O ESPIRITISMO LITERÁRIO - Machado – Drummond – Bandeira

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O ESPIRITISMO LITERÁRIO Machado – Drummond – Bandeira

Por Glaucio Cardoso

Para Luise, minha musa de sempre.

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O ceticismo, no tocante à Doutrina Espírita, quando não resulta de uma oposição sistemática, interesseira, origina-se quase sempre do conhecimento incompleto dos fatos, o que não impede algumas pessoas de resolverem a questão como se a conhecessem perfeitamente. Pode-se ter muito espírito, muita instrução mesmo, e não se ter bom senso. Ora, o primeiro indício da falta de bom senso é a crença de alguém na própria infalibilidade. Allan Kardec

A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Machado de Assis

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Apresentação “Mas a escrita é uma dama caprichosa, a arte por vezes uma senhora mandona que não nos permite quaisquer outras respostas além daquela que nos exige” (CARDOSO, 2011: 9) 1.

E é a dama da escrita que faz de nós, artistas, registradores de um tempo, de uma história e de uma crença (ou várias delas). Clarice Lispector já dizia: “Não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas”, assim concordamos, porque assim o é. E é sempre louvável algum poeta/escritor que chega e faz da escrita sua companheira, em uma luta de estudos e registros necessários para nossa Literatura Espírita, com embasamento, e acima de tudo com arte! O comprometimento com o trabalho, às vezes, é função de poucos. Não digo o trabalho somente remunerado, ou reconhecido, ou ainda aquele a que somos impelidos a fazer como parte de nosso dia a dia. Falo do trabalho que enfrentamos em nossa rotina, muitas vezes depois do trabalho de nossas profissões, colocando-o como ponto de apoio e necessidade, trabalho que vem para que seja feito junto à Doutrina que acreditamos, defendemos e colocamos no palco, em forma de encenação. Falo ainda do trabalho que precisa de parceiros para ser divulgado ou até mesmo publicado. Falo do trabalho que, nós sabemos, precisa ser feito! Valorizo e respeito todos os registros organizados pelo autor deste livro, aquele que erroneamente se autointitula “artista menor” e acredito em sua pesquisa e disponibilidade a favor da Doutrina que trazemos conosco. Indubitavelmente, os seus escritos acrescentam em nossas bibliotecas particulares momentos de reflexão, entretenimento e estudo, como é o caso de Enquanto Clara dormia (2011), Sopros e outros poemas (2012) e Em defesa de um teatro espírita (2013). E agora temos mais uma publicação que nos leva ao reencontro das palavras de Kardec, juntamente com as obras literárias que tanto admiramos de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, baluartes da nossa literatura e mestres em nosso entendimento, companheiros de nossas aulas e inspiradores em nossa arte (por que não?). No capítulo 1 de Espiritismo Literário, intitulado “Uma breve história do Espiritismo”, Glaucio começa nos contando um pouco sobre a história do espiritismo e seus eventos, trazendo-nos esclarecimentos importantes sobre os caminhos da Doutrina e suas personagens; no capítulo 2 nos esclarece como a expressão “Espiritismo 1

CARDOSO, Glaucio. Enquanto Clara dormia. Minas Gerais: Editora VirtualBooks, 2011. 52p.

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Literário” deve ser entendida em nosso meio e também fora dele, um capítulo interessante sobre as trilhas da literatura no meio espírita; no capítulo 3 “Machado de Assis: um bruxo entre espíritos”, nosso artista enfoca algumas obras do consagrado autor nas quais ele utiliza princípios da Doutrina como ponto de exploração, explicando-nos que assim o fazia ao colocar em suas obras uma temática interessante e difundida na época, em um diálogo intrigante entre o espiritismo e as obras machadianas; no capítulo 4, “A poesia transcendental de Carlos Drummond de Andrade”, Glaucio mais uma vez debruça-se sobre suas duas paixões, o Espiritismo e a Literatura, para que possamos beber da fonte desta pesquisa, o grande poeta Drummond, principalmente em seu poema “Balada do amor através das idades” no qual brinca com as palavras nos dando a impressão da reencarnação em versos; no capítulo 5, “Manuel Bandeira e as mensagens do além”, o autor suporta suas investigações com palavras escritas pelo próprio Bandeira, em sua busca pela temática espírita. Glaucio nos aponta um caminho que aos poucos vamos vendo desvendado. Um caminho que nas entrelinhas ou mais à mostra nos deparamos com preceitos da Doutrina Espírita e personagens que vivenciam momentos transcendentais, dentro de seus percursos. Nós, mais chegados a ele, sabemos que esta pesquisa data de há muito e que seremos brindados, em breve e mais uma vez, com uma nova obra, sob um novo olhar. E esperamos que estes sopros, em defesa de nossa arte, nos alentem e nos abasteçam, mesmo enquanto estivermos dormindo... Eneida Gomes Nalini de Oliveira2

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Professora de Literatura e Língua Inglesa (metodologia e prática) graduada pela Universidade de Franca (Unifran). Especialista em Língua Inglesa e Literaturas, coordenadora dos cursos de Letras na modalidade EAD, mestre e doutoranda na área de linguística. Participante ativa do Instituto Arte & Vida, da cidade de Franca-SP, desde a sua fundação.

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Introdução Desde muito jovem fui apresentado àquelas que seriam, até hoje, minhas duas grandes paixões: a Doutrina Espírita e a Literatura. Não estou bem certo sobre qual das duas entrou primeiro em minha vida, mas sei que ambas me foram apresentadas por meu pai, Nivaldo de Oliveira Cardoso (1944-2002). Com o passar dos anos, fui estudando cada uma destas forças (eu as considero assim) com afinco, tentando entender cada vez mais sobre uma e outra. Naturalmente surgia em mim o desejo de encontrar pontos de contato entre ambas que ultrapassassem os textos escritos por espíritas sobre Espiritismo3. Esta é, em linhas gerais, a gênese do presente trabalho, sobre o qual julgo necessárias algumas rápidas explicações prévias. O primeiro capítulo foi escrito pensando em leitores que não possuíssem nenhum conhecimento prévio da Doutrina Espírita. Juntamente com o terceiro capítulo foi publicado sob o título “O Espiritismo como recurso narrativo na obra de Machado de Assis” nos anais do 1º Seminário Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor, no centenário de sua morte, promovido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre os dias 08 e 11 de agosto de 2008. As versões aqui apresentadas foram sensivelmente revistas e ampliadas, podendose dizer que se tratam de material substancialmente inédito. O segundo capítulo trata do conceito básico do que chamo “Espiritismo Literário”, onde se busca definir o que seja o uso desta temática em termos literários. A proposta inicial era diluir tais conceituações ao longo dos demais textos, entretanto julguei necessário que um pouco de teoria antecedesse a análise prática. Os capítulos 4 e 5 foram publicados no periódico Anuário Espírita, anos 2011 e 2012, respectivamente, organizados pelo IDE (Instituto de Difusão Espírita). Assim como a parte referente a Machado de Assis, foram reformulados, corrigidos e ampliados. O autor

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No decorrer deste trabalho o termo será grafado de duas formas diferentes: (a) com inicial maiúscula, em acordo com o tratamento que lhe é dispensado pela bibliografia produzida por acadêmicos e pelos próprios espíritas; (b) com inicial minúscula, em citações que assim apareça grafada.

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1 – Uma breve história do Espiritismo No dia 18 de abril de 1857, pela manhã, a Livraria Dentu, uma tradicional casa editorial de Paris, recebia a primeira edição de uma de suas mais acalentadas publicações; consta que seu diretor à época, Edouard-Henri-Justin-Dentu, voltou-se para seu amigo, o jornalista René Du Chalard, e disse-lhe: “Este é o trabalho mais sério até hoje publicado na França sobre os Espíritos” (ABREU, 1996: 43). A obra vinha assinada por um certo Allan Kardec; seu título: Le Livre des Esprits4, considerado marco inicial do Espiritismo. Entretanto, a publicação da primeira obra de Allan Kardec representa nada menos que o passo mais significativo de uma série de acontecimentos que já vinham ocorrendo ao longo da história. De fato, o contato com os chamados ‘mortos’ não era nenhuma novidade. Desde tempos remotos e em praticamente todas as culturas encontram-se referências à comunicação com deuses, espíritos ancestrais, guardiões da terra, etc. Se quisermos alguns exemplos: Joana d’Arc (1412-1431) e Teresa de Jesus (1515-1582) afirmavam ouvir as vozes do céu; Emmanuel Swedenborg (1688-1772) escreveu e publicou longa obra atribuída a um espírito; no campo da literatura, lembremos que todo o drama shakespeareano Hamlet (1599-1601), tem como elemento motivador o juramento que o jovem príncipe faz ao espírito de seu pai. No entanto, o movimento ao qual o Espiritismo está mais diretamente ligado é o que se convencionou denominar “Espiritualismo Moderno” e que tem como ponto de partida os fenômenos ocorridos a partir de 28 de março de 1848 em Hydesville, vilarejo situado próximo da cidade de Rochester, condado de Wayne, Estado de Nova Iorque (EUA). Naquela noite, os Fox, uma família de Protestantes, foram acordados por estranhos ruídos que pareciam vir de dentro da madeira da casa, fazendo com que a mesma vibrasse por inteiro. John D. Fox e sua esposa, Margareth, fizeram minucioso relato de tudo o que ocorrera naquela noite e nas posteriores. Com o passar do tempo, as filhas do casal, Catherine e Margareth, com nove e doze anos, respectivamente, desenvolveram um método para comunicar-se com as pancadas que vinham ouvindo. Tal método consistia em que a cada número de pancadas 4

