Foi escrito em 1966 por Alceu em sua fase ‘à esquerda’, época em que critica duramente os regimes totalitários e principalmente a ditadura militar no Brasil. Para saber mais sobre a ambigüidade do pensamento deste autor, ver: CAUVILLA, Waldir. O pensamento político de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaíde) na década de 30. Mestrado em História. PUC/SP. 1992.

95

CAMPANELLA, Tommaso. Cidade do Sol. Rio de Janeiro: Ediouro, sem data.

96

Consta do prefácio de Alceu Amoroso Lima, 1966. In: CAMPANELLA, op.cit., p.15.

97

Thomas Morus (1478-1535). Nascido em Londres. Chanceler na Inglaterra sob o reinado de Henrique VIII. Autor de Utopia, romance político e social. Morreu decapitado por ter continuado fiel ao catolicismo e não ter reconhecido o poder espiritual do rei. Foi beatificado em 1886.

98

Francis Bacon (1561-1626). Filósofo e político inglês destinado à carreira diplomática. Escreveu Novum Organum, sua obra mais conhecida.

99

Platão (429-348 aC). Célebre filósofo grego, nascido em Atenas. Discípulo de Sócrates fundou a escola acadêmica. Expôs suas doutrinas nos Diálogos, que trazem nomes dos mais ilustres interlocutores: Fedro, Protágoras, Timeu, etc.

123

entre os quais: 1984 de George Orwell100 e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.101 Esse texto ficcional expõe além de tudo muitas críticas justas aos abusos sociais que podem ser realizados na questão racial e eugênica. Entre tantos nomes, o impulso literário de escrever uma obra que projete uma sociedade do futuro acaba por constituir um determinado tipo de utopismo, já que sua sociedade não tem conflito social e tudo se reduz aos problemas raciais e eugênicos. Os sistemas utópicos são sempre fechados, exigindo uma universalidade de projetos e ideais. Por exemplo, quando se almeja a felicidade de todos, ela só pode ser implementada por um discurso totalitário. Neste caso, a felicidade tende a ser homogeneizada entre indivíduos com desejos distintos, solapando as singularidades que o constituem.102 Da mesma forma, a construção literária de uma sociedade utópica103 indica um desejo contundente por ações “fascistizantes” na vida cotidiana de mulheres e homens. Para isso, mais do que a disciplinarização dos corpos, é necessária a docilização das mentes – nisso pode-se ler uma referência à intelectualidade formadora de opinião que nas primeiras décadas do século XX escrevia nas colunas dos jornais e revistas disseminando ‘novos modos de viver’, inspirando-se na burguesia européia, com a intenção de regular os ‘outros modos de vida’ das classes mais pobres. Lima Barreto expressou de

100

George Orwell, pseudônimo de Eric Blair (1903-1950), em seu livro mais conhecido 1984, narra com visão profética um futuro mecanizado num mundo totalitário, onde os seres são controlados pela força onipresente de um ditador. Publicado em 1949. É autor também de A Revolução dos Bichos, romance que critica o regime soviético.

101

Aldous Huxley romancista era como Julian Huxley (eugenista convicto), neto de Thomas Huxley, célebre biólogo do final do século XIX. Com mais espírito crítico que Julian, escreveu Admirável Mundo Novo em 1932.

102

A idéia de que as singularidades devem ser soltas em prol da derrubada das utopias homogeneizantes é de GOLDENBERG, Ricardo. Demanda de utopias. In: Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicoanalíticas. São Paulo: Hucitec, 1997, p.91-97.

103

No Brasil diversos literatos descreveram suas sociedades utópicas nas primeiras décadas do século XX. Para saber mais: FIORENTINO, Teresinha del. Prosa e ficção em São Paulo: produção e consumo. São Paulo: Hucitec, 1982.

124

maneira mordaz a atuação decisiva da imprensa em 1909: onipotente imprensa, o quarto poder fora da Contituição104 . Nos Estados Unidos de 2228, Eropolis, a Cidade do Amor, era o lugar para onde iam os enamorados, os casados em lua de mel, nela só permanecendo

durante

o

período

de

ebriedade

amorosa.105

O

esquadrinhamento, o controle do comportamento não deixa de possuir um teor um tanto totalitário, já que Eropolis é o lugar do Amor, e somente lá. Tanto que os filhos de Eropolis passaram a constituir uma elite na América – a nova aristocracia dos filhos do Amor e da Beleza.106 Dessa forma, como dito anteriormente, toda a estrutura social representada por Lobato continha em si uma positividade identificada na civilidade dos Estados Unidos. Enfatiza, sobretudo, a eficiência supostamente alcançada pelos norte-americanos comparando a ‘potência do futuro’ com um panorama histórico dos povos. A França é uma flâmula com três palavras; a Inglaterra tem um princípio diretor, a tradição; a Alemanha uma fórmula, organização; a Ásia um sentimento, o fatalismo e a América [do Norte] um novo princípio, a eficiência.107 É importante ressaltar que na análise lobatiana sobre o ‘panorama histórico dos povos’ foram desprezados uma enormidade de ‘povos’: os da África; Europa Ocidental, os polinésios e os povos da América do Sul. Para além das análises possíveis das representações feitas daqueles países colonialistas e da Ásia milenar, muitas culturas foram desprezadas. Seria isso devido ao fato de serem esses povos considerados desprovidos de cultura? Segundo a ficção, o princípio da eficiência resolverá todos os problemas materiais dos americanos, como o eugenismo resolverá todos os

104

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. p. 115 e ver interessante o trabalho sobre Lima Barreto de: MELO, Rita de Cássia Guimarães. O mundo urbano na obra de Lima Barreto: classes médias e pobres nos subúrbios do Rio de Janeiro (1881-1922). Dissertação de Mestrado. História PUC/SP, 2002.

105

LOBATO, J.B.M. Op. cit., p.119.

106

Idem, p.120.

107

Idem, p.106.

125

problemas morais.108 Vê-se que a eugenia compõe com a eficiência a chavemestra para solucionar os males da humanidade. Este princípio da eficiência, na prática, serve para a organização racional do trabalho, já que numa sociedade eugenizada todos, sem exceção, são levados a produzir. Isso porque a eugenia do ano de 2228 havia resolvido os ‘três pesos mortos’ responsáveis pelos males do mundo que sobrecarregavam a sociedade: o vadio, o doente e o pobre. Ao invés de combatê-los com o castigo, o remédio e a esmola, adotaram-se três medidas distintas, respectivamente: a eugenia, a higiene e a eficiência. Em seu texto, Lobato reafirma: era o fim da carga inútil, do parasitismo, mas sempre sob o sistema representativo.109 Aqui se percebe mais uma similitude com os anseios eugenistas em relação à crítica feita por eles ao assistencialismo110 que sobrecarrega o Estado com o ônus do tratamento daqueles indivíduos que, impossibilitados de trabalhar, tornavam-se um estorvo à sociedade. Nas palavras de Lobato: E a caridade, a filantropia, a assistência pública em matéria de defesa social não faziam senão despender enormes quantidades de dinheiro e esforço na criação de hospitais, asilos, hospícios, casas de congresso, repartições públicas, isto é, abrigos para os produtos lógicos da má origem (...).111 Pode-se observar no Choque também que, da mesma forma que identificamos nos textos de Kehl e de outros eugenistas, a grande preocupação da eugenia não era exclusivamente racial, mas moral e biológica. Controlar os casamentos dos aptos, evitar a procriação dos ‘vadios’, através da esterilização, era um caminho a ser seguido. Mesmo porque em 2228, a lei espartana era aplicada para ambas as raças. No entanto, Lobato recupera o problema racial, mostrando que a eugenia não se ocupou como deveria do problema até que as populações negra e branca se equipararam

108

Idem

109

Idem, p. 108.

110

Para ver a postura eugenista em relação ao assistencialismo ver Capítulo 1, item 2: Tupy or for Tupy?

111

LOBATO, J.B.M., Op. cit., p.152.

126

em número, ameaçando a ‘estabilidade ariana’ (é justamente o momento em que Jim Roy – o presidente negro – se elege). Em relação à melhoria da raça, os eugenistas brasileiros estavam preocupados essencialmente com o cruzamento. Seu debate girava em torno de duas principais vertentes: cruzar as raças a fim de branquear o povo brasileiro, baseando-se na tese de que o pigmento negro seria recessivo ao longo de gerações, o que sabemos hoje ser uma inverdade; ou evitar os cruzamentos, mantendo as raças o mais pura possível, pois um cruzamento entre raças diferentes era visto tal qual um cruzamento entre espécies, degenerando as duas raças igualmente, obviamente sempre saindo mais prejudicada – para estes eugenistas – a raça branca. No entanto, as duas posições consideram as raças como “massas”, amorfas quantidades de substâncias passíveis de misturas ou de purificações independentemente de suas complexidades e singularidades. Tudo se passa como se os eugenistas entendessem a natureza humana de modo simplificado, uma natureza sem devir e fora da história, algo totalmente ajustável aos desígnios culturais de uma época. 112 Na opção norte-americana, a prática eugênica deu-se através da opção de evitar o cruzamento. Lobato avança essa sociedade para o futuro, apresentando a maneira como funcionariam os casamentos, valendo a regra para ambas as raças, negra e branca, já que não existiam mais índios naquele país. Mas, vale lembrar mais uma vez, não havia casamentos interraciais. O direito de reprodução havia sido instituído pelo Código de Raça, emitindo o Estado uma espécie de brevet para o pai. Dava-se essa habilitação para quase tudo. Emprego, construção de casas, cura de dor de barriga.113 O casamento era feito entre filhos autorizados a procriar, considerados ‘eleitos da espécie’. Ser pai valia por um diploma de superioridade mental moral e

112

Contribuiu para pensar o papel das massas a leitura inspiradora de: CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

113

LOBATO, J.B.M., Op. cit., p.152.

127

física, conferido pela natureza e confirmado pelos poderes públicos.114 De acordo com Lobato em sua história, o número de divórcios diminuiu. Talvez tenha sido por constarem nas regras do casamento as férias conjugais obrigatórias, que permitia no inverno 15 dias e no verão 3 meses de separação entre os casais. No século XXIII havia sido provado por Johnston Coolidge, autor de Toxinas Conjugais, que tais férias limpavam os cônjuges do enfaro115 e renascia-lhes o amor ao petit-feu das saudades116 - o que dava aos casais duas luas de mel por ano, no retorno aos lares depois das férias. Interessante ressaltar que após a narrativa de Jane a Ayrton sobre essa prática, o moço entusiasma-se com a eugenia de tal forma que espera poder chegar à cidade para nos cafés, nas ruas pregar a eugenia e insultar a estúpida gente que não vê as coisas mais simples.117 Novamente destaca-se a apresentação da eugenia em seu sentido positivo. Enfatizando as vantagens da regulação do casamento entre aqueles considerados mais aptos e a consolidação dessa prática em longo prazo, a oferta das férias conjugais obrigatórias torna-se instrumento de sedução e conquista para a adesão ao modelo eugênico pelo cidadão comum. Além de descrever o meio social e os avanços tecno-científicos, Lobato debruça-se com afinco para ‘montar’ o panorama político futurista, delimitando fisicamente os perfis de cada um dos (apenas) três grupos em cena na trama e seus respectivos representantes: os negros, as mulheres e os homens brancos. Pensar a sociedade descrita por Monteiro Lobato no Choque das Raças, é, de certo modo, pensar na realização da árvore da eugenia apresentada no 3º Congresso Internacional de Eugenia e publicada por Kehl em 1935, no seu livro Sexo e Civilização. Trata-se de uma sociedade hierarquizada, limpa, forte, bela e saudável, e com uma base de sustentação 114

Idem, p.155.

115

Ato ou efeito de enfarar ou enjoar; fastio, asco, repugnância, enjôo de acordo com o Dicionário Digital Aurélio Século XXI, op. cit.

116

LOBATO, J.B.M., Idem.

117

Idem, p. 156.

