O espírito quase realista de Nelson Goodman

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O espírito quase realista de Nelson Goodman Eros Moreira de Carvalho (UFRGS, 2015) Introdução Nesta comunicação, irei comentar um texto que o próprio Paulo Faria me entregou em mãos assim que cheguei em Porto Alegre, em 2011, para assumir o cargo de professor que hoje ocupo na UFRGS. Esse gesto foi só mais um dos inúmeros exemplos, que todos aqueles que convivem com o Paulo guardam, da sua inigualável generosidade e sensibilidade. Entrei nessa casa apresentando um projeto de pesquisa acerca do novo enigma da indução de Goodman, autor central no artigo de Paulo. Com esse gesto, Paulo me convidava para a interlocução na sua morada intelectual. Apesar de todas as dificuldades que uma mudança acarreta, eu então me senti em casa. Li o artigo naquela época, mas só agora, após a devida assimilação e reflexão, posso tentar elaborar uma resposta que faça jus às dificuldades que Paulo via, e acredito que ainda vê, no projeto de Goodman. Agradeço aos organizadores do evento1 por essa oportunidade e, ao Paulo, pelo convite à discussão filosófica. Em “Deconstrucción de la irrealidad“ (FARIA, 2002), encontramos não só um diagnóstico preciso da origem da tese irrealista tardia de Goodman, mas também uma sugestão de como, apesar do nominalismo de Goodman, podemos evitar a tese contra-intuitiva de que fazemos mundos ao fazer versões corretas de mundos. Se o entrincheiramento é a única resposta que temos para a caracterização da projetabilidade, parece então que teríamos de conviver com essa consequência irrealista. A sugestão de Paulo passa pelo enfrentamento do paradoxo das esmeraldas “verzuis” por meio de quaisquer restrições empíricas que possamos colocar à projetabilidade de predicados. Paulo Faria defende que a incorporação desse tipo de restrição, embora não implique a defesa de uma posição realista, especialmente aquilo que normalmente se chama de 'realismo metafísico', reflete aquilo que Cora Diamond, na falta de um nome melhor, cunhou de 'espírito realista' ou, para usar a expressão do Paulo, uma atitude realista. A resistência de Goodman em adotar essa estratégia teria sido responsável pelo seu irrealismo. Nessa comunicação, tentarei defender que não há como se livrar completamente do entrincheiramento para caracterizar a projetabilidade de predicados, embora a restrição empírica sugerida por Paulo seja bem-vinda tanto quanto for possível alcançá-la, e que a atitude do Goodman em relação ao entrincheiramento revela mais realismo do que possa parecer a primeira vista. 1

A Cognição e Seus Riscos: Colóquio em Homenagem ao Professor Paulo Faria. (https://sites.google.com/site/acognicaoeseusriscos/home).

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O espírito realista O realismo filosófico é entendido como a tese de que o que torna as nossas alegações acerca do mundo verdadeiras ou falsas é algo que “pode ser eternamente independente do conhecimento, do pensamento e da experiência humanos” (FARIA, 2002, p. 135). Esse tipo de realismo é contrastado com o que a Cora Diamond chamou de 'espírito realista', que seria uma expressão da compreensão implícita e não-filosófica que o homem ordinário tem dos usos do termo 'realismo' e cognatos. Ela fornece três situações em que o uso do termo é saliente: (1) quando chamamos a atenção de alguém para que seja fiel aos fatos; (2) quando chamamos a atenção de alguém para detalhes e nuances que passaram desapercebidos e para que ela não se deixe levar por raciocínios estereotipados e (3) quando chamamos a atenção de alguém para as consequências de algo, para que ela leve em consideração como esse algo funciona. O segundo sentido de 'realismo' pode ser aplicado a romances. Um romance que se pretende realista pode ser criticado por não ter prestado a devida atenção a uma série de detalhes da fenomenologia do seus personagens. Há uma série de coisas que não podem acontecer em um romance desse tipo, “pessoas não voltam no tempo, potes não falam” (DIAMOND, 1996, p. 41) etc. 'Realismo', em seu uso não-filosófico, se opõe à fantasia e à magia. Esse uso não-filosófico do termo guarda parentesco com posições empiristas: magia, fantasia, mito e superstição são coisas que devem ser banidas ou evitadas. Essa aproximação é importante para Cora Diamond, pois o objetivo central do seu texto é explicar a afirmação de Wittgenstein: "Not empiricism and yet realism in philosophy, that is the hardest thing." (Wittgenstein). Há algo de errado no empirismo, em algum momento, ele se desencaminha, mas, ao mesmo tempo, há algo de adequado nele, algo que o aproxima da atitude realista que não devemos abandonar na filosofia. A alegação de Wittgenstein é feita como crítica à posição empirista de Ramsey acerca de como devemos clarificar variáveis hipotéticas, isto é, enunciados empíricos gerais como “todos os homens são mortais”. O que Cora Diamond diz acerca da crítica de Wittgenstein à Ramsey vai me interessar para mostrar o quanto Goodman manifesta da atitude realista. Mas antes de entrar nesse ponto, quero notar o que ela diz também acerca de Berkeley e a atitude realista que podemos ver no seu empirismo. A aproximação entre Berkeley e Goodman também me interessa, pela mesma razão. Para Berkeley, a noção filosófica de 'matéria', como algo que não pode, em absoluto, ser caracterizada por meio de quaisquer percepções que tenhamos disponíveis, é uma fantasia que nos leva ao ceticismo. Somos levados a essa fantasia por uma concepção equivocada de como a 2