“No ‘Courrier de Paris’ de 11 de junho de 1857, Du Chalard deu seu parecer estampando extenso artigo, do qual destacamos: O Livro dos Espíritos do Sr. Allan Kardec é página nova do próprio grande livro do infinito e, estamos persuadidos, uma marca será posta nesta página. Seria lamentável que pudessem pensar que aqui estamos a fazer reclame bibliográfico; se tal se pudesse admitir, preferiríamos quebrar a pena. Não conhecemos o autor mas proclamamos, bom som, que gostaríamos de o conhecer. Quem escreveu aquela introdução que abre O Livro dos Espíritos deve ter a alma aberta a todos os sentimentos nobres.” (Abreu, 1996: 46)

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soadas corresponderia uma letra do alfabeto; também se convencionou que, para respostas a perguntas diretas, uma pancada significaria “não” e duas pancadas “sim”. Dessa forma obtiveram a informação de que as pancadas eram produzidas pelo espírito de um homem que fora assassinado naquela casa; a informação do assassinato só foi devidamente confirmada 56 anos depois. Na década de 18505 tem ampla divulgação aquilo que era, para muitos, o grande divertimento e, para outros, o grande enigma da época: as sessões em torno das ‘mesas girantes e falantes’, práticas que reuniam frequentadores dos salões de toda a Europa em busca de mensagens obtidas a partir da pancadas e movimentos produzidos por objetos que pareciam obedecer a alguma força misteriosa e autônoma. (GIUMBELLI, 1997: 57)

O fenômeno das ‘mesas girantes e falantes’ é geralmente apontado como um desdobramento dos acontecimentos de Hydesville, fazendo parte do espiritualismo moderno, chamando a atenção de vários pesquisadores das mais diversas áreas, inclusive da Academia de Ciências, da França, que em 1854 organizou uma comissão para investigar tais fenômenos. O parecer da comissão, encabeçada pelo químico Chevreul e pelo físico Faraday, emitiu um parecer desfavorável aos fenômenos, atribuindo-lhes pura e simplesmente a fraude e o embuste6. É nesse contexto que um professor francês, cético e valendo-se da metodologia científica, procurará lançar uma nova luz sobre o espiritualismo moderno. Seu nome era Rivail. Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), natural da cidade francesa de Lyon e descendente de uma família católica. Forma-se pedagogo junto a Jean-Henri Pestalozzi, educador liberal e protestante cuja inspiração provinha das obras de Rousseau. Em 1820, radica-se em Paris, onde trabalha como tradutor, ministra cursos particulares e publica diversos manuais de instrução acadêmica, dentre os quais se destacam: 

Plano proposto para melhoramento da Instrução pública (1828);

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“Foi em meados de 1853 que as primeiras manifestações espiríticas, através das chamadas ‘mesas girantes e falantes’, entraram no Brasil. Os singulares fenômenos, que então empolgavam a América do Norte, a Europa e parte da Ásia, eclodiram, quase que simultaneamente, na corte do Rio de Janeiro, no Ceará, em Pernambuco e na Bahia.” WANTUIL, Zeus. Grandes espíritas do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990, p. 563. 6 No entanto, a Enciclopédia Barsa registra Faraday como um dos intelectuais a aderirem ao Espiritismo.

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Curso prático e teórico de Aritmética, segundo o método de Pestalozzi, para uso dos professores e das mães de família (1831);



Gramática francesa clássica (1831). Homem de seu tempo, Rivail era versado no alemão, inglês, holandês, com

sólidos conhecimentos de latim, grego, gaulês e de algumas línguas neolatinas, constando inclusive que chegara a dominar o português. Era ainda membro de diversas das chamadas sociedades sábias (Sociétés Savantes), associações livremente formadas e aprovadas pela administração prefeitorial, que tinham por objetivo levar adiante estudos e desenvolver as ciências, artes e projetos aos quais se dedicavam7. Em 1854 ouve falar pela primeira vez do fenômeno das mesas girantes e falantes reagindo de maneira cética; não que julgasse impossível que o magnetismo fosse capaz de mover mesas e outros objetos, ele mesmo era membro da Escola Mesmeriana e estudioso do fluido magnético. O que aguçara seu ceticismo, e consequentemente sua curiosidade, era o fato de que a mesas “falavam” e respondiam com lógica as questões a elas dirigidas. Decidido a desmascarar um possível embuste, formulou perguntas em idiomas não falados pelos presentes e obteve respostas nos mesmos idiomas. De acordo com os registros históricos do Espiritismo, em dado momento ele teria dito de si para consigo: “Não posso crer que uma mesa destituída de cérebro possa falar.”, pensamento íntimo ao qual a ‘mesa’ respondeu: “Não é a mesa quem fala. Somos nós, os espíritos dos que já não são da terra quem falamos por meio dela.”. Abria-se um novo campo de estudos para o Prof. Rivail: Ninguém havia então pensado nos Espíritos como um meio de explicar o fenômeno; foi o próprio fenômeno que revelou a palavra. Em ciências exatas muitas vezes se formulam hipóteses para se ter uma base de raciocínio; ora, não é aqui o caso. (KARDEC, 2010 [1857]: 32)

A partir de então, Rivail lança-se a um estudo detalhado das causas por trás daquele fenômeno. O espiritualismo moderno parecia-lhe um campo vasto e caótico, portanto, cabia-lhe encontrar a ordem em meio ao caos e lançar novas luzes na penumbra do experimentalismo. Em meio a tantos curiosos e pessoas frívolas que viam nas mesas girantes um mero divertimento havia aqueles grupos sérios, que desejavam também se instruir e 7

Para maiores esclarecimentos acerca de Rivail e sua participação na sociedade da época, bem como de dados detalhados de sua biografia, recomendamos: WANTUIL, Zeus e THIESEN, Francisco. Allan Kardec (Meticulosa pesquisa biobibliográfica). 3 vol. Rio de Janeiro: FEB, 1979.

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entender o fenômeno. É a eles que Rivail visita, propondo questões de ordem científica, filosófica e moral, abrangendo diversas áreas do conhecimento humano como as artes, a sociologia, a medicina, as ciências e a ética. Comparando respostas dadas em diferentes grupos, por intermédio de médiuns que não conheciam uns aos outros, Rivail constitui aos poucos um amplo painel teórico e prático a respeito dos fenômenos que vinha observando e de outros temas a eles ligados. A ele se apresenta um espírito que se identifica simplesmente como Espírito Verdade, seu guia espiritual. Surgia uma nova vertente no espiritualismo moderno, a mais bem estruturada, baseada na razão, descartando o chamado sobrenatural para dizer que aquilo que acreditamos fora da ordem da natureza só o é quando não nos debruçamos para buscar suas causas e origens, sempre levando-se em conta que “todo efeito inteligente há de por força derivar de uma causa inteligente” (KARDEC, 1990 [1861]: 80). “Para coisas novas precisamos de palavras novas; assim o exige a clareza da linguagem, para evitarmos a confusão inerente ao sentido múltiplo dos mesmos terrenos.” (KARDEC, 2007 [1857]: 23). O primeiro período que abre a obra fundadora do Espiritismo esclarece a diferença deste para com as outras doutrinas espiritualistas. O Espiritismo se liga à generalidade do que se entende como “espiritualismo”, porém, suas características específicas o singularizam em meio às filosofias espiritualistas. Ao publicar O Livro dos Espíritos, Rivail adota o pseudônimo “Allan Kardec”, nome que teve em uma encarnação anterior. A explicação para tal medida era simples: sendo ele um homem público, desejava que o livro fosse analisado pelo que continha e não por quem o assinava. Não se colocou como criador do Espiritismo, mas como alguém que buscou ordenar as ideias reveladas pelos espíritos, sendo por isso chamado de o Codificador. Publicou ainda outras obras sobre Espiritismo que, juntamente ao livro publicado em 1857, constituem a chamada Codificação do Espiritismo, também conhecida como Codificação Kardequiana. Estas obras são: 

O Livro dos Espíritos (1857) – referente à parte filosófica, composto por 1019 questões formuladas aos espíritos e suas respectivas respostas.



O que é o Espiritismo (1859) – uma exposição objetiva dos principais aspectos do Espiritismo.



O Livro dos Médiuns (1861) – relativo à parte experimental e científica, tratando das diversas modalidades da mediunidade, i.e., da faculdade de entrar em contato com os espíritos desencarnados. 10



O Espiritismo em sua expressão mais simples (1862) – nova exposição de aspectos espíritas.



O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864) – concernente à parte moral, um estudo profundo dos textos do Novo Testamento.



O Céu e o Inferno (1865) – considerações a respeito da noção de causalidade das penas e recompensas divinas.