128

altamente científica. Nessa árvore não há lugar para o povo nem para a espessura da história. Não há uma só vez em quase duzentas páginas de texto em que Lobato faça uma só referência ao povo, exceto quando este é visto como massa, como conglomerado de consumidores de jornal, moda, viagens. Nunca são vistos enquanto sociedade, enquanto conjunto heterogêneo de potencialidades singulares e como agentes sociais. Lobato somente abriu espaço para mostrar industriais, artistas, escritores e líderes políticos, além de cientistas, é claro. Após tantas descrições minuciosas, a descrição de povo deixou a desejar. O único personagem que pode trazer qualquer elemento que seja mais próximo do popular é Ayrton. Um homem não de ciência, mas “de natureza”, visto aqui como algo pejorativo, pois como disse Benson: pelo que vejo é um inocente (...) Chamo inocente ao homem comum de educação mediana e pouco penetrado nos segredos da natureza.118 Ayrton não domina a natureza, ele é a própria natureza, que precisa ser controlada, regulada e domesticada, para a boa saúde da árvore. O povo representa nada mais nada menos do que a matéria prima para a consolidação da eficiência. Seria o fim da história mencionada por Fukuyama, não fosse a potência inventiva de Jim Roy, que transformou os rumos de uma elite que via a mudança como ameaça, por se tratar inevitavelmente de alternância de poder. Mas é importante lembrar que Jim Roy era também um membro ‘eugenizado’, ‘omegado’ e ‘descascado’. Era um líder convicto que tratava seus seguidores também como autômatos. Apesar disso, Jim cumpriu seu dever de líder. Defender e libertar seu povo que foi submetido durante vários séculos através da escravidão e da opressão. Um presidente negro foi eleito. Por causa do automatismo de seus seguidos, ressaltamos mais uma vez, e o presidente negro e toda a raça negra extinta, por causa da ânsia consumista por bonecas falantes da outra parte da população. 118

Idem, p.22.

129

O orgulho da raça branca impediu a posse de Jim e que se cumprisse seu mandato. Num plano venal executado sem segredos, mas com sentido ambivalente, resgata mais uma vez a perversidade com que se tratam sempre questões relativas aos mais desfavorecidos ao longo da história. A ficção de Lobato serve-nos para lembrar dos perigos e sucessos da ciência, mas também para refletir sobre que tipo de sociedade queremos. Isto não é o que somos, nem tampouco o que seremos... * * * A constatação de uma relação entre Monteiro Lobato e Renato Kehl foi surpreendente, na medida em que, inicialmente sabia-se do fato de que cada um deles prefaciou o livro do outro119. Mas, além disso, trocaram correspondências

durante

vários

anos,

estabelecendo

uma

relação

profissional e de amizade. A primeira carta recebida de Monteiro Lobato, data de 1918, quando em resposta a uma carta de Kehl, Lobato autoriza a publicação de seus artigos para a coletânea e primeiro livro publicado por Lobato chamado Problema Vital. Nessa carta, além de agradecer pelo envio da conferência feita por Kehl na Associação Cristã de Moços, Lobato elogia-o com as seguintes palavras: (...) Confesso-me envergonhado por só agora travar conhecimento com um espírito tão brilhante como o seu, voltado para tão nobres ideaes e servido, na expressão

do

pensamento,

por

um

estylo

verdadeiramente ‘eugênico’, pela clareza, equilíbrio e rigor vernacular.120 Essa carta é o primeiro aceno de uma relação que duraria 30 anos. No Fundo Renato Kehl, de Centro de Documentação da Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, foram encontradas 16 cartas de Monteiro Lobato

119

Renato Kehl prefaciou o primeiro livro de Monteiro Lobato, uma coletânea de artigos publicados em jornal e reunidos pela Sociedade Eugênica de São Paulo em 1919, sob o título O Problema Vital. Em contrapartida, Monteiro Lobato prefaciou mais tarde o livro de Renato Kehl chamado Bio-perspectivas de 1938.

120

Primeira carta recebida de Monteiro Lobato, datada de 05 de abril de 1918.

130

endereçadas a Renato Kehl e 3 cópias de cartas endereçadas por Kehl a Lobato. A última carta tem data de 19 de novembro de 1946, ou seja, dois anos antes do falecimento de Lobato. Tratava de uma indicação editorial que seria feita por Lobato para a publicação do livro A Cura do Espírito, a pedido de Kehl. Todas as correspondências obedecem a um padrão bastante comum em toda a coleção de cartas guardadas por Renato Kehl. Sempre são respostas. Isso significa que o estimulador das relações epistolares é sempre Kehl. Sempre, ao publicar um livro, Kehl endereça-os aos amigos, parentes e membros da comunidade médico-científica. E assim recebe as respostas, de todos eles, que aproveitam a oportunidade para contar ‘as novas’. Mas algumas especificidades podem ser percebidas na relação entre os dois. Obviamente, devem ter havido encontros pessoais, que não se restringiram às epístolas. No entanto, vale lembrar que serão alinhavadas ações conjuntas entre esses dois interlocutores. Particularmente, entre os anos de 1922/1923, existem seis cartas de Lobato a Kehl. Na verdade são cartas-bilhetes de uma única página, em papel com timbre pessoal de Monteiro Lobato, escritas à mão – o que dificultou a leitura – e sem data. O conteúdo circulava em torno da publicação de um livro de Kehl que seria editado e publicado pela Cia. Graphico Editora Monteiro Lobato em 1923. O livro era A Cura da Fealdade. Inicialmente, uma carta de explicação justificando não ter iniciado o trabalho sobre o texto: Apesar de toda a boa vontade minha, não foi possível começar teu livro. Fim de ano é coisa terrível pois tem entregas a prazo certo, com metas e estamos a galopar para chegar a tempo. Creio que só em janeiro [1923] começamos o teu livro. Bem sabe que (ilegível) deram nossos interesses; a tua pressa de autor e a pressa econômica de editor,

131

mas só se faz o que é possível. Espero, entretanto este mês começar a Cura. L.121 Após algum tempo, escreve para contar a ‘boa nova’. O livro ficou pronto. Parece que havia uma certa preocupação por parte de Kehl, pois os bilhetes de Lobato sempre passavam mensagens de tranqüilidade e otimismo em relação ao livro. Na carta seguinte: Renato. Teu livro está lindo. Vaes gostar. Foi longamente gestado e saiu a contento. Sabe a razão da demora? Acabou o ‘ouro’ de uma encadernação (...). Em todo caso, esta semana receberás a coisa e será ella posta à venda. O Dr. Belisário [Penna] tem estado aqui e já viu em brochura! Gostou. Abraço, L.122 Contudo, essa pequena coletânea de cartas sobre a publicação do Cura indica que, a receptividade não foi como se esperava. Apesar do preço de capa ser bastante alto, em decorrência do número de 500 páginas da edição, ficava a 20$000. O mesmo Lobato, editor-otimista e com ótimo senso de humor descreve: Tenho a esperança de vender bem a edição.123 A Cura da Fealdade vai ter uma formidável saída (...). Todos os feios, inclusive eu, vão comprar o livro para ver se aumentam o focinho. Mas se não lhes ensinar um meio prático de embelezar instantaneamente, lyncham-te, na certa!124 O livro A Cura da Fealdade tem uma especificidade em relação aos outros escritos por Renato Kehl. Apesar de todos eles trazerem sugestões

121

Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl. Sem Data. Indicada com o número 6 na parte superior por Kehl.

122

Idem. Indicada com o número 8 na parte superior por Kehl.

123

Idem. Indicada com o número 4 na parte superior por Kehl.

124

Idem. Indicada com o número 5 na parte superior por Kehl.

132

práticas de como melhorar a aparência – através da educação física, de maquiagens, fórmulas embelezantes – nesse livro, Renato Kehl trata a fealdade como doença que pode ser curada.125 Ser belo(a) não é só uma questão de querer – nas décadas de 20 e 30 ainda não representa cuidar de si que envolve o prazer pessoal – mas uma necessidade social e profilática. Denise Bernuzzi de Sant’Anna fez uma detalhada pesquisa126 sobre o embelezamento feminino entre os anos de 1900 e 1980 mostrando que, para os eugenistas, todo o corpo deve ser belo dia após dia e por isso, o melhor a fazer é cultivar a saúde.127 Na carta seguinte, Lobato, desenvolvendo seu talento de editor explica a Kehl o que está acontecendo com a Cura da Fealdade, que não teve a venda esperada. Vendeu 10000? Tu não conheces o país em que vive, Renato... Isto é menos que África.128 Nessa mesma carta, Lobato recusa um outro livro de autoria de Kehl, Homem puro Sangue, por não dar margem de lucro suficiente para a editora. Posteriormente, explica longamente os motivos do não recebimento de honorários relativos à venda do Cura da Fealdade. Como não temos as cartas enviadas por Kehl, trabalhamos com uma via de análise somente, mas podemos supor e indicar as demandas por trás da resposta de uma carta. Neste caso, a ansiedade de Renato Kehl diante da edição da Cura da Fealdade dá a tônica da correspondência entre editor e autor: Renato, Recebi tua carta. A Cura já foi para todas as livrarias. Mas elas boycotam São Paulo, e não repetem pedido. É incrível! E se, sabendo nós, que qualquer delas não possue mais o livro, mandamos

125

Este é o argumento principal do capítulo 3: O Espetáculo do Feio.

126

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté...op. cit.

127

“tout le corps doit s’embellir jour après jour et pour cela, le mieux à faire c’est cultiver la santè”. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. op. cit., p. 170.

128

Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl. Sem Data. Indicada com o número 7 na parte superior por Kehl.

133

nova remessa, sabe o que acontece? Devolvemnos, dizendo que não queriam! É o que há de odioso. O Rio está fechado para nós.129 Mais do que mostrar uma preocupação aparece aqui também um problema de ordem política em relação ao mercado editorial. A velha ‘rixa’ entre São Paulo e Rio de Janeiro se acentua neste caso. O Rio está fechado para nós. Fechado para os editores paulistas, pois nesta época no Rio de Janeiro eram preponderantes as edições de Francisco Alves, que tinha filial em São Paulo, mas sede carioca. Curiosamente, Francisco Alves era o editor principal dos livros de Kehl. Foi com ele que editou 80 por cento de seus livros. A partir das cartas de 1929, percebe-se um Lobato mais voraz e crítico nas suas opiniões a respeito do Brasil. Sempre ligado ao pensamento eugênico, que é o elo entre esses dois intelectuais, o inconformismo de Lobato em relação a seu país é evidente, principalmente porque está falando como alguém que está vendo o Brasil de fora, já que morava em Nova Iorque. Cuidado eles [os críticos] acabam te linchando. Nossa gente quer dopes, cocaínas – illusão. Está apodrecendo e em vez de curar-se, perfuma-se. É vivendo num paiz como este que se pode alcançar em toda a sua extensão a miséria econômica, physica, biológica e moral da nossa gente.130 O fragmento acima mostra a desilusão de Lobato com o Brasil e principalmente com os críticos formadores de opinião. Indica que a intelectualidade, ao invés de preocupar-se em melhorar o país vive no esnobismo, fazendo festas, sem seriedade e aponta para o destino trágico do Brasil que será a miséria econômica, physica, biológica e moral da nossa gente.

129

Idem. Indicada com o número 9 na parte superior por Kehl.

130

Monteiro Lobato a Renato Kehl. Nova Iorque, 09/10/1929.

134

Na mesma carta finaliza com uma assertiva de assustar, que enaltece a Kehl, mas ao mesmo tempo, mostra um Lobato já conhecido por todos, indignado com os rumos do Brasil, e principalmente com as elites. E pede segredo de suas declarações na mesma carta. Rasgue esta incontinenti, meu caro, antes que alguém meta o nariz nella. Tudo que te digo é estrictamente confidencial e só pode ser dicto a um espírito superior como o teu. Mas o interessante dado revelado em duas correspondências é a fórmula que demonstra a Kehl do uso da literatura, seja ela de ficção ou de ciência, que pode dizer indiretamente que o que não se pode dizer às claras. È um processo indirecto de fazer eugenia e tenho commigo que os processos indirectos, no Brasil, ‘work’ muito mais efficientemente que os directos131 Confirma-se essa afirmativa quando, em relação ao lançamento de seu primeiro livro infantil, destaca novamente a importância de transformar ‘ciência em brinquedo’: Realmente aquele livro é bastante útil, e como está sendo muito bem recebido pelas creanças, animame

fazer

outro

do

gênero



de

sciência

transformada em brinquedo. Tenho uma idéia bastante engenhosa para o próximo – Emília no Paiz da Gramática.132 Alguns anos depois, demonstra sua indignação com a intelectualidade que desde a celeuma criada com o grupo da Semana de 22, por ocasião da crítica feita por ele à Anita Malfati, era alvo de inúmeras críticas: A cainçalha não perdoa ser querido das creanças e vender meus livros mais que eles. Que gentinha

131

Monteiro Lobato a Renato Kehl. Nova Iorque, 03/09/1930.

132

Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo. Sem data.