linguagem funciona, em especial, de como termos abstratos adquirem significado. Berkeley, na leitura de Cora Diamond, apresenta uma atitude realista segundo as acepções não-filosóficas (2) e (3) de 'realismo'. A crítica de Berkeley ao filósofo, que é representado pelo personagem Hylas nos Diálogos, é que ele não está suficientemente atento às maneiras pelas quais distinguimos entre realidade e quimera no interior das nossas próprias percepções e que poderiam servir de base para a compreensão da matéria. Hylas, ao negar sistematicamente qualquer tentativa de compreender a matéria em relação às distinções que fazemos entre realidade e quimera, priva a si mesmo de ter uma concepção positiva da matéria. Ele se deixa guiar por uma fantasia. E essa fantasia é reforçada por uma imagem errada de como a linguagem realmente funciona. Goodman pretende definir ou descrever “indução válida”. Como Berkeley, ele não pensa que uma compreensão adequada desse termo possa ser encontrada fora da nossa experiência, no seu caso em especial, fora da nossa prática indutiva, a qual é constituída pelas induções particulares que normalmente aceitamos e rejeitamos. A validade indutiva, diz Goodman, “consiste na conformidade com princípios que codificam a prática” (GOODMAN, 1983b, p. 89) indutiva. Ou ainda: “Predições são justificadas se elas se conformam aos cânones válidos de indução; e os cânones são válidos se eles codificam acuradamente a prática indutiva aceita” (GOODMAN, 1983a, p. 64). Que tipo de fantasia Goodman está rejeitando ou pondo de lado com essas alegações? Para ele, seria fantasioso adotar uma perspectiva completamente externa à prática indutiva, isto é, que não se apoia em nenhuma inferência indutiva aceita, para definir o que é uma indução válida ou, em termos mais hodiernos, correta. Essa fantasia estaria presente no programa das teorias sintáticas da confirmação, cujo propósito era definir validez indutiva por meio de recursos puramente formais e sintáticos. O caráter fantasioso desse projeto teria sido evidenciado tanto pelo paradoxo dos corvos quanto pelo paradoxos das esmeraldas verzuis, pois, em ambos os casos, como salienta Goodman, chegaríamos ao resultado absurdo de que “qualquer enunciado confirma qualquer outro” (GOODMAN, 1983a, p. 70). Uma comparação forçada entre dedução e indução seria a origem dessa fantasia, que nos leva não só a ignorar a prática indutiva como fonte de autoridade epistêmica, a qual a tarefa de definição de 'validade indutiva' deve se conformar, mas também a negligenciar a relevância de aspectos materiais para o próprio funcionamento do raciocínio indutivo. Assim como Berkeley, Goodman teira uma atitude realista segundo os usos não-filosóficos (2) e (3) de 'realismo'. A psicologia não importa? Há boas razões para pensar que Goodman tenha fraquejado quanto à atenção a como a indução 3

realmente funciona e, nesse sentido, tenha se afastado de uma atitude suficientemente realista, na acepção (3) do termo. A sugestão de Paulo de que a tarefa de definir validez indutiva poderia se alimentar de informação empírica valiosa acerca de por que alguns predicados foram entrincheirados (FARIA, 2002, p. 146) ao invés de se restringir apenas à informação de quais predicados foram entrincheirados vai justamente na direção de dar mais atenção a como a indução realmente funciona e, portanto, seria uma maneira de intensificar o espírito realista da posição de Goodman. Estou de acordo com Paulo quanto a esse ponto. Por que projetamos “todas as esmeraldas são verdes” ao invés de “todas as esmeraldas são verzuis”? Segundo as teorias sintáticas da confirmação, a relação entre evidência disponível e essas hipóteses é a mesma. Com a pergunta anterior, Goodman não pretende levantar uma dificuldade cética. Ele não tem dúvida de que projetamos e devemos projetar a primeira hipótese. Sua questão é: por que o fazemos? Tanto a pergunta quanto a resposta de Goodman estão apoiadas no seu nominalismo. Primeiro a pergunta: não há maneira privilegiada de agrupar os indivíduos em classes e há um número indefinido de maneiras pelas quais possamos fazê-lo. Isso se aplica inclusive à evidência. Não é que as duas hipóteses sejam igualmente suportadas pela mesma evidência, sem maiores qualificações. Essa é uma maneira descuidada, afirma Goodman, de colocar a pergunta (GOODMAN, 1972, p. 359). Sejam os indivíduos em tela os eventos compreendidos pelas esmeraldas examinadas até hoje, eles tanto podem ser descritos como “as esmeraldas examinadas são verdes” quanto como “as esmeraldas examinadas são verzuis”. Assim, o que temos é “evidência exatamente igual e paralela para duas hipóteses conflitantes” (GOODMAN, 1972, p. 359). A própria evidência é recortada e mediada por diferentes predicados. Agora a resposta: como não há maneira privilegiada de agrupar indivíduos, só nos resta um critério puramente pragmático para escolher entre uma ou outra maneira: os predicados entrincheirados são justamente aqueles que projetamos antes, que usamos mais em generalizações passadas. Projetamos a primeira hipótese ao invés da segunda porque ela contém predicados que foram usados em projeções passadas. Nada mais há para ser dito. A consequência do nominalismo radical de Goodman, como assinala o Paulo, é que “La práctica lingüística toma el lugar del “modo como el mundo es”: de hecho, es la idea misma de un “modo como el mundo es” la que se disuelve” (FARIA, 2002, p. 143). Parece-me que o abandono dessa ideia explicaria em boa medida o desinteresse de Goodman por explicações psicológicas de por que certos predicados são entrincheirados.