A Gênese (1868) – exposição a respeito dos milagres e da formação do globo terrestre sob a ótica espírita, enfatizando o caráter científico da doutrina. Em 1858 iniciou a publicação da Revue Spirite – Journal d’Études

Psychologiques (Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos), publicação mensal que dirigiu até sua morte, constituindo um verdadeiro laboratório de experiências e debates. Algumas anotações por ele deixadas quando de seu falecimento (1869) foram publicadas em 1890 sob o título Obras Póstumas. Da leitura da Codificação pode-se extrair que o Espiritismo fundamenta-se em cinco princípios fundamentais: 1. A existência de Deus – apontado como a “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” (KARDEC, 2010 [1857]:77). 2. A imortalidade da alma – o ser humano é um espírito ocupando um corpo material; quando a matéria (o não-ser) se desagrega pelo fenômeno da morte, o espírito (o ser) se liberta conservando sua individualidade. 3. A pluralidade das existências – a reencarnação, i.e., a possibilidade de o espírito após sua morte (desencarne, desencarnação) tornar a nascer em um outro corpo; o ciclo das reencarnações implica a evolução do espírito. 4. A pluralidade dos mundos habitados – princípio segundo o qual o espírito pode reencarnar em diferentes mundos que estejam em sintonia com sua evolução espiritual. 5. A comunicabilidade dos espíritos – a possibilidade que os encarnados e os desencarnados têm de entrar em contato uns com os outros por meio da mediunidade; médium é aquele capaz de sentir num grau qualquer os espíritos.

Diversos intelectuais e artistas aderiram ao Espiritismo, dentre os quais cabe destacar George Sand (escritora), Victor Hugo (escritor), Victorien Sardou (dramaturgo) e Camille Flamarion (astrônomo).

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No Brasil, o Espiritismo chega por volta de 1860 por intermédio de viajantes e imigrantes vindos da França e que traziam em sua bagagem exemplares de O Livro dos Espíritos. Foi em meio à relativamente numerosa colônia de imigrantes franceses no Rio de Janeiro que surgiram os primeiros adeptos do Espiritismo em terras brasileiras, com sessões restritas a pequenos grupos esotéricos. Em 1860 o professor Casimir Lieutaud8 publica, em francês, a obra Les temps sont arrivés. Mas foi em Salvador que as ideias espíritas ganhariam maior exposição pública graças aos esforços do professor e jornalista Luís Olímpio Teles de Menezes (18251893). Mantendo contato com Lietaud e com vários espíritas da França, inclusive o próprio Kardec, Menezes fundou o Grupo Familiar de Espiritismo em 1865 e no ano seguinte traduziu e publicou estratos de O Livro dos Espíritos sob o título de O Espiritismo – introdução ao estudo da Doutrina Espirítica9. Tal obra motivou o Arcebispo da Bahia, D. Manuel Joaquim da Silveira, a divulgar uma Pastoral sobre “os erros perniciosos do Espiritismo” datada de 16 de junho de 1867. A partir de então trava-se, pela imprensa, intensa polêmica entre Teles de Menezes e o clero católico local. Em 1884, é fundada a Federação Espírita Brasileira (FEB), no Rio de Janeiro, que no século seguinte se tornará o principal órgão de contato entre as diversas instituições espíritas do país, sendo hoje a maior instituição espírita do mundo. Antes de sua fundação, diversos outros grupos já existiam no Brasil, principalmente na capital carioca. Mesmo após a FEB ter assumido os rumos do movimento espírita Brasileiro, durante muito tempo este existiu sem unidade; era o momento que ficou conhecido como “espiritismo à moda da casa” em que cada instituição, grupo familiar ou mesmo indivíduo seguia sua própria metodologia, muitas vezes introduzindo conceitos estranhos à proposta das obras da Codificação. Não tentaremos dar aqui um retrato completo da história do Espiritismo no Brasil, apenas cabe ressaltar que a Doutrina teve ampla aceitação em nossas terras, atingindo todas as camadas sociais, ao contrário do que se costuma dizer, por falta de conhecimento, que apenas as classes mais pobres da população procuravam as 8

Este importante pioneiro do Espiritismo no Brasil se encontra hoje quase completamente esquecido, não tendo sido possível, até o momento, encontrar maiores dados sobre o mesmo, como suas datas de nascimento e desencarne. 9 As primeiras traduções integrais das obras de Kardec para o português foram promovidas pelo primeiro grupo espírita carioca fundado fora da comunidade francesa, a Sociedade de Estudos Espíritas – Grupo Confúcio (1873), e publicadas pela editora Garnier, a saber: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Céu e o Inferno, em 1875, e O Evangelho Segundo o Espiritismo, em 1876. Foram traduzidas pelo médico Joaquim Carlos Travassos (Wantuil, 1990: 400-32).

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instituições espíritas, afinal o Espiritismo é baseado principalmente no estudo. Para se ter uma ideia da penetração da proposta espírita em nossa sociedade, veja-se o que diz Emerson Giumbelli, a citação é um tanto longa, mas serve para se ter um retrato da sociedade espírita carioca no século XIX: Mencionando as profissões de algumas dessas pessoas, podemos ter ideia da inserção social da doutrina de Kardec entre 1870 e 1890 no Rio de Janeiro. Havia médicos, alopatas como Joaquim Carlos Travassos e Bezerra de Menezes, homeopatas como Antônio Pinheiro Guedes, Antônio de Castro Lopes e Francisco Menezes Dias da Cruz; engenheiros, como Antônio da Silva Neto; advogados, como Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, Júlio César Leal, Ernesto dos Santos Silva e Antônio Luiz Sayão; militares, como Raimundo Ewerton Quadros; outros eram simples funcionários públicos, como Frederico da Silva Júnior, João Gonçalves do Nascimento e Carlos Joaquim Lima e Cirne, ou autônomos, como Augusto Elias da Silva e Affonso Torterolli. Algumas mulheres também marcavam presença, ora como esposas desses personagens, ora não, como era o caso de mme. Collard (...). A maioria dos principais líderes (...) ocupava posições sociais relativamente privilegiadas (...). Vários deles chegaram a exercer cargos públicos, seja na esfera administrativa – como Ernesto e Silva Neto – seja na legislativa – como Bezerra de Menezes (...). (...) figuras influentes na vida política do Rio de Janeiro – como Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva e Alcindo Guanabara – eram tidas como simpáticos ao espiritismo. (1997: 62-3)

Como se pode observar a aceitação do Espiritismo pelas diversas camadas sociais, tanto no estrangeiro quanto em terras brasileiras, faz parte da história universal e não pode ser ignorada. Profissionais das mais variadas categorias, artistas, políticos, todos tiveram contato com as ideias vindas de França que traçaram um novo rumo para o espiritualismo moderno.

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2 – Espiritismo Literário: uma visão A expressão “Espiritismo Literário” foi utilizada pejorativamente pelo crítico Silvio Romero ao referir-se a um dos romances de Machado de Assis (ver mais adiante o capítulo referente à obra machadiana). Tomo-a de empréstimo buscando dar-lhe nova significação. Para (re)definir o que seja o Espiritismo Literário, faz-se necessário estabelecer o que seria também a Literatura Espírita sem nos estendermos por demais em ambos os conceitos. Tomaremos por Literatura Espírita os textos que se propõem a divulgar os conceitos do Espiritismo, sendo eles romances, contos, poemas, crônicas ou quaisquer outras manifestações literárias. Também fazem parte da Literatura Espírita os textos não literários que abordem e divulguem seus pressupostos doutrinários. Entenda-se por textos literários aqueles em que o sentido subjetivo da linguagem predomina, enquanto que os textos não literários são predominantemente objetivos. Ambos os tipos utilizam como material de manifestação a linguagem, a palavra e, por isso, fazem parte da ideia genérica de literatura. Desta forma, tanto os romances, poemas, contos etc., quanto as obras da Codificação e outros tipos de ensaios teóricos sobre o Espiritismo constituirão a Literatura Espírita. Já o Espiritismo Literário pode ser entendido como o uso dos conceitos espíritas para a criação de obras literárias sem necessariamente haver o alinhamento ideológico dos autores à Doutrina Espírita. Diversos autores lançaram mão dos conceitos espíritas para a composição de suas obras, o que nos possibilita determinar o Espiritismo como um fato social e cultural que se presta a múltiplos usos. É o que bem ilustra Clóvis Ramos em Temas espíritas na poesia brasileira: As ideias espíritas foram e tem sido utilizadas, com êxito, na literatura universal. Na poesia, no romance, no conto e até no cinema e na televisão. Nas artes plásticas, no ballet, na música. Mas, é nas letras, principalmente, que se tem feito sentir, em maior escala, a influência do Espiritismo. Não nos referimos à literatura mediúnica, de além-túmulo, [...]; mas às obras de autores não-espíritas, ou simpatizantes, que, deliberadamente, ou sem o perceberem, empregam termos e temas da esfera do Espiritismo. (1969: 08)

As palavras de Clóvis Ramos fazem eco ao pesquisador francês Pierre-George Castex, o qual aponta o desenvolvimento do Espiritismo como um dos fatores

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responsáveis pela grande influência do fantástico na literatura francesa após os anos 1850. É no terreno do fantástico em suas diversas vertentes ou desdobramentos que podemos situar tanto a Literatura Espírita quanto o Espiritismo Literário, sendo então muito útil a noção básica do que constitui a literatura fantástica. Para tanto, recorro ao trabalho de Tzvetan Todorov, intitulado Introdução à literatura fantástica, o qual procurou resumir os inúmeros estudos sobre o tema. Não irei abordar as inúmeras variantes do que Todorov aponta como características do gênero fantástico, pois creio que o resultado seria um empobrecimento do trabalho do estudioso búlgaro. Prefiro abordar os aspectos básicos do fantástico e seus desdobramentos conforme o autor as explica, partindo daquilo que seria o “âmago do fantástico”: Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, [...], produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. [...] O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (2008: 30-1)

A partir desta ideia inicial, Todorov estabelece a existência de cinco categorias, as quais podem ser resumidas assim: I.

Fantástico-estranho ou sobrenatural explicado – acontecimentos aparentemente sobrenaturais recebem, ao final da história, uma explicação racional, i.e., que exclui a intervenção de forças extra-humanas. (2008: 51)

II.