135

miúda a nossa! Se com tua eugenia não concertas esta raça, tela-emos uma das mais sórdidas do mundo.133 Afirmações como essa demonstram a inclinação da eugenia não somente para o saneamento racial, pregado pelas teorias de branqueamento, mas também uma regeneração moral, que extrapola a condição racial do indivíduo, e a força do exemplo, que deve ser pregado pelas classes cultas. Ou seja, para uma eugenização efetiva do povo brasileiro, não se deve extirpar da sociedade somente aqueles maus elementos, portadores de ‘doenças sociais’ como o alcoólatra, o sifilítico, o tuberculoso, o vadio, a prostituta e as deformidades congênitas da classe pobre, negra e mestiçada, mas curar os ‘desvios de caráter’ que habitavam também as classes abastadas e impediam o bom desenvolvimento de políticas públicas objetivas que contribuíssem para o desenvolvimento do Brasil. Adepto confesso da eugenia, não é risco afirmar, com base nas declarações feitas pelo próprio Lobato a Renato Kehl, que seu livro O Choque das Raças era mesmo ‘um grito de guerra pró-eugenia’. A afirmação mais escandalosa encontrada está transcrita abaixo, em que se indica a receita para concertar o Brasil. Ela não precisa de explicações. Ela cala. Um terremoto de 15 dias para afofar a terra; e uma chuva de.... adubo humano de outros 15 dias, para adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita, não?134

133

Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo, 14/04/1936.

134

Idem.

136

Meu corpo, Espelho desarticulado que mal percebe os entalhes do próprio corpo, sua simetria e enérgica imagem construída de músculos e artérias matéria bruta semelhante à idéia [de quem nunca teve um corpo (...) Meu corpo, de estranha geometria de despropósitos e irrealidade em que espaço habita? na memória de um outro corpo!? na frágil nostalgia dos que amaram, dos que se deixaram trair? Meu corpo, longo quase imperfeito, indiferente a beleza dos Gregos, Apolo (...) J. Viana

CAPÍTULO 3 – O ESPETÁCULO DO FEIO 1.

Os Caminhos da Desumanização

Quem não se assustou ao ver pela primeira vez o rosto de John Merrick, o “homem elefante”?1 A visão de seu rosto era monstruosa. Nessa co-produção cinematográfica (Estados Unidos/Inglaterra) da década de 80, a personagem da época vitoriana, John Merrick, era uma das principais atrações de um freak show2 onde se apresentavam curiosidades da natureza, como casos de pessoas com gigantismo, anãos, irmãos gêmeos ou irmãs siamesas, mulher barbada, entre outros. Com a sensibilização de um médico da Inglaterra pósDarwin, John Merrick é levado do circo ao hospital, para ser estudado. Numa das cenas mais fortes do filme, Merrick é perseguido numa estação de trens em Londres; encurralado, ele exclama: - Eu não sou um monstro, sou um ser humano! Ocorre então uma mudança de significado de seu papel de sujeito, na visão de seus dois tutores: o dono do circo que o transformou em espetáculo preso a uma jaula e o médico que o tornou objeto de estudo, um espetáculo para a comunidade médica e burguesa da época – de monstro à doente, de espetáculo à paciente. De acordo com Jean-Jacques Courtine, houve uma transformação histórica nas sensibilidades em relação ao olhar dirigido à deformidade humana no Ocidente. Todavia, para Courtine, o monstro só pode usufruir dos cuidados médicos e da emoção caridosa da opinião pública sob a condição de desaparecer do olhar público, ou seja, há na monstruosidade um paradoxo de

1

“O Homem Elefante” (The Elephant-man, 1980), Inglaterra/Estados Unidos. David Lynch (diretor).

2

Literalmente traduzido significa show dos esquisitos, mais conhecido entre nós como circo de horrores, em que eram exibidas curiosidades humanas, vista como aberrações da natureza: enfermos, deficientes físicos, etnias longínquas, tatuados, engolidores de espadas etc. COURTINE, Jean-Jacques. O desaparecimento dos monstros. Mesa redonda datada de 19/10/2001 juntamente com Denise Bernuzzi Sant’Anna que apresentou o trabalho Do culto ao corpo às condutas éticas no Seminário Ética e Cultura, realizado no SESC Vila Mariana, São Paulo. Texto traduzido por: Lara de Malimpensa, p. 3.

138

compaixão pelo corpo disforme, que presidiu à elaboração da noção de deficiência ao longo do século: o amor por ela manifestado aumenta em proporção ao distanciamento do objeto.3 Este capítulo trata de estudar os caminhos buscados para consolidar o distanciamento do sujeito diante da anormalidade, transformando-a não somente em objeto de estudo e fruto da compaixão dos homens, muito própria da medicina social do século XIX, mas em objeto de um eugenismo avesso aos assistencialismos e sedento em perfectibilizar a sociedade brasileira, o que, por si só, já é um paradoxo – primeiramente, porque a perfeição é busca utopista de um lugar ideal, com um padrão médio equilibrado e homogeneizado. Em segundo lugar, ele é um desdobramento do primeiro argumento, segundo o qual o Brasil é fundamentalmente, um conglomerado de singularidades raciais e étnicas, que dificilmente seriam homogeneizadas. Contudo, o paradoxo visto desse modo ainda não esclarece muito. Pois, a própria criação de uma idéia homogeneizante – a suposta melhoria do patrimônio racial e estético brasileiro – cria seu avesso, nesse caso, a fealdade, vista como sinônimo de degeneração. Esse avesso pode ser entendido como uma ameaça ao público e ao individual enquanto que o medo de estar enquadrado no grupo errado favorece a realização e a consolidação dessa idéia inicial homogeneizadora. Paralelamente a essa prática discursiva, surge um outro local para a cura da fealdade que está fora do corpo, da hereditariedade e da genética – no crescimento da indústria do embelezamento. Cremes e maquiagens para o rosto, peças de vestuário que voluptualizam o corpo, alisantes para os cabelos crespos, cápsulas rejuvenescedoras, bisturis, sugadores de gordura, exercícios físicos adequados e uma alimentação considerada saudável contribuíram ao longo do século XX para incutir, não somente nas mulheres como também nos homens, a idéia de que não é possível ser feio. Ou então: de que é inaceitável ser feio, com tantas possibilidades estéticas de tratamento, algumas provisórias, outras permanentes. De acordo com Denise Bernuzzi Sant’Anna4,

3

COURTINE, J-J. Op. cit. p. 8.

4

SANT’ANNA. Denise Bernuzzi. La recherche de la beauté....op. cit.

139

o século criou novas técnicas e artifícios para o embelezamento da mulher, que aos poucos foi libertando-a dos aparatos externos ao corpo (cintas, sutiãs, corpetes) e ao mesmo tempo, coagindo-a ao aprendizado e ao consumo de uma miríade de produtos e técnicas novas, feitas agora para comprar uma estética de acordo com a moda e os anseios pessoais. Quando se entra em contato com os textos eugenistas de Renato Kehl, a noção de fealdade adquire significados diversos, pois suas descrições são tão generalizantes que acabam transformando em sinônimos adjetivos bem distintos como deficiência, anormalidade e doença: (...) país que nasce torto não endireita nem a pau. A receita (...) para concertar o Brasil é a única que me parece eficaz. Um terremoto de 15 dias, para afofar a terra; e uma chuva de... adubo humano de outros 15 dias, para adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita, não?5 Nesse pequeno trecho de uma carta escrita por Monteiro Lobato a Renato Kehl, podemos destacar uma das concepções de ‘povo brasileiro’ expressa por um dos grandes representantes da cultura letrada do país: um povo ‘torto’ e avesso ao ‘endireitamento’. Como analisou Vera Marques,6 após os desdobramentos da Proclamação da República, em 1889, havia o ideal da formação de um povo brasileiro que representasse toda a nação, empunhada pela bandeira da liberdade e da igualdade. Neste trabalho, Renato Kehl é visto como incentivador de algumas das idéias ligadas ao progresso e à igualdade difundidas pela ‘nova ciência’ de Galton7, a eugenia, que a partir de 19178 inicia sua ‘peregrinação’ em prol da

5

Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl em 14 de abril de 1936. Escrita à máquina e assinada à mão.

6

MARQUES, Vera Regina Marques Beltrão. Raça e noção de identidade nacional. O discurso médico-eugenista nos anos 1920. In: BRESCIANI, Maria Stella (et. alii). Razão e Paixão na Política. Brasília: Editora UnB, 2002, p. 181-195.

7

Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin e um de seus primeiros seguidores. Criador da biometria, disciplina que aplica os métodos estatísticos à biologia, e especialmente

140

formação do homem9 saudável, belo, civilizado, definitivamente brasileiro. Dessa forma, eugenizar nada mais é do que homogeneizar a população, ressaltando as semelhanças e segregando os diferentes. O objetivo deste capítulo é identificar, com base nos textos de Renato Kehl, sua minuciosa tentativa de desumanizar o corpo imperfeito, ou seja, dysgenico,10 relacionando-o à fealdade, anormalidade, monstruosidade e à doença. Essa desumanização resulta de todas as descrições desses corpos imperfeitos, ao contrário daqueles considerados perfeitos e civilizados. A imperfeição, então, adquire o status de incivilidade e de desumanidade. Desumano, porque o homem imperfeito, apesar de ser visto como humano, está posto num lugar em que o médico tem a autoridade e o Estado tem a função de determinar o que fazer com ele. O feio seria um ônus para o Estado, um o atraso para a sociedade e um peso para os belos. Se, como escreve José Gil, o monstro assinala o limite ‘interno’ da humanidade do homem11, pode-se dizer que a fealdade passará a indicar, com o eugenismo de Kehl, a anormalidade psíquica e moral do brasileiro. Portanto, se faz necessário mostrar as descrições da fealdade como parte da aposta eugenista na intervenção direta no corpo do indivíduo, com a intenção de criar o corpo do novo homem e o corpo da coletividade, segundo a idéia de que cada um é responsável por si e pela saúde da coletividade, o que se traduz nas práticas que visam a identificar o indivíduo feio como sinônimo de inapto ao trabalho, anormal, monstruoso, doente, degenerado, incivilizado.

ao estudo da hereditariedade, considerado o primeiro eugenista. PICHOT, André. O eugenismo: genetistas apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 18. 8

O próprio Renato Kehl institui essa data como ponto de partida de sua empreitada pela eugenia no Brasil. Ver: Kehl, Renato. Por que sou eugenista? Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1937.

9

“Homem”, no texto, refere-se a homens, mulheres e crianças, ou seja, a formação de uma humanidade (povo) saudável.

10

Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl para designar aqueles que não se enquadram aos padrões físicos, morais e intelectuais previstos pela eugenia. Disgenia: condição do caráter que resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. Encontrado em: Novo Aurélio Século XXI: dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 2001.

11

GIL, José. Monstros. Lisboa: Ed. Quetzal, 1994, p.16.

141

A este respeito, Michel Foucault é inspirador quando analisa os anormais. Desenvolvendo a idéia de que o monstro humano é uma noção jurídica, por fugir à norma, Foucault demonstra como a monstruosidade pode contradizer a lei. Mas esse monstro não deflagra uma resposta por parte da lei – ele a deixa sem voz. O anormal do século XIX é o monstro humano cotidiano, um monstro banalizado, e não mais, como era visto até o século XVIII, uma infração das leis da natureza.12 O monstro torna-se objeto de estudo médico e passa a ser considerado um anormal do ponto de vista mental e psicológico. Mas, também, todos os que fizerem parte desta categoria de ‘anormal’ serão considerados ‘desviantes sociais’. Assim, a partir do século XIX, há uma suspeita sistemática de monstruosidade no fundo de qualquer criminalidade. Todo criminoso traria em si um monstro, assim como para Renato Kehl todo doente seria um monstro, um anormal. Nas palavras de Kehl: “(...) a palavra fealdade, aqui empregada, tem uma significação mais ampla do que a do entendimento corrente. Não corresponde á falta de predicados physicos, de graça ou de outros attractivos, que fazem de um homem ou de uma mulher alvo de admiração e sympatia. A fealdade é encarada, nas paginas que se seguem, sob o ponto de vista galtoniano e, como tal emprestei-lhe cacogenia.

o

sentido

claro

Em

outros

termos

de

dysgenesia

ella

equivale

ou á

anormalidade, á morbidez, assim como a belleza equivale á normalidade, a saúde integral.”13 Como se pode ver na introdução de seu livro A Cura da Fealdade, ser feio não atenta somente contra um problema estético. As dicotomias doença/saúde, sujo/limpo, feio/belo, anormal/normal e incivilizado/civilizado são confrontadas com a intenção de perceber qual discurso do olhar se constituiu para delimitar as ações do ‘outro’. O afastamento do sujeito observador no

12

FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de janeiro de 1975. In: Os Anormais. São Paulo: Editora Martins Fontes, p. 69-71.