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Goodman menciona a possibilidade dessas explicações em duas ocasiões. A primeira, discutida por Paulo, aparece na sua resposta a um texto de Judith Thomson (THOMSON, 1966), onde ela defende que a observacionalidade poderia ser uma marca da projetabilidade. Goodman discorda que Judith tenha sido bem-sucedida e alega que, ainda que tivesse sido, “nada disso seria incompatível com uma definição de projetabilidade em termos de entrincheiramento; ou melhor, teríamos uma explicação psicológica dos fatos do entrincheiramento” (GOODMAN, 1972, p. 409). A segunda ocasião aparece na introdução à seção que agrega seus textos sobre indução no Problems and Projects. Lá ele diz que: Muitos artigos recentes buscam por fundamentos psicológicos para as nossas decisões quanto a quais predicados ou hipóteses projetar. Se tais explicações fossem encontradas, elas não iriam entrar em conflito com o meu tratamento da projetabilidade em termos do entrincheiramento de predicados, mas meramente tornariam as escolhas iniciais determinadas psicologicamente ao invés de uma questão de chance (GOODMAN, 1972, p. 358). Em ambas as ocasiões, Goodman parece sugerir que essas descobertas psicológicas não alterariam em nada o seu tratamento da projetabilidade. Por que? Se a tarefa de descrever a indução não se distingue, aos olhos de Goodman, da tarefa de definir indução válida, por que esse desinteresse pelas descobertas psicológicas relativas à prática indutiva? Esse desinteresse fica claro se observarmos a própria maneira como Goodman compreende a tarefa de definir 'validade indutiva'. Em uma nota de Fact, Fiction and Forecast, ele explica de que maneira a prática indutiva o interessa: “a organização da abordagem explicativa não precisa refletir a maneira ou a ordem em que os predicados são adotados na prática. Ela certamente deve descrever a prática, contudo, no sentido de que as extensões dos predicados explicados devem se conformar de certas maneiras com as extensões dos mesmos predicados como aplicados na prática” (GOODMAN, 1983a, p. 65)2.

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No último capítulo, ele é igualmente enfático acerca desse ponto: “não perguntamos como as predições vieram a ser feitas, mas como – assumindo que foram feitas – elas vieram a ser distinguidas entre válidas e inválidas” (GOODMAN, 1983a, p. 87).

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No caso em tela, descrever a prática indutiva adequadamente não demanda mais que o seguinte: a extensão do conceito definido 'indução válida' deve se conformar materialmente em um grau significativo com a extensão desse conceito tal como usado na prática, isto é, com a extensão do que normalmente se aceita como uma boa indução. Nessa passagem, Goodman parece estar se comprometendo com um tipo de reconstrução racional tal como compreendida por Reichenbach. Reichenbach alega que a epistemologia tem duas tarefas fundamentais, uma que ele chama de descritiva e outra que ele chama de crítica. A tarefa descritiva “não considera os processos de pensamento na sua ocorrência real. Essa tarefa é deixada inteiramente para a psicologia” (REICHENBACH, 1938, p. 5). A tarefa descritiva visa construir um substituto para o processo psicológico atual que leva a um certo conteúdo/pensamento atual segundo operações lógicas ou racionais que resultem nesse mesmo conteúdo. Vários construtos são possíveis. A tarefa ainda não é crítica pois é possível que não haja uma cadeia de operações lógicas ou racionais que justifiquem o conteúdo em tela. E a tarefa crítica consiste justamente na avaliação de se uma certa reconstrução racional de um processo de pensamento justifica o conteúdo resultante desse processo (REICHENBACH, 1938, p. 7). Parece-me correto dizer que Goodman vindica apenas a tarefa descritiva, mas não a crítica. Sua única restrição, como fica claro na nota citada, é que a definição de 'indução válida' incorpore significativamente a prática indutiva atual. Desde que a definição respeite essa restrição, ela pode ser feita de diferentes maneiras. Em um breve artigo, “Inductive Translation” (GOODMAN, 1972, p. 394-97), Goodman aponta para algumas maneiras de operacionalizar essa definição distintas daquela que ele apresentou no último capítulo de Fact, Fiction and Forecast. Se é assim, a descrição psicológica de como fazemos induções particulares realmente não interessa para a sua tarefa de definir a 'indução válida'. Se Goodman tivesse vindicado a tarefa crítica, é possível que ele tivesse dado um lugar mais proeminente para as explicações psicológicas de como fazemos induções e mais adiante explicarei por que penso assim. Aqui precisamos fazer alguns alertas para evitar confusões. Comecei o texto afirmando que Goodman manifesta certa atitude realista, nos termos de Cora Diamond, justamente ao rejeitar que o problema da justificação da indução, que para ele se resume ao problema de definir 'indução válida', possa ser abordado sem apoiar-se na própria prática indutiva. E agora afirmo que ele não se interessa pela tarefa crítica da epistemologia. Certamente há uma tensão nessas alegações. O problema está na ambiguidade do termo 'justificação'. Goodman está sendo realista ao definir 'indução válida' a partir da prática indutiva. Mas a maneira como ele encara essa tarefa de 6