Estranho puro – relatos de acontecimentos perfeitamente explicáveis pelas leis da razão, mas que são, “de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos”. (2008: 53)

III.

Fantástico puro – a dúvida mantém-se até depois do término da narrativa, i.e., mesmo que se faça algum tipo de explicação ela poderá apontar antes para a manutenção da hesitação do que para a opção por uma razão de ser dos acontecimentos. 15

IV.

Fantástico-maravilhoso ou sobrenatural explicado – existe a aceitação do sobrenatural como explicação para os acontecimentos. “Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural.” (2008:58)

V.

Maravilhoso puro – “os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos.” (2008: 60)

Obviamente, cada uma destas categorias apresenta incontáveis subdivisões e um mesmo texto pode transitar entre mais de uma categoria. Por vezes a definição de categoria ficará à cargo do leitor e tanto os textos pertencentes à Literatura Espírita quanto os representantes do Espiritismo Literário podem apresentar características que tornem difícil sua classificação. Cada texto precisa ser observado em nível particular para que se possa optar ou não por uma das categorias. No caso específico da Literatura Espírita, há ainda que se considerar que algumas das Leis Naturais são vistas pela ótica transcendental, a qual nem sempre é aceita pela visão geral, muitas vezes contrariando a “razão”, o que poderia gerar uma sexta categoria a qual pode ser denominada Maravilhoso-estranho ou Estranhomaravilhoso, caracterizada por uma explicação racional que admite leis relacionadas ao aspecto considerado “sobrenatural”. Isto nos leva a pensar em parâmetros novos para o estudo da Literatura Espírita, os quais não cabem no presente trabalho. A utilização de conceitos retirados da esfera religiosa para a criação de textos literários não tem nada de nova, estando presente ao longo da história como bem atestam obras como A Divina Comedia (1308-21), de Dante Alighieri (1265-1321), Hamlet (1599-1601), de William Shakespeare (1564-1616), e Paraíso Perdido (1667), de John Milton (1608-74), entre outras. As relações entre os discursos religioso e literário podem ser pensadas a partir do que nos diz o filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) a respeito do que se convencionou chamar “dialogismo”, assunto do qual o autor se ocupou em praticamente toda a sua obra e que pode ser entendido como toda comunicação verbal, seja ela oral ou escrita. Não existem textos isolados propriamente ditos, pois todo autor escreve a partir de um enunciado prévio, de um diálogo estabelecido com outros textos e/ou 16

discursos, cabendo ao leitor dar prosseguimento a este diálogo, o qual se estabelece em um território comum, i.e., partilhado entre autor e leitor tendo como intermediário o texto.

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3 – Machado de Assis: um bruxo entre espíritos Em vários dos seus escritos, Machado de Assis refere-se à doutrina surgida na capital francesa em meados do século XIX. De antemão é relevante notar que o Bruxo demonstra um conhecimento concreto a respeito do Espiritismo. Não se trata aqui de fazer proselitismo religioso ou de tentar provar que nosso escritor era simpático às ideias espíritas, o que em verdade não era. Trata-se, isto sim, de demonstrar o quanto Machado de Assis usava de sua inteligência para tomar de empréstimo um assunto então amplamente debatido e difundido na sociedade e fazer dele objeto de sua arte. Antes de nos determos na produção literária de Machado, recorramos às suas crônicas a fim de verificar o seu contato com o Espiritismo e sua visão a respeito do mesmo. Para evitar interpretações equivocadas, tenha-se em mente que para Machado de Assis os adeptos do Espiritismo atravessam duas fases, as quais ele explica na crônica na Gazeta de Notícias em 7 de junho de 1889, e que consta do livro Bons Dias!: [...] naquele período do espiritismo em que o homem, já inclinado ao obscuro, dispõe de razão ainda clara e penetrante, e pode entreter conversações com os espíritos. [...] A segunda fase do espiritismo é muito melhor. Depois de quatro ou cinco anos (prazo da primeira), começa a pura demência. Não é vagarosa nem súbita, um meio-termo, com este característico: o espírita, à medida que a demência vai crescendo, atira-se-lhe mais rápido. (2008: 867)

Para todas as leituras que faremos a respeito das recorrências de Machado ao Espiritismo, tenha-se me mente que ele classificava a todos os espíritas como estando na segunda fase, i.e., seriam todos loucos. Saber isso é importante para compreender o porquê de várias das colocações do escritor a respeito da Doutrina Espírita. Em crônica publicada no dia 05 de outubro de 1885, na “Gazeta de Notícias” (mais tarde reunida em A Semana), Machado começa com seu habitual tom jovial: “MAL ADIVINHAM os leitores onde estive sexta-feira. Lá vai; estive na sala da Federação Espírita Brasileira, onde ouvi a conferência que fez o Sr. M. F. Figueira sobre o espiritismo.”. Na sequência da crônica, o Bruxo conta ao leitor como (num processo hoje chamado de “projeção”) desprendeu-se do corpo e visitou em espírito a sede da FEB, onde assistiu à palestra na qual se convenceu da inexistência do diabo e jurou converter-

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se à nova doutrina. Ao retornar a casa encontrou seu corpo animado por um espírito que se identificou como sendo o próprio diabo; este lhe expõe a ideia de que o Espiritismo não passava de mais um modismo condenado ao esquecimento assim que não surtisse o efeito dele esperado. É evidente que estamos diante de uma das ironias finas de Machado, não nos sendo possível crer na sua viagem espiritual até a sede da FEB ou em sua conversa com o diabo. Entretanto a narrativa que ele faz de sua projeção interessa-nos, sobretudo por mostrar conhecimento do processo envolvido no desprendimento da alma do corpo, conforme descrito em diversos tratados espíritas desde Kardec até os dias atuais. Também é de se ressaltar que Machado estava a par das atividades desenvolvidas pela FEB e das pessoas nelas envolvidas10. Vale à pena ler o final da crônica para ser brindado com a fina ironia machadiana que salta aos olhos em um jogo de palavras com os vocábulos “Figueira” e “fígado”: Aqui, o diabo sorriu tristemente com a minha boca, levantou-se e foi à mesa, onde estavam as folhas do dia. Tirou uma e mostrou-me o anúncio de um medicamento novo, o rábano iodado, com esta declaração no alto, em letras grandes: “Não mais óleo de fígado de bacalhau”. E leu-me que o rábano curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia curar — pretensão de todo medicamento novo. (2008: 640)

Na crônica seguinte, datada de 11 de outubro do mesmo ano, Machado volta a falar de sua “conversão” ao Espiritismo. Vejamos o que ele nos conta. Fui iniciado quinta-feira, às nove horas da noite, e não conto nada do que se passou, porque jurei calá-lo, por todos os séculos dos séculos. Uma vez admitido no grêmio, preparei as malas para ir estabelecer-me em Santo Antônio de Pádua. Claro era o meu plano. Metia-me na vila, deixava-me inspirar por potências invisíveis, predizia as coisas mais joviais ou mais melancólicas deste e do outro mundo, reunia gente, e fundava uma igreja filial. Antes de seis meses podíamos ter ali um bom contingente. (2008: 640)

Para aquele que possui um mínimo conhecimento do Espiritismo o texto soa altamente risível pelos seguintes fatos:

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Nos anos de 1885, 1886 e 1887, a FEB promoveu as “Conferências públicas sobre o Espiritismo” nas quais os princípios da Doutrina Espírita eram expostos ao público leigo por diversos estudiosos membros da FEB entre os quais estava o primeiro vice-presidente da mesma, Manuel Fernandes Figueira.

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1. Não há, e nunca houve, no Espiritismo qualquer tipo de cerimônia de iniciação, muito menos juramentos secretos. 2. Não é função prioritária do Espiritismo o intercâmbio mediúnico, mas sim a renovação moral do indivíduo mediante o estudo e a prática da caridade.

Apesar do deslize (creio que proposital), Machado ainda nos demonstra nesta crônica como as práticas religiosas não católicas eram perseguidas na época: (...) Tudo estava pronto, malas, alma e algibeiras, quando li o código de posturas da Câmara Municipal de Santo Antônio de Pádua, que está sujeito à aprovação da assembleia provincial do Rio de Janeiro. Nesse código leio este ominoso artigo, o art. 113: “Fica proibido fingir-se inspirado por potências invisíveis, ou predizer cousas tristes ou alegres”. (...) Não me digam que o artigo apenas veda a simulação. Os fiscais de Santo Antônio de Pádua não podem saber quando é que a gente finge ou é deveras inspirado. (2008: 640-1)

Mas não foi essa a última vez que os leitores do cronista iriam ler sobre o Espiritismo em suas linhas. Em diversas ocasiões encontramos referências ao Espiritismo nas crônicas machadianas, e em muitos casos nosso escritor demonstra certo conhecimento do assunto, embora não hesite em deixar claro que considera loucos todos os adeptos da Doutrina. Passemos a alguns exemplos mais significativos. 

3 de julho de 1892 – Expõe sobre a reencarnação, fazendo a distinção entre esta de acordo com o Espiritismo e a metempsicose11 dos brâmanes. Interessante notar que ele reproduz praticamente na íntegra a inscrição encontrada no túmulo de Allan Kardec: “A lei é esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre.” (2008: 901)12.



23 de setembro de 1894 – Mais considerações a respeito da reencarnação e de como ela poderia explicar um caso de acusação de bigamia.