142

discurso médico transforma o observado em coisa, não humana, passível de manipulação e enquadramento a um corpo técnico de regras e processos.14 A fealdade transforma-se em anormalidade e morbidez, impossibilitando a saúde do indivíduo. Mais do que isso, ela é a própria incivilidade. As associações feitas entre saúde e beleza são transpostas à doença e à fealdade. Dessa forma, inúmeras considerações são descritas na prática discursiva de Kehl. Mais uma vez, os sifilíticos são vítimas dessas associações, pois sendo considerada a doença que mais degenera a raça, impede a formação do povo brasileiro. Sinônimo de ônus – mais do que isso – esses doentes demonstram também a crítica feita ao assistencialismo15 nos casos de doenças degenerativas. Em suas palavras: As [crianças] que sobrevivem [à sífilis] são anêmicas, rachiticas, feias, nevropathas, ticosas, candidatas a morte precoce ou a se tornarem indivíduos cretinos, loucos, paranóicos, (a nossa terra é considerada o paraíso

destes

degenerados),

cegos,

paraliticos,

enxaquecados, sujeitos a uma existencia de tormentos, de martyrios para os outros, e sobrecarga para o Estado.16 É muito comum encontrar contradições no discurso eugenista de Renato Kehl. Uma delas pode ser percebida no trecho abaixo, se a compararmos à origem daquilo que ele considera anormalidade. Mesmo sabendo que no trecho acima Kehl se refere ao sifilítico, a cegueira contraída por acidente não é considerada anormalidade. Segundo a ciência de Galton, não pode ser considerado anormal o individuo portador de um defeito anatômico ou

13

KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1926, p. 05.

14

COURTINE, J-J. e HAROCHE, C. História do Rosto. Lisboa: Teorema, 2000, p. 218.

15

Para Kehl, a filantropia e o sentimentalismo contrariam a seleção natural, contribuindo para a proliferação dos fracos, doentes e degenerados, agravando a decadência e o abastardamento do gênero humano. In: Educação Eugênica. Rio de Janeiro: Livraria Alves, abril de 1932, p. 6.

143

fisiológico acidental ou mesmo congênito. A surdez, a cegueira, a perda, por exemplo de um braço ou de uma perna por doença ou por acidente, não tem importância genética.

As

desordens

hereditárias,

estas

sim,

constituem fatores de degeneração, porque atuam de forma dominante ou recessiva, dando origem aos verdadeiros cacoplasmas ou deficientes.17 Dessa forma, são os problemas de origem genética ou hereditária que constituem fator de degeneração. E, assim, aquilo que vem de dentro do corpo que é alvo de suspeitas e exames. Sobre o "gigantismo", Renato Kehl sublinha: provou-se que os gigantes são quase sempre indivíduos anormaes, degenerados, monstruosos.18 Portanto, para Kehl as deformidades físicas só têm validade quando são congênitas, não quando adquiridas em acidentes ao longo da vida. A construção do que deve ser belo e a descrição daquilo que é feio representam a maneira como o discurso médico eugenista pretendia interferir no corpo individual. Apresentar a fealdade como sinônimo de doença conduz o leitor para a ameaça e o medo do feio e de ser feio. Para ser belo, então, os eugenistas19 propõem: A Eugenia pretende certa regularidade nos traços physionomicos, constitutivas

do

uma

justa

corpo,

proporção vivacidade

nas de

partes espírito,

movimentos graciosos no andar e nos gestos, além de

16

KEHL, Renato. Filhos de Luéticos, Jornal Correio da Manhã, 17 de outubro de 1923. FOC

17

KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas. Rio de Janeiro: Separata da Revista Terapêutica, nº 3, 1942, p. 3. FOC

18

KEHL, Renato. Anões e Gigantes In: Eu Sei Tudo, nº 70, Março de 1923. FOC

19

Falo em eugenistas por crer que o discurso de Renato Kehl não era solitário e que a formação do campo de saber e discussão da eugenia continha em si os medos e anseios de seus correligionários.

144

saúde, força e vigor, para classificar um individuo no rol dos typos eugenicamente bellos.20 Um dos caminhos para a cura da fealdade é o embelezamento. Os padrões recomendados são baseados na forma física clássica dos antigos gregos. Os parâmetros de normalidade estão associados à beleza, mas esta tem de ser composta de aspectos não só físicos, como também psíquicos e morais. Sobre a beleza, Kehl diz: A

eugenia

considera

belleza

NORMALIDADE;21

normalidade esta somatica, psyquica e moral. Dentro deste objectivo, admittem os eugenistas, como bello todo o individuo dotado de saúde, vigor e robustez e

que

apresente uma compleição physica e psyquica normaes. (...)

A

fealdade,

por

sua

vez,

corresponde

a

anormalidade, a desproporção, a desharmonia. Não pode ser considerado bello o individuo tarado ou doente. A eugenia não admite a dissociação das qualidades somáticas e outras. Um imbecil plasticamente perfeito não é considerado bello, sob o ponto de vista eugênico.22 De acordo com Canguilhem, O patológico não é anormal porque as doenças fazem parte das funções normais de defesa orgânica e de luta contra a doença.23 Desse modo, a estrutura do pensamento de Kehl corresponde a uma concepção de vida que, além de ver no individuo sua hereditariedade, fisiologia e genética, generaliza o que é patológico como sinônimo de doença. Ou seja, o doente não pode ser considerado anormal, porque a doença faz parte das funções de defesa do corpo. Anormal seria não adoecer, isto sim sairia da norma. Entretanto, a patologia implica pathos (sentimento de impotência), denunciando a passividade do corpo e do paciente diante da

20

KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op. cit., p. 27.

21

Grifo de Renato Kehl.

22

KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op.cit., p. 27.

145

autoridade médica. Os eugenistas se valem de suposições dessa natureza para encarar a doença (patologia) e considerá-la um desvio da norma, intolerável porque funcionaria como um obstáculo para o progresso da nação. Kehl é bastante explícito neste aspecto: Os intuitos da doutrina eugênica podem ser resumidos nos itens: 1º) fazer com que as pessoas bem dotadas ou, mais claramente, as pessoas fortes, equilibradas, inteligentes, portanto de linhagem hereditária sadia, tenham maior número de filhos; 2º) que as pessoas inferiormente

apresentáveis

(doentes,

taradas

e

miseráveis) não tenham filhos.24 Considerando a proposta descrita no item número 2 do fragmento acima, a única maneira de as pessoas ditas ‘inferiormente apresentáveis’ terem participação numa sociedade eugenizada é não tendo filhos – isto quer dizer, utilizar-se de um instrumento que, até onde se sabe, não foi praticado no Brasil de modo oficial nesse período, a esterilização25 de homens e mulheres, além das proibições dos casamentos indesejáveis – mesmo porque, como afirmou Jean Héritier, há séculos se considera que o feio é indigno de amar.26 Nesse sentido, Civilizado, Belo e Saudável formam uma tríade que, segundo Kehl, deve manter suas relações fortes, contrariando a propalada ameaça de degenerescência provocada, entre outros fatores, pela "miséria". No final do século XIX, a associação entre pobreza e perigo alimenta o imaginário médico e higiênico em muitas metrópoles ocidentais. Courtine

23

CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 107.

24

KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas, op.cit., pág. 4

25

Na década de 30, diversos países europeus, além dos Estados Unidos e da União Soviética, já praticavam largamente a eugenia como forma de eliminar os indesejáveis. Um dos casos assustadores dessa prática deu-se na Alemanha, entre os anos de 1934-1939, onde centenas de milhares de pessoas foram esterilizadas. Na Califórnia, Estados Unidos, foram praticadas mais de 50 mil esterilizações entre os anos de 1907 e 1948. Para maiores informações ver: André Pichot, op. cit.

26

HÉRITIER, Jean. Le martire d’affreux. Paris: Édition Denoel, 1991, p. 82.

146

delimita os campos de dois tipos físicos característicos daquele momento: o físico popular e o físico burguês. No caso do físico popular, é do anonimato das fealdades onde pode sempre surgir o rosto da violência e do crime.27 Essa ameaça de criminalidade relacionada à classe pobre é associada, da mesma forma, à fealdade. No Brasil, a associação entre pobreza e perigo fomentou inúmeras justificativas de especulação imobiliária nas cidades, como meio de sustentar a ingerência do governo na vida familiar e individual de cada trabalhador de baixa renda.28 Um dos caminhos possíveis era a tentativa de proibir a existência dos cortiços, onde se amontoavam famílias em um único cômodo e não havia rede de esgoto e de abastecimento de água, recolhimento do lixo ou fiscalização sanitária. Em contrapartida, a formação de bairros higiênicos29 impulsionou o comércio de propriedades ‘saudáveis’, exacerbando a diferença entre estas e os insalubres cortiços. Com isso, a necessidade de sanear e de prevenir essas desagregações pedia ações efetivas das políticas públicas para frear e controlar o espaço do operário pobre das cidades em ascensão.30 Descrito esse quadro, Michel Foucault é inspirador novamente para pensar uma biopolítica e um biopoder que emergem do rápido crescimento do capitalismo no século XIX, ou seja, um método para controlar as populações, entendendo-as como espécie. Esse biopoder é um poder que incide sobre a vida, a fim de sujeitar e docilizar os corpos, potencializando com sutilidades disciplinares as relações do homem com seu meio.31

27

COURTINE, J-J e HAROCHE, C. História do Rosto. Lisboa: Teorema, 2000. pág. 221.

28

A este respeito a bibliografia é vasta. Ver, por exemplo, BENCHIMOL, Jayme (coord.). Febre amarela a doenca e a vacina, uma historia inacabada. Rio de Janeiro : Fiocruz, 2001 e CARVALHO, J.M. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

29

Os bairros de Higienópolis e Campos Elíseos, em São Paulo, são exemplos da segregação dos espaços do saudável e do doente, da formação do bairro burguês em detrimento do bairro proletário, como, por exemplo, os bairros do Brás e do Bexiga. Maria Alice Rosa Ribeiro. História Sem Fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo: Editora Unesp, 1993, p. 103.

30

Para saber mais ver: RAGO, Luíza Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Op. cit. e RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim.... Op. cit.

31

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. A Vontade de Saber. Volume 1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

147

A formação de disciplinas para o entendimento dessa nova sociedade biopolítica criou campos e saberes específicos sobre o corpo. Demografia, estatística, a própria sociologia, com seus ramos da antropologia e da antropometria, para estudar os grupos sociais com o viés biológico ou não, a biometria e a caracteriologia foram técnicas de análise e medição dos povos para diagnosticar o lugar do ‘enquadramento’ e a formação da ‘norma’. Na década de 1930, como se pode ver a seguir, para os eugenistas, a situação econômica do Brasil só irá melhorar quando se formarem políticas que dêem conta de educar, sanear e melhorar a sociedade. Segundo Kehl: Cada dia que passa, mais se nos firma a convicção de que só uma política educativa, sanitária e uma política eugenica, dirigida por administradores de escól, poderá melhorar a situação economica, politica e social do Brasil.32 A proposta liberal e eugênica para extirpar o feio, o doente, o anormal prevê a solução desse mal, por meio de duas estratégias: a eugenia e a eutecnia. Dentro de cinco gerações a humanidade poder-se-á encontrar

aliviada

monstruosidades, mentais,

de

50

por

deformidades

realizando

um

cento e

grande

de

suas

desequilibrados passo

para

o

reajustamento das populações com a elevação da taxa dos bem dotados, em relação aos mal dotados e aos ajustados psico-sociais. Tudo poderá realizar-se com o auxílio

da

Eugenia,

que

melhora

as

condições

hereditárias do homem, e da eutecnia, que melhora as condições do meio ambiente. 33

32

KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p. 20

33

KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas, op. cit., p. 4.

148

Aqui, corpo e meio-ambiente são colocados como coisas distintas, não influindo diretamente um no outro. A eugenia cuida das condições hereditárias, que não podem ser modificadas pelo meio-ambiente. No eugenismo de Renato Kehl não encontramos a importância da historicidade34 no processo de formação da humanidade. Apesar de admitir a influência do meio como uma das causas da degeneração, ele é descrito por Kehl somente na sua dimensão física e climática. Aspectos como a água, a terra, o calor e o frio são determinantes para a degeneração. As relações humanas estão colocadas fora disso. No discurso da Igreja durante a Idade Média, a anormalidade do monstro servia para ressaltar os aspectos da normalidade. A anormalidade tinha valor positivo, quando servia para ser mostrada àqueles considerados normais e sugeria a eles o quanto eram abençoados por não sofrerem desse mal.35 Criase a imagem da pena e da compaixão, características do assistencialismo tão criticado pelos eugenistas, por pensarem que os problemas da anormalidade deveriam ser tratados com embasamento científico. Ao longo do século XIX e no começo do século XX a monstruosidade ligada à imagem do feio condenava o indivíduo a uma existência marginal, geralmente ao preço de uma triste exibição de sua anormalidade. Mas a medicina social, a anormalidade passa a ser objeto de pena – como no caso da Igreja – e digno de tratamento. Mas a medicina do século XX, e principalmente a eugenia tratam de observar o anormal sob seu aspecto biológico, vendo-o não mais como uma alma a ser salva, mas como um corpo a ser curado. Essa cura necessitará dois tipos de estratégias: o diagnóstico e o tratamento adequado.