definição o afasta da tarefa crítica da epistemologia, tal como concebida por Reichenbach. Engajaríamos na tarefa crítica se nos perguntássemos se a prática indutiva é conducente à verdade. Goodman, no entanto, desconecta a justificação da verdade e, ao fazê-lo, afasta-se do espírito realista, pois deixa de se preocupar com como as coisas funcionam, o que talvez pudesse ter um impacto sobre a definição de 'indução válida'. Mas também diria que o epistemólogo crítico se afasta desse espírito realista ao pensar que pode responder a pergunta sobre o quão a prática indutiva é conducente à verdade sem se apoiar na própria prática indutiva. Seria como tentar usar um macaco sem apoiá-lo no chão para levantar um carro. Goodman e Strawson, a justificação e a verdade A posição de Goodman acerca da justificação da indução se assemelha à de Strawson e tenho a impressão de que ele estaria de acordo com a distinção feita por esse último entre racionalidade e confiabilidade (STRAWSON, 1951, p. 260-2) ao abordar o velho problema da indução. O diagnóstico de Strawson para este problema é que ele é fruto de uma confusão entre duas questões que devem ser distinguidas: a questão da confiabilidade da indução e a questão da razoabilidade ou racionalidade da indução. É um erro pensar que a inferência indutiva só será razoável se for confiável e é justamente este erro que nos leva a pensar que precisamos de algum tipo de prova para a razoabilidade da indução, uma prova que justamente a mostre como confiável não necessariamente sempre, mas na maioria das vezes. Para Strawson, a questão da fiabilidade da indução é, com efeito, uma questão empírica e contingente, depende da constituição do mundo (STRAWSON, 1951, p. 262). O mundo poderia ser de tal modo irregular que a maioria das nossas induções fracassariam. Nisto, Hume estava correto. Nada há de contraditório na ideia de que a natureza mude o seu curso. Mas também não há qualquer problema em respondermos essa questão indutivamente. Como as nossas induções têm sido bem sucedidas, temos todas as razões indutivas para pensar que o mundo continuará a ser propício à indução. Mas não é isso que torna razoável ou racional o uso da indução. A razoabilidade da indução é garantida analiticamente. “É uma proposição analítica que é razoável ter um grau de crença em um enunciado que é proporcional à força da evidência em seu favor” (STRAWSON, 1951, p. 256) e, no caso da indução, é também uma proposição analítica que “outras coisas permanecendo as mesmas, a evidência para a generalização é forte na proporção em que o número de instâncias favoráveis e a variedade de circunstâncias em que foram encontradas são grandes” (STRAWSON, 1951, p. 257). O velho problema da indução não se coloca, pois quando 7

arrolamos a base indutiva para uma crença sobre o não-observado estamos, ao mesmo tempo, por razões analíticas, fornecendo aquilo que consideramos ser uma boa razão ou justificação para esta crença. Qualquer que seja a situação em que nos encontrarmos, será razoável usar a indução. Sua razoabilidade não depende do quão confiável ela é e, portanto, de como o mundo é. Penso que Goodman está de acordo com a distinção de Strawson. Ele diz: “O critério para a legitimidade de projeções não pode ser a verdade que está ainda indeterminada. A falha em reconhecer isto foi responsável, como vimos, por algumas das piores concepções errôneas do problema da indução” (GOODMAN, 1983b, p. 99). Qualquer que seja a justificação conferida aos princípios indutivos, não é uma que implica uma prova de confiabilidade, probabilística ou não. Esse último ponto é acentuado em Ways of Worldmaking: não foram poucas, diz Goodman, as “tentativas fúteis e frenéticas de justificar a indução no sentido de mostrar que a indução correta irá sempre ou na maioria dos casos resultar em conclusões verdadeiras” (GOODMAN, 1983b, p. 89). Novamente, sua afirmação de que “no momento oportuno, a hipótese de que todas as esmeraldas são verdes pode revelar-se falsa e a hipótese de que todas as esmeraldas são grue, verdadeira. Não temos garantias.” é sugestiva de que ele não tem qualquer expectativa de que possamos dar alguma prova de que H1 é verdadeira e H2, falsa ou mesmo de que H1 é mais provável que H2. No entanto, H1 está justificada, pois é projetável, mas não H2. Assim, a justificação da indução, para Goodman, não é factiva, ela deve ser desconectada da sua confiabilidade. Contudo, há pelo menos três aspectos em que Goodman se afasta de Strawson. O primeiro é que a formulação de Strawson do que é racional fazer ao raciocinar indutivamente não é suficiente para dar conta do novo problema da indução, mas apenas do velho. Se fosse uma verdade analítica que dar o assentimento a uma generalização na proporção do número de instâncias favoráveis e da variedade das circunstâncias é ser indutivamente racional, então seríamos igualmente racionais ao assentir a H1 e a H2, o que não pode ser o caso. Até poderíamos manter a formulação de Strawson de que “É uma proposição analítica que é razoável ter um grau de crença em um enunciado que é proporcional à força da evidência em seu favor”, desde que a complementássemos com uma recomendação do que devemos fazer para discriminar as situações em que a evidência conta em favor do enunciado e as situações em que não conta, pois, como é colocado pelo novo problema da indução, não basta que a evidência seja composta por várias instâncias positivas do enunciado em questão. O segundo aspecto é que, como já observamos, para Goodman não há necessariamente uma única maneira de fornecer essa complementação, isto é, de definir 'indução válida', de modo que ele não tomaria essa definição como uma verdade analítica necessária. O terceiro aspecto: 8

Goodman parece se preocupar apenas com a racionalidade, que ele chama de 'justificação', da indução, mas mostra-se cético ou indiferente à pergunta pela confiabilidade da indução. Ele é claro em dizer que essa pergunta não tem resposta se se espera uma prova, isto é, uma resposta que não consulte a prática indutiva. Contudo, ele nada diz acerca de uma resposta que apele à prática indutiva. A psicologia importa Vou defender, seguindo Paulo, que a psicologia importa para a definição de 'indução válida'. Mais do que isso, vou defender que encontramos em Goodman razões para a relevância da psicologia. A pergunta “por que tais e tais predicados são entrincheirados?” não é uma mera curiosidade psicológica que Goodman pessoalmente não quis levar adiante. Saciar essa curiosidade tem impacto na definição de 'indução válida'. E não apenas isso, vou sugerir que o próprio Goodman acaba reconhecendo isso, talvez não tão explicitamente. Há, assim, uma certa tensão nos textos de Goodman. Chamo a atenção para uma outra passagem bastante célebre de Goodman onde ele caracteriza um pouco mais como pretende obter a definição de 'indução válida'. Esse procedimento foi depois batizado por Rawls (1971) de 'equilíbrio reflexivo': “O ponto é que regras e inferências particulares são igualmente justificadas ao colocá-las em acordo umas com as outras. Uma regra é retificada se ela permite uma inferência que não queremos aceitar; uma inferência é rejeitada se ela viola uma regra que não queremos retificar. O processo de justificação é o delicado processo de realizar ajustes mútuos entre regras e inferências aceitas; e no acordo obtido repousa a única justificação necessária para ambas” (GOODMAN, 1983a, p. 64) Diferente da nota citada antes, agora somos avisados que, em virtude do processo de ajuste mútuo para definir 'indução válida', parte da prática indutiva poderá ser sacrificada. Ainda assim, em concordância com o que já havia sido dito, jamais a prática inteira ou mesmo uma parcela significativa dela será sacrificada. Mantém-se o espírito realista. De qualquer modo, temos uma informação nova: tanto induções particulares rejeitadas poderão vir a ser consideradas válidas quanto induções particulares aceitas poderão vir a ser consideradas inválidas como resultado do processo de ajuste mútuo. Isso significa que, embora possa haver diferentes codificações da prática indutiva, elas não serão equivalentes, já que poderão preservar diferentes parcelas dessa prática, e 9