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A metempsicose fundamenta-se em ideia semelhante à da reencarnação, com a diferença de que nesta a o espírito evolui sempre enquanto naquela o espírito que animou um corpo humano pode vir a animar o de um animal e vice-versa. 12 O epitáfio do túmulo de Allan Kardec é: “Naitre, mourir, renaitre encore, et progresser sans cesse, telle est la loi.” Embora seja por muitos atribuída ao próprio Kardec, sabe-se que não é de sua autoria mas sim da Sociedade Espírita Belga, a qual foi a responsável pelo dólmen que constitui o mausoléu localizado no cemitério Père Lachaise.

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27 de outubro de 1895 – Entre outras considerações gerais surge o questionamento da divergência entre o artigo 157 do Código Penal de 1890, que declara crime “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios”, e a Constituição Republicana, chamada de “mãe do Código”, que acabava com a religião do Estado. As três crônicas mencionadas acima constam da coletânea intitulada A Semana

(1914). Há outras referências ao Espiritismo nas crônicas de Machado de Assis que julgo desnecessário enumerar por constituírem meras citações de menor relevância no contexto de cada crônica. Passemos às narrativas. 3.1 – As narrativas machadianas em diálogo com o Espiritismo Finalmente chegamos ao cerne de nossa proposta: apontamentos sobre o uso de conceitos espíritas como recursos narrativos por Machado, com o enfoque em contos e romances. Minha inclinação inicial era de expor estas observações elencando os textos em ordem cronológica, entretanto dois fatores me levam a adotar diferente método: 1º o fato de que realizo uma leitura absolutamente pessoal, guiado muitas vezes pelas minhas preferências por este ou por aquele texto; 2º porque desta forma acabo por estabelecer um diálogo com a própria escrita machadiana que busca a todo momento fugir do lugar comum. Dito isto, vamos aos contos. 3.2 – Materializações e reencarnados Machado talvez seja um dos mais profícuos contistas da história da literatura brasileira (como se já não lhe bastassem os outros títulos que recebe), com uma produção próxima a 200 textos apenas nesta modalidade literária. Inúmeras são as recorrências ao fantástico e/ou ao sobrenatural em seus contos, indo desde pesadelos premonitórios, com em “A parasita azul”, até estátuas que ganham vida, como em “Entre santos”, passando por animais falantes, cartomantes, figuras fantasmagóricas e até mesmo o próprio Diabo. Dentre os contos de Machado que se utilizam do fantástico, não poderiam faltar referências ao Espiritismo, uma vez que o autor em questão se utilizava de quaisquer elementos como recursos narrativos. É de se admirar sua capacidade de colimar os mais diversos fatores socioculturais para a criação literária.

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Será Machado a apresentar o primeiro personagem espírita da literatura brasileira ao publicar, em 1876, o conto “Uma visita de Alcibíades”. Neste conto em forma de carta, o desembargador X... escreve ao chefe de polícia da corte o caso extraordinário que se dera em sua residência: ao evocar o espírito do político ateniense Alcibíades (450-404 a.C.) eis que foi atendido. Sendo o desembargador X... “espiritista desde alguns meses”, o que haveria de inusitado (para o personagem) em ver atendida a evocação feita? Eis a explicação do narrador: [...] mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às assembleias de Atenas [...] (2008: 329)

Ficam aqui evidenciadas a prática comum das evocações espíritas na época e a loucura em último nível do narrador. O motivo da evocação não poderia ser mais frívolo: saber a opinião de Alcibíades sobre as vestimentas da época em que o conto se passa (1875), sendo o evocado um dos mais medíocres dentre os seguidores de Sócrates. A associação com a loucura também constitui a gênese do conto “A segunda vida” (1884), no qual o personagem José Maria, ignorando a lei de esquecimento das vidas passadas, pede para reencarnar com a lembrança de sua última existência. Seu argumento é de que a inexperiência levou-o a uma vida infeliz e que, portanto, o conhecimento prévio o livraria de inúmeros dissabores. O tiro sai pela culatra e José Maria se vê sempre às voltas com as dúvidas e desconfianças de tudo e de todos, não sendo nem mesmo capaz de vivenciar as benesses do amor. A referência clara e imediata é à questão 392 de O livro dos espíritos na qual se lê: Por que o Espírito encarnado perde a lembrança do seu passado? O homem não pode nem deve saber tudo. Deus assim o que em sua sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas, o homem ficaria ofuscado, como quem passa sem transição da obscuridade à luz. Pelo esquecimento do passado ele é mais senhor de si. (2010: 286)

Seria apressado e errôneo julgar que neste conto Machado faz a defesa da proposta espírita. Muito pelo contrário. Note-se a descrição da cena que se passa entre José Maria e seu interlocutor, o Monsenhor Caldas: Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou

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vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das ideias ou o assombroso das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxílio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. (2008: 414) [grifos meus]

Como se nota, o narrador deixa clara a demência do personagem pelos próprios olhos de seu interlocutor. O final do conto aponta para a necessidade de que o Estado interviesse no tocante à “loucura espírita”: José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; [...]. Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido. “Não, miserável! não! tu não me fugirás!” bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés. (2008: 418)

3.3 – Esaú e Jácó: Espiritismo à moda da casa Penúltimo romance de Machado, publicado em 1904, Esaú e Jacó traz em si, além do brilhante jogo do narrador em 3ª pessoa que é ao mesmo tempo personagem, referências interessantes quanto à relação que a sociedade carioca mantinha com os fenômenos mediúnicos no século XIX, bem como mostra como muitas vezes se procedia a um “espiritismo feito em casa”, de acordo com uma expressão usada pela FEB13. A narrativa inicia-se em 1871, com a consulta de Natividade, mãe dos gêmeos Pedro e Paulo, a uma vidente que atendia pela alcunha de “a cabocla do Castelo”, nada mais do que uma médium das que atendiam em casa como tantas que proliferavam no Rio de Janeiro do século XIX. Esta lhe pergunta se os meninos tinham brigado antes de nascer, o que poderia explicar a gravidez confusa de Natividade.

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Federação Espírita Brasileira.

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Mais à frente, temos a informação de que seu esposo, Santos, havia se iniciado no estudo do Espiritismo tendo como mestre um certo Plácido. E é o capítulo em que os dois conversam sobre os gêmeos que nos interessa no presente trabalho. O capítulo em questão é o de número XV, intitulado “Teste David cum Sibylla”. Em seu decorrer vemos Santos e Plácido consultando a Bíblia a fim de encontrar uma explicação plausível para as palavras da cabocla; eles comparam as histórias dos gêmeos Pedro e Paulo com a de seus homônimos bíblicos; aventam a possibilidade de que os espíritos destes dois apóstolos é que tenham inspirado os nomes dos gêmeos; tecem considerações sobre as divergências de opinião dos dois apóstolos além de diversos sinais e símbolos que fazem rir àqueles que conhecem o Espiritismo. Não é de estranhar que Machado repita aqui o que já tinha feito na crônica de 11 de outubro de 1885; o atento observador da sociedade não deixara escapar o fato de que entre os que primeiro professavam o Espiritismo em terras brasileiras muitos havia que só lhe conheciam a superfície e o praticassem sem conformidade com os conceitos de lógica e razão que a Codificação Espírita preconizava. Isto se lhe constitui um prato cheio para verdadeiros malabarismos narrativos. De fato, se fosse levar em conta os conceitos espíritas de conformidade com o que era exposto nas obras de Kardec, Machado não poderia escrever esses capítulos cuja relevância dentro do romance é fundamental: a previsão da cabocla e sua parcial validação pelo “estudioso” espírita são as bases aparentes sobre as quais repousa a ação do romance. O leitor desatento deixa-se enganar por elas e julga que a inimizade dos irmãos já havia sido traçada antes do nascimento. Uma leitura atenta revela que sua inimizade é antes um ponto de acordo entre eles. 3.4 – Memórias Póstumas de Brás Cubas: a sagração do defunto autor. Publicado em 1881, embora tendo surgido em forma de folhetim no ano anterior, a trajetória do defunto autor impressiona pela exposição crítica, irônica e por vezes até amarga que faz de sua vida. Muitas páginas já foram dedicadas a esse romance ímpar em nossa literatura, grande parte delas enfocando o distanciamento que a morte do narrador das memórias póstumas estabelece. Afinal, pode haver melhor ponto de vista para avaliar a vida e a sociedade que o de quem se encontra afastado de ambas? Sem procurar penetrar ainda mais neste campo de análise da obra em questão, uma vez que já existem trabalhos excelentes sobre tal temática, passemos à avaliação de

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como Machado utiliza-se de ideias colhidas no Espiritismo para a composição das memórias de seu defunto autor. Comecemos com a própria ideia da obra em si: um morto que escreve suas memórias a partir do além. Se levarmos em conta que desde o século XVIII surgiram livros atribuídos a espíritos e que Machado foi contemporâneo da chegada dos primeiros livros espíritas no Brasil, poderemos concluir que a referência cultural é clara, não trazendo, portanto, nada de tão novo assim, mesmo na época em que é publicado, o que levou o temido Silvio Romero (1851-1914) a escrever: Pegue o leitor comigo nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, vamos percorrê-las desde as primeiras páginas. O leitor conhece por certo a carcaça do livro; sabe que o autor imaginou um sujeito que do outro mundo nos brinda com as memórias da própria vida, onde se acham narrados seu nascimento, educação, amores, negócios, até o desenlace final da morte, sendo este último passo contado logo em princípio da narrativa. Esta espécie de espiritismo literário pode ser para muita gente o sinal de grande profundeza; mas lhe não descubro a menor significação. Como originalidade é de gênero inferior. (1897: 274) [grifos e atualização ortográfica meus]