34

Vemos aqui historicidade como processo de construção da história, tendo em vista as relações sociais do homem com seu meio e da experiência vivida, do modus vivendi como fatores determinantes para conhecer o homem e seu meio. É essa complexidade que admite a subjetividade, mas que não dá conta da totalidade de uma realidade que constitui o lugar de formação dos seres.

35

HÉRITIER, Jean. Op. cit., p. 76.

149

2.

Isso é Feio! Que triste... Como se não bastassem os adjetivos pejorativos atribuídos ao povo

brasileiro – que deveria ser civilizado – cujos membros típicos eram tidos como feios, anormais, débeis ou medíocres, entre outros, um termo em especial causa estranhamento, por tentar denominar a composição racial do brasileiro. O Brasil, conhecido mundialmente como o país do carnaval, que vende alegria e bem-estar, foi chamado por Renato Kehl em 1923, de país triste. Apesar de fazer ressalvas em seu livro Eugenia e Medicina Social, Kehl assegura que a tristeza, a frieza são apanágios do nosso povo.36 Enfatiza que a tristeza, além de ser resultado de uma herança ancestral, é também conseqüência da doença do povo brasileiro: São tristes porque descendem de três raças tristes principalmente dessa grande raça lusitana dos tristes fados, dos suspiros e creadora do mais significativo vocábulo da nossa língua – a saudade (...) Sim, pode ser, mas o factor essencial da tristeza do nosso povo é a doença.37 Admitindo que doença é a causa principal da tristeza de nosso povo, administrar remédios para o corpo significaria mudar o semblante do brasileiro: de triste a alegre. Como ressaltou Denise Sant’Anna,38 a publicidade foi fundamental para disseminar essa idéia. Os anúncios da década de 1930 mostram que a tristeza causada pela fealdade – considerada doença pelos eugenistas – torna-se injustificável com as promessas de um embelezamento fácil e miraculoso proposto pelos médicos mais diversos para curar a feiura. Essa postura, principalmente das empresas cosméticas estrangeiras – de mostrar que o uso de seus produtos representa o fim do sofrimento – era

36

KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p.103.

37

Idem, Op. cit., p. 107

38

SANT’ANNA. Denise. Pourquoi souffrir? In: La recherche de la beauté...., Op. Cit., p. 210

150

favorecida pelo apoio dos médicos brasileiros. Nessa perspectiva, as silhuetas feias e o sofrimento, ocasionado por elas, tendem a ser consideradas como anormalidades indesejáveis, e como indecente sua dor excessiva e sua infelicidade.39 A eugenia está no interior desses problemas, preocupada com a cura do corpo e do espírito. Para isso, a tristeza e a feiúra – vistas como sinônimos de doença – serão descritas em diversos tipos passíveis de cura. As chamadas moléstias sociais40 são motivo de grande preocupação para os eugenistas. Como já mostrado, a sífilis era sinônimo de fealdade: Não fosse a sífilis, não existiriam tantas pessoas feias, monstruosas, quer physica, moral ou psicologicamente. 41 Pessoas feias... não somente esteticamente, pois a feiúra está dentro de cada indivíduo e também na moral e no comportamento. Essa passagem da fealdade, de fora para dentro, abre uma perspectiva de análise que considera o feio não apenas um atributo físico, mas também como uma prática do fazer feio. Afirmações do tipo: - Não faça isso porque é feio!!!, encaminham a observação do feio não como condição, mas como uma conseqüência do mau comportamento. Já ouvimos a máxima: - Só é feio quem quer! Assim, a feiúra torna-se uma questão de querer individual e não somente o resultado de um acaso natural. Todavia para Kehl, o problema das moléstias sociais é que elas condenam as gerações futuras, pela hereditariedade. Em sua análise sobre o alcoolismo, além do mal que representa o consumo do álcool, o texto revela um efeito em escala de herança, em que o álcool dissipa o mal e a feiúra aos que estão em torno dele.

39

Idem, Op. cit, p. 212.

40

Termo usado por CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., p. 192.

41

KEHL, Renato. Formulário da Belleza. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1927, p. 242. CP

151

Vê lá um louco – é o filho de um alcoólatra. Vê lá um mentecapto – é descendente de um ébrio. Vê lá aquela família, maltrapilha e esquelética, as crianças fazendo dó de magras, pallidas e feias – qual a causa? – O pae, coitado, deu para beber e abandonou o lar!. 42 Contudo, esse efeito em escala do alcoolismo demonstra um problema muito mais social do que sanitário. O pai alcoólatra é um coitado – ele não é cidadão, é um doente, passivo – que abandonou o lar, ou seja, deixou mulher e filhos que, sem o apoio masculino, ficaram impossibilitados de sobreviver. Tornaram-se maltrapilhos, esqueléticos, loucos. A afirmação de Kehl desconsidera por completo, nesse caso, o papel da mulher e a participação da mãe na educação dos filhos. Para ele, onde estavam as lavadeiras, doceiras e todas as mulheres trabalhadoras do período? Vê-se que, apresentando o alcoolismo como um problema médico ele deixa de ser considerado como um problema social para ser uma questão moral e individual. O machismo das afirmações de Renato Kehl sugere que se os homens não bebessem, não abandonariam seus lares, mulher e filhos, e que estes estariam protegidos dos males do mundo. Enquanto isso, à mãe nem sequer é reservado um lugar, ou melhor, o lugar da mãe, para Kehl, é de subserviência ao marido, seja ele alcoólatra ou não. Sabe-se, contudo o quanto o alcoolismo foi considerado um problema relacionado à produtividade no trabalho. Visto como passível de degeneração, deveria ser normatizado e disciplinado. Nesse sentido, a psiquiatria se ocupa largamente do problema do alcoolismo nas Ligas de Higiene Mental. Isso porque o alcoolismo é um fator de diminuição da produtividade, de aumento da freqüência dos acidentes de trabalho dentro das fábricas. Ao mesmo tempo, o individualismo, ao contrário do que se poderia pensar, é considerado um obstáculo à política eugênica. Poderíamos imaginar

42

Idem

152

que o eugenismo, ao propor a melhoria do corpo individual e do cuidado de si representaria um incentivo ao individualismo. No entanto, Kehl afirma justamente o contrário: O individualismo ignorante e egoísta constitue o único empecilho para o advento da política eugênica. Cada indivíduo, via de regra, pensa em si e apenas na hora presente, segundo o anexim: ‘quem vier atrás, que feche a porta’. Pouco se lhes dá o amontoamento de infrahomens, de cacoplastas, em suma, de resíduos humanos; pouco se lhes dá o alastramento dos que, com pesada e triste herança de anomalias, são fatores de desharmonia nos lares, de desordem e desorganização social, além de ônus para o Estado.43 Interessante perceber que esta é uma citação publicada durante o ano de 1942, portanto, durante a Segunda Guerra Mundial, em que as políticas eugênicas estavam sendo executadas a todo o vapor pelo regime hitleriano. As causas da degeneração são resultado também – de acordo com Renato Kehl – de práticas que devem ser desestimuladas pelos governos de modo compulsório ou através de um discurso persuasivo. Entre essas práticas, está o controle do número de nascimentos de indivíduos inferiores e da mestiçagem: Entre todos os povos de cultura européia a fecundidade é maior entre os indivíduos inferiores do que entre os indivíduos superiores à média. As classes intelectuais apresentam uma descendência mínima. Casamentos

43

KEHL, Renato. O que pretendem os eugenistas. Rio de Janeiro: Separata da Revista Terapêutica, nº3, 1942, ano XXII, p.04. Renato Kehl era editor chefe desta revista na época. FOC

153

tardios.

Limitação

da

prole.

Geração

consciente.

Prolificidade natural reduzida: - o número de filhos é inversamente proporcional à posição social dos pais. Enquanto o número médio de filhos, por casal, entre médicos, advogados, engenheiros é de 2 a 4, sobe de 4 a 8 entre os diaristas e trabalhadores braçaes.44 A mestiçagem, tão benquista por Gilberto Freyre, é categoricamente criticada por Kehl. Os ‘desvios da norma genética’ geram problemas de ordem social, como pode ser visto: Os cruzamentos heterogêneos (entre raças diferentes, por exemplo entre brancos e pretos, entre pretos e amarelos ou bronze, etc), são responsáveis pelo aparecimento de excessivas variações que representam desvios da norma genética. A vida numa sociedade é tanto mais intensa, desordenada, prenhe de vicissitudes, de crimes, de degenerações, quanto mais heterozigotos os elementos que a compõem.45 A argumentação baseada na cientificidade do discurso demonstra a ameaça da miscigenação como fator de aumento da criminalidade e das degenerações. Ao mesmo tempo, as referências raciais e étnicas de Kehl nada tem a ver com a cientificidade, tão cara ao autor eugenista. Branco, preto, amarelo e bronze são cores e não tipos raciais. A imigração descontrolada era a principal fonte causadora desses ‘desvios genéticos’. Incentivada por alguns, na esperança da homogeneização dos povos, é duramente criticada por Kehl. Em suas palavras:

44

KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op.cit., p.45.

45

Idem, p. 44.

154

(...) A idéia de que a humanidade se homogenizará no futuro, em virtude de fatal mestiçamento de todos os povos, não nos parece admissível.46 Como afirmou Alcir Lenharo, a idéia do sangue-doença, portador da destruição e desgraça, representa uma ameaça de morte para uma nação. O sangue saudável seria sinônimo de nacionalidade saudável. No Brasil, na década de 1930, as paixões racistas elevam um espírito de intolerância pela ânsia nacionalista. Nesse sentido, as leis de imigração pautavam-se pela negação. Havia mais certezas sobre o indesejável do que seu contrário.47 Asiáticos e negros eram os alvos principais do elemento de negação à imigração. Kehl critica a política imigracionista adotada no Brasil, ressaltando a importância de que sejam feitos incentivos às imigrações de grupos de países de raça nórdica, não aceitando imigrações vindas de países asiáticos. O Japão em pletora, a China em peores condições, a Índia.... Imagine-se estes países a nos expelirem seus rebutalhos multicor e multiforme!... E há quem defenda a imigração estipendiada pelo Estado, para nos trazer tais elementos. Se fossem suecos, noruegueses, ingleses e alemães, ainda se conceberia. A lavoura precisa de braços, eis o grito que se ouve e o governo que a atenda! Questão de raças? “Isto fica para mais tarde”, dizem os nossos pseudo-estadistas.48 O controle de imigração é visto também como uma das medidas de preservação da nacionalidade. Muito defendida por Kehl foi a postura adotada pelos Estados Unidos desde o século XIX, limitando a entrada de negros e asiáticos em seu território. Não somente no caso norte-americano, mas em todo o ocidente, a preocupação imigracionista gera debate entre os eugenistas.

46

Idem, p. 207.

47

LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Op. cit., p.112-113.

48

KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op.cit., p. 208.

155

Nas palavras de Renato Kehl, A terra, desde a era cristã, tem sido governada pelos povos do velho continente, pela raça branca, como se diz, ou pelo menos tem-lhe cabido o bastão de mando, o controle do movimento político, econômico e social do planeta. Começam porém, as migrações em grande escala. As facilidades de transporte e a liberdade de entrada em muitos países, concorrem para essas fortes transmigrações. Dentro de algumas décadas, muitos

países

estarão

completamente

mestiçados,

predominando os elementos asiáticos.49 A crítica de Renato Kehl estende-se também à própria medicina, apresentada como fator degenerativo da espécie, no Brasil. Aliada à filantropia e ao sentimentalismo, tornam-se obstáculo para a seleção natural. Essa idéia é consoante àquelas pregadas pelo darwinismo social desse mesmo período. Foi o que Kehl chamou de filantropia contra-seletiva: A medicina, a filantropia, o sentimentalismo, em suma, contrariando a seleção natural, salvando e concorrendo para a multiplicação de fracos, doentes e degenerados, agravam ainda mais a decadência, o abastardamento do gênero humano.50 Mas a espetacularização está posta especialmente em duas notas publicadas no Boletim de Eugenia, que, apesar de longas, mostram com clareza o modo como é feita a transposição da fealdade à degradação moral. Scenas Deprimentes é o nome desta nota: Não são poucos os brasileiros que se envergonham com as cenas deprimentes que se assistem nas ruas do Rio

49

Idem, p. 206.

50

Idem, p. 44.