assim Goodman deveria poder nos dizer que algumas são melhores do que outras. De outro modo, seria completamente arbitrário escolher entre uma e outra codificação da prática indutiva. Um caso sintomático. Em um simpósio celebrando o livro de Goodman Linguagens da Arte, Howard Gardner teve, nas palavras de Goodman, “a audácia de introduzir considerações da anatomia e operações do cérebro em uma simpósio filosófico” (GOODMAN, 1984, p. 14). No início de sua resposta, Goodman se pergunta retoricamente se não deveria lembrar a Gardner do lema “Nenhuma inferência da epistemologia a partir da fisiologia”? Até então, nada de novo dada a sua reação ao texto da Judith Thomson. No entanto, na sequência do texto, observamos um Goodman mais simpático à relevância epistemológica da pesquisa psicológica e fisiológica e assim, sugerirei, mais fiel ao equilíbrio reflexivo. Vejamos com esse caso com mais calma. Gardner, em sua conferência, levantou a questão de se há, na literatura psicológica, evidência de que mecanismos cerebrais distintos estão em operação quando trabalhamos com sistemas simbólicos notacionais e quando trabalhamos com sistemas simbólicos que não são notacionais. Sua pergunta é se diferentes habilidades cognitivas e diferentes estruturas cerebrais estão envolvidos quando lidamos com esses sistemas simbólicos que, em Linguagens da Arte, são classificados como de tipos distintos. O interesse de Gardner é identificar pesquisas que revelam quais habilidades cognitivas perdemos quando certas regiões do cérebro são avariadas e quais são retidas. Goodman, já o indicamos, encena inicialmente a rejeição da relevância dessa investigação para a epistemologia. Contudo, na sequência, ele nota e concede que esse tipo de investigação tem repercussões significativas. Se duas habilidades cognitivas aparentemente distintas são perdidas pela avariação de uma mesma parte do cérebro, então devemos procurar por algumas semelhanças nessas habilidades. De modo semelhante, se uma de duas habilidades semelhantes ou próximas é perdida pela avaria de uma parte do cérebro, enquanto a outra permanece, então devemos procurar por alguma diferença entre essas habilidades. Em ambos os casos, podemos ter de retificar a concepção prévia que tínhamos dessas habilidades. Isso significa que achados psicológicos ou neurológicos podem ter impacto na organização e classificação de habilidades cognitivas e, portanto, na teorização epistemologia acerca da nossa cognição. Como conclui Goodman, “a relação dessa pesquisa clínica, tal como Gardner a descreve, com a psicologia e a epistemologia é tão clara que todas essas disciplinas podem ser pensadas como aspectos de uma única ciência da cognição” (GOODMAN, 1984, p. 15). Exatamente pelas mesmas razões, Goodman deve desculpas à Judith Thomson. Se descobrimos, por 10

exemplo, que certa classe de predicados bem entrincheirados tiveram como causa do entrincheiramento a atuação sistemática de uma propriedade psicológica comum A, outros predicados novos e, portanto, ainda não entrincheirados, se aceitos inicialmente em decorrência da presença da propriedade psicológica A, poderiam ser considerados como tão projetáveis quanto os predicados mais entrincheirados. O mesmo se aplicaria a predicados velhos e não muito entrincheirados porque foram pouco usados. De modo semelhante, se certa classe de predicados não-entrincheirados tiveram como causa do não-entrincheiramento a atuação sistemática de uma outra propriedade psicológica comum R, então outros predicados novos se rejeitados inicialmente em decorrência da presença da propriedade psicológica R poderiam ser considerados como tão pouco projetáveis quanto os predicados menos entrincheirados. O mesmo se aplicaria a predicados velhos que, por conta de alguma anormalidade, tiveram alguma aceitação e, portanto, adquiriram algum entrincheiramento, apesar de que, em condições normais, seriam rejeitados pela presença da propriedade psicológica R. Vemos assim que o estudo psicológico do entrincheiramento, na medida em que possa acentuar semelhanças e dissemelhanças entre grupos variados de predicados, auxilia o processo de equilíbrio reflexivo na sua tarefa de codificar a prática indutiva. Se levarmos em consideração o que nos é informado pela psicologia, podemos justificar certa codificação da prática indutiva como melhor do que outra na medida em que ela reflete e sistematiza melhor o conjunto da informação empírica relevante e disponível. Creio que Goodman poderia aceitar tudo isso que dissemos, desde que retifique a sua indiferença inicial pelos estudos psicológicos, e ainda preservar a suas afirmações mais duras acerca da desconexão entre a justificação indutiva e a verdade. Uma codificação da prática indutiva que reflete e sistematiza melhor o conjunto da informação empírica relevante e disponível, incluído aí o conjunto das induções particulares aceitas e rejeitadas, é aquela que satisfaz melhor os cânones da simplicidade. Mas para Goodman, simplicidade não é indício de verdade. Como ele afirma, “almejamos a simplicidade e esperamos pela verdade” (Goodman, 1972, p. 352). A Sugestão do Paulo Creio que podemos fazer melhor. Quine e Paulo sugerem como podemos fazer melhor se procurarmos não quaisquer propriedades psicológicas comuns ao entrincheiramento ou ao nãoentrincheiramento de grupos variados de predicados, mas aquelas que, pela nossa teoria científica atual, tenhamos razões para pensar que rastreiam alguma propriedade do mundo. Por esse caminho, podemos inclusive conectar novamente a validade indutiva à verdade e amenizar a distinção de 11