Ironicamente, eu diria que machadianamente, Silvio Romero deu-nos a primeira chave para analisar o romance em questão: Espiritismo literário seria a criação ficcional apoiada ou inspirada em conceitos espíritas (ver capítulo 2). O defunto autor das memórias póstumas é, portanto, a representação ficcional dos defuntos autores presentes nas obras espíritas desde os livros organizados por Allan Kardec. Na explicação ao leitor, o narrador Brás Cubas evita “contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias” alegando que “Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.” Para tanto ele argumenta que “O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado.”(2008: 626). É um excelente recurso para a) fugir de explicações a respeito da psicografia, i.e., o processo mediante o qual o espírito transmite seu pensamento ao médium que o transcreve, tal processo foi amplamente descrito por Allan Kardec em O livro dos médiuns, constituindo um dos mais conhecidos fenômenos mediúnicos; no entanto, como são vários os gêneros pelos quais a psicografia se opera e como havia muita controvérsia sobre os mesmos à época é natural que Machado se abstivesse de o

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explicar com o estatuto de que o melhor prólogo é o que menos diz, ou seja, só diz aquilo que realmente interessa à narrativa; e b) eximir o autor Machado de Assis de qualquer influência ou responsabilidade sobre a obra o que se entende quando levamos em conta que até então Machado havia cultivado uma escrita bem comportada e, por isso mesmo, aceita pelo público leitor de então; se como diz Ronaldes de Melo e Souza (2006:139) “O estatuto ambivalente do narrador desdobrado no encenador e no ator do drama de sua vida singulariza a situação narrativa dos romances machadianos de primeira pessoa”, não é absurdo julgarmos que tal singularização possui um efeito extremo no caso do romance de memórias póstumas e que, portanto, torna o autor tão distante do narrador que não se lhes pode indicar qualquer tipo de identidade em comum. Exposição aguda da influência das ideias espíritas na escrita machadiana pode ser encontrada em outras passagens das Memórias. Por exemplo, quando o defunto autor fala de sua reação à morte da mãe: “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.” (2008: 657). Há perfeita simetria entre a passagem acima e outras tantas encontradas nas obras espíritas da época. Só para citar uma fonte primária, refletimos que as questões 919 e 919-a de O Livro dos Espíritos tratam especificamente do conhecimento de si mesmo indicando-o como o meio mais eficaz que o espírito, encarnado ou desencarnado, possui para julgar suas ações e confessar-se falho quando tal necessidade se apresenta. Já na resposta à questão de nº 1000 encontramos a pergunta retórica “De que lhe serve [ao espírito], finalmente, humilhar-se perante Deus, se continua orgulhoso diante dos homens?” (2010: 605), o que nos leva à sequência das reflexões feitas por Cubas: Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência (...). Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há plateia. (2008: 657-8)

Outro trecho da mesma resposta à questão 1000 aponta-nos mais um exemplo de como Machado exibe sua capacidade de torcer conceitos vários para que estes validem

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sua narrativa: “Só por meio do bem se repara o mal (...)” (KARDEC, 2010 [1857]: 605). A ideia de reparar o mal com o bem será desenvolvido em várias passagens de toda a Codificação Espírita, notadamente em O Evangelho Segundo o Espiritismo, sendo desnecessário que lhe façamos a transcrição. Parece-me ser este o conceito base para a “lei da equivalência das janelas”: Brás se julga perdoado por roubar a esposa de Lobo Neves restituindo uma moeda achada estabelecendo “que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.” (ASSIS, 2008: 681). Longe de pretender esgotar todas as possibilidades de diálogo entre as Memórias Póstumas de Brás Cubas e as ideias espíritas encerro esta parte com uma curiosidade que acredito proposital da parte de Machado: Brás Cubas nasce a 20 de outubro de 1805, pouco mais de um ano depois do nascimento de Allan Kardec em 03 de outubro de 1804, e morre em uma data ignorada do mês de agosto de 1869, sendo este também o ano de morte de Kardec, mais precisamente no dia 31 de março. Coincidência ou simples capricho de Humanitas?

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4 – A poesia transcendental de Carlos Drummond de Andrade O ano de 1930 será marcado pelo lançamento do primeiro livro daquele que seria um dos mais festejados autores brasileiros de todos os tempos. Estamos falando da obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade (1902-87). Constantemente somos levados a (re)visitar suas páginas, seja pelo deleite intelectual oriundo da apreciação da poética do mineiro de Itabira, seja em busca de um algo mais, um poema que nos tenha passado despercebido entre inúmeras outras peças literárias de tamanho valor histórico e/ou literário. Nesta busca pelo novo tornado clássico deparo-me com “Balada do amor através das idades”: Eu te gosto, você me gosta desde tempos imemoriais. Eu era grego, você troiana, troiana mas não Helena. Saí do cavalo de pau para matar seu irmão. Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano, perseguidor de cristãos. Na porta da catacumba encontrei-te novamente. Mas quando vi você nua caída na areia do circo e o leão que vinha vindo, dei um pulo desesperado e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro, flagelo da Tripolitânia. Toquei fogo na fragata onde você se escondia da fúria de meu bergantim. Mas quando ia te pegar e te fazer minha escrava, você fez o sinal-da-cruz

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e rasgou o peito a punhal... Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos) fui cortesão de Versailles espirituoso e devasso, Você cismou de ser freira... Pulei muro de convento mas complicações políticas nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno, remo, pulo, danço, boxo, tenho dinheiro no banco. Você é uma loura notável, boxa, dança, pula, rema. Seu pai é que não faz gosto. Mas depois de mil peripécias, eu, herói da Paramount, te abraço, beijo e casamos.

No momento mesmo em que o releio sinto uma irresistível necessidade de dividi-lo com outros, de pensá-lo, de analisá-lo, para de alguma forma torná-lo um pouco minha propriedade. Chego não a uma, mas a duas possibilidades de leitura: a Metalinguística e a Metafísica. Convém avisar que ambas as vias de leitura apresentadas a seguir mereceriam maiores considerações para que fossem desenvolvidas de forma adequada. Por me parecer a menos comum, opto pelo desenvolvimento da segunda sem pretendê-la absoluta, pois como assinala Luiz Costa Lima (1968: 136-7) “A obrigação do crítico está toda em não converter (...) a leitura possível que extrai e escolhe entre outras tantas, em arbitrariedade”. A Leitura Metalinguística toma como base a menção, no penúltimo verso do poema, ao mundo do cinema e lendo-o como uma referência ao papel formador da própria arte na vida do eu lírico que através dos anos de sua vida, desde a infância até a maturidade, tem o sentimento amoroso compreendido pela ótica correspondente ao tipo de filme que mais agradaria a este eu lírico de acordo com seu grau de maturidade,

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elemento determinante na escolha e na apreciação da arte. A palavra idade está aqui empregada em seu sentido cronológico referente aos anos que compõem a vida de um indivíduo. É uma leitura, aliás, muito interessante por demonstrar o quanto o eu subjetivo do ser humano é afetado pela arte, cuja influência molda-lhe inclusive a forma de sentir e de representar-se no mundo, representação esta que passa pela imagem mental que cada indivíduo faz de si mesmo e que busca impor ao mundo com a mesma ênfase que o personagem de Borges no conto “Ruínas Circulares”. A Leitura Metafísica, subjacente ao texto, não exclui a Leitura Metalinguística, ao contrário: amplia-a de tal forma que pode ser tomada como ponto de partida e chegada da anterior, ou melhor dizendo, como recurso temático que fundamenta a metáfora da relação vida e arte utilizando a ideia da reencarnação como base deste recurso temático. A reencarnação faz parte dos conceitos de diversos segmentos espiritualistas, dentre os quais o Espiritismo. De acordo com o conceito espírita, o espírito vive diversas vidas em uma incessante marcha de progresso. Nesse processo evolutivo, a afinidade entre espíritos faz com que eles se busquem constantemente, fortalecendo laços que os unem cada vez mais, cometendo erros e acertos, aprendendo e ensinando mutuamente. Desta forma, ainda de acordo com o Espiritismo, as almas em evolução conquistam vitórias e recebem novas oportunidades de acordo com seu merecimento. Parece-me ser esta a ideia de reencarnação que perpassa o texto de Drummond, i.e., o poeta utilizou o conceito reencarnacionista nos moldes da Doutrina Espírita para a escrita do poema em questão. Esta leitura de caráter transcendental está longe de ser nova e não será este o primeiro texto a apontar tal caráter do poema de Drummond. De fato, a “Balada do amor através das idades” já havia sido incluída na antologia Temas espíritas na poesia brasileira, de Clóvis Ramos, que apenas lhe assinalou a temática reencarnacionista. Longe de menosprezar o trabalho do antologista, arrisco-me a dizer que seu “Sem comentários” (1969: 199) que antecede a transcrição do poema representa uma visão por demais simplista do mesmo determinada, talvez, pela quantidade de páginas que a antologia em questão deveria ter. Tomando-o como ponto de partida, proponho-me a atualizar e ampliar sua leitura. Começando pelo título já seremos capazes de perceber a perspicácia de Drummond na escolha e no trabalho com as palavras. Uma balada é um tipo de composição poética cuja principal característica é a narrativa de lendas. Desta forma, o 30

poeta itabirano confere a seu texto, logo de início, um caráter lendário, antigo, que se perde nas eras temporais, cujo sinônimo idade também comparece no título. É, portanto, a partir deste título, e não do desfecho, que se poderá ler o poema sob a ótica do transcendental, deste recurso a que chamamos Espiritismo Literário. O título situa o poema entre o lendário e o mítico para narrar os sucessivos encontros e desencontros de um casal que se busca vida(s) afora, sem poder realmente gozar este amor cultivado há tanto tempo e de maneiras tão inusitadas. Não se tome o caráter lendário e mítico do poema de Drummond como um afastamento da realidade; ao contrário, o poeta utiliza a linguagem mítica para referendar a própria realidade a partir da associação do imaginário a uma consciência realista da mesma maneira que, em outros poemas, efetua uma “transposição ao imaginário de uma pátria historicizada” (LIMA, 1968: 138). Portanto, a ideia da reencarnação é tomada pelo eu lírico do poema em questão como um elemento realístico; não um mito provável, mas sim um fato palpável. Na primeira estrofe Eu te gosto, você me gosta desde tempos imemoriais. Eu era grego, você troiana, troiana mas não Helena. Saí do cavalo de pau para matar seu irmão. Matei, brigamos, morremos.