156

de Janeiro nos dias de carnaval. A fealdade physica e a degradação moral aproveitam a oportunidade para se exhibirem com todo o seu repugnante e verdadeiro aspecto. Os indivíduos não põem mascara, - tiram-na. Todo o resíduo informe da plebe, por influencia diabólica do álcool e do vicio, sobrenada, vem á tona, para misturar-se com a parte melhor do povo e contaminal-a pelo delírio das baixas paixões. Asneiras de toda a sorte são

commetidas

pelos

indivíduos

apparentemnete

ajuizados, mas que perdem, facilmente, o controle e cahem no domínio dos instinctos. A nossa plebe é feia, desengonçada e doente: - imaginese ‘caricaturizada’, pintada com farinha e cal e borrada com tinta vermelha, - vestida andrajosamente em trapos, a tremilicar e saracotear-se pelas nossas ruas! Será isto o carnaval digno de ser conhecido e apreciado pelos estrangeiros?51 Analisando essa nota por partes, podemos constatar que, segundo as afirmativas de Kehl, parte dos brasileiros se envergonha com tais scenas deprimentes. Quem são esses brasileiros? A elite intelectual europeizada (a parte melhor do povo) que se mistura à plebe feia, que contaminará e degradará o melhor do povo brasileiro? Então o brasileiro se envergonha e o povo é contaminado pelo vício? A fealdade e a degradação moral do povo brasileiro são argumentos de origens distintas – um biológico e outro do meio – mas são juntadas a fim de explicar a necessidade de eugenização da sociedade. Quando se refere aos estrangeiros, nós somos espetáculo para eles? Não é com essa finalidade que querem “eles” (os estrangeiros), conhecer o exotismo brasileiro?

51

KEHL, Renato. Scenas Deprimentes. In: Boletim de Eugenia. Volume 1, nº 2, fevereiro de 1929, p. 03.

157

Tal comentário de Kehl mostra um imenso mau-humor diante da vida social e pública. Divertir-se no carnaval é ceder à influência diabólica do vício, cair no domínio dos instintos e ainda motivo de ironia e desprezo lingüístico com a chamada plebe (doente, desengonçada e feia), que mais representa o cidadão comum e trabalhador: vestida andrajosamente em trapos, a tremelicar e saracotear pelas nossas ruas! Nossas ruas? A rua não é o lugar do público? Pela afirmação de Kehl, parece que não. Um longo relato de Kehl de uma curiosidade da natureza expressa bem a idéia de quanto a medicina se apropriou da espetacularização para seduzir e demonstrar as necessidades de controle sobre os corpos dos indivíduos brasileiros, desde o seu nascimento, passando pelo casamento e morte: Há tempo um vespertino do Rio publicou uma notícia, acompanhada de photographia, sobre uma família residente em Guarapuava, cuja dolorosa história a muitos impressionou. Referia-se ella a um casal com 12 filhos dos quaes 6 nasceram sem pernas nem braços. A “Eugenical News” de julho de 1930 traz sobre esta desgraçada família dados mais pormenorizados, cuja publicação poderá ser de grande interesse para os que se

dedicam

a

estudos

sobre

hereditariedade

e,

principalmente, como advertência para o perigo dos casamentos consangüíneos. O mais interessante é terem sidos os homens os mais prejudicados, pois dos 12 filhos, seis são anormaes, sendo 5 rapazes e 1 menina. Os seis normaes são todos do sexo feminino. Das seis meninas normaes morreu 1. Dos seis anormaes já morreram 2 rapazes. Os três restantes contam

158

respectivamente: 36, 32 e 18 annos; a menina tem apenas 9 anos de idade. A mãe e o pae, Gabriel Baptista da Rocha e Luciana Rosa

dos

Santos,

não

apresentam

qualquer

anormalidade aparente. O marido é tio da esposa. Seus filhos são os primeiros que apresentam anomalia na família, cujos membros são e forma physicamente normaes. Um reverendo missionário inglês Mr. H. Cook, que visitou em Guarapuava este casal, fez minucioso inquérito, sem conseguir descobrir antecedentes que justifiquem taes anomalias; os quaes só podem ser attribuidas á consangüinidade dos esposos. Estes pobres aleijões andam sobre os joelhos com relativa facilidade, comem com os côtos de braços que possuem e fazem alguns trabalhos leves. Um delles, diz o pae, corta lenha e até atira laço! A saúde geral destes infelizes é boa. As pernas terminam, nos rapazes, num pequeno pedaço de tíbia em ponta. Na menina os braços, que terminam na junta do cotovello, apresenta um côto emquanto, que os delles acabam, antes da articulação. Um delles faz excepção, porque dos seus braços um tem articulação e o outro não.52

52

KEHL, Renato. Uma Família Brasileira cujos elementos não possuem braços nem pernas. In: Boletim de Eugenia. Volume 2, nº 21, setembro de 1930, p. 03.

159

Essa matéria foi publicada em dois lugares antes do Boletim de Eugenia (um jornal carioca e o Eugenical News53). Como se vê, trata-se de uma família de doze filhos sendo que seis deles nasceram com problemas físicos congênitos (anomalias). De acordo com Kehl, o mais interessante é terem sido os homens os mais prejudicados. Essa afirmação denota, mais uma vez, um certo machismo de Kehl, pois poderiam (talvez com menos custo social) ser as mulheres as aleijadas. Seu comentário tem um tom queixoso, como se o fato de os homens não terem braços nem pernas fosse um desperdício para a sociedade, já que eles não podem trabalhar. A cidade onde moram é Guarapuava, interior do Rio de Janeiro. A família foi visitada por um reverendo inglês – da Igreja Protestante – que fez um rigoroso inquérito. Dois problemas se insinuam aqui: 1. Um reverendo inserido na pesquisa eugênica? Isso quer dizer que a Igreja católica é o alvo dos eugenistas, os protestantes não, pela sua ética?; 2. A própria noção de inquérito é contraditória: o inquérito é feito pela polícia, não pelo padre! Isso significa uma criminalização dos deficientes, ou a completa disposição que essa família deve ter para contribuir em tais pesquisas? O reverendo desempenha a função do antropólogo. As descrições são irônicas e frias, quase científicas, e mostram ainda que, apesar do problema originado pela consangüinidade, os aleijões andam, comem, trabalham, e um deles até atira o laço! Esse modo de conduzir o texto leva-nos a questionar algo mais: para Kehl, o que torna essas pessoas espetáculo? O defeito físico, o modo como lidam com o defeito físico, sua saúde ou a origem genética desses problemas? Podemos vislumbrar no objeto dessa nota um foco de resistência, de adaptação ao modo de vida. Para os eugenistas, talvez fosse mais desesperador ver que, no campo ou na cidade, famílias numerosas de vida humilde, com eventuais problemas físicos, poderiam viver de forma alegre e

53

Interessante saber que um jornal eugenista norte-americano publicava notícias sobre casos brasileiros.

160

com saúde. Eles poderiam ser infelizes para Kehl, mas será que se sentiam assim? Dessa forma, por saber que a multiplicidade dos sujeitos e a capacidade de criação de todos é infinita, as fontes mostram que o eugenismo tinha que criar um super aparato de técnicas, estratégias e condutas para que a sociedade melhor, tão almejada, pudesse ser alcançada. Adiante serão mostrados alguns remédios indicados para a cura dos males do Brasil.

161

3.

A Cura da Fealdade 54 Para evitar o aumento da população de anormais, ou, segundo Renato

Kehl, dada a necessidade de impedir a proliferação dos resíduos humanos,55 algumas propostas são desenvolvidas para eliminar da sociedade os considerados inaptos, degenerados e criminosos. Como pôde ser visto nos dois itens anteriores, estavam incluídos nesses critérios pessoas que, além de defeitos físicos congênitos, possuíam certas características de fundo moral e social. Para os eugenistas, não bastava visar o ideal de um tudo, mas o de um ótimo para obter uma sociedade eugênica.56 Os norte-americanos – ressalta Kehl – optaram por adotar uma postura segregacionista em relação à raça. Diga-se de passagem, não somente a segregação racial, mas também a segregação daqueles que devem estar isolados do meio social, os elementos mais nocivos, tais como todos os débeis mentais e os epiléticos, e orientando aqueles medíocres e menos perigosos para que pudessem produzir seu próprio sustento.57 Todo um projeto foi construído para a formação de um aparato tecnológico e disciplinar, visando a cercar de forma eficiente os possíveis escapes da população. Isso quer dizer que a sociedade disciplinar, além de sua preocupação em docilizar os corpos, para que se tornem mais produtivos, servia-se também de uma prática discursiva baseada na biologia para se legitimar. A potência criativa dos grupos, o pulsar das singularidades escapam inevitavelmente das mais diversas estratégias disciplinares, consolidando-se nas resistências silenciosas ou não. Sugere-se que os eugenistas já sabiam

54

A Cura da Fealdade é o nome dado ao livro de Renato Kehl, que descreve técnicas de embelezamento, normas e parâmetros de beleza estética.

55

Idem, p. 183.

56

KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 183.

57

Idem.

162

disso, pois só a norma era insuficiente para reverter um estado de degradação social. Para que todas as proposições fossem implantadas de fato, deveriam, antes de tudo, serem legitimadas não somente pela classe culta mas também pelo poder legislativo. Kehl, porém, é implacável com essa organização. Sustenta que, no Brasil, o congresso não é patriota: A regeneração política de qualquer país civilizado depende

essencialmente

de

um

aparelhamento

legislativo culto e verdadeiramente patriota. Outro tivesse sido o nosso extinto corpo legislativo e já teríamos leis modernas sobre imigração, proteção às mães e à infância, e a lei regulamentando o casamento, todas elas de

proveito

eugênico

e

consentâneas

com

as

necessidades do nosso país, atualmente em franca evolução política, social e biológica, apesar dos óbices opostos pela rotina, pela politicagem, pelo desgoverno, além de outros múltiplos fatores que vêm atuando em sentido contrário ao progresso.58 Diferentemente de diversos trabalhos que centralizam a discussão acerca do eugenismo em torno da educação – como se fosse a vertente mais importante de análise sobre esse tema – este objetiva demonstrar que a educação representava uma vertente entre outras tantas. Todas essas vertentes tem como critério principal estudar o caminho percorrido pela eugenia para atingir seu fim, a profilaxia do indivíduo: educação (pedagógica, higiênica, sexual, física), imigração, controle de nascimentos (birth control), legislação, esterilização, paternidade, exame-pré-nupcial, genealogia, propaganda, entre outras.

58

Idem, p.169.

163

Como ressaltou Marcos Nalli59, a educação é um exemplo de intervenção eugênica e, dessa forma, apresentava fragilidades em sua eficácia, assim como a religião e o progresso da ciência sozinhos não conseguem impedir a degeneração dos povos. Nas suas palavras: O progresso material, o progresso da ciência, a educação, a religião não têm concorrido de modo apreciável para impedir a decadência física e psíquica dos povos.60 Desse modo, a educação é insuficiente para milagrosamente salvar os cegos, surdos, cretinos, débeis mentais. Para tratar dessas pessoas, outras medidas devem ser tomadas, mas Kehl não as apresenta de modo objetivo: A educação, tão somente, elucidando, convencendo, não conseguirá o milagre da regeneração humana porque há cegos, há surdos, há cretinos, existem milhões de débeis mentais, para os quais a educação não esclarece nem persuade. Para estes impõem-se outras medidas... que por serem eugênicas, não deixam também de ser humanas, sem o falso sentimentalismo dos que olham para o presente sem perscrutar o futuro, que olham para um indivíduo, sem considerar a coletividade.61 Medidas eugênicas... e humanas. Do que está falando Renato? Da esterilização? Ele sugere uma prática, mas não a nomeia. Apenas constata que a educação é insuficiente para cuidar desses casos. Kehl ressalta mais uma vez a tendência ao individualismo, que é motivo de crítica, por desprezar as preocupações com a coletividade. Os indivíduos não saem das escolas para a vida no verdadeiro sentido, isto é, com a concepção clara das

59

NALLI, Marcos. Antropologia e segregação eugênica: uma leitura das Lições de Eugenia de Renato Kehl. Mestrado em Psicologia. Universidade de Maringá, 2000.

60

KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 45.

164

leis naturais e dos princípios que dominam a vida individual e social. Quando muito trazem apenas a bagagem,

de

uma

‘boa

educação’

e

nenhuma

compreensão dos deveres para com a descendência, para com as gerações futuras. Individualismo e não coletivismo. Misticismo. Preocupações de vida... extraterrena!62 Esse tipo de crítica ao individualismo é recorrente, ainda mais quando se trata da educação. Ela é vista como uma boa educação (pedagogicamente falando) mas não dá à pessoa nenhuma compreensão dos deveres para com a decência, para as gerações futuras. O dever do indivíduo não é respeitar os seus desejos, mas observar o futuro como o resultado de suas ações do presente, tendo em vista o bom comportamento, a cientificidade, a visão de hereditariedade, o civismo para a proteção das gerações futuras. Não se pode esquecer que, quando se fala da educação, isso quer dizer educação sexual, física, pedagógica, higiênica e, sobretudo, eugênica.63 Todas essas perspectivas educacionais têm uma finalidade principal: conscientizar os indivíduos, principalmente as crianças, da necessidade do cuidado do corpo para a proteção da hereditariedade e do Estado.64 Tendo sempre como referencial as práticas de esterilização dos Estados Unidos, Kehl enfatiza a necessidade da implantação desses procedimentos no Brasil, tendo em vista a diminuição da miséria social e, como conseqüência, para melhorar a situação dos indivíduos e do Estado.65

61

Idem, p. 50.