Strawson. Podemos tomar o equilíbrio reflexivo, o procedimento ampliativo por meio do qual obtemos a “única justificação necessária” (GOODMAN, 1983a, p. 64) para a indução, como não sendo neutro em relação à confiabilidade da indução. Quine inicia o seu artigo “Espécies Naturais” (Quine, 1980) relacionando o paradoxo dos corvos ao paradoxo de Goodman. Chegamos ao paradoxo dos corvos se supomos que a relação de confirmação deve satisfazer simultaneamente o princípio de Nicod e o princípio de equivalência. O resultado paradoxal é ter de aceitar que um sapato vermelho confirma a hipótese de que todos os corvos são pretos, já que instâncias que confirmam uma hipótese também confirmam hipóteses logicamente equivalentes à primeira. Quine sugere que esse paradoxo pode ser tratado pela mesma estratégia geral adotada por Goodman, restringindo a relação de confirmação a hipóteses formuladas por meio de predicados projetáveis. Quine inova impondo uma restrição à projetabilidade: “o complemento de um predicado projetável não precisa ser projetável” (QUINE, 1980, p. 186). Instância positivistas de “não-corvo” e “não-preto” não servem para confirmar hipótese formulados com esses predicados, que não são, então, projetáveis. A razão para essa restrição é patente, como observa Paulo: “falando informalmente, o problema é que há coisas demais, demasiado diferentes umas as outras, nesse saco de gatos” (FARIA, 2002, p. 149). Predicados desse tipo nos levam muito facilmente a conclusões falsas e, portanto, dificilmente se entrincheirariam. A restrição de Quine esbarra em contraexemplos, levantados por Goodman e outros. “frágil”, “flexível”, “inflamável”, “orgânico”, “eletrocondutor”, “colorido”, “metálico”, “combustível”, “visível” são predicados projetáveis cujos complementos são igualmente projetáveis. Muitos desses predicados são disposicionais, mas nem todos, alguns são termos teóricos dicotômicos. Paulo observa que eles apresentam uma característica em comum: são todos não-taxonômicos, isto é, “as classificações dicotômicas que eles operam não se incorporam em sistemas de classificação organizados hierarquicamente pela relação de subordinação entre predicados” (FARIA, 2002, p. 150). Já os predicados taxonômicos são aqueles cujas instâncias “tenham propriedades que podem ser descobertas, que não derivam das características pelas quais os identificamos como membros da classe” (FARIA, 2002, p. 150). Nesse sentido, predicados puramente qualitativos não são taxonômicos. Predicados de espécies naturais, como sugere Paulo, justamente por terem propriedades que podem ser descobertas, são taxonômicos. Assim, temos dois tipos de predicados projetáveis: alguns são taxonômicos, como as espécies naturais e outros são não-taxonômicos, como as disposições e os termos teóricos dicotômicos. Quine espera que os predicados de espécies 12

naturais sirvam como mais uma restrição à projetabilidade. Como podemos ter taxonomias arbitrárias3, serão projetáveis apenas aquelas compostas por espécies naturais. O que é uma espécie natural não nos cabe aqui explicitar. Ressalto apenas que, para Quine, os nossos padrões inatos de similaridade, por razões seletivas, rastreiam espécies naturais 4. Podemos então pensar que aqueles predicados inicialmente mais entrincheirados são justamente aqueles que rastreiam espécies naturais e, portanto, temos razões para pensar que é mais provável que as projeções em que eles figuram sejam verdadeiras do que falsas. Conecta-se, deste modo, o entrincheiramento de certa classe de predicados à verdade. Essa é uma solução parcial, pois ela não dá conta de todos os predicados entrincheirados. Ainda é preciso tratar os predicados projetáveis não-taxonômicos. A estratégia de Paulo é arriscada, já que o predicado “não-taxonômico” é um saco de gatos e qualquer projeção a partir dele levanta suspeitas. A saída encontrada é projetar não sobre o caráter não-taxonômico, mas sobre alguma característica comum entre disposições e termos teóricos dicotômicos. Paulo afirma que “as disposições são, como as propriedades de ser orgânico ou eletrocondutor, altamente teóricas” (FARIA, 2002, p. 150). O caráter altamente teórico desses predicados fazem deles predicados essencialmente projetáveis (ou trivialmente projetáveis?). Essencialmente, eles comporão generalizações que suportam contrafactuais, como é o caso de “flexível” e “inflamável”. “Isso é inflamável” é “uma afirmação implicitamente nomológica, cuja verdade implica a de um condicional subjuntivo” (FARIA, 2002, p. 152). Paulo precisa travar e trava uma breve disputa com Goodman acerca da extensão dos predicados disposicionais. A fronteira é borrada, mas não pode incluir, sem frustrar a sugestão de Paulo, predicados que não sirvam para compor hipóteses projetáveis. Predicados de cores, por exemplo, não são genuinamente disposicionais, segundo Paulo. Como ele exemplifica, embora possamos generalizar que todas as cabines telefônicas na Inglaterra sejam vermelhas, ao “dizer que uma cabine telefônica é vermelha, não estamos dizendo que ela teria tal ou qual propriedade em tais ou quais circunstâncias contrafactuais” (p. 151). Minha dúvida em relação à sugestão do Paulo para os predicados projetáveis não-taxonômicos é se ela não é uma maneira camuflada de apelar para o entrincheiramento. Afinal, o que queremos dizer 3 4

Veja Ian Hacking (1993, p. 287). Essa tese foi melhor desenvolvida, e apoiada em literatura empírica, por Kornblith (1995). Bem resumidamente, se espécies naturais são aglomerados homeostáticos de propriedades e se somos bons na detecção de covariação entre propriedades, então rastreamos espécies naturais confiavelmente. A má notícia é que, em geral, não detectamos covariação confiavelmente. A boa notícia é que somos confiáveis na detecção de covariação em relação a uma classe especial de casos: aqueles casos em que a as propriedades em covariação estão causalmente relacionadas a um aglomerado homeostático de propriedades.