vemos o casal em um de seus encontros em plena batalha de Tróia, quando se encontram em lados opostos da contenda. Não se pode afirmar ser este o primeiro de seus encontros, uma vez que o texto afirma vir este amor de “tempos imemoriais”, no entanto, situando o primeiro encontro narrado em meio à lendária guerra entre troianos e gregos, não poderia ter sido mais ilustrativa do caráter do próprio poema. Basta atentarmos para o fato de que a Guerra de Tróia Histórica não tem um décimo do “prestígio” da Guerra de Tróia Lendária (ou Literária), mas que serve-lhe de modelo e referência para uma batalha Lendária/Literária que tem profunda influência na mentalidade humana. É como se o poema nos dissesse “Pouco importa se esta história aconteceu ou não, o que realmente interessa é como ela se presta à ilustração de uma realidade que nos escapa”.

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É esta primeira estrofe que apresenta uma das etapas iniciais do sentimento amoroso sob uma conjugação inovadora (Eu te gosto, você me gosta) apontando para o princípio de simpatia que rege as relações amorosas e que muitas vezes apresenta-se de maneira inusitada, no caso, entre dois inimigos. Já nesta primeira estrofe será curioso o fato de os personagens anônimos dissolverem-se em acontecimentos famosos, dissolução esta ironicamente retratada no fato de que a mulher em questão é troiana “mas não Helena”. A ironia representa em Drummond o modo inicial de contato com a realidade, segundo Costa Lima que ainda assinala a multiplicidade da ironia no livro de estreia do poeta mineiro: “Em Alguma poesia, entre poemas de circunstância e poemaspiada, entre ingênua e complacente, a ironia já aparece habilitada a liberar o poeta dos mitos que praticavam ou a que tendiam os contemporâneos”. (1968: 138) Na sequência temos outra referência histórica bem definida: a perseguição e morte de cristãos pelo regime romano. Neste trecho, Drummond confere ao amor um caráter de sacrifício na imagem do soldado que dá a própria vida por uma inimiga sem um porquê definido para ambos a não ser o impulso de um momento. A terceira estrofe traz os dois amantes mais uma vez em lados opostos, mas buscando-se com grande ardor. Neste momento, o eu lírico mostra-se incapaz de compreender o amor como doação. O que na vida/estrofe anterior foi sacrifício torna-se agora o amor paixão, aquele que escraviza, que cobra, que exige obediência. Ele mostra ali a perda do amor sempre que os amantes não se mostram maduros o suficiente para lidar com o sentimento amoroso de forma equilibrada. Todos perdem. Perde-se o amor. Perde-se a vida. Convém aqui um parênteses: se o princípio reencarnacionista conforme ensinado pelo Espiritismo prevê a evolução incessante, não seria de estranhar que o eu lírico que se sacrificara anteriormente pela amada apareça agora com um sentimento tão desequilibrado? Duas hipóteses se nos apresentam: 1) o eu lírico pode estar apresentando-se no singular por um processo de fusão das vozes, representando assim dois eus líricos que se confundem um no outro, ou 2) o sacrifício anterior, sendo oriundo de um impulso, seria demonstração não do desprendimento do amor, mas da paixão arrebatada. Sendo um, sendo outro, ambas as visões nos servem. A estrofe seguinte traz o início da maturidade amorosa, maturidade esta que traz os “tempos mais amenos” da relação. É claro que esta amenidade não é completa, pois ainda aqui temos a dicotomia entre os gênios dos amantes: de um lado o homem regido pelo sensualismo que o leva à corrupção de suas energias genésicas, muito embora seja 32

inteligente e bem humorado; de outro vemos a mulher que já evoluiu em seu sentimento, a tal ponto que busca a sublimação por meio da religião, embora tal sublimação surja mais como elemento externo do que fruto da convicção. A atração dos dois ainda é forte e será aparentemente obliterada pela marcha incessante da história na qual a guilhotina (uma possível referência à Revolução Francesa) surge como um símbolo para o desencontro que parece perseguir o casal. Ao chegarmos à última estrofe já podemos afirmar que o poema de Drummond demonstra o conhecimento por parte do autor a respeito dos conceitos espíritas, os quais utiliza de forma brilhante na construção de seu texto. Após tantas vidas e desencontros, os amantes recebem nova oportunidade de se encontrarem e, desta vez, conseguem atingir certo equilíbrio. A afinidade entre os dois fica patente pelos gostos em comum que não excluem a individualidade de ambos. Mesmo nesta vida surge a dificuldade para a concretização amorosa, configurada na imagem do pai da moça, símbolo de coerção que não será capaz de impedir que os amantes deem um passo decisivo em seu sentimento: o casamento, que aqui surge como a completude de séculos de busca um pelo outro. E voltamos assim ao início de nossa análise. O eu lírico se afirma um herói cinematográfico, pois tem a consciência da verdadeira epopeia que atravessou no decorrer de diversas encarnações, vencendo seus próprios impulsos até alcançar o grau evolutivo que lhe possibilita finalmente viver aquele amor tão sonhado que passou do desejo à compreensão, da violência ao carinho, do ideal ao real. O poema de Drummond é um exemplo do que já havia sido assinalado em Obras póstumas: Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que obras-primas de todos os gêneros as novas ideias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita! [...] Sem dúvida, o Espiritismo abre à arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efêmeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura e eterna da alma.

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Não se trata aqui de levantar hipóteses a respeito da opção religiosa de Carlos Drummond de Andrade, nem isto é relevante para nossa análise, mas sim de demonstrar o quanto o Espiritismo oferece à humanidade em termos temáticos e ideológicos, apresentando recursos que podem ser utilizados por todos, sejam eles espíritas, simpatizantes ou agnósticos e que pouco importa o rótulo que se lhes dê, pois o mais importante, a mensagem, está lá. Sempre pensei em Drummond como um poeta transcendental por ser o autor de uma poética que ultrapassa o tempo e o espaço. Agora vejo-o também como um poeta transcendentalista capaz de penetrar surdamente no reino das palavras e abrir multidões de portas e caminhos respondendo afirmativamente à pergunta: “Trouxes-te a chave?”.

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5 – Manuel Bandeira e as mensagens do além A Doutrina Espírita é um manancial inesgotável donde a humanidade pode sorver ideias e temas, proporcionando aos seres uma fonte riquíssima para seu aprimoramento pessoal e para sua expressão livre. Sua máxima beleza se manifesta no fato de estar à disposição de todos, independentemente de orientação filosóficoreligiosa. É o que constantemente me vem ao pensamento quando encontro os conceitos espíritas disseminados em meios que não possuem nenhuma ligação aparente com a Doutrina como, por exemplo, o universo literário. Foi o que me aconteceu ao ler uma carta de Manuel Bandeira (1886-1968) endereçada ao amigo Odylo Costa, Filho14. A carta (sem data) foi publicada no número 8 da revista Poesia Sempre (1997) e serviu de elemento motivador para a presente análise. Primeiro vamos nos deter no trecho inicial da referida carta: Odylo querido A Yeda15, viúva do Schmidt16, tem se revelado melhor administradora do que o Schmidt. Há dias ela quis tirar umas dúvidas sobre os negócios do espólio e lembrou-se de evocar o espírito do falecido numa sessão espírita. Mas quem se apresentou não foi o Schmidt, mas sim o Ovalle17, que disse, entre outras coisas, essas palavras “Aqui estamos todos nus”, e tanto a Yeda como o Dante Milano 18 reconheceram essa coisa autêntica do Ovalle. Dante tentou fazer um poema sobre, mas não conseguiu. Então eu pus mãos à obra e saíram as quadrinhas supra. (1997: 328-9)

A simples referência feita por um dos maiores nomes da poesia brasileira à realização de uma sessão espírita tendo envolvidos os nomes de outras não menos relevantes personalidades artísticas e intelectuais (ver notas) já seria motivo suficiente para que o pesquisador se sentisse tentado a compreender os detalhes desta reunião. Não será este o foco do presente texto, pois não me vejo detentor de condições intelectuais para proceder a uma pesquisa histórica de tal vulto. Prefiro voltar minha atenção para as “quadrinhas” mencionadas por Bandeira. Trata-se, na verdade, do 14

Odylo Costa, Filho (1914-79) – Jornalista, cronista, novelista e poeta brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. 15 Yedda Ovalle Lemos – Esposa de Augusto Frederico Schmidt; sobrinha de Jayme Ovalle. Consta que era dotada de forte sexto sentido que a levava a intuir o caráter das pessoas e que estudou budismo e praticou yoga. Nota: na carta de Bandeira seu nome aparece grafado incorretamente com apenas um “d”. 16 Augusto Frederico Schmidt (1906-65) – Poeta, político e homem de negócios, ficou conhecido como o “gordinho sinistro” da literatura Brasileira. 17 Jaime Ovalle (1894-1955) – Compositor e poeta brasileiro. 18 Dante Milano (1899-1991) – Poeta e tradutor.