62

Idem, p. 45.

63

Ressaltamos os trabalhos elaborados sobre a educação física que merecem destaque na constituição deste aparato educacional proposto pelos eugenistas, especialmente: SOARES, Carmem. As raízes da educação física... op. cit.

64

Sobre a história da infância no Brasil, ver o belo trabalho de: BRITES, Olga.A imagem da infância: São Paulo, 1930-1950. Tese de Doutorado. História PUC/SP, 1999.

65

KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 190.

165

Os eugenistas acreditavam os débeis mentais e alienados, além de representarem um prejuízo para o Estado, sobrecarregam os que são considerados produtivos. Os débeis mentais e os alienados além de constituírem

pesado

ônus

econômico

são

forças

negativas em prejuízo das produtivas. (...) Considere-se a fabulosa soma necessária para manter esse formidável peso morto e se aquilatará da importância transcendente de uma medida como a esterilização. (...) São esses resíduos humanos os causadores da miséria, do infortúnio de tantas famílias, em cujo seio se reproduzem degenerados de toda sorte, cretinos, idiotas, criminosos, malandros, bêbedos, e toda a caterva de indesejáveis que trazem a sociedade em permanente estado de exsudação mórbida e criminal.66 Apesar de seu tom pesado, quando se refere aos indesejáveis como resíduos humanos, a esterilização seria eficaz por cuidar dos incorrigíveis,67 como lembra Foucault. Além disso, a esterilização impede a procriação do homem e da mulher. No caso masculino, significa simbolicamente a castração (o método usado é a vasectomia), que impede que o homem espalhe sua descendência através de seu sêmen. No caso feminino, a ligadura de trompas (laqueadura) também adquire um significado simbólico: privar a mulher de seu papel de mãe, uma vez que, nessa sociedade, culturalmente masculina, o lugar reservado à mulher é cuidar do lar e dos filhos, e não poder ter filhos, na década de 1930, é não ser mulher.

66

Idem, p.190.

67

Para Foucault, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno corrente na sociedade, por isso é muito difícil determiná-lo. Ele é regular na sua irregularidade. O incorrigível é o monstro empalidecido, banalizado, em que fracassaram todas as técnicas, procedimentos e investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo. Portanto, o indivíduo a ser corrigido é incorrigível. FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de janeiro de 1975. In: Os Anormais, op. cit., p.73.

166

Dessa forma, Kehl dá as justificativas para a aplicação da esterilização, em que casos o homem e a mulher devem ser submetidos a esse método: Indicações para a esterilização.

a) Esterilização de

alienados e de perversos instintivos; b) esterilização de grandes criminosos e de miseráveis; c) esterilização econômica, no caso de casais incapazes de fornecer, pelo próprio esforço, os meios necessários para garantir a subsistência e a educação dos filhos; d) esterilização social, a fim de reduzir as despesas progressivas que a coletividade é forçada a sustentar com asilos de débeis mentais e inaptos ao trabalho, cada vez em maior número;

e)

esterilização

obrigatória,

imposta

por

doenças mentais; f) esterilização voluntária, praticada, habitualmente por indivíduos com doenças físicas, por exemplo, tuberculosos, por mulheres após repetidos partos, havendo perigo de vida, cuja morte deixará na orfandade os filhos.68 São seis as justificativas para as indicações da esterilização. Nesse trecho, Renato Kehl explica de modo bastante cuidadoso quais são as pessoas que se enquadram e que são potencialmente esterilizáveis. Sem simplificar ou reduzir a explicação de Kehl, em outras palavras o que ele quis dizer é que a esterilização é indicada aos: loucos, criminosos, pobres, vagabundos, deficientes físicos, deficientes mentais, doentes (sifilíticos, tuberculosos, etc.) e mulheres que correm perigo de vida, após diversos partos. A necessidade de evitar os nascimentos dos indivíduos considerados inferiores e estimular o nascimento dos superiores é quase uma obsessão dos eugenistas. Kehl cita exemplos de países em que o controle de nascimentos é empregado de maneira racional. Alemanha, Holanda, Dinamarca, Suécia, Polônia e Japão figuram entre os exemplos analisados, com seus métodos de

68

KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 194.

167

educação anticoncepcional69, o fim do tabu sexual70 e o controle compulsório de nascimentos.71 Pra o caso brasileiro, Kehl enfatiza a importância do controle racional de nascimentos, com os seguintes argumentos: Somos partidários do birth control como medida de ultraprofilaxia contra a pletora de débeis mentais, de resíduos humanos, como defesa para os casais eugenizados,

mas

que

não

podem,

por

motivos

econômicos, arcar com o sustento e a educação de vários filhos.72 Muitas vezes o controle de nascimentos era confundido com liberação sexual, já que o sexo não implicava necessariamente a procriação e sim prazer. Mas Kehl, o astuto, não se furta a justificar que sua proposta não é essa: Não é nosso intuito propagar idéias subversivas contra a moral vigente, muito embora

a

precariedade

desta

sob

muitos

aspectos. Não pretendemos a ‘liberdade de amar’ porém a ‘liberdade para administrar sensatamente o fruto do amor’73 Sob determinado aspecto, a liberdade para administrar os frutos do amor seria conviver a partir de então com os métodos anti-concepcionais, com a gravidez programada e com a qualidade de vida, o que, para o período, representa uma postura arrojada. Pode-se dizer que Kehl é moderno nesse

69

Adotada na Alemanha e Holanda desde o século XIX. Na Suécia é praticada pelas ‘classes inferiores’. In: Idem, p. 196.

70

No caso dinamarquês, a educação sexual e o desprendimento da moral católica geraram um estado de coisas que possibilitou o ‘amor livre’, mas ao contrário da libertinagem vê-se uma sociedade eugenizada em que o índice de doenças venéreas é baixo e os casamentos são realizados dentro das normas eugênicas. In: Idem, p. 197.

71

Caso japonês: o estado limitou o número de nascimentos nas famílias a partir de 1930. In: Idem, p. 198.

72

Idem, p. 198-199.

73

Idem, p. 199.

168

aspecto, por admitir que o sexo pode ser prazeroso e não ter somente a função da procriação. No entanto, essa liberdade para o prazer sexual dirige-se somente ao homem, o que faz o modernismo de Kehl ser parcial. Na verdade, o controle de nascimentos é dirigido principalmente àquelas famílias pobres que não têm condições para sustentar os filhos. As nossas idéias se dirigem contra a inconsciência, contra a ignorância, contra a estupidez das proles numerosas, geradas à la diable, pelos incapazes da boa procriação e pelos que não tem recursos para educar e alimentar seus frutos, espuriamente gerados.74 Portanto, além de racial, maneira o eugenismo como sempre se apresentou, trata-se também de uma teoria classista. Assim, o alvo dos eugenistas são não somente os doentes hereditários e os cruzamentos interraciais, mas também os pobres de modo geral. Deve-se, então, ressaltar mais uma vez a dimensão a-histórica da eugenia, por considerar a pobreza uma conseqüência da hereditariedade e não um resultado das relações sociais historicamente constituídas. Assim, utilizando a comparação da descendência de duas famílias norte-americanas, Kehl justifica a importância da eugenia enfatizando um contraste: Max Jukes, nascido em 1720, era um pescador ‘fraco de espírito’; até hoje sua geração é de mais de 1200 pessoas. Pois bem, destas, 300 morreram recémnascidas, 60 forma ladrões habituaes; 130 criminosos diversos, condenados a penas graves, 7 assassinos, 440 vagabundos, maltrapilhos, precocemente inválidos e mortos, 300, finalmente ociosos, que nunca procuraram ganhar honestamente a vida; apenas 20, dentre todos estes, exerceram uma profissão e só a metade delles aprendeu o offício no cárcere. Kraemphfert calcula em 40 mil contos o total das despezas de manutenção nos

169

hospitaes, prisões, asylos de loucos, e com socorros, que tal família custou ao Estado de New York, não contando os prejuízos inderectos de roubos, homicídios, destruição de propriedades, etc. Agora o contraste: Jonathan Edward teve também uma prole numerosa: há dez annos os seus descendentes andavam por 1.394. Destes

descendentes,

295

formaram-se

em

universidades, 13 foram directores de collegio, 65 professores, 75 officiaes, 60 escriptores, que produziram 135 obras, algumas de grande valor, 30 juízes, 3 senadores e 1 vice presidente da República. Nenhum membro desta família foi jamais condenado pela Justiça!75 No texto em que está escrito ‘fraco de espírito’ leia-se pobre. É evidente que o destino trágico da família Jukes não é tão trágico quanto parece, porque o pescador do século XVIII, de origem humilde, não é o responsável direto pela sua descendência.76 Além disso, mais de mil desses mil e duzentos descendentes provavelmente encontraram impedimentos econômicos para melhores condições de vida, tendo de recorrer a atividades ilícitas. Ainda mais, no caso dos criminosos, ladrões e assassinos, Kehl não questiona de modo algum as circunstâncias de cada caso. O texto é absoluto e generalizante demais. A análise da família Edward não foge à regra. Além de ser muito menor o texto, a ênfase ao status profissional de cada membro dessa família desconsidera por completo o caráter de homens de tão altos postos de trabalho.

74 75

Ibidem. Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 5, maio/1929, p.03

76

Como foi possível fazer a genealogia de Max Jukes, um pobre pescador do século XVIII, arrolando mais de 1200 descendentes? É de se questionar a veracidade desses dados.

170

Para que existam famílias de boa descendência, é necessário fazer um plano para estimular o aumento do índice de nascimentos dos casais superiores. Kehl propõe o que chamou de “política de natalidade”, que envolve de modo esquemático os meios de ação para a diminuição da fecundidade dos indivíduos abaixo da média e o correlativo aumento da fecundidade dos indivíduos acima da média (a primeira com caráter eliminatório e a segunda com caráter eletivo e estimulador). Por exemplo: Propagar as vantagens do casamento dentro da mesma raça, da mesma classe e, quanto possível, dentro da profissão paterna ou da vocação predominante na família. Esta proposta nós a apresentamos sem qualquer intuito nacionalista, nem qualquer preconceito de raça. Entendemos

que

a

mestiçagem

é

dissolvente,

desmoralizadora e degradante, prejudicando, o espírito superior visado pela procriação eugênica. É indiscutível o antagonismo e mesmo a repulsa sexual existente entre indivíduos de raças diversas. Só motivos acidentais ou aberrações mórbidas fazem unir-se via de regra, um homem branco com uma negra ou vice-versa. E o produto deste conúbio nasce estigmatizado não só pela sociedade, como, sobretudo, pela natureza; está hoje provado, não obstante a grita de alguns cientistas suspeitos, que o mestiço é um produto não consolidado, fraco, um elemento perturbador da evolução natural.77 Além disso, faziam parte do plano algumas medidas como: a formação de sindicato em defesa do progresso dos superiores; bolsa matrimonial – para jovens expoentes em universidades casarem-se; concursos de eugenia para adultos; impostos para os celibatários; concessões especiais ao militares mais bem dotados; exame pré-nupcial obrigatório, entre outras.78

77

KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 231.

78

Idem, p. 232-233.

171

Para facilitar a execução dos remédios eugênicos é necessária a organização da árvore genealógica de todas as famílias. Para isso, o autor propõe: Novo sistema de recenseamento da população, a fim de facilitar o histórico genealógico das famílias. Organização de registros genealógicos ou dispensários eugênicos nas cidades com o propósito de instruir os candidatos ao himeneu, sobre seus defeitos e qualidades e facilitando a formação de family stocks favorecendo, assim, a procriação de geno-tipos de elite.79 Retorna-se assim à árvore genealógica como uma das medidas fundamentais para a implantação eugênica. Se a rede de poderes de Renato Kehl foi concebida como uma segmentaridade arborescente, representada na árvore da eugenia, quando se fala em árvore genealógica pode se perceber essa segmentaridade sendo reproduzida individualmente, no nível molecular. Cada indivíduo é uma árvore (com auto-controle, o cuidado de si e do coletivo), e a família é também uma árvore (com a tradição e a hereditariedade), todos eles inseridos numa sociedade concebida em forma de árvore (centralizadora, mas com segmetaridades fixas. Foram apresentadas aqui algumas das propostas de erradicação do feio, da doença e do anormal. Dificilmente todas as propostas seriam esgotadas.80 A reflexão sobre tais propostas eugenistas necessitaria de uma nova dissertação. Por isso, como no item anterior se aprofundou o aspecto do cruzamento e da imigração, neste item tratou-se de alguns outros, como educação legislação, genealogia, esterilização, controle de nascimentos e paternidade. Assim, reproduzimos na íntegra a ambição de Renato Kehl, e de grande parte dos eugenistas, de reformar a sociedade brasileira, ambição que, se por um lado é utópica, por querer uniformizar e homogeneizar a sociedade num

79

Idem, p. 233.