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ao afirmar que um predicado disposicional é altamente teórico e que ele compõe generalizações que suportam contrafactuais senão que esses predicados são profundamente entrincheirados e que essas generalizações suportam contrafactuais justamente porque as projetamos? Além disso, o caráter teórico isoladamente não poderia explicar a projetabilidade já que muitos predicados altamente teóricos, ao longo da história da ciência, perderam a sua projetabilidade, como os predicados “flogisto” e “calórico”. Mesmo em relação à solução mais restrita de Quine-Kornblith, não me parece também que ela dispense completamente o papel do entrincheiramento. Junto-me a Robert Schwartz para alegar que o apelo a espécies naturais apoia-se em conhecimento de fundo que é ele mesmo “dependente de hábitos de categorização e nas distinções auxiliares entre hipóteses projetáveis e não projetáveis que eles informam” (SCHWARTZ, 2005, p. 379). O próprio Quine reconhece que induções baseadas nos nossos padrões inatos de similaridade rastreiam espécies naturais até um certo ponto. “A cor é útil no nível da busca dos alimentos. Aí ela se comporta bem sob a indução e aí se encontra o valor sobrevivente do nosso espaço qualitativo” (QUINE, 1980, p. 193). Porém, “os contrastes que são cruciais para essas atividades podem ser insignificantes para uma ciência mais ampla e mais teórica” (QUINE, 1980, p. 193). Ao teorizar sobre regiões mais amplas que o ambiente relevante para a nossa história seletiva, reagrupamos “as coisas em espécies novas que se mostraram mais convenientes do que as antigas para muitas induções” (QUINE, 1980, p. 193). O entrincheiramento de predicados teóricos dificilmente será explicado apenas pelos nossos padrões inatos de similaridade. Podemos dizer que o reagrupamento de espécies mencionado por Quine é o resultado do equilíbrio reflexivo entre a nossa prática indutiva e o conhecimento científico herdado acerca de nossas habilidades cognitivas, o qual pode nos oferecer pistas acerca de como reagrupar os predicados projetáveis e de como redistribuir o grau de projetabilidade entre eles. Todavia, não só o conhecimento científico herdado acerca de nossas habilidades cognitivas esconde decisões e projeções passadas, como ele não é suficiente para determinar como os predicados projetáveis devem ser reagrupados e como o grau de projetabilidade deve ser redistribuídos entre eles. Não podemos nos furtar completamente do hábito de classificação e da própria projeção. É verdade que, como está sendo sugerido, a projetabilidade não resulta do puro entrincheiramento, mas resulta do entrincheiramento calibrado reflexivamente. Essa visão da projetabilidade a partir do equilíbrio reflexivo é uma que, me parece, encontramos no próprio Quine: “novos agrupamentos, adotados hipoteticamente por sugestão de uma teoria em crescimento, mostram-se propícios a induções e tornam-se assim 14

'fortificados'. Para nossa satisfação, estabelecemos de um novo modo a projetabilidade de um certo predicado por uma tentativa bem sucedida de projetá-lo. Em matéria de indução, nada tem tanto sucesso quanto o sucesso” (p. 193-194) Quine, ao contrário de Goodman, toma o processo contínuo de reajuste da projetabilidade de predicados com o apoio de conhecimento científico relevante como confiável, isto é, esse processo rastreia a verdade, conectando então o entrincheiramento à verdade. Goodman, por ter rejeitado essa conexão, nutre apenas uma esperança de que a verdade esteja ao nosso alcance, como ele deixa claro em algumas formulações: “esperamos por meio do argumento indutivo chegar na verdade” (Goodman, 1983b, p. ), ou “almejamos a simplicidade e esperamos pela verdade” (Goodman, 1972, p. 352). Tivesse ele um espírito mais realista, como Quine e Paulo, talvez ele dissesse que a verdade é o que alcançaremos indutivamente, por razões indutivas. A circularidade envolvida nessa última alegação não deveria afetar a confiabilidade depositada na prática indutiva e no processo de equilíbrio reflexivo por meio do qual a retificamos, ao menos não em alguém com o espírito realista bem entrincheirado. "Not empiricism and yet realism in philosophy, that is the hardest thing." (Wittgenstein). Apesar de Goodman não ter sido fiel à atitude realista ao não tomar a nossa prática indutiva como conducente à verdade, ele manteve o realismo na filosofia ao não buscar por algo completamente externo à prática indutiva para justificá-la. O conhecimento empírico nos auxilia a codificar e a retificar a prática indutiva, mas conhecimento empírico algum serve de substituto para a própria prática e nisso consiste a insistência de Goodman em tomar o entrincheiramento como, em última instância, o nosso ponto de parada para as nossas inquietações indutivas. Interessa-me agora a crítica de Cora Diamond ao projeto de Ramsey para ilustrar esse ponto. Para saber o que enunciados como “todos os homens são mortais” significam, deveríamos, segundo Ramsey, ver como eles resultam dos nossos estados mentais, em especial, deveríamos prestar atenção “na relação entre certas coisas na nossa experiência e o fato de fazermos esses enunciados e a relação entre fazer esses enunciados e os nossos hábitos de julgar acerca de outros itens na nossa experiência” (p. 60). Poderíamos, então, tomar a indução como compreendendo um conhecimento empírico acerca de quais itens na nossa experiência nos levariam, segundo certas leis psicológicas do nosso raciocínio indutivo, a asseverar certos enunciados gerais. A definição de indução válida 15