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poema “Mensagem do Além”. O poema apresenta como epígrafe a frase atribuída ao espírito Jaime Ovalle que também serve como último verso de cada quadra. Aqui é tudo o que olhamos Nu como o céu, como a cruz, Como a folha e a flor nos ramos: Aqui estamos todos nus.

As vestes que aí usamos Nada adiantam. Se o supus, Se o supões, nos enganamos: Aqui estamos todos nus.

Dinheiro que aí juntamos, Jóias que pões (e eu já as pus), De tudo nos despojamos: Aqui estamos todos nus.

Aqui insontes nos tornamos Como antes do pecado os De quem todos derivamos, Aqui estamos todos nus.

Aos pés de Deus, que adoramos Sob a sempiterna luz, É nus que nos prosternamos: Aqui estamos todos nus.

Este belíssimo poema começa com um panorama do mundo espiritual que nos remete diretamente aos relatos obtidos via mediúnica e que dão conta da simplicidade com que as coisas se apresentam no mundo espiritual. Lembrando a série de livros do espírito André Luiz, pela psicografia de Chico Xavier, encontramos em várias passagens a alusão à eliminação do supérfluo, com objetos, móveis e construções atendendo sempre ao bom gosto e praticidade. Na segunda estrofe vemos toda a inteligência e sensibilidade do poeta ao substituir aparência por vestes, em uma clara referência à diferença existente entre o mundo material onde somos capazes de disfarçar nosso íntimo perante os homens e a 36

verdadeira essência revelada no pós-morte. Nisto o poeta estabelece ainda um diálogo com outro genial autor de nossa língua: Machado de Assis, que em Memórias Póstumas de Brás Cubas põe nos lábios de seu defunto-autor uma pérola de sabedoria. A passagem é longa, mas vale à pena ser lida: Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! (2008 [1881]: 657-8)

Que sensibilidade e semelhança a desses dois trechos separados por quase um século de história, demonstrando a inutilidade das máscaras sociais que todos nós utilizamos; e que identidade perfeita com o conhecimento espírita. A terceira estrofe traz-nos à lembrança o Cap. XVI, item 14, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, onde o espírito Lacordaire tece importantes considerações a respeito do desprendimento dos bens terrenos. Particularmente encontro no poema de Bandeira um eco destas palavras: Em vão procurais na Terra iludir-vos, colorindo com o nome de virtude o que as mais das vezes não passa de egoísmo. Em vão chamais economia e previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao que não é senão prodigalidade em proveito vosso. (2006 [1864]: 300-1)

Prosseguindo em suas considerações, o eu lírico aponta para a inocência (Aqui insontes nos tornamos) do espírito após a morte do corpo físico. Embora possa ser lido com uma alusão ao mito adâmico (Como antes do pecado os / De quem todos derivamos) não deixa de ser interessante notar que ao compulsarmos a Codificação encontramos a afirmação de que somos criados simples e ignorantes (L.E. – perg. 115), portanto sem pecado. Não somos descendentes de Adão e Eva, mas de nós mesmos, de nossas escolhas. A última estrofe nos traz um belo resumo do que encontramos no Livro III, Capítulo II de O livro dos espíritos, o qual trata da Lei de Adoração. Se nos detivermos

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nas perguntas 653 e 653-a, veremos que ali o Espírito Verdade assevera que “A verdadeira adoração é a de coração” e que toda manifestação deste sentimento inato ao ser humano é válida e útil “se não for um vão simulacro”, i.e., um fingimento, um ato puramente exterior. O eu lírico do poema de Bandeira afirma que “É nus que nos prosternamos”, afirmando a sinceridade deste ato de submissão ao Criador, em perfeita sintonia com a Doutrina Espírita. Propositalmente deixei por último o verso que motivou o poema de Bandeira e o presente texto: “Aqui estamos todos nus”. Para não alongar por demais um texto que corre o risco de tornar-se enfadonho, limito minhas elucubrações a um cotejo da frase em questão com algumas passagens do livro Nosso Lar, cuja primeira edição veio à lume em 1944. No capítulo 14 (“Elucidações de Clarêncio”), a palavra do ministro expõe o íntimo do espírito André Luiz de forma clara e direta: “Já sei. Verbalmente pede qualquer gênero de tarefa; mas, no fundo, sente falta dos seus clientes, do seu gabinete, da paisagem de serviço com que o Senhor honrou sua personalidade na Terra.” (1996: 81) [grifos meus]. Como se vê, a nudez do espírito após o desencarne é aqui exposta pela observação de um terceiro que, pleno de autoridade moral e espírito de caridade, elucida os impulsos interiores que nos acostumamos a hipocritamente mascarar durante a experiência no corpo físico. Em vários outros capítulos a nudez do ser é posta em evidência como, por exemplo, no de número 31 (“Vampiro”), que tem sido apontado como um dos mais chocantes pela maneira como é elucidada a real condição do espírito que envereda pelos caminhos do aborto criminoso e que em vão busca ocultar-se sob a capa da virtude. A nudez do espírito atinge seu grau máximo quando este olha dentro de si mesmo e reconhece suas falhas, como acontece no capítulo 33, onde André Luiz assinala que “examinando desapaixonadamente minha situação de esposo e pai, reconhecia que nada criara de sólido e útil no espírito de meus familiares.” (1996: 181), ou quando ao encontrar-se com aqueles a quem prejudicara em sua última passagem na terra, mostra-se incapaz de fugir à lembrança de seus erros e busca o perdão dos que lhe sofreram os atos cegos, seja pela sincera exposição verbal (Cap. 35 – “Encontro singular”), seja pela doação abnegada no trabalho em favor destes (Cap. 40 – “Quem semeia colherá”).

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Estar a nu perante a eternidade é um dos meios pelos quais a alma evolui moralmente, como se nota na postura de André diante do segundo esposo daquela a quem deixara viúva como consequência de seus abusos: “De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças,[...]”, imagem forte por nos remeter ao lugar comum no qual todos nos achamos mergulhados; imagem igualmente bela por representar a sinceridade do narrador ao revelar seu impulso; imagem sublime quando vemos sua continuidade “[...] mas já não era eu o mesmo homem de outros tempos. O Senhor me havia chamado aos ensinamentos do amor, da fraternidade e do perdão.” (1996: 272). A nudez do espírito é um dos caminhos para sua evolução. Simplicidade, adoração, humildade, evolução, fé. Elementos que se encontram no íntimo do ser e que necessitam de que este se despoje de vícios, máscaras e comportamentos viciosos para que surjam em sua plenitude. O poema de Manuel Bandeira nos mostra que os conceitos espíritas já fazem parte da cultura humana, bastando apenas que sejam realmente compreendidos e vivenciados de modo que o espírito imortal, desencarnado ou encarnado, tenha a postura de nudez que o levará no caminho da evolução.

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RAMOS, Clóvis. Temas espíritas na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1969.

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Sobre o autor Glaucio Varella Cardoso nasceu em 11 de novembro de 1976, natural de Mesquita, município da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, onde fez seus primeiros estudos e começou a trabalhar muito cedo. Bacharelou-se em Letras, na habilitação Língua Portuguesa - Literatura Brasileira, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2005. Pela mesma instituição conquistou o grau de Mestre em Literatura Brasileira em 2009, apresentando a dissertação “Poesia Lida: Poesia Falada (Poesia, Performance e Recepção: Aspectos Teóricos e Práticos)”, sob a orientação do Prof. Dr. Ítalo Moriconi. É ator teatral desde 1988, sendo atualmente o diretor geral da Cia. Leopoldo Machado de Arte Espírita (Cialemarte) na qual já escreveu e dirigiu diversas peças teatrais atuando também como ator nas mesmas. É performer de poesia, sempre buscando novas maneiras de dizer versos alheios e eventualmente os próprios. Membro da Associação Brasileira de Artistas Espíritas (Abrarte), na qual tem colaborado inclusive como organizador do periódico “Cadernos de Arte”. É membro da Academia de Letras e Artes de Mesquita (ALAM), ocupando a cadeira nº 27, tendo como patrono o poeta Mário Quintana. Em 2001 conquistou o Prêmio Deolindo Amorim, concedido pelo Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), ao participar do 1º Concurso de Monografias Espíritas das Mocidades Espíritas do Brasil, com o ensaio “Em defesa de um Teatro Espírita”. Livros publicados:  2011 - Enquanto Clara dormia (poesia), com prefácio do poeta João Prado;  2012 - Sopros e outros poemas (poesia), com prefácio do poeta Merlânio Maia;  2013 - Em defesa de um teatro Espírita (ensaio), com prefácio do escritor e psicólogo Cezar Braga Said;  2015 – La commedia è finita (poesia), com estudo estilístico do filósofo Thales de Oliveira. Já publicou artigos e poemas em periódicos e antologias. Mantém o blog http://glauciocardoso.blogspot.com.

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Ator, professor, poeta, ensaísta, dramaturgo. Se ele pudesse se definir em uma única palavra, esta seria “inquieto”.

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