80

Restam ainda propostas como a da propaganda eugênica, política asilar, exame pré-nupcial, testes mentais.

172

sonho totalitário, por outro lado tinha planos detalhados para a sua implantação. Faltou-lhes o quê? * * * Esquema dos remédios propostos 1.

Registro obrigatório individual e genealógico das

famílias. 2.

Segregação dos deficientes, dos criminosos e dos

socialmente inadaptados. 3.

Esterilização

dos

anormais

e

criminosos

com

grandes taras transmissíveis por herança. 4.

Procriação consciente e prevenção dos nascimentos

por processos artificiais para evitar a concepção, nos casos especiais de degeneração, de doença e miséria. 5.

Regulamentação eugênica do casamento e exame

prenupcial obrigatório. 6.

Propaganda popular de conceitos e preceitos

eugênicos, por intermédio dos institutos oficiais de saúde pública 7.

Educação

eugênica

obrigatória

nas

escolas

primárias, secundárias e superiores, tendo em vista a seriação dos assuntos de acordo com o grau das referidas escolas. 8.

Luta contra os fatores disgenizantes por iniciativa

oficial e privada. 9.

Testes mentais das crianças nas escolas, em geral,

e testes vocacionais nas escolas profissionais e nos cursos superiores. 10. Estabelecimento

de

cuidados

pré-natais,

obrigatórios, por lei e de pensões às mais pobres.

173

11. Regulamentação da situação dos filhos ilegítimos. 12. Regulamentação da imigração sobre base na superioridade media dos habitantes do país, estabelecida por testes mentais. 13. Verificação dos defeitos hereditários disgênicos que impedem o matrimônio e os que podem servir de base e pleiteação do divórcio. 14. Proteção e auxílio aos indivíduos de reconhecidas capacidades superiores, mas desamparados por motivos sociais imprevistos. 15. Legislação destinada ao incremento das boas estirpes (redução de impostos, direitos de preferência, etc.).81

81

Idem, p. 213.

174

Todo o dom tal como a beleza, a inteligência, ou habilidades sociais, ajudarão suas crianças na conquista da felicidade e do sucesso. Ron Harris, fotógrafo de moda

C ONSIDERAÇÕES F INAIS Esta dissertação quis mostrar ao longo de seus três capítulos que o eugenismo de Renato Kehl se constituiu em forma de uma rede de poder levando em conta que, o instrumento principal para esta constituição era sua prática discursiva. Desta forma, é necessário neste momento fazer um pequeno esclarecimento sobre a estruturação deste trabalho. Como foi dito na introdução, a rede de poderes de Kehl, não é rizomática, mas faz parte de uma segmentaridade arborescente, de acordo com as leituras de Deleuze e Guattari. No entanto, este trabalho foi construído como um rizoma. Ou seja, a própria dificuldade de enfrentar um tema tão áspero quanto a eugenia, esclarecia ao mesmo tempo que seria inviável dar conta da totalidade de sua complexidade e de suas inúmeras facetas. Estas facetas foram chamadas durante o trabalho de braços do eugenismo. Desta forma, educação, imigração, legislação, sexualidade, imprensa, acabam por ser desdobramentos de uma teoria que se diluiu na sociedade brasileira com o passar dos anos e que, hoje, não se pode identificar seus resquícios porque seus propósitos do passado foram reconfigurados sob outros significados. Não foi pretendido, portanto, trabalhar estes desdobramentos. Esta dissertação foi construída como um rizoma. Sem começo, meio ou fim. Foi estruturada de modo não hierarquizado, sem pretender ser Una ou então arborificada. Optou-se examinar como foco central, duas problemáticas que se mostraram de grande importância nas fontes históricas. Primeiramente, as redes de poder em que Renato Kehl estava inserido – como resultado das ações e experiências sociais e, em segundo lugar, nas descrições do corpo imperfeito feitas por ele, na tentativa de preparar uma ação política para disciplinar os corpos considerados inaptos ou improdutivos por estes atrasarem a evolução do Brasil.

176

Por isso, cada um dos capítulos desta dissertação pode ser lido separadamente pela própria especificidade da abordagem e do tipo de fonte histórica trabalhada. Boletins, atas de congressos, cartas pessoais e livros contribuíram para a partir de Renato Kehl indentificar inúmeras conexões entre ele e seus companheiros da rede arborificada. Esta rede era também, mais uma rede (ou célula) microfascista entre diversas outras da época. Obviamente, a leitura completa do texto trará uma melhor compreensão do objetivo desta dissertação. As duas problemáticas deste trabalho também se entrecruzam com freqüência (rede e corpo); os braços eugenistas aparecem em todas as fontes e, a ênfase deste trabalho era em saber o modo como Kehl constituiu tal rede e com que pessoas. O caminho encontrado por Kehl para conquistar o sucesso da eugenia foi atingir inicialmente a elite, para depois convencer a população de seus propósitos. Portanto, estas estratégias são postas em prática por seus membros, a fim de conquistar o maior número de adeptos. A frase: a conquista da opinião pública e, em particular das pessoas cultas,1 mostra o envolvimento deste setor social com a eugenia. Então se pergunta: a elite se seduziu com estes propósitos? Dificilmente será encontrada uma resposta para esta pergunta, já que podem ser percebidos até hoje vestígios das práticas eugenistas do começo do século atuando de modo bastante sólido, mas que, para o senso comum são consideradas ‘naturais’ e sem historicidade. Exames pré-nupciais, testes de QI, a educação física como disciplina obrigatória, etc. Esta biologização da vida alavancada pelo lançamento do livro de Charles Darwin, desprezou durante muito tempo o papel da história na constituição das sociedades. A biologia e as ciências da vida passaram a explicar os fenômenos ‘naturais’, transformando a história num relato objetivo e racional. Talvez esta separação da história com o mundo, enfatizada pelas ciências exatas durante tanto tempo, prejudicou o próprio entendimento da humanidade no mundo.

1

KEHL, Renato. No século da Eugenia, In Imprensa Médica. Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 231, 15/01/1937.

177

Renato Kehl não foi o único nem o último a propor práticas de melhoramento da raça e da espécie. O Brasil, ainda que miscigenado e múltiplo ainda tem muito a melhorar no que diz respeito às tolerâncias nas diferenças. No entanto, ao redor do mundo temos visto demonstrações cada vez mais atrozes (pessoais e de Estado) de indicam uma tendência à segregação dos povos. Além disso, com os desenvolvimentos das técnicas de leitura de DNA e de reprodução humana que aliam a genética com a informática, atualmente já é possível programar o nascimento de uma criança, tendo em vista, a aparência que ela deve ter. Multiplicam-se na internet os sites de bancos de esperma e de venda de óvulos de homens e mulheres belos. O preço de cada óvulo ou de cada material para inseminação é determinado de acordo com os caracteres físicos e principalmente pela observação dos pais do candidato à venda do seu material, ou seja, a hereditariedade. Abaixo foi transcrito o anúncio do Modelo 89, cujo sêmen vale 15 mil dólares, que se parece bastante com as descrições de Renato Kehl sobre o corpo e a herança: SAÚDE PERFEITA, HOMEM DE NEGÓCIO BEM SUCEDIDO HETEROSEXUAL E MODELO DE HOMEM. Eu sou um homem sincero, honesto que compreende as necessidades dos pais e o amor que um pai tem a uma criança. Eu sou filho único, em meus 30 anos, olhos azuis, cabelo castanho. Sou investidor e cuido dos negócios da família e de investimentos para executivos. Eu sou um de cinco filhos – cada um de nós tem um ano de diferença do outro. Eu sou o filho do meio com 2 irmãos e 2 irmãs - todos nós estão com a saúde perfeita, com nenhuma doença e, altura e peso proporcionais. Meus pais foram casados depois que se graduaram da mesma Universidade onde minha mãe era oradora e meu pai atleta. Ainda são casados e aposentados após ambos terem carreiras bem sucedidas: minha mãe no governo e meu pai como o professor e técnico de educação física.

178

Ambos são muito ativos, saudáveis, com mentes brilhantes como meus irmãos. Eu não tenho nenhum vício, não uso drogas, não jogo, nem meus pais.2 A eugenia ontem e hoje tem suas especificidades, mas o que está e estará sempre em jogo é a defesa da nacionalidade, para que o país se povoe de gente sã moral e fisicamente3. Mas o preço que deverá ser pago para que possa existir uma espécie saudável pode ser perversa e sórdida na medida em que segrega os mais diferentes grupos. Conclui-se, portanto, que a história do corpo nada mais é do que a história da civilização – vendo civilização como civilidade – em que são necessárias as mais diversas estratégias de disciplina e controle. O corpo é objeto de estudo e a vida um conjunto de ações determinadas por interesses muito particularistas. A ética apresenta-se então como um caminho possível para que o lugar do indivíduo na sociedade possa ser resguardado e a história, nesse sentido, contribui para a compreensão de que a vida não é natural, mas histórica.

2

Anúncio disponível no site: http://www.ronsangels.com. Site de venda de óvulos e banco de esperma de modelos “bonitos” norte-americanos idealizado por Ron Harris fotógrafo de moda. Acesso em 29/03/2003.

3

KEHL, Renato. Sexo e Civilização, op. cit., p.05.

179

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Bamboozled (EUA), 2000. Spike Lee (diretor). Um frustrado escritor

de seriados para a TV norte-americana propõe um show de menestréis

189

baseados nas black-face do início do século XX como crítica ao racismo, mas o show se torna um sucesso. -

Daqui a Cem Anos (Inglaterra), 1936. Willian Cameron Menzies

(diretor). Mostra a sociedade após um 2º conflito mundial em que se instaurou a praga e a anarquia, mas um Estado racional reconstrói a civilização nas bases eugenistas. -

Fahrenheit 451 (Inglaterra), 1956. François Truffaut (diretor). Numa

sociedade

do

futuro

são

proibidos

os

livros.

Os

bombeiros

desempenham o papel de polícia que controla, vigia e pune aqueles que lêem. -

Gattaca (EUA), 1997. Andrew Nicol (diretor). História futurista de um

homem geneticamente ‘imperfeito’ e sua busca por inserção numa sociedade eugenizada. -

Homem Elefante (Inglaterra / EUA), 1980, David Linch (diretor). A

história de John Merrick um homem transformado em espetáculo para a comunidade burguesa da Inglaterra vitoriana e o dilema moral de um médico. -

Hommo Sapiens 1900 (Suécia), 1998. Peter Cohen (diretor).

Documentário sobre o eugenismo no início do século XX. Mostra também a implantação das práticas de esterilização e de controle de nascimentos na Suécia, Estados Unidos, União Soviética e Alemanha, principalmente. -

Meu Tio (França/Itália), 1958. Jacques Tati (diretor). Retrata uma

família de classe média e seu convívio com os aparatos tecnológicos de uso doméstico que acabam por criar um novo modo de vida. -

O Ovo da Serpente (EUA/RFA), 1977. Igmar Bergman (diretor). Na

semana entre 3 e 11 de novembro de 1932, em Berlim, às vésperas da ascensão nazi, conta a violência física a psicológica a que são submetidos os indivíduos ‘não arianos’. 190

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Neo eugenismo – http://home.att.net/~eugenics/index.htm (inglês) Stephen J. Gould é chamado de ‘sabotador marxista da ciência’. Pregam uma nova raça de “Crianças de Prometeu” Criticam judeus, negros. Oferecem testes de QI, disponíveis através de download de software. Fazem uma revisão dos textos neoeugenistas da atualidade, em que pesquisadores com Phd desenvolvem trabalhos com este tema. Acesso em: 24/11/2002.

Anti-neoeugenista - http://www.eugenics-watch.com/ (inglês) Indica artigos sobre bioética, sobre democracia e racismo. Dá acesso ao The American Eugenics Society (1922-1994) e da British Eugenics Society (1994) em que aparece Renato Kehl como membro desde 1937, mostrando a lista integral de seus membros, com publicações e atividades destas associações. Acesso em 24/11/2002.

191

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