seria, então, um capítulo da psicologia. Por trás desse projeto, como enfatiza a Cora Diamond, encontramos a ideia de que “termos […] são usados de uma maneira regular e que essas regularidades do nosso uso são conhecíveis como quaisquer outras regularidades, elas estão lá para serem conhecidas” (p. 63). Assim, uma explicação dos nossos hábitos de projeção redundaria em encontrar as regularidades causais que eles manifestam. Se pudermos tomar o problema da projetabilidade, isto é, quais generalizações projetamos segundo os cânones indutivos, como uma instância do problema mais geral de seguir regras, o que Cora Diamond parece fazer, então podemos ver um paralelo entre a resposta de Wittgenstein a Ramsey e a posição adotada por Goodman em relação ao entrincheiramento. O ponto de Wittgenstein contra Ramsey, tal como elaborado por Cora Diamond, se resume no seguinte: claro que há regularidades ou uniformidades subjacentes ao uso de um termo ou subjacentes aos nossos hábitos de projeção, mas a uniformidade que manifestamos ao seguir uma regra, em qualquer um desses casos, não pode ser explicada melhor do que pelos exemplos que daríamos a alguém ou a nós mesmos do que seria seguir essa regra em determinadas circunstâncias (DIAMOND, 1996, p. 66). Essa uniformidade é circunscrita pela prática comum herdada, o “acordo comum acerca do que conta como continuando de um modo particular justifica, serve de base para quaisquer alegações de que alguém continuou errado” (p. 70). O erro filosófico de Ramsey consiste em pensar que há uma maneira independente da prática comum de projetar para especificar a uniformidade que manifestamos ao seguir os cânones indutivos, por exemplo, por meio de uma generalização psicológica causal. Como a fixação de Hylas pela matéria em detrimento das práticas habituais para distinguir real de quimera, Ramsey sucumbe a um erro similar quando pensa que os exemplos habituas para explicar o que alguém quis dizer por “ele deve sempre seguir daquela maneira” são insuficientes, que uma explicação filosófica ou mesmo empírica do que alguém quis dizer é mais adequada. A atitude realista em filosofia, diz Cora Diamond, consiste justamente em evitar esse tipo de fantasia. “O realismo em filosofia, a coisa mais difícil, é de olhos bem abertos deixar de lado a busca por esse tipo de elucidação, a demanda de que uma explicação filosófica acerca do que eu quero dizer torna claro como é fixado, em relação a todas as continuações possíveis, em relação a algum espaço semântico real, qual continuação eu quis dizer. […] A coisa mais difícil no realismo é não levantar certas questões” (DIAMOND, p. 69-70). A prática indutiva enquanto uma prática com uma dimensão normativa não pode ser tomada, se 16

queremos entendê-la e descrevê-la, exclusivamente a partir de uma perspectiva que seja externa à própria prática. Essa foi a tentativa de Ramsey ao tomá-la exclusivamente a partir de uma perspectiva empírica e psicológica. Ao fazê-lo, ele se comprometeu com uma imagem inadequada da prática indutiva e levantou perguntas que não podem ser respondidas. A imagem é profundamente enganadora ao nos levar a pensar que o nosso futuro projetivo está determinado por um certo conjunto de regularidades psicológicas causais conhecidas ou desconhecidas ao invés de resultar do acordo comum continuamente retificado pelo equilíbrio reflexivo entre a nossa herança projetiva e a ciência em curso. Para concluir, eu diria que Goodman mantém uma atitude perfeitamente realista ao encarar a justificação da indução como uma questão interna à própria prática indutiva, recusando-se a levantar questões para as quais não há respostas; no entanto, sua atitude degenera em uma atitude quase realista ao não assumir, como o sujeito comum, que a prática indutiva é conducente à verdade, mesmo na ausência de qualquer prova da sua confiabilidade. Goodman pode ter pecado por excesso de precaução, mas não por completa falta de realismo. Bibliografia: DIAMOND, Cora. The Realistic Spirit: Wittgenstein, Philosophy and the Mind. The MIT Press, 1996. FARIA, Paulo. “Deconstrucción de la irrealidad”. Diánoia, V. XLVII, N. 49, 2002, p. 131-155. GOODMAN, Nelson. Problems and Projects. The Bobbs-Merrill Company, 1972. GOODMAN, Nelson. Fact, Fiction and Forecast. Harvard University Press, 1983a. GOODMAN, Nelson. Ways of Worldmaking. Hackett Publishing Company, 1983b. GOODMAN, Nelson. Of Mind and Other Mathers. Harvard University Press, 1984. HACKING, Ian. “Working in a new World: The Taxonomic Solution”. In: HORWICH, Paul (ed.). World Changes: Thomas Kuhn and the Nature of Science. The MIT Press, 1993, p. 275-310. KORNBLITH, Hilary. Inductive Inference and its Natural Grounds. The MIT Press, 1995. REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction. The University of Chicago Press, 1938. SCHWARTZ, Robert. “A Note on Goodman's Problem”. The Journal of Philosophy, V. 102, N. 07, 2005, p. 375-379. STRAWSON, Peter. Introduction to the Logical Theory. Methuen & Co., 1952. THOMSON, Judith. “Grue”. The Journal of Philosophy, V. 63, N. 11, 1966, p. 289-309. QUINE, Wilfrid. “Espécies Naturais”. In: Coleção Os Pensadores: Quine, Ryle, Strawson, Austin. 17

São Paulo: Abril Cultural, 1980.

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